a filosofia existencial nos três romances de vergílio ferreira
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MASARYKOVA UNIVERZITA
Filozofická fakulta
Ústav románských jazyků a literatur
Portugalský jazyk a literatura
A Filosofia Existencial Nos Três Romances
de Vergílio Ferreira
Magisterská diplomová práce
Bc. Martina Harthová
Vedoucí práce: Mgr. Silvie Špánková
Brno 2009
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Prohlašuji, že jsem diplomovou práci vypracovala samostatně s využitím uvedených pramenů a literatury.
……………………………………………..
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Za vstřícnost, pečlivost a především motivující vedení této práce práce upřímně
děkuji Mgr. Silvii Špánkové. Srdečné poděkování též patří Dianě Matias.
4
A morte tem um duplo aspecto: Ela é o não ser. Mas é também o ser, o ser horrivelmente material do cadáver.
Milan Kundera: O Livro do Riso e do Esquecimento
Se olho a um espelho, erro – Não me acho no que projecto.
Mário de Sá-Carneiro: Dispersão
Criar deuses é a mais estranha função da nossa espécie. Nem podemos aspirar as rosas: vivemos asfixiados de divino...
António Patrício: Serão Inquieto
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Índice Siglas..............................................................................................................................7
1. Introdução ......................................................................................................................8
1.1. Vergílio Ferreira: romancista de teor ensaístico ...................................................8
1.2. Objectivos do trabalho ..........................................................................................9
2. Literatura e filosofia: um diálogo, ou discussão? ........................................................11
2.1. Arte, filosofia e ciência.......................................................................................11
2.2. Utilidade da filosofia nos nossos dias.................................................................12
2.3. Literário versus Filosófico ..................................................................................13
2.3.1. Literário/não-literário, filosófico/não-filosófico.......................................14
2.3.2. Superioridade da filosofia.........................................................................18
2.3.3. Existencialismo: fusão completa da literatura e filosofia .........................21
3. Influências da filosofia.................................................................................................24
3.1. Fenomenologia....................................................................................................24
3.1.1. Edmund Husserl e Martin Heidegger .......................................................24 3.1.2. Maurice Merleau-Ponty e a fenomenologia da percepção........................25
3.2. Filosofias da existência.......................................................................................27
3.2.1. Sören Kierkegaard e Friedrich Nietzsche: precursores do existencialismo..........................................................................................28
3.2.2. Karl Jaspers...............................................................................................29
3.2.3. Jean-Paul Sartre ........................................................................................30 3.2.4. Albert Camus ............................................................................................31
4. Filosofia em Vergílio Ferreira .....................................................................................34
4.1. Chegada ao existencialismo................................................................................34
4.2. Pensamento de Vergílio Ferreira ........................................................................38
4.2.1. Essência humana e a redução fenomenológica.........................................38
4.2.2. Absurdo humano.......................................................................................40
5. A temática das obras analisadas...................................................................................43
5.1. Cântico Final.......................................................................................................43
5.1.1. A ligação com o Absoluto através da Arte ...............................................43
5.1.2. A narração heterodiegética e híbrida ........................................................46
5.2. Aparição..............................................................................................................47
5.2.1. A busca da presença do EU ......................................................................47 5.2.2. O narrador-personagem-autor...................................................................50
6
5.3. Estrela Polar........................................................................................................51
5.3.1. Como ser eu nos outros?...........................................................................51
5.3.2. Na sombra do novo romance ....................................................................55
6. Subjectividade e temporalidade ...................................................................................57
6.1. EU – o início absoluto ........................................................................................57
6.2. O corpo espiritualizado.......................................................................................58
6.3. A mortalidade do nosso corpo e a (i)mortalidade do nosso EU .........................60
6.3.1. O tempo irreversível .................................................................................60
6.3.2. Da morte inverosímil até a reconciliação .................................................61
7. A comunhão intersubjectiva ........................................................................................65
7.1. A solidão com alguém ........................................................................................65
7.2. O espelho e a evidência do duplo .......................................................................67
7.3. O amor e a questão do terceiro ...........................................................................69
8. A Arte no lugar de Deus ..............................................................................................73
8.1. O antropocentrismo de Vergílio Ferreira............................................................73
8.1.1. O mundo sem Deus...................................................................................73 8.1.2. O reino do homem ....................................................................................75
8.2. O artista Criador..................................................................................................76
9. Conclusão ....................................................................................................................79
Bibliografia ..................................................................................................................82
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Siglas
Na citação das obras de Vergílio Ferreira utilizamos as siglas que a seguir se
indicam e identificam. As páginas citadas correspondem às da edição referida na
Bibliografia.
AP – Aparição
CC II – Conta-Corrente II
CC III – Conta-Corrente III
CC IV – Conta-Corrente IV
CC V – Conta-Corrente V
CF – Cântico Final
CFut – Carta ao Futuro
EA-se – Um Escritor Apresenta-se
EI II – Espaço do Invisível II
EP – Estrela Polar
FS – Da Fenomenologia a Sartre
IC – Invocação ao Meu Corpo
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1. Introdução
1.1. Vergílio Ferreira: romancista de teor ensaístico
O Homem, a Vida, a Morte, a Arte. Os temas obsessivos da obra fecundam do
escritor quem, apesar de se ter consagrado aos vários géneros literários (escreveu
romances mas também ensaios, contos e diário), representa, antes de tudo, um dos
melhores romancistas portugueses do século XX. A obra de Vergílio Ferreira,
ultrapassando as fronteiras entre romance e ensaio, unifica-se nos pensamentos do autor
e, assim, nas questões surgidas nos seus romances. Não é por acaso que o próprio
escritor opta pela designação romances-problema. Este quer deixar sempre pelo menos
um problema, não totalmente resolvido, para que o leitor possa reflectir.
A vida e a obra são indissociáveis em Vergílio Ferreira. A sua aldeia natal,
situada na Serra da Estrela, deixou os ecos repetidos na sua produção literária. O mesmo
pode-se dizer da sua situação familiar. Trata-se da partida dos pais para os Estados
Unidos, quando Vergílio Ferreira tinha apenas dois ou três anos. O escritor refere-se
muito a ausência dos pais, aliás, este facto torna-se omnipresente ao longo da sua
escrita. Outro momento decisivo para o seu futuro foi a permanência de seis anos no
Seminário do Fundão. Esta experiência será, mais tarde, retratada de uma forma
ficcional em Manhã Submersa (1953).
A vida literária de Vergílio Ferreira começou nos anos 40, ainda em plena
ditadura salazarista. Integrando-se a princípio na corrente neo-realista, publicou, durante
a época da Segunda Guerra Mundial, o romance O Caminho Fica Longe (1943),
seguido pelos romances Onde Tudo Foi Morrendo (1944) e Vagão J (1946).
