a extensÃo subjetiva da eficÁcia da coisa julgada … · ... com a ação civil pública tendente...
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UNIVERSIDADE DE RIBEIRO PRETO FACULDADE DE DIREITO LAUDO DE CAMARGO
KAROLINE TORTORO BARROS
A EXTENSO SUBJETIVA DA EFICCIA DA COISA JULGADA DAS
AES COLETIVAS PARA FAVORECER AS PRETENSES
INDIVIDUAIS
RIBEIRO PRETO 2009
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KAROLINE TORTORO BARROS
A EXTENSO SUBJETIVA DA EFICCIA DA COISA JULGADA DAS AES COLETIVAS PARA FAVORECER AS PRETENSES
INDIVIDUAIS
Dissertao apresentada ao Programa de Mestrado em Direito Laudo de Camargo da Universidade de Ribeiro Preto UNAERP, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Direito, sob orientao da Prof. Dr. Maria Cristina Vidotte Blanco Trrega.
RIBEIRO PRETO 2009
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Ficha catalogrfica preparada pelo Centro de Processamento Tcnico da Biblioteca Central da UNAERP - Universidade de Ribeiro Preto -
Barros, Karoline Tortoro, 1983 -
B277e A extenso subjetiva da eficcia da coisa julgada coletiva para
favorecer as pretenses individuais / Karoline Tortoro Barros. - -
Ribeiro Preto, 2010.
155 f. Orientadora: Profa. Dra. Maria Cristina Vidotte B. Trrega.
Dissertao (mestrado) - Universidade de Ribeiro Preto, UNAERP, Direito, rea de concentrao: Direitos coletivos e Funo social do Direito. Ribeiro Preto, 2010.
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Dedico este trabalho as pessoas que amo:
meu av Wilson Tortoro (in memorian) que
minha inspirao e minha av, Esmerce Soares
Tortoro, que foi quem com muito amor
transformou um sonho em realidade.
minha me Welce Soares Tortoro e minha irm
Amanda Tortoro Barros, por tudo.
meu marido Andr Pierri Wagner por todo
amor, carinho e apoio.
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Agradecimentos
Agradeo a Deus pelas portas que se abrem.
Aos meus avs, Wilson e Esmerce, pois sem eles
eu no conseguiria concretizar mais essa etapa da
minha vida.
minha me Welce, minha irm Amanda, por me
ajudarem nesta etapa e em muitas outras.
Ao meu marido Andr por tudo o que fez e faz
por mim. Por todos os sonhos que se concretizam.
Profa. Dra. Maria Cristina Vidotte Blanco
Trrega, pela ateno, nobreza e carinho
dispensado em todos esses anos. No tenho
palavras para agradecer. Mais uma vez.
A todos os meus professores e amigos pelo apoio
e sobretudo pela pacincia das horas difceis
desses ltimos anos.
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Quando vou a um pas, no examino se h boas
leis, mas se as leis que l existem so executadas,
pois boas leis h por toda parte.
(Montesquieu)
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A EXTENSO SUBJETIVA DA EFICCIA DA COISA JULGADA DAS AES COLETIVAS PARA FAVORECER AS PRETENSES INDIVIDUAIS
RESUMO
O instituto da coisa julgada tradicionalmente regulado pelo artigo 472 do Cdigo de
Processo Civil. Ocorre que, inicialmente, com os anseios da sociedade com a proteo da res
publica, aps, com a ao civil pblica tendente a proteo dos interesses difusos e coletivos e
com a entrada em vigor do Cdigo de Defesa do Consumidor, que deu maior efetividade ao
processo e s intenes coletivas como um todo, alm da proteo dos interesses individuais
homogneos, essas positivaes acabaram por afastar-se da tradicional regra, qual seja, a de
que a sentena faz coisa julgada s partes entre as quais dada, no beneficiando, nem
prejudicando terceiros. Sendo assim, o regime da coisa julgada no pode mais ser entendido
nos mesmos moldes pelos quais foi previsto, principalmente em relao s suas extenses
subjetiva e objetiva para alcanar terceiros no participantes do processo coletivo. Nesse
contexto, a presente dissertao vem abordar os efeitos subjetivos e objetivos da coisa
julgada, determinados pela natureza do interesse difuso, coletivo e individual homogneo,
para ao final, registrar a necessidade de uma garantia de uma coisa julgada que seja extensiva
todos que se provem estar vinculados ao decisium, pois o que o Cdigo de Defesa do
Consumidor e as aes coletivas necessitam de efetividade em relao aos interesses, e
aps, aos direitos ali tutelados, em conjunto com os princpios e regramento especfico que
serviro de base este ramo do direito.
Palavras-chave: Aes coletivas. Coisa julgada secundum eventum litis. Coisa julgada in
utilibus.
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LA EXTENSIN SUBJETIVA DE LA EFICACIA DE LA COSA JUZGADA DE LAS ACCIONES COLECTIVAS PARA PROMOVER LAS PRETENSIONE INDIVIDUALES
RESUMEN
El instituto de la cosa juzgada es tradicionalmente regulado por el artculo 472 del Cdigo de
Procedimiento Civil Brasileo. Resulta que, inicialmente con las aspiraciones de la sociedad
con la res publica, despus, con la accin civil pblica para proteger los intereses difusos y
colectivos y con la entrada en vigor del Cdigo de Proteccin del Consumidor, que dio una
mayor eficacia el proceso e a las intenciones colectivas entero, ms all de la proteccin de
los intereses individuales homogneos, tales afirmaciones finalmente fueran apartadas de la
regla tradicional, que es, que la sentencia hace cosa juzgada entre las partes que se dan, que
no se benefician o perjudican terceros. As, el sistema de la cosa juzgada no puede ser
entendido de la misma manera por la cual fue suministrada, especialmente en relacin con
sus extensiones subjetiva e objetiva para lograr terceros no participantes del procedimiento
colectivo. En este contexto, esta disertacin viene abordar los efectos subjetivos e objetivos
de la cosa juzgada, determinados por la naturaleza del inters difuso, colectivo u individual
homogneo, hasta el final, registrar la necesidad de una garanta de una cosa juzgada que sea
amplia a todos que se prueben estar vinculados al decisium, por lo que el Cdigo de
Proteccin del Consumidor y las acciones colectivas necesitan es de una eficacia con
respecto a los intereses, y despus, a los derechos all tutelados, junto con los principios y
reglamento especifico que servirn de base para esta rama del derecho.
Palabras-chave: Acciones colectivas. Cosa juzgada secundum eventum litis. Fuerza de la
cosa juzgada in utilibus.
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SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................................................12
CAPTULO I INTERESSES COLETIVOS......................................................................22
1.1 Interesse e direito................................................................................................................22 1.2 Interesses coletivos lato sensu............................................................................................24
1.2.1 Interesses difusos...............................................................................................26 1.2.2 Interesses coletivos............................................................................................28 1.2.3 Interesses individuais homogneos...................................................................29 1.2.4 Controvrsia doutrinria....................................................................................31
1.3 Princpios do Direito Processual Civil Coletivo e regramento especfico..........................34 1.3.1 Amplo acesso Justia......................................................................................38 1.3.2 Economia processual.........................................................................................44 1.3.3 Preservao da isonomia material ....................................................................45 1.3.4 Prioridade no processamento e durao razovel do processo..........................47 1.3.5 Mxima instrumentalidade, amplitude e utilidade da tutela jurisdicional
coletiva..............................................................................................................50 1.3.6 Flexibilizao e adequao da tcnica processual.............................................51 1.3.7 Ativismo judicial...............................................................................................52 1.3.8 Motivao especfica e de todas as decises judiciais, notadamente quanto
aos conceitos jurdicos indeterminados.............................................................53 1.3.9 Boa-f e responsabilidade das partes, procuradores e demais sujeitos que
atuam no processo coletivo...............................................................................55 1.3.10 Cooperao dos rgos pblicos na produo da prova....................................57 1.3.11 No taxatividade do objeto e dos meios de tutela dos direitos e interesses
coletivos............................................................................................................57 1.3.12 Publicidade e divulgao ampla das aes coletivas e dos seus principais
atos processuais.................................................................................................58 1.3.13 Efetiva precauo, preveno e reparao integral dos danos materiais e
morais, individuais e coletivos, bem como a punio pelo enriquecimento ilcito.................................................................................................................59
1.3.14 Preferncia da execuo coletiva......................................................................61 1.3.15 Aplicabilidade residual, limitada e condicionada do Cdigo de Processo Civil...................................................................................................................62 1.3.16 Interpretao aberta e flexvel...........................................................................62 1.3.17 Algumas consideraes.....................................................................................63
CAPTULO II DA COISA JULGADA TRADICIONAL COLETIVA......................65
2.1 A coisa julgada e o artigo 472 do Cdigo de Processo Civil..............................................65 2.2 Coisa julgada coletiva.........................................................................................................77
2.2.1 Ao popular.................78 2.2.2 Ao civil pblica.............................................................................................87
2.2.3 Mandado de segurana coletivo........91 2.2.4 Cdigo de defesa do consumidor..................98
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CAPTULO III A EXTENSO DOS EFEITOS DA COISA JULGADA COLETIVA PARA FAVORECER AS DEMANDAS INDIVIDUAIS..................................................104 3.1 Critrios do right to opt in e do right to opt out................................................................104 3.1.1 Critrio do right to opt in................................................................................106 3.1.2 Critrio do right to opt out..............................................................................107 3.1.3 Combinao do critrio do right to opt in e right to opt out...........................108 3.2 Coisa julgada secundum eventum litis....109 3.3 Coisa julgada secundum probationem..............................................................................115 3.4 Coisa julgada in utilibus....................................................................................................116 3.5 Funo social do processo.................................................................................................117 3.6 Representao adequada...................................................................................................119 3.7 Efeitos da extenso da coisa julgada coletiva em relao s pretenses individuais........121
3.7.1 Improcedncia..........................................................................................................123 3.7.2 Improcedncia por insuficincia de provas..............................................................124 3.7.3 Procedncia..............................................................................................................124
3.8 Sindicatos e associaes....................................................................................................126 3.9 Artigo 16 da Lei da ao civil pblica..............................................................................127 CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................134 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................141 ANEXOS................................................................................................................................152
ANEXO A Captulo II item 238................................................................................153
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INTRODUO
Em eras remotas, a autotutela regulava as relaes entre os indivduos. Por
autotutela entende-se a lide solucionada pela fora bruta, fazendo-se justia com as prprias
mos. O Estado no interfere nas relaes individuais.