Foi nesta altura que surgiu em França uma série de obras inspiradas pela
filosofia que iriam ter uma grande influência na Europa e no mundo. Como Sartre,
Vergílio Ferreira manteve-se distante em relação às correntes como o surrealismo,
marxismo, psicanálise.1 O existencialismo, muito pelo contrário, infiltrou-se nos seus
romances. No ano 1949, Vergílio Ferreira escreveu o romance Mudança, cujo título, por
si só, já indica uma viragem. Com esta obra o escritor começa a conquistar a sua voz
própria. No entanto, em muitos aspectos é Mudança um dos mais bem conseguidos 1 BRITO, Ferreira de: Vergílio Ferreira e o modelo cultural francês. In Vergílio Ferreira: Cinquenta anos de vida literária. Actas do colóquio interdisciplinar, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1995, p. 123.
9
romances neo-realistas. Eduardo Lourenço, no prefácio da 4ª edição deste romance,
afirma que Vergílio Ferreira jamais escrevera tão bom romance neo-realista como
Mudança.2 Este romance é o mais ambíguo, uma vez que Carlos, a personagem
principal de Mudança, é já, como escreve Lourenço, um herói existencial, a antítese do
herói neo-realista.3 É na sua boca que Vergílio Ferreira põe as meditações existenciais
que caracterizarão em seguida os seus romances.
Com Aparição (1959) será definitivamente considerado como o escritor do
romance de feição existencial. A partir daí dedica-se aos mesmos problemas,
acrescentando sempre alguma ponderação nova que, porém, cabe no sistema vergiliano.
É certo que, Vergílio Ferreira aderindo à filosofia existencial, distancia-se do neo-
realismo. Além disso, é notável que a temática existencial lhe possibilitara manter uma
posição política de clara demarcação do fascismo.
Cada vez mais, Vergílio Ferreira se afasta da narrativa clássica, com a história
linearmente contada. Com o “novo romance” adopta as técnicas com as quais renova o
processo de montagem do romance. Não lhe interessa, porém, a filosofia que o “novo
romance” trouxera.
O romance Para Sempre (1983) culmina no teor autobiográfico do escritor.
Neste lugar convém mencionar que Vergílio Ferreira nos deixou o diário em nove
volumes, cinco da primeira série e quatro da nova série, intitulado Conta-Corrente, que
o escritor começara a escrever a partir de 1969. No ano passado saiu, graças a Fernanda
Irene Fonseca, o diário póstumo do escritor, Diário Inédito: 1944-1949, prefaciado pela
autora.
1.2. Objectivos do trabalho
Foi o próprio Vergílio Ferreira quem, de certo modo, assinalou a nossa escolha
acerca do tema deste trabalho. Nas várias entrevistas que foram feitas ao grande
escritor, teve este explicação quanto à natureza filosófica dos seus romances. Várias
vezes proclamou que os seus romances não eram exclusivamente filosóficos, portanto
também preferia chamá-los romances-problema. No entanto, nas outras obras, quer nos
2 LOURENÇO, Eduardo: Prefácio In FERREIRA, Vergílio: Mudança, 4ª ed.. Lisboa, Bertrand, 1978, p. 10. 3 Idem, Ibidem, p. 15.
10
ensaios quer nos diários, escreveu sobre as questões metafísicas que pretendera
sublinhar em certas obras.
Como vimos, é sempre difícil marcar as fronteiras rígidas entre o género literário
e o filosófico. Naturalmente, não se trata só de literatura ou de filosofia, onde existe o
problema da delimitação das áreas do estudo. Todavia estas duas foram tocantes à obra
vergiliana. Assim, surgiu o objectivo do nosso trabalho. O nosso interesse foi também
apoiado pela evidência da discussão incessantemente actual e existente, ao mesmo
tempo, no domínio da literatura e da filosofia. Isto é, qual é a relação verdadeira entre
estas duas? O segundo capítulo, de certo modo extenso, mostra só o esboço daquilo que
chamamos o diálogo entre filosofia e literatura.
A terceira parte do trabalho vai-nos servir como plataforma filosófica. Já no
nosso trabalho Aspectos Filosóficos no Romance Aparição de Vergílio Ferreira
escrevemos em parte sobre alguns dos filósofos que fortemente influenciaram o nosso
escritor. Esse trabalho será o nosso ponto de partida. Ao contrário do primeiro, o
trabalho aqui exposto aprofundará a filosofia daqueles cujas reminiscências podemos
encontrar na obra vergiliana. Antes de nos dedicarmos à análise da obra romanesca de
Vergílio Ferreira, apresentaremos o sumário do seu pensamento filosófico, adoptando,
sobretudo, os ensaios do autor. Assim, não julgamos relevante usar o método de
dedução, isto é, não achamos possível deduzir o pensamento filosófico do autor
somente através da obra literária. Se o fizéssemos, desmentiríamos completamente o
sentido da filosofia.
Para os nossos fins da análise escolhemos três romances de Vergílio Ferreira:
Cântico Final (1960), Aparição (1959) e Estrela Polar (1962). O romance Cântico
Final, publicado em 1960, mas escrito no ano 1956, antes de Aparição, predetermina
muitas das questões, posteriormente analisadas em Aparição. Escolhemos este romance
também por este desenvolver detalhadamente duas das preocupações principais de
Vergílio Ferreira: a morte e a arte. Aparição, como já foi dito, representa o melhor, o
pendor existencial do escritor. Estrela Polar, por sua vez, simpatiza muito com
Aparição, desenvolvendo e aprofundando alguns aspectos já esboçados em Aparição.
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2. Literatura e filosofia: um diálogo, ou discussão?
2.1. Arte, filosofia e ciência
Aproximação entre filosofia, literatura e ciência foi notável desde sempre. As
fronteiras entre elas podem ser às vezes dificilmente definidas, portanto, retirar-nos-
emos de quaisquer indicações certas que nos possam assegurar o que pertence, sem
excepção, à área da filosofia, da literatura e da ciência. Ao mesmo tempo, não
pretendemos consignar que as áreas de pesquisa ou de investigação da filosofia, da
literatura e da ciência sejam iguais, visto que, podemos sempre caracterizá-las
separadamente. O nosso objectivo é mostrar que a articulação entre estas três disciplinas
fica nos seus próprios centros de discussão.
Um dos maiores problemas da filosofia e da literatura é a busca dos seus
sentidos, das suas próprias naturezas: O que é a literatura? O que é a filosofia?
Contrariamente à ciência trata-se da busca interminável. “[...] O problema da natureza
da literatura continua a ser [...] o problema fundamental de toda a teoria e de toda a
crítica literária.” 4 O objecto da filosofia parece o mais abstracto. Não recorreremos às
definições complicadas e bastar-nos-á seguir a opinião de Ortega y Gasset cuja
afirmação acerca da filosofia é seguinte: “[...] A filosofia é o esforço intelectual por
excelência”5 e “Filosofia é conhecimento do Universo ou de tudo quanto há.”6
No nosso trabalho não poremos demasiadamente em destaque a relação entre a
filosofia e a ciência devido à sua raiz comum. A ciência antes de ser destacada, fazia
parte da filosofia. A filosofia7 tem a origem no espanto e na admiração dos gregos
antigos que depois do desabamento da mitologia tradicional precisavam distinguir as
hipóteses dos conhecimentos. A filosofia foi assim a primeira e única ciência. Foi,
nomeadamente, a cosmovisão, especialmente antes de Galileu, que ficou no centro dos
interesses filosóficos dos gregos antigos. Da filosofia formaram-se e separaram-se,
sucessivamente, as ciências particulares como matemática, física, astronomia, lógica,
retórica, etc. A filosofia começou a restringir, por efeito da concretização das ciências, a
sua essência. Enquanto a ciência trabalha com um experimento mediante o qual tenta
confirmar, ou desmentir as suas pressuposições, a filosofia nunca aceitará nenhuma 4 AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel: Teoria da Literatura. Coimbra, Livraria Almedina, 1973, pp. 26–27. 5 ORTEGA Y GASSET, José: O que é a filosofia? (trad. J. Bento). Lisboa, Cotovia, 1994, p.69. 6 Idem, Ibidem, p. 75. 7 A palavra filosofia vem dos alunos de Pitágoras que começaram a chamar o seu professor o filósofo.
12
afirmação como incontestável e não facilitará as respostas definitivas. A filosofia não
disponibiliza de nenhum método firme, até aproveita os métodos das outras ciências. A
Filosofia não nos oferece nem um conhecimento certo nem uma instrução rígida. Para
os fins deste trabalho usaremos a palavra filosofia no sentido mais amplo, ou seja, não
faremos sempre a diferença entre filosofia e ciência. Nos casos particulares, o que é o
caso do capítulo seguinte, diferenciaremos a filosofia da ciência, falaremos assim, da
filosofia no sentido mais estrito.
2.2. Utilidade da filosofia nos nossos dias
Além do objectivo do seu estudo, a filosofia tem o problema ontológico com a
justificação da sua existência, com a sua autoafirmação em relação ao mundo.
Decidimos incluir este capítulo na nossa tese visto que achamos que se duvida mais, em
geral, da importância da filosofia do que da literatura. Durante os séculos, os filósofos
preocuparam-se com a questão do estatuto da filosofia. Trata-se apenas da teoria pura,
liberta dos problemas quotidianos, ou devia esta aplicar os seus conhecimentos na
realidade, ou seja, pode a filosofia ter a ver com a utilidade?
Estamos de acordo com Erwin Kerz que acaba o seu ensaio, tentando responder
à questão “Deverá a Filosofia limitar-se à interpretação do real, ou deverá tentar, com
os seus meios, contribuir para a modificação do mundo?”8 com as palavras que
confirmam que é importante interpretar o mundo e modificá-lo. Se não o fizéssemos, a
filosofia não seria mais do que, em palavras de Karl Popper, um passatempo
escandaloso. Este termo de Popper, representante do realismo crítico, usa Kerz9 para
que possa apoiar a sua opinião acerca da filosofia. De certa maneira, concorda assim
com Karl Marx segundo o qual os filósofos, mais do que interpretáram o mundo,
modificáram-no.
A Filosofia não pode, porém, directamente mudar o mundo, mas pode denunciar
todos os dogmas e ideologias, teorias erradas, arrogância política e social que despreza
os direitos no nosso mundo.10 Os seus pensamentos e as suas opiniões podem exprimir-
se em arte - em literatura, em música, em artes plásticas. No fundo, a discordância dos
cidadãos com os acontecimentos históricos e com a política manifestou-se muitas vezes
8 KERZ, Erwin: A Torre Inclinada dos Filósofos. (trad. Maria Tamagnini) In Seminário de Literatura e Filosofia Portuguesas (Actas). Lisboa, Fundação Lusíada, 2001, p. 112. 9 Idem, Ibidem, p. 116. 10 Idem, Ibidem, p. 116.
13
primeiro em arte, especialmente nas épocas quando se não podia falar abertamente. A
linguagem literária convinha por o seu metaforismo. Segundo Cerqueira Gonçalves11 a
crítica faz parte da essência da filosofia: “A filosofia é[...] crítica [...] para realizar a
irrecusável exigência de aperfeiçoamento ontológico, mediante rigorosa e lúcida
selecção e hierarquização.”12
A filosofia, pode ser então, muito útil na nossa sociedade apesar de devermos
trabalhar com o termo utilidade com reserva. A filosofia não quer cair na mera
utilidade, uma vez que não se trataria da filosofia. “A filosofia não brota por ser útil
[...] É constituitivamente necessária ao intelectual.” 13 Segundo Ortega y Gasset o acto
de filosofar não é necessário, se por necessário se entende ser útil para outra coisa. Mas
acrescenta que a necessidade do útil é apenas relativa. “A verdadeira necessidade é a
que o ser sente de ser o que é – a ave de voar, o peixe de vogar e o intelecto de
filosofar.”14
2.3. Literário versus Filosófico
Em consideração ao anteriormente escrito, ousamo-nos a acentuar o facto que
desde o mundo antigo existem dois tipos de discurso15 – literário e filosófico. A
necessidade de distinguir a literatura da filosofia foi sempre frisada. A natureza da
literatura é fictícia, enquanto a filosofia acentua a maneira como deveríamos ver e
entender o mundo.
No início do século vinte Ludwig Wittgenstein começou a estudar a crítica da
linguagem. Muito cedo surgiu a convicção que a nossa experiência com o mundo liga-
se ao modo segundo o qual o mundo é fixado e construído na linguagem. Cerqueira
Gonçalves também vê a diferença entre a literatura e a filosofia nas suas relações à
linguagem. “A filosofia abordou frequentemente a sua própria relação à linguagem
11 Catedrático de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, n. 1930. A sua pesquisa dedica-se, além do mais, à hermenêutica e a filosofia da linguagem. (Cf. PACHECO, Cândida: Verbete “Gonçalves, Joaquim Cerqueira” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1990, pp. 896–897.) 12 GONÇALVES, Cerqueira: Fazer Filosofia Como e Onde? Braga, FFUCP, 1990, p. 23. 13 ORTEGA Y GASSET, op.cit., p. 70. 14 Idem, Ibidem, p. 69. 15 Ao dizermos a literatura e a filosofia, temos sempre em mente o discurso literário e o discurso filosófico. Como não conseguimos definir os limites rigorosos entre a literatura e a filosofia, achamos mais conveniente falar dos discursos. Uma obra literária pode ser escrita no discurso que tem a ver com a filosofia e ao contrário. Não é preciso confirmar que hajam ideias filosóficas nos textos literários ou que a filosofia aproveita os géneros literários, como o aforismo, diálogo ou fragmento, para que se possa construir e transmitir.