Percebendo a afronta aos conceitos de justia deste sistema, como apontado por
Dias1, a sociedade passou a atribuir a funo de resolver as lides a uma terceira pessoa, de
confiana de ambas as partes.
E assim, o sistema foi aprimorando-se at chegar aos dias atuais, nos quais os
indivduos passaram a ser submetidos palavra final do Estado.
Portanto, havendo uma lide, a mesma dever ser solucionada pelo Estado.
Resolvida a questo, salvo raras excees, a mesma no mais poder ser rediscutida, ou seja,
o decisium prolatado dever ser respeitado entre as partes litigantes. Ocorreu a, a estabilidade
da relao social atravs da imutabilidade do julgado.
Operou-se assim a chamada coisa julgada. Seu instituto tem natureza
multifacetada, podendo ser vista como garantia constitucional, fonte assecuratria de direitos
e de situaes jurdicas e, finalmente, como categoria processual.
Est prevista no artigo 5. XXXVI da Constituio Federal, o qual dispe que a lei
no prejudicar o direito adquirido, o ato jurdico perfeito e a coisa julgada. Foi a mesma
prevista para evitar-se que, uma vez abolida as leis ordinrias que a retratam, ainda sim, a
coisa julgada no deixar de existir, vez que se encontra no rol das garantias fundamentais
previstas na Constituio Federal.
No campo do direito processual, o artigo 472 do Cdigo de Processo Civil
tradicional, preceitua que a sentena faz coisa julgada apenas entre as partes as quais dada,
no beneficiando nem prejudicando terceiros.
Diante disso, apesar da coisa julgada tradicional estar regulada para quedar-se
apenas entre as partes que atuaram no processo, com a recente tutela dos interesses coletivos,
acabou por afastar-se dessa regra tradicional.
Os interesses coletivos, assim entendidos, porque no se dado entender que
direito e interesse so sinnimos, como assemelha-se alguns juristas, foram por Mauro
1 DIAS, Iber de Castro Dias. Processo Civil. vol. I. Campinas: Millenium Editora Ltda., 2003. p. 5.
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Cappelletti, que tomado como norte na presente dissertao, identificados como interesses
oriundos dos conflitos de massa da sociedade, considerando-se que alguns danos ultrapassam
a esfera individual, tendo reflexo em terceiros e chegando a prejudic-los.
Constatava que [...] direitos que pertencessem a um grupo, ao pblico em geral ou
a um segmento do pblico no se enquadravam bem neste esquema2, concluindo que as
regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuao dos juzes no
eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares.
O direito material estava em evoluo na sociedade de massa, ante os conflitos em
desenvolvimento pela classe trabalhadora, no sculo XIX e incio do sculo XX, massacrada
pela indstria capitalista, que tinha como lema de seus dirigentes a frase time is money3.
A histria demonstrou que as contribuies do liberalismo mostravam-se
insuficientes, j que em falncia para resolver as mazelas sociais que se acumularam como
consequncia da implementao de um capitalismo que se mostrou indiferente nova classe
social que surgia: o proletariado.
O Estado social, que viria em seguida, tem como base uma Constituio que alm
de carregar positivados os direitos sociais, regula tambm a ordem econmica e social,
afastando-se e substituindo aquele Estado liberal, tendo como objetivo final a realizao da
justia social.
Ademais, em 1978, o Florence Project4 revelou a expanso do welfare state e a
necessidade de se tornarem efetivos os novos interesses conquistados principalmente a partir
dos anos sessentas pelas minorias tnicas e sexuais.
Para a sociedade brasileira, no final da dcada de setenta, a discusso sobre os
interesses coletivos foi provocada pela excluso da grande maioria da populao de direitos
sociais bsicos, j assegurados em outros pases, dentre os quais o direito moradia e sade.
2 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso justia. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre : Sergio Fabris Editor, 1998. p. 49. 3 Tempo dinheiro. 4 Os coordenadores, no volume III do Florence Project, p. XVIII, de 1978 declararam que: no fcil reivindicar os direitos de segmentos fracos da populao, tanto coletiva quanto individualmente. Toda estratgia tem limitaes ou armadilhas e at o momento as conquistas prticas destas tendncias, as reformas no so to grandes como se poderia desejar. Uma ampla variedade de reformas necessria na profisso de advogado, nos Tribunais e em outros Tribunais. bem verdade que um movimento mundial j comeou, mas est como dissemos, ainda em fase experimental. Um experimento no bem-estar social e mais genericamente na poltica do bem-estar - [It is not easy to vindicate the rights of the weaker segments of the public, either collectively or individually. Every strategy has limitations or pitfalls, and to date the practical accomplishments of these reforms trends are not as great as one could desire. A wide variety of reforms are necessary in the legal profession, courts, and in alternatives to the courts. A large-indeed, a worldwide-movement has begun, but it is, as we said, still in its experimental phase an experiment in welfare state rights and, more generally, in welfare stare politics] - traduo livre. CAPPELLETTI, Mauro. The Florence access to justice Project. General Report, 1998. Book 1. vol. I. p. 67.
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Diante disso, o que prevalecia nesta dcada no Brasil, eram os canais alternativos de justia,
paralelos ao Estado, esse sendo identificado como uma representao positiva autoritria, e
da a impossibilidade do enfoque ao acesso justia aos canais institucionais oriundos do
aparelho estatal.
Neste contexto, aps a excluso poltico-jurdica provocada pelo regime ps-64,
os movimentos que se seguiram contriburam para o debate em torno da necessidade de
mudanas legislativas e institucionais que garantissem novos direitos individuais e coletivos,
sobretudo para a populao marginalizada e para as minorias, j que caracterizada a
incapacidade cada vez mais patente de o chamado bem-estar social suprir os problemas
gerados partir da inaplicabilidade efetiva de preceitos bsicos esboados como direitos
fundamentais.
Em consequncia das reivindicaes da sociedade, a Constituio Federal de 1988
congregando a questo da cidadania e democracia, ou seja, a possibilidade do exerccio e
garantias dos direitos universais legalmente constitudos, assegurou aos cidados o direito ao
processo como uma das garantias individuais, elevando o acesso justia ao patamar de
princpio, vinculando todos os aplicadores e intrpretes do direito. O reflexo dos movimentos
sociais foram incorporados ao artigo 5. em seus 77 incisos, corroborando para o apelido de
Constituio cidad.
Em contra-partida, o acesso coletivo justia tratava-se fundamentalmente de
analisar os novos movimentos sociais e suas demandas por direitos coletivos e difusos, que
ganham impulso com as primeiras greves do final da dcada de setenta e com o incio da
reorganizao da sociedade civil que acompanha o processo de abertura poltica, e lidam com
um Poder Judicirio tradicionalmente estruturado para o processamento de direitos
individuais.
Ante essa necessidade, infra constitucionalmente, leis esparsas foram positivadas
como garantia de acesso ao Judicirio, como a ao popular, ao civil pblica, mandado de
segurana coletivo, ao coletiva, dentre outras.
Com este amplo acesso assegurado, foram no sistema sendo absorvidos outros
princpios e uma gama de regras, criando um regramento especfico, como o direito ao amplo
acesso justia, a economia processual, a preservao da isonomia material, a prioridade no
processamento e durao razovel do processo, a mxima instrumentalidade, amplitude e
utilidade da tutela jurisdicional coletiva, flexibilizao e adequao da tcnica processual, o
ativismo judicial, a motivao especfica e de todas as decises judiciais, notadamente quanto
aos conceitos jurdicos indeterminados, a boa-f e responsabilidade das partes, procuradores e
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demais sujeitos que atuam no processo coletivo, a cooperao dos rgos pblicos na
produo da prova, a no taxatividade do objeto e dos meios de tutela dos direitos e interesses
coletivos, a publicidade e divulgao ampla das aes coletivas e dos seus principais atos
processuais, a efetiva precauo, preveno e reparao integral dos danos materiais e morais,
individuais e coletivos, bem como a punio pelo enriquecimento ilcito, a preferncia da
execuo coletiva, a aplicabilidade residual, limitada e condicionada do Cdigo de Processo
Civil e a interpretao aberta e flexvel, destinados aos interesses coletivos.
Esses interesses, que podem ser difuso, coletivo ou individual homogneo
dependem da natureza do dano que lhe afeta.
Algumas vezes, esse dano mostrar-se- to devastador que ser impossvel
identificar qualquer lesado, j que os mesmos sero indeterminados ou indeterminveis. O
dano ocorre de tal forma, que se alastra e atinge toda a sociedade.
Esses lesados, no momento que forem atingidos, apresentaro interesses difusos,
mas o Estado jamais ir identific-los de antemo. Primeiramente, verificar-se- o dano.
Aps, os indivduos lesados.
Nestes casos, surgem duas possibilidades de tutela: a ao civil pblica e a ao
individual, j que no dado ao sistema cindir o princpio do amplo acesso justia.
Oportuno faz-se registrar que mesmo que indivduo quede-se inerte, caso a ao
civil pblica seja julgada procedente, a coisa julgada o atingir, e mais, atingir todos
indistintamente, j que no se pode identific-los at este momento.
Isto porque, com a deciso transitada em julgado, o ttulo, que executivo, poder
ser pleiteado pelo lesado, devendo na nova ao, agora individual, provar-se o nexo causal
entre o dano sofrido e quem o pleiteia. Provado, passa-se fase de liquidao e aps, ao
cumprimento de sentena.
sabido que para parte da doutrina imprprio falar-se em execuo, j que no
se tem at o momento, um ttulo lquido, certo e exigvel.
No se nega a impropriedade, mas em nosso entendimento, trata-se de uma
execuo com carga de ao de conhecimento, verdade, mas apenas no requisito formal, isto
porque preenchido esse requisito, o ttulo passa fase de liquidao, sendo que no momento
do reconhecimento da legitimidade de quem postula, o ttulo tornou-se certo e exigvel.
O que queremos dizer que ttulo sempre foi, porque, abstratamente, se o lesado
preenche todos os requisitos, a deciso lhe servir para saltar as fases da ao de
conhecimento.
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No se aprofundar neste contexto, j que matria alheia ao que nesta dissertao
investiga-se.
Retornando aos interesses coletivos, literalmente, os mesmos possuem condies
perfeitas de se identificar os titulares dos interesses lesionados, em razo do necessrio
vnculo associativo ou corporativo que os prende.
Portanto, neste caso, por ser o objeto cindvel, j que conhecidos os lesados
previamente condenao, os efeitos da coisa julgada estendem-se ultra partes, limitando-se
ao grupo, categoria ou classe, cujos membros so unidos por uma mesma relao jurdica-
base, excetuando-se igualmente a improcedncia do pedido decorrente da insuficincia de
prova.
No tocante aos interesses individuais homogneos, esses apresentam uma origem
comum, constatada a divisibilidade do dano e da responsabilidade que lhes afeta.
Por ser assim, a extenso dos efeitos da coisa julgada erga omnes, desde que o
pedido seja julgado procedente, em benefcio de todas as vtimas e sucessores, j que a coisa
julgada nesse caso no pode prejudicar o indivduo individualmente considerado.
Alm de, neste ponto, existir uma das maiores controvrsias doutrinrias e
jurisprudencial, j que muitos confundem as normas que regem os interesses difusos
transportando-as para este sistema, tambm, verifica-se que a coisa julgada coletiva
extensiva aos efeitos da coisa julgada em relao pretenses individuais.
Nesse contexto, o presente trabalho vem abordar, at onde vo os efeitos da
extenso subjetiva da coisa julgada e se esses efeitos podem, de algum modo, prejudicar as
pretenses individuais, j que o regime da coisa julgada no pode mais ser entendido nos
mesmos fins pelos quais foi previsto tradicionalmente, principalmente em relao s suas
extenses subjetiva e objetiva para alcanar terceiros no participantes do processo coletivo.
Ademais, far parte da investigao a resposta indagao se a coisa julgada
secundum eventum litis aplica-se ao caso e se os regimes jurdicos da coisa julgada coletiva,
expressos no artigo 103 do Cdigo de Defesa do Consumidor, se aplicam s demais aes
para a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogneos.
Tambm, secundariamente, ser analisada a questo do impedimento do
ajuizamento ou tramitao de ao individual quando pendente ao coletiva e se esse
impedimento traduz-se em cerceamento de direito ou mero atendimento do regramento
especfico das aes coletivas, notadamente a economicidade.
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A coisa julgada secundum eventum litis que tem como traduo sorte da lide,
dentro do contexto da extenso s demandas que versem sobre interesses individuais
homogneos ter um fim em si mesma ou essas pretenses individuais poderiam beneficiar-se
das vantagens advindas com o proferimento de eventual sentena de procedncia em ao
coletiva, de modo que a coisa julgada produziria efeitos erga omnes? Ou, em sentido
contrrio, as pretenses coletivas individuais dos particulares no seriam prejudicadas pelo
advento de sentena desfavorvel, ou seja, somente so abrangidas secundum eventum litis,
conforme preceitua o artigo 103, 1. e 2., do Cdigo de Defesa do Consumidor?
Tambm, levar-se- em considerao o caso de a sentena que julgar a ao
coletiva vir a ser improcedente, mas no por insuficincia de provas, se essa sentena faz
coisa julgada ultra partes para atingir os legitimados do artigo 82 Cdigo de Processo Civil,
no atingindo as aes individuais que podem continuar a serem propostas.
Caso a sentena seja improcedncia por insuficincia de provas, at mesmo
aqueles que foram partes podem repropor a ao e se a sentena coletiva, assim, no far
coisa julgada material, no atingindo os indivduo, ser considerado.
No caso de associaes ou sindicatos, ser que as aes coletivas propostas no
induzem litispendncia com as aes individuais e os efeitos erga omnes ou ultra partes s
beneficiaro os autores das aes individuais se tiverem requerido a sua suspenso no prazo
de 30 dias, a contar da cincia nos autos do ajuizamento da ao coletiva?
No caso acima, a Medida Provisria 1798-1 de 11.02.1999, prev que, na hiptese
de ao coletiva em defesa em defesa de interesses e direitos de seus associados, a sentena
abranger apenas os substitudos que tenham, na data da propositura da ao, domiclio no
mbito da competncia territorial do rgo prolator. Porm, tal dispositivo est em
dissonncia com a realidade, precisando-se de adequao para beneficiar a todos, pois vrios
problemas surgem de tal dispositivo que sero tratados ao longo da investigao.
Pretendeu-se analisar os aspectos tericos do tema proposto, de molde a permitir
um enfoque prtico das questes estudadas, fornecido principalmente pela anlise crtica da
lei, da doutrina e da jurisprudncia brasileira.
Especificamente, pretende-se trazer argumentos para aprimorar o instituto da coisa
julgada coletiva, afastando-a da tradicional regra, qual seja, a de que a sentena faz coisa
julgada s partes entre as quais dada, no beneficiando, nem prejudicando terceiros,
abordando-se, tambm, os efeitos subjetivos e objetivos da coisa julgada, determinados pela
natureza do interesse difuso, coletivo e individual homogneo, para assim contribuir para esse
sistema to controvertido na doutrina e nos tribunais brasileiros.
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A justificativa para a necessidade investigao traduz-se no instituto da coisa
julgada, que regulado pelo artigo 472 do Cdigo de Processo Civil. Ocorre que, com a
entrada em vigor do Cdigo de Defesa do Consumidor, que deu maior efetividade ao processo
coletivo, acabou o mesmo por afastar-se da tradicional regra, qual seja, a de que a sentena
faz coisa julgada s partes entre as quais dada, no beneficiando, nem prejudicando
terceiros.
Sendo assim, o regime da coisa julgada no pode mais ser entendido nos mesmos
fins pelos quais foi previsto, principalmente em relao s suas extenses subjetiva e objetiva
para alcanar terceiros no participantes do processo coletivo.
Por isso, justifica-se o tema aqui proposto, vindo o presente trabalho abordar os
efeitos subjetivos e objetivos da coisa julgada, determinados pela natureza do interesse
difuso, coletivo e individual homogneo, afastando-se dos velhos paradigmas da coisa
julgada tradicional, levando necessidade de nova adaptao das teorias processualistas de
acordo com a relevncia do bem jurdico tutelado, visando a efetiva instrumentalidade e
funcionalidade do instrumento processual.
A fundamentao terico-emprica para os questionamentos acima expostos, segue
a orientao de Dinamarco5, que com maestria afirma que sem um renovado mtodo de
pensamento, no h programa de reforma que tenha sucesso.
Por isso, deve-se deixar o pensamento coletivo no ser a torto e a direito invadido
por comparaes com o instituto de direito processual civil tradicional.
Tanto assim que Silva j dizia que a principal caracterstica da coisa julgada
coletiva consiste no fato de que ela no respeita os limites subjetivos traados pelo artigo 472
do Cdigo de Processo Civil, tanto entre os legitimados para demandar a tutela dos interesses
transindividuais, como em face das pessoas individualmente lesadas6.
Tucci afirma que o motivo para tal extenso est baseado no Cdigo de Processo
Civil, pois aduz que no entanto, inspirando-se no postulado da economia processual, o
Cdigo de Defesa do Consumidor admite o aproveitamento da coisa julgada favorvel
formada no processo da ao civil pblica, possibilitando aos terceiros beneficiados e seus
5 DINAMARCO, Cndido Rangel. A reforma do Cdigo de Processo Civil. 2. Edio. So Paulo: Malheiros, 1995. p. 7. 6 SILVA, Marcelo Pereira da. A coisa julgada nas aes coletivas. Revista Direito em Foco. p. 76-98. Rio de Janeiro: Editora Impetus, ano 1. n. 2. jan/2006. p. 43.
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sucessores, sem a exigncia de nova sentena condenatria, que procedam liquidao e a
execuo individual, pelos respectivos titulares do direito material7.
Para Maiolino, nosso sistema diferente do adotado no sistema norte-americano,
explicando o mesmo que a opo do Cdigo de Defesa do Consumidor foi de adotar os
limites subjetivos da coisa julgada secundum eventum litis, apenas atingindo aquele que no
participou como parte no processo, mas componente da classe, se a sentena lhe tiver sido
favorvel (in utilibus), no aceitando o sistema das class actions do direito americano, onde
os limites da coisa julgada seriam aferveis pelo juiz, em processo futuro, observada a
adequada representatividade do representante da classe e desde que tenha utilizado todos os
meios de que dispunha para defender, naquele processo, os direitos e interesses de classe8.
A problemtica da extenso da coisa julgada tambm tratada por Wambier: no
direito brasileiro, no se adotou o modelo norte-americano do opt in e opt out das class
actions for damages, em que se permite ao indivduo escolher se deseja ou no ver sua esfera
jurdica atingida pela soluo judicial concedida na ao coletiva. Diante disso, no direito
brasileiro incumbe ao juiz determinar se certo direito individual deve (ou no) ser veiculado
em ao civil pblica, em razo dos resultados negativos a que eventual procedncia do
pedido pode conduzir9.
Tanto assim que o mesmo autor traz o seguinte exemplo: em ao coletiva
visando a anulao de contratos de emprstimos, aqueles que os tiverem feito, se quiserem
obter outro emprstimo, devero submeter-se a juros mais altos, justamente em razo da
menor garantia que ter o credor-mutuante.