14
pelo lado negativo, considerando que esta representa uma dificuldade, mesmo uma
infidelidade, à expressão do pensamento.”16 A literatura, por sua vez, intensifica o
poder metaforizante da linguagem e multiplica as ambiguidades. “A literatura é o
domínio privilegiado da língua.”17
Assim, a filosofia analítica declinou do discurso literário e mostrou a sua
simpatia pelas ciências exactas. Heidegger e Sartre, ao contrário, com as suas prosas
filosóficas aproximaram-se mais do discurso literário. Uma certa ruptura chegou com o
novo discurso chamado theory que teve a sua origem na consequência da crítica da
língua de Wittgenstein e na deconstrução da significação de linguagem de Derrida.
Trata-se da mistura da literatura, crítica literária, crítica da língua e filosofia ensaística
(por ex. Derrida, Lyotard).18 O discurso literário foi, a seguir, várias vezes
revalorizado.19 Em consequência da crítica da linguagem revelou-se que no discurso
literário prevalece o modo narrativo, ou seja, a narratividade.20 21 22
2.3.1. Literário/não-literário, filosófico/não-filosófico
Tanto o discurso literário, como o filosófico têm as suas propriedades que os
caracterizam, mas ao mesmo tempo, são, no nosso entender, exactamente estas
propriedades que levam os dois discursos às dificuldades. O problema da filosofia
consiste no facto desta não ter a sua área autónoma23 e, muito pelo contrário, esta falta
da própria área24 constitui a essência da filosofia. A literatura, por sua vez, tem a área do
seu interesse muito melhor restringida, não existe, todavia, a definição exacta que
16 GONÇALVES, Cerqueira: Verbete “Filosofia e Literatura” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1990, p. 599. 17 Idem, Ibidem, p. 599. 18 GRABES, Herbert: Verbete “Filozofie a literatura” In NÜNNING, Ansgar (ed.): Lexikon teorie literatury a kultury (trad. A. Urválek - Z. Adamová). Brno, Host, 2006, pp. 233–234. (A tradução de checo para o português foi feita pela autora deste trabalho.) 19 Na teoria dos símbolos de Goodman a literatura têm a mesma importância cognitiva como a ciência/a filosofia. Cf. GOODMAN, Nelson: Ways of Worldmaking. Indianapolis, Hackett, 1984. 20 GRABES, op.cit., p. 235. 21 Mais no Verbete “Narratividade” de Ansgar Nünning In NÜNNING, Ansgar (ed.): Lexikon teorie literatury a kultury (trad. A. Urválek - Z. Adamová). Brno, Host, 2006, pp. 539–540. 22 A narratividade não é, em exclusivo, somente a característica da literatura. O modo narrativo, por exemplo, faz parte do discurso histórico ou da crítica de arte. 23 Pela palavra “autónoma” entendemos neste contexto um domínio exacto da pesquisa filosófica, o que quer dizer que a filosofia pode exprimir-se em todos os domínios do conhecimento humano. A filosofia é autónoma, como veremos posteriormente, no sentido dos seus objectivos. Achamos, por isso, o termo de autonomia da filosofia bastante complicado. 24 “A filosofia é uma actividade do espírito que se diferencia de todos os outros métodos do pensamento devido à sua complexidade sinóptica e ao seu potencial crítico.” In KERZ, Erwin: A Torre Inclinada dos Filósofos. (trad. Maria Tamagnini) In Seminário de Literatura e Filosofia Portuguesas (Actas). Lisboa, Fundação Lusíada, 2001, p. 115. Complexidade sinóptica significa, segundo Kerz, que a Filosofia não fica limitada a conhecimentos num determinado campo da realidade.
15
marque as fronteiras entre a literatura e as outras áreas, ou seja, as características que
podiam ser consideradas como os signos da literatura, encontram-se também nos textos
não-literários.
Para avançarmos, podemos trabalhar com a negação do termo literário e do
filosófico. Conforme a opinião dos autores Deleuze e Guattari propomos que cada
disciplina esteja em relação com a sua negação. Como a filosofia está ligada com a não-
filosofia, a arte faz mesma coisa com a não-arte (a literatura com a não-literatura) e a
ciência com a não-ciência.
Não se trata de dizer apenas que a arte deve formar-nos, despertar-nos, ensinar-nos a sentir, nós que não somos artistas, e a filosofia deve ensinar-nos a conceber, e a ciência a conhecer. Tais pedagogias não são possíveis se cada uma das disciplinas, por sua conta, não estiver numa relação essencial com o Não que lhe diz respeito.25
Sempre temos de definir o contrário para chegarmos à qualquer conclusão. Também
Aguiar e Silva menciona algo parecido na sua Teoria da Literatura: “[...] a obra
literária constitui uma determinada forma de mensagem verbal, o problema reside em
distinguir a linguagem literária da linguagem não literária.” 26
A importância da relação entre o filosófico e não-filosófico está tematizada na
obra de Paul Ricœur.27 Na sua obra podem-se salientar dois aspectos essenciais como
traços próprios dessa relação. Em primeiro lugar, o discurso filosófico não é originário,
uma vez que, segundo ele, a filosofia não começa nada absolutamente, porque, em
filosofia, todo o começo é “reapropriação”.28 Em segundo lugar, o discurso filosófico
instaura uma ruptura em relação àquilo de que se apropria para começar, e que,
portanto, é autónomo. Ou seja, “o que está em questão no tema da articulação do
filosófico com o não-filosófico é um paradoxo engendrado pela dupla afirmação da
autonomia do discurso filosófico e da sua dependência em relação e um “fora de si”
25 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix: O que é a filosofia? (trad. M. Barahona, A. Guerreiro). Lisboa, Editorial Presença, 1992, pp. 190–191. 26 AGUIAR E SILVA, op.cit., p. 26. 27 O nome de Paul Ricœur está ligado ao pensamento filosófico da hermenêutica, mas também a filosofia de vontade, à etica, à antropologia filosófica, à epistemologia das ciências humanas, à filosofia do tempo e da narratividade. Renova também a teoria da subjectividade, a filosofia política e a filosofia da religião. Impõe-se cada vez mais no panorama da filosofia francesa da segunda metade do século XX, como uma figura de máximo relevo. Mais em RENAUD, Michel: Verbete “Ricœur, Paul” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. IV, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1992, p. 775. 28 O termo de Ricœur. “O conceito de apropriação fornece-nos a dimensão formadora do texto. Este constitui o medium pelo qual o sujeito se compreende a si mesmo.” In RICŒUR, Paul: Teoria da Interpretação (trad. Artur Morão), Intodução de Isabel Gomes. Porto, Porto Editora, 1995, p. 153.
16
que, assim, o determina.29 Segundo Ricœur, a filosofia tem sempre relações com a não-
filosofia, porque a filosofia não tem objecto próprio, tem as suas raízes fora de si
própria. A Filosofia utiliza os resultados de outras ciências, e assim, pode-se imergir na
interpretação destes resultados e fazer a especulação. A filosofia não tem nenhum
compromisso, o que representa a garantia de independência, graças a ela descobre as
relações do saber, verifica os factos, valoriza as experiências, formula previsões. “[...] a
Filosofia é o único método autocrítico do pensamento. Não há, por exemplo, qualquer
processo físico que possa explicar o que é a Física e que intenções ela tem. Toda a
reflexão sobre isto é já Filosofia.”30 Portanto, pode-se falar neste aspecto,
contrariamente àquilo já dito no início deste capítulo, da autonomia da filosofia,
conquanto a sua autonomia não seja inequívoca.