Em ao coletiva proposta na cidade de Porto Alegre, na 16. Vara Cvel do Foro
Central, processo nmero 001/1.07.0104162-9, o MM. Juiz de Direito decidiu que por estes
fundamentos, o presente processo dever atingir todas as pessoas que, no Estado do Rio
Grande do Sul, mantiveram com a parte requerida a relao de consumo litigada, atendendo a
restrio imposta pela independncia judicial no que diz s partes que ajuizaram aes
individuais em outras unidades judiciais, seara em que a suspenso depender, obviamente, de
manifestao dos titulares da jurisdio.
7 TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Limites subjetivos da eficcia da sentena e da coisa julgada nas aes coletivas. Revista de Processo. v. 143. p. 42-64. jan/2007. p. 57. 8 MAIOLINO, Eurico Zecchin. Coisa julgada nas aes coletivas. Revista de Processo. v. 123. p. 60-75. mai/2005. p. 67. 9 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentena Civil: Liquidao e Cumprimento. 3. Edio. So Paulo: RT, 2006. p. 365.
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Porm, tal deciso est em confronto com o artigo 16 da Lei de Ao Civil
Pblica, pois o mesmo dispe que: haver coisa julgada erga omnes, na sentena civil
proferida em processo coletivo, nos limites da competncia territorial do rgo prolator.
H uma importante deciso do Juiz Joo Ricardo dos Santos Costa da 16. Vara
Cvel da Comarca de Porto Alegre, contradizendo o exposto acima, que expandiu os efeitos
da sentena todo o Estado: importante termos presente que o efeito erga omnes da coisa
julgada vital para a plena introduo, no nosso Pas, da via coletiva de enfrentamento dos
conflitos sociais de massa. Essa constatao relevante para entendermos que no se pode
restringir os efeitos de uma deciso judicial que venha a garantir direitos indivisveis sem ferir
o pacto constitucional. Tenho, desta forma, que dever ser a indivisibilidade do dano o critrio
determinante para se definir o alcance da deciso, critrio este que dar tambm a amplitude
territorial da futura sentena, como dito, no pela regra da competncia motivada pela diviso
do trabalho do Poder Judicirio no territrio nacional.
Outra questo importante a extenso da coisa julgada tratando-se de sindicato ou
associao. Para Gomes Junior, as aes coletivas propostas por sindicato ou associao civil
no induzem litispendncia com as aes individuais. Os efeitos erga omnes ou ultra partes
s beneficiaro os autores das aes individuais se tiverem requerido a sua suspenso no
prazo de 30 dias, a contar da cincia nos autos do ajuizamento da ao coletiva10.
Essa questo gera dvidas, pois a Medida Provisria 1798-1 de 11.02.1999 prev
que, na hiptese de ao coletiva proposta por entidade associativa em defesa de interesses e
direitos de seus associados, a sentena abranger apenas os substitudos que tenham, na data
da propositura da ao, domiclio no mbito da competncia territorial do rgo prolator
E, assim, tantos outros autores renomados vm contribuindo para tentar solucionar
as questes aqui propostas. Pretende-se, assim, demonstrar que a coisa julgada tradicional,
acabou por afastar-se da coisa julgada coletiva, devendo essa ltima ter regras prprias, pois,
seus efeitos no se restringem entre as partes do litgio.
A fim de realizar-se o objetivo do presente trabalho, foi utilizado o mtodo
dedutivo, o qual caminha do geral para o particular, partindo-se da premissa de uma viso
ampla e geral do sistema tradicional da coisa julgada para a particularizada coisa julgada nas
aes coletivas no direito brasileiro. Visou-se, com isso, chegar a anlise da extenso
subjetiva da coisa julgada nas aes coletivas para as demandas individuais.
Como mtodos auxiliares, foram empregados o mtodo lgico, sistmico, 10 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual Civil Coletivo. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 193.
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axiolgico e finalstico, onde se demonstrar que no caracterstica da coisa julgada coletiva
a extenso de seus efeitos somente entre as partes s quais dada, ao contrrio do que
tradicionalmente entende-se.
Atravs do mtodo procedimental comparativo, pretendeu-se demonstrar a
necessidade de se analisar as aes coletivas, seus procedimentos e seus institutos de maneira
diversa da efetuada tradicionalmente no estudo das aes individuais que visam a tutela dos
direitos individuais.
Assim, foi realizado para tanto, como procedimentos instrumentais, pesquisas
bibliogrficas, doutrinrias, legislaes pertinentes ao tema, jurisprudncia, revistas, jornais e
todo material fornecido via internet.
O procedimento de anlise, interpretao, comparao e classificao desses
dados a forma de se obter a devida fundamentao relacionada ao tema, para,
posteriormente, chegar-se concluso, qual seja, esta dissertao jurdica.
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CAPTULO I
INTERESSES COLETIVOS
1.1 Interesse e direito
Interesse significa utilidade, proveito, convenincia ou prerrogativa. J o direito
aquilo que conforme s regras, conforme lei11.
Os interesses coletivos comearam a ser investigados aps as crticas feitas por
Cappelletti12, o qual defendeu a tese de que no havia no sistema apenas a bipartio entre
direito pblico ou privado, como de costume.
Essa nova categoria, emanada do intermdio dos dois extremos, a qual, em sua
arcaica13 interpretao, transcendia os limites do indivduo, mas no se podia aceitar que fosse
pblica, ganhou notria controvrsia no tocante ao uso do vocbulo interesse e direito.
Em grande parte das obras doutrinrias pesquisadas, bem como nas leis, observa-
se a fungibilidade dessas expresses, como se as duas fossem sinnimas. Em outras, nem h
esta distino14.
Veja-se que o artigo 81, pargrafo nico, II, do Cdigo de Defesa do Consumidor,
menciona um ou outro: interesses ou direitos coletivos.... Esta alternatividade nos leva a
crer que se trata de um caso de semelhana. No entanto, tratar-se- de uma falcia15.
11 Novo dicionrio da lngua portuguesa. So Paulo: Editora Rideel, 2007. p. 64 e 109. 12 CAPPELLETTI, Mauro. Formazioni sociali e interessi di gruppo davanti alla giustizia civile. Rivista de Diritto processuale. v.3. 1975. p. 367. 13 No sentido de obsoleta. 14 Cf. GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual Civil Coletivo. 2. edio. So Paulo: SRS Editora, 2008. 15 Reegistra-se aqui que h autores que no vem grande importncia nesta diferenciao, como Eurico Zecchin Maiolino, que em sua obra, Coisa julgada nas aes coletivas (Revista de Processo n. 123, So Paulo: RT, 2005, p. 62) afirma: Os termos interesses e direitos foram utilizados como sinnimos, certo que, a partir do momento que passam a ser amparados pelo direito, os interesses assumem o mesmo status de direitos, desaparecendo qualquer razo prtica, e mesmo terica, para a busca de uma diferenciao ontolgica entre elas; Kazuo Watanabe, d por certo que a adoo dos interesses, ao lado dos direitos, pela lei, conferiria aos interesses status assemelhado ao dos direitos, no havendo qualquer razo prtica capaz de estimular essa discusso (Cdigo brasileiro de defesa do consumidor comentados pelos autores do anteprojeto. 2. edio. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1992. p. 503), Luiz Rodrigues Wambier, entende que com maior ou menor rapidez, com pouco ou muito preconceito, os novos direitos j se firmaram no nosso sistema jurdico, restando aos estudiosos encontrar solues criativas para os diversos problemas decorrentes da importante novidade (Sentena Civil: liquidao e cumprimento. So Paulo: RT, 2006. p. 297) e Elton Venturi, que explica que de todos os modos, faz-se necessrio acentuar que no deve existir, para fins de interpretao do sistema do Cdigo Modelo de Processos Coletivos, qualquer distino entre as expresses direitos ou interesses. Ambas buscam significar o objeto da tutela jurisdicional coletiva - [de todos los modos, es necesario acentuar que no debe
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23
O interesse no se insere no conjunto de direitos construdo culturalmente sendo
apenas a demonstrao de uma vontade que se externa. J o direito garantia, pois est
incorporado ao sistema jurdico, representado pelo conjunto de normas vigentes no pas.
Nas palavras de Souza16, o interesse traduz uma vontade, um desejo, enquanto o
direito implica sua incorporao ao sistema jurdico.
No entanto tal diferenciao e eqidistncia quedam-se apenas neste momento, j
que, quando o interesse submete-se ao processo legislativo, promulgado, torna-se norma, e
assim, direito tutelado pelo sistema.
Apesar das crticas de Gidi17, acredita-se que tal distino oportuna para que
estes interesses sejam assimilados nossa cultura e integrem o sistema, pois, como afirma o
mesmo:
Essa situao traduz uma postura doutrinria extremamente vinculada aos padres rgidos com que se configura o tratamento dado aos chamados direitos subjetivos tradicionais.
Vinculada ou no, o sistema processual civil brasileiro ainda carrega traos da
cultura italiana. No que isto seja um permissivo amarras doutrinrias. O que interessa que
os interesses coletivos em sentido lato sensu, ou seja, os interesses difusos, coletivos e
individuais homogneos, sejam cada vez mais integrados ao sistema processual civil
brasileiro, para que enfim, recebem a proteo adequada.
Sendo assim, no presente trabalho ser adotada a expresso interesse, j que,
como visto, a que consideramos melhor para a aplicao na tutela desses tipos de interesses
aqui estudados.
existir, para fines de interpretacin del sistema del Cdigo Modelo de Procesos Colectivos, cualquier distincin entre las expresiones derechos o intereses. Ambas buscan significar el objeto de la tutela jurisdicional colectiva] traduo livre (In: GIDI, Antonio; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (Org.). Cdigo Modelo de Procesos Colectivos: un dilogo iberoamericano. Mxico: Porra, 2008. p. 10). Tratando-se de um trabalho cientfico, como o caso, de cautela que se faa a correta distino de palavras ou expresses que se diferenciam e no tratam do mesmo objeto. 16 SOUZA, Motauri Ciocchetti de. Ao civil pblica e inqurito civil. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 01. 17 GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendncia em aes coletivas. So Paulo: Saraiva, 1995. p. 17.
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24
1.2 Interesses coletivos lato sensu
Na maioria dos pases da civil law18 h o reconhecimento de duas espcies de
interesses coletivos que seriam os difusos e os individuais homogneos19.
J, em nosso pas, a disciplina das aes coletivas deu-se relevantemente a partir
do advento da Lei da ao civil pblica no. 7.347/85, bem como pelo Cdigo de Defesa do
Consumidor, consubstanciada na Lei no. 8.078/90.
No entanto, antes disto, Milar20 nos apresenta a mudana de mtodo e atitude no
tratamento do problema, passando-se da considerao individual coletiva:
Em 1984, segundo relata Walter Ceneviva, foi detectada que a safra gacha de morangos estava contaminada com produtos cancergenos. Ciente do fato, declarou o Governador do Estado que nada faria para impedir o consumo do produto, atribuindo-o cautela dos consumidores. Ocorre que o dano causado a cada indivduo era to fragmentado, e normalmente seria to pequeno que dificilmente poderia ser apreciado isoladamente. Demais, no havia instrumento judicial adequado composio global desse dano, obrigando cada prejudicado, se quisesse, a procurar seu direito pela parcela do dano global (difuso) que sofreu. Verdadeira quimera.
Conclui o autor dizendo que com a entrada em vigor da Lei da ao civil pblica,
tal questo fora enfrentada.
No entanto, nos brinda o mesmo autor com outro fato pontual:
Em 1986, nova e terrvel ocorrncia: em face da carncia de leite para consumo da populao do pas, grande quantidade desse produto foi importada do continente europeu, onde, no dia 26 de abril, havia ocorrido o acidente nuclear na usina termoeltrica de Tchernobyl, da ento Unio Sovitica. Milhares, centenas de milhares e mesmo milhes de pessoas estavam sujeitas a serem atingidas pela ingesto do produto, que trazia em si uma elevada dose de perigo para a sade. Aqui, entretanto, o fato encontrou as portas do Judicirio j entreabertas ao clamor da comunidade para a tutela dos conflitos de massa, o que possibilitou, atravs de um nico procedimento judicial, estribado naquela lei, o embargo da comercializao do produto condenado21.
18 Sistema em que o direito tem base no direito romano, como o brasileiro. 19 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendncias em matria de aes coletivas nos pases de civil law. Revista de Processo. So Paulo. v. 33. n. 157. mar/2008. p. 150. 20 MILAR, Edis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudncia, glossrio. 5. ed. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 1115. 21 Idem. p. 1115.
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25
Assim, diante do fato ocorrido acima, e de outros estudados22, pode-se perceber
que foi efetivamente com o Cdigo de Proteo e Defesa do Consumidor que a tutela dos
conflitos de massa ganharam fora. J no se pode comparar o incomparvel, como o trato do
objeto coletivo e do individual.
Wambier23, lecionando sobre este assunto, afirma que:
[...] h uma faixa intermediria de direitos, que no se situam nem no campo do direito privado, amoldado de forma a obrigar as relaes jurdicas entre particulares, nem no do direito pblico, que trata das relaes entre o Estado e quaisquer de seus muitos sditos.
Historicamente, com a massa trabalhadora, que comeou a organizar-se ainda no
sculo XIX e incio do sculo XX, ocorreu uma mudana nas relaes, j que o Estado
contemporneo conta com a participao da sociedade civil organizada. Diferentemente do
modelo Estado interventor que detm o controle de tudo, no modelo atual h um espao para
o pblico no estatal. Alis, essa faixa intermediria tem um nome tcnico que
consagrado sobretudo no exterior, sugerido por Bresser Pereira24, que exatamente o pblico
no estatal25.
Lisboa26 j afirmava que esta faixa intermediria, apesar de no ser nem privada,
j que no interessa apenas a um particular, nem pblica, j que relativa s necessidades de
toda a populao, em que o beneficirio direto o Estado, ainda assim, tambm no pode ser
caracterizada por um nmero mnimo de pessoas.
22 O primeiro caso a ser julgado pelo Superior Tribunal de Justia, ante a questo do direito do consumidor, foi no Recurso Especial 4968/PR, tendo como Relator o Ministro Slvio de Figueiredo Teixeira, da 4. Turma, em 14.05.1991, ficando assim ementado: Direito Civil. Compra e venda. Vcio redibitrio em uma das peas. Exegese dos artigos 1101, 1102, 1104 e 1138 do Cdigo Civil. Incidncia do ltimo. Defesa do Consumidor. Recurso no conhecido. I Para a defesa do seu direito, a lei confere, ao adquirente da coisa portadora de vcio redibitrio aes para rejeitar aquela, redibindo o contrato, ou para reclamar abatimento do preo. II Em se tratando de aquisio de peas em conjunto, no optando pelo abatimento do preo e nem aceitando a substituio da coisa danificada por outra idntica, sujeita-se o consumidor a norma do art. 1138 do Cdigo Civil, segundo a qual o defeito oculto de uma no autoriza rejeio de todas. III - A defesa do consumidor, hoje elevada a patamar constitucional, deve merecer do julgador exegese sistmica, sob pena de ofensa ao ordenamento jurdico. 23 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentena Civil: liquidao e cumprimento... op. cit. p. 293. 24 BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos; GRAU, Nuria Cunill. (Org.). O pblico no estatal na reforma do Estado. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. 25 Matria ministrada nas aulas de Hermenutica da Professora Maria Cristina Vidotte Blanco Trrega na Universidade de Ribeiro Preto, no curso de mestrado no ano de 2007. 26 LISBOA, Roberto Senise. Contratos difusos e coletivos: consumidor, meio ambiente, trabalho, agrrio, locao. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 55.
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26
Os interesses transindividuais ou metaindividuais so interesses concernentes a um nmero expressivo de pessoas, importando salientar que uma quantificao mnima no deve ser efetuada, para sua constatao, mas sim a aferio de uma conflituosidade que envolva a comunidade, grupos, categorias ou indivduos com comunho de interesses e titularidade diversa de direitos subjetivos.
Passa-se, neste contexto, definio de alguns conceitos pontuais que so
indispensveis para a melhor compreenso deste tpico: os interesses difusos, coletivos e
individuais homogneos.
1.2.1 Interesses difusos
Os interesses difusos apresentam uma impossibilidade prtica de se determinar os
titulares dos interesses controvertidos, definindo-se difuso como algo em que h difuso, que
difundido27. So aqueles que afetam toda a coletividade em sua definio mais ampla, no
se podendo indicar, de antemo, os indivduos que foram, esto sendo ou iro ser afetados.
Seus reflexos se irradiam de tal forma que h a necessidade da fixao do dano, dispensando-
se a identificao dos possveis lesados.
Estes interesses esto previsto no inciso I, pargrafo nico do artigo 81 do Cdigo
de Defesa do Consumidor:
Art. 81.
Pargrafo nico.
I- interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Cdigo, os transindividuais, de natureza indivisvel, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstncias de fato;
Assim, a despeito de no haver um vnculo jurdico entre os respectivos sujeitos,
os mesmos so indivisveis. No entanto, apesar de indivisvel, podem esses interesses serem
pleiteados pelos legitimados elencados na lei28 ou pelo indivduo isoladamente considerado,
mediante ao ordinria, desde que presente o nexo de causalidade entre o dano e o fato
sofrido pelo mesmo, ou no que couber, a ao popular. 27 Novo dicionrio da lngua portuguesa. op. cit. p. 54. 28 Legitimados constante do rol do artigo 82 do Cdigo de Defesa do Consumidor.
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27
Ante a titularidade dos interesses aqui discutidos, leciona Leonel29:
Tomando como exemplo a tradicional referncia s questes do meio ambiente para a compreenso da natureza e dimenso destes interesses, nota-se que o direito ao ar puro, limpeza das guas, higidez das florestas, preservao das espcies animais so inerentes a toda a humanidade, ou, de forma mais especfica, quela comunidade que habita em determinada cidade, estado ou regio ou pas. Sua titularidade de pessoas indeterminadas e indeterminveis, que no podem ser identificadas precisamente; so unidas por uma simples circunstncia de fato ou contingencial extremamente mutvel, o fato de residirem em determinado local ou regio. O objeto do seu interesse indivisvel, pois no se pode repartir o proveito, e tampouco o prejuzo, visto que a leso atinge a todos indiscriminadamente, assim como a preservao a todos aproveita; no h vnculo jurdico preciso entre os titulares.
Portanto, os interesses difusos so aqueles que os titulares do direito no so
determinados e nem mesmo determinveis, pois embora digam respeito a um grupo de
pessoas, no possvel precisar-lhes claramente a respectiva titularidade. Embora, como
afirmado acima, ter o indivduo titularidade para pleitear, no coletivamente, j que no
legitimado, mas no seu mbito de inafastabilidade jurisdicional, o dano que lhe causado.
Meroi30 exemplifica-os:
Exemplos de situaes que caracterizam os interesses difusos podem ser a publicao de propaganda enganosa sobre um determinado produto, a venda ilegal de um espao de uso pblico, a comercializao e distribuio de um produto defeituoso, a contaminao ambiental do ar ou gua, a inatividade da Administrao Pblica na prestao de um servio ou sua atuao ilcita prejudicial para uma categoria de sujeitos, etc.
Contemplam este sistema a ustria, Chile, Peru, Provncia de Catamarca
(Argentina) e do Uruguai31.
Por ser indivisvel o dano ou a leso e indeterminados os lesados, no h como
cindir os efeitos de eventual condenao. Assim, a extenso da eficcia da coisa julgada
29 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual de Processo Coletivo. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 98-99. 30 [Ejemplos de situaciones que dan lugar a intereses difusos podran ser la propagacin de una publicidad engaosa sobre un determinado producto, la venta ilegal de un espacio de uso pblico, la comercializacin y distribuicin de un producto defectuoso, la contaminacin ambiental del aire o el agua, la inactividade de la administracin en la prestacin de un servicio o su actuacin ilcita perjudicial para una categora de sujetos, etctera] traduo livre. MEROI, Andrea A. Procesos Colectivos: recepcin y problemas. 1. edio. Santa F: Rubinzal-Culzoni, 2008. p. 52. 31 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendncias em matria de aes coletivas...op. cit. p. 151.