Durante os séculos, a palavra literatura ganhava vários sentidos. Recorreremos
novamente à Teoria da Literatura de Aguiar e Silva e à opinião, que achamos relevante
para os nossos dias, que no século XVIII a noção de literatura ganhou o sentido de
criação estética, como específica categoria intelectual e específica forma do
conhecimento.31 O aspecto estético, juntamente com os outros, podia ser uma das
características essenciais da obra de arte em geral.
Logo entramos, contudo, em confusões. Aguiar e Silva relembra alguns
linguísticos como Jan Mukařovský e Roman Jakobson que definiram o sentido da
literatura como o resultado de uma das funções da linguagem verbal. Mukařovský
acrescentou às três funções da linguagem caracterizadas por Karl Bühler –
representação, expressão e apelo – uma quarta função, designada como função estética.
Esta teoria da função estética aparece numa forma mais desenvolvida em Jakobson
como função poética. Mukařovský afirma que a função estética é omnipresente e está
implicada, pelo menos potencialmente, em todo o acto linguístico.32 Carmo d’Orey
acrescenta justamente que qualquer coisa, incluindo uma obra científica ou filosófica,
pode simbolizar esteticamente e uma obra de arte pode levar o símbolo filosófico ou
científico.33 Também Nelson Goodman desenvolve no seu livro Ways of Worldmaking a
29 HENRIQUES, Fernanda: Filosofia e Literatura: Um percurso hermenêutico com Paul Ricœur. Évora, Universidade de Évora, 2001, p.406. 30 KERZ, op.cit., p. 115. 31 AGUIAR E SILVA, op.cit., p. 23. 32 Idem, Ibidem, pp. 27–30. 33 D’OREY, Carmo: Filosofia e Literatura. In Poiética do Mundo. Lisboa, Edições Colibri, 2001, p. 595. A teoria dos sistemas simbólicos analisa as propriedades sintácticas e semânticas de todos os sistemas, dentro e fora da arte. Permite especificar os linguísticos por oposição aos representacionais e aos notacionais e, assim, aproximar a literatura, a filosofia e a ciência. A teoria do funcionamento estético,
17
teoria, dizendo que praticamente tudo pode funcionar como obra de arte. A questão
verdadeira não é, segundo ele, dizer quais os objectos que são constantemente as obras
de arte, mas sim em quais circunstâncias pode um objecto funcionar como obra de
arte.34
Como vimos, o aspecto estético de uma obra de arte é uma questão bem
discutível. O outro aspecto, que mencionaremos, e que já não é o aspecto geral de arte,
mas em exclusivo da literatura, não é também muito claro. À pergunta O que é a
literatura respondem as formalistas com a literariedade. O termo literariedade foi
cunhado por Roman Jakobson, num ensaio de 1921 sobre a nova poesia russa. Segundo
Roman Jakobson é a literariedade mas não a literatura que constitui o objecto da
ciência literária, ou seja, aquilo pelo qual uma dada obra é uma obra literária.35 No ver
de Manuel Pimentel não é esta característica de arte suficiente. Admite que assim como
a obra literária, caracteriza-se também a obra filosófica pela literariedade. Ele afirma
que:
a literariedade faz apelo a um juízo estético que se forma na base de uma intuição de valores onde se enraíza todo o juízo metodológico que procura apropriar-se da literariedade como objecto próprio de investigação [...] Face ao texto, o sujeito, leitor e intérprete, forma de modo intuitivo um juízo.36
por sua vez, permite especificar o estético por oposição ao não-estético e distinguir, no âmbito do linguístico, a literatura, a filosofia e a ciência. (D’OREY, Carmo: Filosofia e Literatura. In Poiética do Mundo. Lisboa, Edições Colibri, 2001, p. 595.) Cf. GOODMAN, Nelson: Languages of Art, An Approach to the Theory of Symbols. Indianapolis, Hackett, 1976, cap. IV e V; Idem, Ways of Worldmaking. Indianapolis, Hackett, 1984, cap. IV. 34 GOODMAN, Nelson: Ways of Worldmaking. Indianapolis, Hackett, 1984, pp. 66–67. Não é por acaso que o autor deu o título ao quarto capítulo do livro citado When is art? Na sua opinião, todos os objectos podem ganhar, em certas circunstâncias, a função estética, mesmo uma pedra que encontramos na rua e deixamos num museu geológico. Por outro lado, a pintura de Rembrant pode, por exemplo, reprimir a sua função estética, se a deslocarmos na janela onde substituirá o vidro partido. Mas isto não quer dizer que tudo seja obra de arte. A pedra colocada num museu adquire a função simbólica de amostra da pedra da dada época, da sua origem ou da estrutura, mas não é a obra de arte. Goodman quer encontrar a resposta certa à pergunta O que é a arte? portanto preocupa-se com aquilo que não é a arte para que possa com mais facilidade definir a arte. A obra de arte nunca pode deixar de ser a obra de arte, ou seja, quando uma obra de arte funciona como um objecto útil, amplifica-se. A pintura de Rembrant será sempre a obra de arte, como nunca perderá a tinta. De maneira semelhante, uma cadeira nunca deixará de ser uma cadeira mesmo que ninguém se sente nela. (In GOODMAN: 1984, op.cit., pp. 66–69.) A teoria dos símbolos estuda detalhadamente os sintomas do estético (mais em GOODMAN). 35 GUSMÃO, Manuel: Verbete “Literariedade” In Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa. Vol. III, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1999, p. 112. 36 PIMENTEL, Manuel Cândido: Elementos para uma fenomenologia Literária do Texto Filosófico. Philosophica: Filosofia e Literatura, 9, 1997, p. 22.
18
O leitor fica perante o texto cujo sentido não é pré-dado, mas é preciso que o leitor
aproveite as suas experiências que tinha encontrado nos outros textos. Assim é a
literariedade inerente também ao discurso filosófico.
A discussão em torno da literariedade da obra filosófica flutua entre a convicção de que o texto filosófico possui, à semelhança do literário, uma lógica de significações implicada na composição e organização da matéria textual e uma definição das convenções que historicamente se têm posto tanto à sua construção como à sua abordagem.37
Pimentel mostra que nem a literariedade, a qual os formalistas russos consideraram
fundamental na área da literatura, tem a ver com a filosofia. No capítulo seguinte,
desenvolveremos mais esta relação complexa.