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28
erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente com fundamento na insuficincia da
prova, situao que possibilita a qualquer legitimado ajuizar nova ao, com idntica causa de
pedir, valendo-se de novas provas.
1.2.2 Interesses coletivos
Os interesses coletivos apresentam uma relao jurdica base que tem como escopo
unir o conjunto de pessoas, caracterizando-se por um mnimo de organizao, para que seja
possvel a identificao dos membros do grupo e por um vnculo jurdico subjacente, comum
a todos os integrantes deste grupo.
Estes interesses esto previstos no artigo 81, pargrafo nico, II, do Cdigo de
Defesa do Consumidor:
Art. 81
Pargrafo nico.
II interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Cdigo, os transindividuais de natureza indivisvel de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrria por uma relao jurdica base;
Conforme preceituado acima, pode-se concluir que nos interesses coletivos h
condies perfeitas de se identificar os titulares dos interesses lesionados, em razo do
necessrio vnculo associativo ou corporativo que os prende.
Veja-se o exemplo de um fato que une indistintamente todos os lesados,
apresentando exatamente uma relao jurdica base:
Suponhamos que determinado condomnio tenha problemas quanto ao fornecimento de energia eltrica, servio que prestado de forma irregular pela empresa concessionria. Em conseqncia, por vezes o elevador no funciona e o porto no abre. Realizada assemblia geral, os condminos, por maioria, deliberam acionar a fornecedora, sendo certo que o feito culmina por ser julgado procedente. Pois bem: o resultado da demanda certamente beneficiar a todos os condminos e no apenas queles que foram favorveis propositura da ao. Ou o elevador e o porto da
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29
garagem funcionam regularmente para todos os condminos, ou o problema continuar a afet-los de forma indistinta32.
Portanto, neste caso, por ser o objeto cindvel, j que conhecidos os lesados
previamente condenao, os efeitos da coisa julgada estendem-se ultra partes, limitando-se
ao grupo, categoria ou classe, cujos membros so unidos por uma mesma relao jurdica-
base, excetuando-se igualmente a improcedncia do pedido decorrente da insuficincia de
prova.
1.2.3 Interesses individuais homogneos
Por ltimo, mas no menos importante, os interesses individuais homogneos so
decorrentes de origem comum, ou seja, tanto individual quanto coletivamente podem ser
tutelados, j que, diante dessa origem, esses interesses foram alados categoria de proteo
coletiva e esto previstos no artigo 81, pargrafo nico, inciso III do Cdigo de Defesa do
Consumidor:
Art. 81.
Pargrafo nico.
III interesses ou direitos individuais homogneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
Esses interesses, como j mencionado, so aqueles que tm uma origem comum e
apresentam como principais caractersticas a divisibilidade do dano e da responsabilidade que
lhes afeta. Sobre isso, afirma Tucci33:
Os direitos individuais homogneos so aqueles que afetam mais de um sujeito em razo de uma gnese comum, cujo objeto divisvel. Normalmente, a coletividade de consumidores prejudicados pela aquisio de um mesmo produto defeituoso que ostenta a titularidade de direito individual homogneo.
32 SOUZA, Motauri Ciocchetti de. Ao civil pblica...op. cit. p. 8. 33 TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Limites subjetivos da eficcia...op. cit. p. 48.
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30
Wambier34 prev uma inovao nesse caso, sendo de grande utilidade, j que
muitas pessoas que no vo ao Judicirio podem beneficiar-se da sentena tida como ttulo
executivo.
Dessa forma, pessoas que, diante de uma leso de direito individual, jamais iriam procurar a tutela jurisdicional do Estado, porque os custos so elevados ou porque o resultado demorado e s por isso frequentemente ineficaz em relao aos micro-conflitos, podem, agora, se beneficiar da tutela coletiva das pretenses que tenham a mesma origem. Independentemente do esforo prprio, ou em apoio a ele, por meio da legitimao prevista no art. 82 do CDC, os titulares desses direitos lesados podem obter a prestao jurisdicional desejada.
Realmente, foi uma grande inovao no sistema processual civil brasileiro.
Atualmente, esses interesses so tutelados pela Provncia Argentina de Rio Negro, Costa Rica,
Frana e Itlia35.
Ademais, insta salientar que, mesmo que exercida a ao coletiva por qualquer dos
legitimados do artigo 82 do Cdigo de Defesa do Consumidor, ainda assim, resta para aqueles
que tenham sido lesados individualmente a permisso para serem ajuizadas suas respectivas
demandas. permitida, tambm, a interveno no processo coletivo como litisconsorte, bem
como, com o ttulo em mos, promover a liquidao e a conseqente execuo da obrigao
constante da sentena coletiva.
Por ser assim, a extenso dos efeitos da coisa julgada erga omnes, desde que o
pedido seja julgado procedente, em benefcio de todas as vtimas e sucessores, j que a coisa
julgada nesse caso no pode prejudicar o indivduo individualmente considerado. neste
ponto que h a maior controvrsia doutrinria e jurisprudencial, j que muitos confundem as
normas que regem os interesses difusos transportando-as para este sistema36.
34 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentena Civil...op. cit. p. 309. 35 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendncias em matria de aes coletivas...op. cit. p. 151. 36 Cf. Captulo terceiro.
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31
1.2.4 Controvrsia doutrinria
Para Gidi37, esta tripartio (interesses difusos, coletivos e individuais
homogneos) feita pela doutrina e legislao brasileira peculiar.
Essa classificao fruto de uma teorizao artificial e abstrata realizada pela doutrina italiana quando, na dcada de setenta e oitenta, tentava compreender o fenmeno indito das demandas coletivas norte-americanas.
O Brasil tem tradio marcadamente italiana, por isto formal. J, a cultura nos
Estados Unidos est vinculada a common law. Assim, quando se compara um sistema com
outro, o dos Estados Unidos com certeza mostra-se mais flexvel.
No entanto, o sistema brasileiro, tradicional por definies de vrios conceitos,
funcional para a definio dos interesses coletivos. Por isto, no se coaduna com a posio de
Gidi, quando o mesmo critica a opo pelo formalismo quanto aos conceitos de interesse
difuso, coletivo e individual homogneo.
O curioso, porm, que esses conceitos simplesmente no existem nos Estados Unidos, que era a realidade que os autores italianos queriam originalmente retratar. Nenhum trabalho doutrinrio, nenhuma deciso norte-americana sequer menciona expresses como difuso, coletivo, e muito menos individuais homogneos. So categorias absolutamente inteis para a operacionalidade dos processos coletivos e da tutela dos direitos de grupo38.
Apesar desta situao traduzir uma postura doutrinria extremamente vinculada
aos padres rgidos de influncia italiana, necessrio que se tenham conceitos e definies
para a didtica do assunto a ser tratado.
Est sendo um problema especfico do Brasil, apontado pelos autores daquele pas, o conceitualismo exacerbado em que de certo modo derivou-se dali esta conceitualizao expressa, pela dificuldade (mais retrica que real) do enquadramento formal da pretenso em umas das categorias legais.39.
37 GIDI, Antonio. Rumo a um Cdigo de Processo Civil Coletivo. So Paulo: Forense, 2008. p. 201. 38 Idem. p. 202. 39 [H sido un problema especfico en Brasil, apuntado por los comentaristas de aquel pas, el conceptualismo exacerbado en que en cierto modo ha derivado de all esta conceptualizacin expresa, por la dificuldad (ms
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32
A doutrina estrangeira, como a mexicana, notou esta influncia do formalismo
exagerado, que em sua opinio, esta celeuma mais retrica que real.
Barbosa Moreira40 afirma:
Na verdade, convm observar que a terminologia nessa matria, a despeito de vrias propostas doutrinrias, no chegou a uma cristalizao definitiva. Ora se tem usado as expresses interesses coletivos e interesses difusos promiscuamente, no mesmo sentido, mais geral, ora se tem proposto este ou aquele critrio para extremar, de um lado, os interesses coletivos e, de outro lado, os interesses difusos; mas no assunto no h ainda uniformidade que nos possa levar adotar tranquilamente determinado critrio de distino. O melhor , talvez, falarmos em interesses coletivos e difusos, porque assim estamos certos de abranger todas as figuras possveis e imaginveis desse universo.
Atualmente, pacificou-se a idia da diviso tripartite, que aquela que apresenta a
abrangncia das figuras dos interesses coletivos lato sensu. Os interesses difusos e coletivos
so complementados com os interesses individuais homogneos.
Como bem ressalta Gomes Junior41 as classificaes so teis ou inteis, mas no
certas ou erradas. A utilidade ou inutilidade da classificao facultada a quem e a que se
observa. Mas jamais se pode colocar na mesma classe ou categoria objetos de gneros
diferentes. Por isto, classifica-se conforme a melhor maneira para tornar a compreenso
vivel.
Pode-se at pecar pelo excesso de formalismo, como o caso do sistema
brasileiro, porm ainda melhor a ouvir que se trata de conceitos vagos. Se exeqvel sua
definio, porque no faz-la?
Arruda Alvim Wambier42 afirma que s vezes o sistema atinge maior preciso e
requinte com conceitos vagos do que com conceitos precisos.
retrica que real) de encuadramiento formal de la pretensin en una de las categoras legales] traduo livre. CABIEDES, Pablo Gutirrez de. In: Cdigo Modelo de Procesos Colectivos: un dilogo...op. cit. p. 22. 40 BARBOSA MOREIRA, Jos Carlos. Aes coletivas na Constituio Federal de 1988. So Paulo: Revista de Processo, 1991. p. 194. 41 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual...op. cit. p. 83. 42 ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa. Controle das decises judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ao rescisria recurso especial, recurso extraordinrio e ao rescisria: o que uma deciso contrria lei? So Paulo: RT, 2001. p. 44.
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No o caso dos direitos coletivos. Por trata-se de interesses que esto em fase de
assimilao pelo sistema, quanto mais fiel for sua definio, melhor.
E preciso considerar ainda que os interesses difusos no se assemelham aos
interesses coletivos para ficarem agrupados como se sinnimos fossem, conforme j
mencionado. Quem melhor destaca esta situao Ilmar Galvo43:
Assim, ao passo que todos os interesses difusos possuem carter pblico ou social, enquanto bens pertencentes a toda comunidade, a todos e a cada um, como um bem comum no individualizvel, o mesmo nem sempre ocorre com os da classe dos coletivos, que, embora indivisveis, so sempre de interesse restrito dos integrantes de determinado grupo de pessoas (por exemplo: os membros de um consrcio de automveis que postulam a anulao de um dispositivo do respectivo instrumento contratual; os alunos de uma escola que reclamam contra a qualidade do ensino).
No entanto, para Gidi, em seu Anteprojeto44, os direitos so difusos e individuais
homogneos, sendo os coletivos englobados pelo primeiro.
1.1. Direitos difusos, assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisvel, de que seja titular um grupo de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrria por relao jurdica comum ou por circunstncias de fato; 1.1.2 Direitos individuais homogneos, assim entendidos o conjunto de direitos subjetivos individuais legados por uma origem comum de que sejm titulares os membros de um grupo de pessoas.
Com a aprovao do Anteprojeto45 que tramita no Ministrio da Justia na
Secretaria de Reforma do Judicirio, esta questo aqui abordada tende a ser apenas crtica
doutrinria, se mantidos os incisos abaixo citados, pois assim esto previstos os interesses na
futura Lei:
43 Ao Civil Pblica e o Ministrio Pblico. Porto Alegre: Sntese Jornal, Junho/2000, p. 4: In: GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual...op. cit. p. 95. 44 GIDI, Antonio. Rumo a um Cdigo...op. cit. p. 1. Os outros Anteprojetos apresentados, foram o Cdigo Modelo de Processos Coletivos do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, coordenado por Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Antonio Gidi; Cdigo Brasileiro de Processos Coletivos da USP, coordenado por Ada Pelegrini Grinover e o Cdigo Brasileiro de Processos Coletivos da UERJ/Unesa, coordenado por Alusio Gonalves de Castro Mendes, alm do Anteprojeto de Cdigo Brasileiro de Processos Coletivos, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual. 45 Projeto de Lei no. 5.139/09 que disciplina a ao civil pblica para a tutela de interesses difusos, coletivos ou individuais homogneos, e d outras providncias. fruto do trabalho desenvolvido pela Comisso Especial criada pela Portaria do Ministrio da Justia no. 2.481, de 9.12.2008.
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I difusos, assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisvel, de que sejam titulares pessoas indeterminadas, ligadas por circunstncias de fato; II coletivos em sentido estrito, assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisvel de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrria por uma relao jurdica base; III individuais homogneos, assim entendidos aqueles decorrentes de origem comum, de fato ou de direito, que recomendem tutela conjunta a ser oferecida por critrios como facilitao do acesso Justia, economia processual, preservao da isonomia processual, segurana jurdica e dificuldade na formao do litisconsrcio.
Pela leitura destes trs incisos, o ltimo o nico que mudou sua definio,
estando complementado pelos princpios e regramentos especficos que o regero e que sero
melhores analisados abaixo, como os critrios da facilitao do acesso justia, economia
processual, preservao da isonomia processual, segurana jurdica e dificuldade na formao
do litisconsrcio, dentre outros que os complementam.
1.3 Princpios do Direito Processual Civil Coletivo e regramento especfico
Princpio, do latim principiu, significa ato de principiar, momento em que uma
coisa tem origem ponto de partida46.
Partindo-se do pressuposto de que a norma gnero e regras e princpios, suas
espcies, temos um grau de abstrao mais elevado para os princpios e reduzidas para as
normas. Isso significa que em funo dos princpios serem vagos e indeterminados,
necessitam de intervenes que os concretizem.
Bastos47, nesse sentido, registra:
[...] nos momentos revolucionrios, resulta saliente a funo ordenadora dos princpios. [...] Outras vezes os princpios desempenham uma ao imediata, na medida em que tenham condies para serem auto-executveis. Exercem, ainda, uma ao tanto no plano integrativo e constitutivo como no essencialmente prospectivo. [...] Finalmente, uma funo importante dos princpios a de servir de critrio de interpretao presa as normas. Se houver uma pluralidade de significaes possveis para a norma, deve-se escolher aquela que a coloca em consonncia com o princpio, porque, embora este perca em determinaes, em concreo, ganha em abrangncia.
46 Michaelis. Moderno dicionrio da lngua portuguesa. So Paulo: Malheiros, 1998. p. 1697. 47 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 21. ed. So Paulo: Saraiva, 2000. p. 55.
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Enquanto que os princpios estabelecem padres vinculantes, estabelecidos em
funo da justia ou da prpria idia de direito, j que fontes, estruturando o sistema jurdico e
constituindo a base ou razo das regras jurdicas, as regras, podem ser vinculativas com
contedo apenas funcional.
Os princpios so os reflexos adequados e necessrios dos valores jurdicos
escolhidos pela sociedade em determinado tempo e espao, especialmente atravs de seu
Poder Constituinte, verdadeiro detentor do poder maior de institu-los em nome do Estado
e do povo que os escolheu para essa funo.
a estruturao de um sistema de idias, pensamentos ou normas capitaneando
por uma idia mestra que detm o poder de conduo e subordinao de todas as outras.
Bonavides48 afirma que princpios so verdades objetivas, nem sempre
pertencentes ao mundo do ser, sendo do dever-ser, na qualidade de normas jurdicas, dotadas
de vigncia, validez e obrigatoriedade.
A Constituio Federal composta de princpios e regras, onde a norma gnero e
os princpios e as regras, espcies.
Reale49 assevera que princpios so:
[...] verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas tambm por motivos de ordem prtica de carter operacional, isto , como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da prxis.
Mas so os princpios hermenuticos que exercem uma funo argumentativa,
auxiliando no desenvolvimento, integrao e complementao do direito, os princpios
jurdicos so verdadeiras normas, e no apenas formadores de subsdios interpretativos.
O nosso sistema est sustentado em princpios que so elos, correntes. Quando se
entra na esfera do princpio, entra-se no mrito do que foi legislado. ele o elemento que
predomina na constituio de um corpo organizado.
Como bem apontado por Theodoro Jnior50:
48 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. edio. So Paulo: Malheiros, 2001. p. 229. 49 REALE, Miguel. Lies preliminares de direito. So Paulo: Saraiva, 1980. 50 THEODORO JNIOR, Humberto. Princpios gerais do Direito Processual Civil. Revista de Processo. n. 23. Ano 1981. p. 178.
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Em nenhum outro ramo do direito, portanto, mais se avulta a importncia dos princpios informadores do que no direito processual, j que da fiel interpretao de seus dispositivos e da correta aplicao de seus institutos vai depender a sorte prtica, no raras vezes, das normas dos demais ramos da cincia jurdica, que compem o direito material ou substancial.
E no apenas isto. Os princpios vinculam o processo legislativo, de modo a
poder dizer-se ser a liberdade vinculada pelos princpios jurdicos gerais, conforme aponta
Canotilho51.
Como o prprio Bandeira de Mello52 define:
Princpio por definio, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposio fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o esprito e servindo de critrio para sua exata compreenso e inteligncia exatamente por definir a lgica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tnica e lhe d sentido harmnico. o conhecimento dos princpios que preside a inteleco das diferentes partes componentes do todo unitrio que h por nome sistema jurdico positivo.
Princpio, portanto, a norma, porm mais abstrata e mais genrica, porque se
aplica a tudo e a todos, e vincula todos os aplicadores e intrpretes do direito, bem como o
legislador infraconstitucional, podendo estar explcito ou implcito no sistema jurdico, sem
contudo comprometer a sua fora quanto sua validade, vigncia ou eficcia. J a regra
disciplina somente aquela relao que declara. Em concluso, violar um princpio
transgredir todo o sistema jurdico.
Porm, como surge um princpio? Surge de valores jurdicos que so escolhidos
por certa sociedade, e portanto, so transformados em princpios constitucionais, e estes, por
sua vez, transformados em regras jurdicas para a normatizao mais concreta e direta dos
atos e fatos jurdicos.
Dworkin e Alexy, citados por Garcia53, opinam:
51 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1995. p. 172. 52 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 8. Edio. So Paulo: Malheiros, 1996. p. 545. 53 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Massachussets, 1980; ALEXY, Robert. Theorie der grundrechte. Baden Banden, 1999 apud GARCIA, Emerson. Dignidade da pessoa humana: referncias jurdicas. Revista da Faculdade de Direito da UFPR. v. 4. 2004.
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Os princpios se distanciam das regras na medida em que permitem uma maior aproximao entre o direito e os valores sociais, no expressando conseqncias jurdicas que se implementem automaticamente, com a simples ocorrncia de determinadas condies o que impede sejam disciplinadas, a priori, todas as suas formas de aplicao. Alm disso, enquanto o conflito entre regras resolvido na dimenso da validade, a coliso entre princpios dirimida a partir de uma tcnica de ponderao, consoante o peso que apresentem no caso concreto.
Neste ramo processual civil, que se inserem as aes coletivas, os princpios e o
regramento especfico, assumem papel de relevncia. Destaca Almeida54 que:
Assim, os princpios assumem uma funo nuclear extremamente intensificada no mbito do direito processual coletivo, o que refora em virtude dos seguintes fatores: a) sua natureza processual-constitucional-social; b) sua importncia jurdica social e poltica; c) a potencialidade da tutela jurdica; d) a carncia de um conjunto de normas processuais especficas bem sedimentadas; e) a generalizao, a relativizao, a fora normativa e superioridade vinculante e irradiante dos princpios sobre as sensveis regras jurdicas, segundo as proposies contidas no novo constitucionalismo55.