2.3.2. Superioridade da filosofia
Apesar de termos confirmado a existência de dois discursos, é preciso ainda
acrescentar que estes entram sempre em confronto e lutam, cada um, pela sua
superioridade. Este diálogo interminável, entre a filosofia e a literatura, somente
justifica a nossa escolha em escrever sobre os aspectos filosóficos nas obras literárias
seleccionadas. Apoiaremo-nos em toda a história da filosofia. Por exemplo, segundo
Platão, a filosofia tem um valor superior, segundo Nietzsche é a literatura cujo valor é
superior. Kant, por sua vez, considera a relação entre a filosofia e a literatura
complementar. Mostraremos umas abordagens dalguns pensadores e elucidaremos
assim o título deste capítulo que quadra com a nossa opinião.
Como já mencionámos, a filosofia tem as suas raízes fora de si própria, Ricœur
encontra-as na poética, ou seja, o seu interesse pela poética não é um fim em si mesmo.
A preocupação ricoeuriana com a linguagem poética representa um momento mediador
para que possa criar condições para o desenvolvimento do trabalho filosófico. Na obra
de Ricoeur a filosofia enraiza-se no não-filosófico com a finalidade de encontrar as
razões que legitimem a textualidade literária, poética ou ficcional, como capaz de ser
fonte para o labor filosófico. Toda a sua investigação no campo da dimensão poética da
linguagem é orientada pelo desejo de a legitimar filosoficamente como uma parceira.38
37 Idem, Ibidem, p. 23. 38 HENRIQUES: 2001, op.cit., pp. 435–436.
19
Cerqueira Gonçalves vai mais além, dizendo que, no fundo, tudo é literatura, e
defendendo de que a filosofia vai mais longe do que a literatura. No Editorial do
número da Philosophica dedicado ao estudo da relação filosofia-literatura Cerqueira
Gonçalves escreve: “toda a filosofia é literatura, mas nem toda a literatura é
filosofia”.39 Gonçalves não quer ver filosofia em todos os textos literários, não pretende
reduzi-la à literatura. Afirma que a filosofia “não se contenta com quaisquer sentidos
possíveis40, mas aponta sempre para a máxima exigência de sentido”. 41 Já na sua tese
Fazer Filosofia Como e Onde? Gonçalves escreve: “a filosofia é literatura”.42 Na
mesma tese reforça a sua ideia de superioridade da filosofia: “Se a literatura optimiza
as potencialidades da linguagem, o mesmo é dizer, de manifestar o sentido do real, na
constituição do mundo, muito melhor o pode fazer a expressão filosófica dela, pois é a
sua tarefa levar às últimas instâncias a trajectória do sentido.”43 E mais adiante
escreve: “[...] no discurso filosófico atinge a língua a sua melhor expressão, pelo facto
de aí conseguir realizar o que jaz no seu fundamental desígnio – o sentido mais
amplo.”44
Fernanda Henriques concorda com Cerqueira Gonçalves quando diz: “Filosofia
e literatura são assumidas como lugares de expressão e exploração das potencialidades
ontológicas da linguagem [...] A filosofia demarca-se da literatura: esta configuraria
um mundo possível de sentido, aquele realizaria a figura do mundo.”45 A literatura fica
sempre na construção de um mundo possível, onde valem não as regras verdadeiras,
mas sim as regras estéticas, pertencentes ao mundo possível. Em contrapartida, a
filosofia não pode escapar à verdade, que reclama a plenitude ontológica.46 Apesar de
Fernanda Henriques partilhar algumas das posições que favorecem à afirmação tudo é
literatura, e no caso da hierarquização de saberes, às vezes colocaria a filosofia acima 39 GONÇALVES, Cerqueira: “Editorial”. Philosophica: Filosofia e Literatura, 9, 1997, p. 4. Mais acerca desta afirmação no verbete “Filosofia e Literatura” de Cerqueira Gonçalves em Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, Lisboa - São Paulo, Verbo, 1990, pp. 599–603. 40 Acerca do possível em literatura também: “(...) embora a literatura se alimente da atracção do melhor mundo possível, fica-se, quase sempre, na construção de um mundo possível, onde critérios de ordem estética se sobrepõem às injunções de verdade, que reclamam plenitude ontológica, a que filosofia não pode escapar.” In GONÇALVES: 1990, op.cit., p. 31. 41 GONÇALVES: 1997, op.cit., p. 5. 42 GONÇALVES: 1990, op.cit., p. 31. 43 Idem, Ibidem, p. 31. 44 Idem, Ibidem, p. 37. 45 HENRIQUES, Fernanda: É legítimo o uso da literatura no processo de transmissão da filosofia? Philosophica: Filosofia e Literatura, 9, 1997, p. 153. 46 Há ainda um outro factor que menciona Fernanda Henriques nesta articulação entre o filosófico e literário. É o facto de “a literatura poder introduzir no mundo transparente da filosofia e da pureza do conceito, a opacidade e a impureza do literário [...] a literatura não quer ser transparente.” In HENRIQUES: 1997, op.cit., p. 166. A literatura busca o sentido do real, mas nunca o dirá directamente.
20
da literatura, chega à conclusão que as relações entre o filosófico e o literário são
horizontais e não verticais.
Carmo d’Orey, por sua vez, defende no seu artigo Filosofia e Literatura três
teses: 1. Nem toda a filosofia é literatura; 2. Nem toda a literatura é boa literatura; 3. A
filosofia não é superior à literatura. No ponto um e três discorda assim com Cerqueira
Gonçalves. Acerca do ponto dois, este não o toma em conta. Arte, filosofia e ciência
constituem a nossa forma humana de conhecer e nenhum tem no seu ver qualquer
espécie de privilégio sobre os outros. “O ponto comum a todos consiste na sua
potencialidade cognitiva; a diferença, no modo como nos facultam conhecimentos
diversos. Assim, a opção entre eles depende dos nossos objectivos e interesses.”47 No
nosso entender, esta divisão é muito simplificada, mas concordamos com o autor que
nenhuma delas tem qualquer privilégio, como também afirma Fernanda Henriques.
Também já Aristóteles, na sua Metafísica, afirmou, sobre as ciências, que todas são
necessárias, mas nenhuma superior.
D’Orey toma a teoria dos símbolos de Goodman segundo o qual se diz que o que
distingue ciência, filosofia e arte são propriedades sintácticas e semânticas dos sistemas
através dos quais são construídas. Para os objectivos deste trabalho é inútil explicar esta
teoria de uma forma pormenorizada. D’Orey, apoiado em Goodman, chegou à
conclusão que na interpretação de um texto não estamos apenas interessados naquilo
que as palavras denotam, mas paralelamente também nas palavras e nas propriedades
que possuem. Um poema, por exemplo, chama a nossa atenção para as suas eufonias –
rimas, ritmos e aliterações e Cézanne representou na suas pinturas naturezas mortas
apenas para exibir um jogo de formas geométricas e de cores complementares.48 “[...]