Diante disso, os princpios e o regramento especfico que as asseguram, definem
seus valores e formas de atuao, j que muitas das decises pautar-se-o apenas nos
princpios ou regras que devem reg-las56.
54 ALMEIDA, Gregrio Assagra de. Cdigo Modelo de Procesos Colectivos: un dilogo iberoamericano. GIDI, Antonio; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. (Org.). Mxico: Porra, 2008. p. 394. 55 [As, los principios asumen una funcin nuclear extremadamente intensificada en l mbito del derecho procesal colectivo, lo que est reforzando en virtud de los siguientes factores: a) su naturaleza procesal- constitucional-social; b) su importancia jurdica social y poltica; c) la potencialidad de su tutela jurdica; d) la carencia de un conjunto de normas procesales especficas bien sedimentadas; e) la generalizacin, la relativizacin, la fuerza normativa y superioridad vinculante e irradiante de los principios sobre las sencillas reglas jurdicas, segn proposiciones contenidas en el nuevo constitucionalismo] traduo livre. 56 Traando-se um paralelo, o caso do sistema dos juizados especiais. H uma normatizao disciplinada integralmente para atend-lo. Apenas como fonte subsidiria utilizado outro sistema, como por exemplo, no cvel, o Cdigo de Processo Civil.
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1.3.1 Amplo acesso justia
Coordenado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, no ano de 1978, o Florence
Project57 revelou a expanso do welfare state e a necessidade de se tornarem efetivos os
interesses conquistados principalmente a partir dos anos sessentas pelas minorias tnicas e
sexuais.
No Brasil, na dcada de oitenta, o interesse por esta questo deu-se, na viso de
Junqueira58:
[...] pela prpria necessidade de se expandirem para o conjunto da populao direitos bsicos aos quais a maioria no tinha acesso em funo da tradio liberal-individualista do ordenamento jurdico brasileiro, como em razo da histrica marginalizao scio-econmica dos setores subalternizados e da excluso poltico-jurdica provocada pelo regime ps-64.
A discusso sobre os direitos coletivos foram provocadas pela excluso da grande
maioria da populao de direitos sociais bsicos, entre os quais o direito moradia e sade.
Diante disso, o que prevalecia nesta dcada no Brasil, eram os canais alternativos de justia,
paralelos ao Estado, esse sendo identificado como uma representao positiva autoritria, e
da a impossibilidade do enfoque ao acesso justia aos canais institucionais oriundos do
aparelho estatal.
Esses movimentos contriburam para o debate em torno da necessidade de
mudanas legislativas e institucionais que garantissem novos direitos individuais e coletivos,
sobretudo para a populao marginalizada e para as minorias59, j que caracterizada a
57 Os coordenadores, no volume III do Florence Project, p. XVIII, de 1978 declararam que: no fcil reivindicar os direitos de segmentos fracos da populao, tanto coletiva quanto individualmente. Toda estratgia tem limitaes ou armadilhas e at o momento as conquistas prticas destas tendncias, as reformas no so to grandes como se poderia desejar. Uma ampla variedade de reformas necessria na profisso de advogado, nos Tribunais e em outros Tribunais. bem verdade que um movimento mundial j comeou, mas est como dissemos, ainda em fase experimental. Um experimento no bem-estar social e mais genericamente na poltica do bem-estar - [It is not easy to vindicate the rights of the weaker segments of the public, either collectively or individually. Every strategy has limitations or pitfalls, and to date the practical accomplishments of these reforms trends are not as great as one could desire. A wide variety of reforms are necessary in the legal profession, courts, and in alternatives to the courts. A large-indeed, a worldwide-movement has begun, but it is, as we said, still in its experimental phase an experiment in welfare state rights and, more generally, in welfare stare politics] - traduo livre. CAPPELLETTI, Mauro. The Florence access to justice Project. op. cit. p. 67. 58 JUNQUEIRA, Eliana Botelho. Acesso justia: um olhar retrospectivo. Revistas Estudos Histricos. n. 18. 1996. p. 1-15. 59 SILVA, Ctia Ada. A justia em jogo: novas facetas da atuao dos de Justia. So Paulo: Edusp/Fapesp, 2001. p. 4.
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incapacidade cada vez mais patente de o chamado bem-estar suprir os problemas gerados
partir da inaplicabilidade efetiva de preceitos bsicos esboados como direitos fundamentais.
O monoplio da produo e aplicao do direito pelo Estado tornou-se cada vez
mais uma pretenso.
Luigi Ferrajoli60 faz uma abordagem partir do garantismo61 que surge exatamente
pelo descompasso com os preceitos estabelecidos nas normas jurdicas estatais. H, assim, um
hiato entre a efetividade, e o garantismo seria a forma de fazer a juno entre elas.
Na favela do Jacarezinho, com Boaventura dos Santos62 nos anos setentas
pesquisando o papel das comunidades na resoluo dos seus conflitos, o tema acesso
justia pelo Estado estava diludo e sobredeterminado pelo debate daquele contexto em que
enfatizava a ampliao da cidadania participativa, da afirmao e da garantia das liberdades
negativas, e na emergncia do papel desempenhado pelos movimentos sociais que se fixavam
naquele contexto.
J, no access-to-justice movement essas discusses foram provocadas pela crise
do Estado ou bem-estar social, que clamavam pela garantia de assistncia jurdica para os
pobres, representao dos direitos difusos e a informalizao do procedimento de resoluo de
conflitos63.
O acesso justia64 compreendeu dois pontos principais: de um lado o acesso
coletivo justia e de outro, investigaes sobre formas estatais e no-estatais de resoluo de
conflitos individuais65.
O estudo de acesso coletivo justia tratava-se fundamentalmente de analisar os
novos movimentos sociais e suas demandas por direitos coletivos e difusos, que ganham
impulso com as primeiras greves do final da dcada de setenta e com o incio da
reorganizao da sociedade civil que acompanha o processo de abertura poltica, e lidam com
60 Cf. FERRAJOLI, Luigi. Derechos y grantias: la ley del ms dbil. Madrid: Trotta, 1999. 61 O garantismo pode ser entendido de trs formas: a) como modelo normativo de direito, que seria a legalidade conjugada com o Estado Democrtico de Direito; b) a busca pela ligao da validade e efetividade e c) a busca da justificativa externa dos parmetros garantistas adotadas internamente pelos Estados. 62 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. The law of the oppressed: the construction and reproduction of legality in Pasargada. In: Law & Society Review. p. 5-126. Denver, 1977. 63 Cf. CAPPELLETTI, Mauro. Acesso justia. op. cit. 64 Este termo acesso Justia pode ser objeto de discusso como se acesso ao Poder Judicirio, s instncias legais ou garantia de resoluo de conflitos. Temos que a referncia sempre foi ao acesso s instncias oficiais, mas um acesso que garanta o valor justia. No prefcio do Florence Project constatado os obstculos jurdicos, econmicos, sociais e psicolgicos que dificultam ou impedem o uso do sistema judicirio 65 Cf. FUX, Luiz. Ideologia dos juizados especiais. Revista de processo. vol. 22. n. 86. p. 204-214. abr/jun. 1997.
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um Poder Judicirio tradicionalmente estruturado para o processamento de direitos
individuais66.
Alm disso, a promoo dos direitos sociais e econmicos dos setores pobres da
populao, ante o crescimento da insegurana social, iniciando-se o movimento para a defesa
de povos indgenas, negros, mulheres, homossexuais, crianas e portadores de deficincia
comea a ser verificada67.
Foi na dcada de oitenta, com Falco68, que se conjugou a noo de pluralismo
jurdico com a noo de acesso justia para defender que, diante da necessidade de se
responder s demandas sociais emergentes, coexistem diferentes lgicas jurdicas dentro do
prprio Poder Judicirio, lento e tecnicamente incapaz de resolver as demandas emergentes na
sociedade brasileira, fazendo surgir novos atores polticos e sociais que exerceram presso
para a criao do Estado democrtico de direito.
Ampliar esse acesso, de tal forma a permitir a mais ampla representao de
interesses coletivos marginalizados, tarefa intimamente ligada expanso da cidadania,
cerne do que deveria ser um autntico processo de democratizao.
Nesse contexto, multiplicam-se novos agentes coletivos69 como as organizaes
civis e religiosas, movimentos sociais urbanos e associaes profissionais, alm da verificao
de desvinculao dos sindicatos dos trabalhadores industriais, criando-se a CUT e a
CONCLAT.
66 No Rio de Janeiro em 1984, a pesquisa sobre o relacionamento entre associaes de moradores da classe mdia (Jardim Botnico, Gvea e Laranjeiras) e o Poder Judicirio, tratando sobre os interesses difusos, mostrou que o Poder Judicirio era utilizado como ltimo recurso de resoluo de conflitos, quando j esgotadas as possibilidades de negociao atravs dos Poderes Executivo e Legislativo (Cf. FALCO, Joaquim. Conflito de direito de propriedade: invases urbanas. Rio de Janeiro: Forense, 1984). Tambm, em 1991, investigou-se as invases urbanas, pois ao pedido de reintegrao de posse do Instituto, opunham-se dois discursos: o dos advogados, que defendiam o direito de moradia e dos invasores, que reivindicavam a permanncia no local. Essa questo era solucionada atravs de negociaes realizadas fora do sistema legal (Cf. CARVALHO, Eduardo Guimares. O negcio da terra. Rio de Janeiro: UFRJ, 1991). 67 Cf. PINHEIRO, Paulo Srgio. Transio poltica e no-Estado de direito no Brasil. In: Pinheiro, P. S., Sachs, I. e Wilheim, J. (org). Brasil: um sculo de transformaes. So Paulo: Companhia das letras, 2001. p. 290. 68 Cf. FALCO NETO, Joaquim de Arruda. Cultura jurdica e democracia: a favor d