Num texto literário, o “como é” dito conta tanto e em alguns casos mais do que “o que
é” dito.” 49 No texto filosófico o conteúdo é mais importante do que a forma, o discurso
pretende-se transparente. Mas nem sempre é assim. Como já foi dito, os textos
filosóficos aproveitam as formas literárias, assim, algumas obras filosóficas são
inseparáveis das suas propriedades formais. A estas propriedades chamemos estilo.
Todos os textos têm o estilo, também um livro de receitas de cozinha o tem,
portanto, não basta ter estilo para que consideremos um texto qualquer uma obra
literária. Pela razão de que o seu “estilo não faz parte das propriedades exemplificadas
47 D’OREY, op.cit., p. 595. 48 Idem, Ibidem, p. 600. 49 Idem, Ibidem, p. 601.
21
pelo texto”.50 Ou seja, no caso do livro de receitas é importante o conteúdo e não o
estilo. Segundo o seu estilo podemos reconhecer que se trata apenas de um livro de
receitas. Não escolhemos a receita que tem o melhor estilo mas a receita cujo conteúdo
convém melhor aos nossos objectivos. No caso das obras filosóficas, algumas têm o
estilo, outras não. “[...] Embora possuam o estilo, não o exibem como uma qualidade a
ter em conta”.51 Portanto, Carmo d’Orey pode dizer que “apenas alguma filosofia,
proporcionalmente pouca, é literatura”.52
Como podemos ver, as opiniões divergem e nenhuma delas é mais ou menos
verdadeira. Queríamos só mostrar que esta discussão existe e não é simples. Ao mesmo
tempo precisámos justificar que o assunto da nossa tese é sempre actual. Concordamos
plenamente com Fernanda Henriques de que a relação entre filosofia e literatura é
horizontal e com todos os que dizem que a filosofia não é superior quanto à importância
das disciplinas. Nenhuma delas é mais importante do que outra. Mas achamos a
filosofia superior no sentido que fica em cima de todas as ciências como falado
anteriormente.
2.3.3. Existencialismo: fusão completa da literatura e filosofia
Foi a hermenêutica filosófica53 a principal responsável que se aproximou da
análise literária e suas teorias e por ter envolvido a filosofia nos temas e problemas da
literatura.54
A hermenêutica, de facto, nasceu (...) da fusão entre exegese bíblica, filologia clássica e jurisprudência. Esta fusão entre várias disciplinas pôde ser operada graças a uma revolução coperniciana que fez passar a questão “o que é o compreender?” antes da questão de sentido de tal ou tal texto ou de tal de tal categoria de textos (sagrados ou profanos, poéticos ou jurídicos).55
50 Idem, Ibidem, p. 602. 51 Idem, Ibidem, p. 602. 52 Idem, Ibidem, p. 603. 53 Utilizamos o termo hermenêutica no sentido que ganhou no século XIX, adoptado por Schleiermacher com um intuito puramente filosófico. Trata-se duma doutrina universal da interpretação. A seguir foi conceptualizada por W. Dilthey, M. Heidegger, H.G. Gadamer e P. Ricœur. Mais em MORÃO, A.: Verbete “Hermenêutica” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1990, pp. 1096–1109. 54 PIMENTEL, op.cit., pp. 19 e 21. 55 RICŒUR, Paul: Do Texto à acção (trad. Alcino Cartaxo e Maria Sarabando). Porto, Rés, 1989, pp. 38–39. Ricœur fala do enraizamento fenomenológico da hermenêutica e relembra o famoso círculo hermenêutico entre o sentido (objectivo) de um texto e a sua pré-compreensão por um leitor singular aparecia, então, como um caso particular da conexão a que Husserl, noutras circunstâncias, chamava correlação noético-noemática.
22
Diálogo entre a literatura e a especulação filosófica é marcante sobretudo na segunda
metade do século XX, embora seja de observar que o pensamento filosófico sempre,
como já pudemos justificar nos capítulos anteriores, usa as formas consideradas típicas
da literatura. Sempre que se fala da literatura filosófica, lembramo-nos do
existencialismo, o que achamos interessante. Este facto está desenvolvido no livro
Literature Considered as Philosophy. The French Example de Everett Knight onde o
autor define o existencialismo como “boa escrita criador”.
Knight formula relação entre a literatura e o existencialismo. O seu ponto de
partida é a afirmação que existencialismo não é ideia, mas sim o movimento. Assim o
existencialismo é mais perto do romantismo, do que do espinozismo ou relativismo, por
exemplo. Foi a literatura, em geral, que mais contribuiu no romantismo, enquanto no
caso do existencialismo foi a filosofia.
Caso seja a afirmação em cima, que o existencialismo é o movimento,
verdadeira, encontraremos a marca disso em todo lugar, em pensamento e em arte.
Devido à esta fusão da filosofia com a literatura, podemos simplesmente dizer que
Sartre, Simone de Beauvoir ou Gabriel Marcel são novelistas ou dramaturgos, mesmo
como os filósofos. Albert Camus no seu Mito de Sísifo escreve exactamente a mesma
coisa: “Já não se contam histórias, cria-se o próprio universo. Os grandes romancistas
são romancistas filósofos”.56 E mais adiante Camus escreve: “O filósofo, mesmo que
seja Kant, é criador. Tem as suas personagens, os seus símbolos e a sua acção
secreta.”57 A literatura fica sob a tutela da filosofia apesar de tentar fazer o contrário.
Mas a questão da tutelagem não é assim tão determinante. A literatura e a filosofia
deviam chegar às mesmas conclusões independentemente uma da outra. Assim, a
literatura devia ser filosofia. Mas, ao mesmo tempo, o fenómeno cultural que acontece
paralelamente, ou quase assim, não pode ser dito de forma independente, uma vez que
são ambos descendentes do clima da opinião produzida numa certa conjuntura da
história humana.58
Ao longo da obra de Albert Camus encontramos a dupla referência
literatura/filosofia. Em Camus, arte e filosofia encontram-se unidas pela sua finalidade
profunda e pela mesma origem. Camus rejeita desde logo a ideia de uma separação
56 CAMUS, Albert: O Mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Lisboa, Edição Livros do Brasil, 1983, p. 125. 57 Idem, Ibidem, p. 124. 58 KNIGHT, Everett W.: Literature Considered as Philosophy. The French Example. New York, Collier Books, 1962, pp. 15–16.
23
frontal entre Filosofia e Arte e mais especificamente entre Filosofia e Romance: “Quase
escuso de dizer que é o mesmo tormento que leva o homem e essas atitudes (inteligência
e criação). Por isso, de começo, elas coincidem.”59 Merleau-Ponty, por sua vez,
reconhece no romance uma vocação filosófica e metafísica. A tarefa do romancista é
semelhante à tarefa do filósofo que se cumpre sob o método fenomenológico.60 No
pensamento de Camus, porém, a filosofia e a arte não são a mesma coisa. O pensamento
entra na obra de arte mas somente como inteligência ordenadora. Não impera, senão
mataria a riqueza da imaginação criadora.61 “A obra de arte não é um substituto do
discurso filosófico, mas um outro modo de buscar o sentido da existência.”62
Como vimos, o problema tocante à relação entre o discurso filosófico e do
literário é bastante complexo. No entanto, a sua existência permite-nos fazer uma
análise filosófica a partir dos textos literários. Não pretendemos resolver as
preocupações acima mencionadas, mas gostaríamos encontrar os pensamentos
filosóficos nas obras literárias. Explicámos qual é a utilidade da filosofia e mostrámos
que a sua relação com a literatura fica no centro de interesse dos filósofos e dos críticos
literários. Como foi dito, a filosofia aproveita os géneros literários, sobretudo o ensaio.
Nos capítulos seguintes veremos que também o romance pode servir como plataforma
para as ideias filosóficas.
59 CAMUS, op.cit., p. 120. 60 NÜNNING, op.cit., p. 234. 61 GIRÃO, José Manuel: Hermenêutica do Sentido e do Absurdo em Albert Camus. Existência, filosofia e literatura.Coimbra, Universidade de Coimbra, 1992, p. 29. 62 Idem, Ibidem, p. 29.
24
3. Influências da filosofia
Para os fins da nossa dissertação de mestrado, que pretende de modo mais
aprofundado analisar o pensamento de Vergílio Ferreira, é indispensável dedicar um
capítulo às correntes que modificaram a filosofia do nosso escritor. Não queríamos,
porém, cair na mera enumeração dos sistemas filosóficos dos vários pensadores.
Portanto analisaremos detalhadamente somente aqueles que influenciaram Vergílio
Ferreira de modo significativo.
3.1. Fenomenologia
3.1.1. Edmund Husserl e Martin Heidegger
A fenomenologia, um dos mais importantes e mais amplos movimentos
filosóficos do século XX, é ligada a Edmund Husserl, o seu fundador.63 À
fenomenologia, no modo mais estrito, pertencem os filósofos influenciados
directamente por Husserl, ou aqueles que participaram na publicação Jahrbuch für
Philosophie und phänomenologische Forschung (Anuário para filosofia e estudo
fenomenológico) que saia entre os anos 1913 e 1930. A fenomenologia baseia-se na
desconfiança nas construções do idealismo especulativo e do neokantismo e exprime-se
contra uso dos métodos científicos relativamente aos problemas filosóficos.64 O
neokantismo, tal como o positivismo, vê a melhor solução em “cientização” da filosofia.
A fenomenologia, sendo sobretudo a crítica gigantesca da ciência actual, quer procurar
as essências das coisas a priori, antes da deformação científica, por meio da redução
fenomenológica. Com o termo epoché Husserl chama o acto “dar tudo em parêntesis”,
ou seja, libertar-se de todos os preconceitos. Resultantes fenómenos disponíveis à nossa
consciência facilitam o conhecimento natural do mundo. Tudo ocorre através da nossa
consciência.
63 Presentemente é a fenomenologia concebida em exclusividade como este movimento do século XX. Mas a origem etimológica desta palavra provém do grego fainomenon e na filosofia de Hegel (Fenomenologia do Espírito) o processo da auto-aparição do espírito absoluto foi chamado também fenomenologia; veja Filosofický slovník. Olomouc, Nakladatelství Olomouc, 2002, p. 119–121. 64 CORETH E. - EHLEN P. - HAEFFNER G. - RICKEN F. (eds.): Filosofie 20. století. 5. díl ediční řady Dějiny filosofie. (trad. B. Horyna). Olomouc, Nakladatelství Olomouc, 2006, p. 13.
25
A crítica do ego transcendental,65 implantada por Husserl como o sujeito
absoluto (a consciência absoluta) que cumpre os processos fenomenológicos acima
mencionados, foi o ponto de partida da fenomenologia de Heidegger, o discípulo de
Husserl. Heidegger deslocou a redução fenomenológica “para a terra” e fez a
transfiguração de toda a fenomenologia. Heidegger ataca a ideia da consciência absoluta
dizendo que se trata da pura construção teorética e que Husserl não examinava o ser
desta consciência e o ser em geral. Desde Heidegger a questão principal da
fenomenologia constitui-se na interrogação sobre o sentido do ser, e não sobre o estudo
da consciência absoluta como fazia Husserl.
O ente humano caracteriza-se precisamente por se interrogar sobre o seu ser.
Heidegger quer descobrir as condições do ser daquela entidade66 que é, em geral, capaz
de perguntar pelo seu ser, porque sempre o entende dalgum modo. Se não o entendesse,
não poderia perguntar. Aquela entidade que em cada caso questiona e investiga é
denominada por Heidegger o Dasein. O Dasein é a única entidade que existe e existe no
mundo. Temos de ter a possibilidade de passar pela nossa existência, a qual alcançamos
o melhor nas situações-limite. O Dasein é também a única entidade na qual se fundem a
existência com a essência. Outras coisas não existem, mas são (estão). O homem é
lançado ao mundo em que se tem de instalar e sente a preocupação com a sua estadia, a
qual é temporal (por isso O Ser e o Tempo) e é chamada Sorge. O homem é a existência
para a morte e se ele aceitar este facto, o seu ser será autêntico.
3.1.2. Maurice Merleau-Ponty e a fenomenologia da percepção
Entre os pensadores franceses, influenciados pela escola fenomenológica,
Merleau-Ponty é aquele que se apresenta como o mais próximo seguidor de Husserl.
Rejeita, porém, a redução transcendental preconizada pelo filósofo alemão como a
chave que abria o domínio da fenomenologia transcendental. Ambos aceitam
igualmente o primado da percepção face aos outros actos da consciência, como a
imaginação e a recordação.
65 Deveríamos distinguir os termos transcendental e transcendente os quais somente Kant começou a usar no sentido diferente. Transcendental diz-se das formas cognitivas dadas antes da qualquer experiência. Enquanto a expressão transcendente assinala tudo o que ultrapassa os limites da experiência possível. 66 Heidegger repreende à metafísica tradicional que não conseguiu pôr a questão sobre o ser correctamente devido ao desrespeito pela “diferença ontológica” segundo a qual distinguimos a entidade e o ser.
26
Na obra publicada em 1945, Phénoménologie de la Perception, decreve a
percepção como experiência originária do sentido radicalmente fundamentador, pré-
reflexivo. Sentido em “estado nascente”.67 “Anteriormente a qualquer pretensa
explicação a experiência perceptiva deve ser explicitada e descrita a partir de si
própria.” 68 O percebido não pode ser reduzido a elementos formais ou materiais que lhe
seriam anteriores, como sua condição de possibilidade, mas deve ser estudado tal como
aparece, através da reflexão fenomenológica. Segundo Merleau-Ponty reconhecemos os
fenómenos em si, o que ele chama “o verdadeiro pensar transcendental”. “O fenómeno
do fenómeno” aparece no mundo tal como é.69
Merleau-Ponty recusa a epoché husserliana. O mundo já não é para ele o
conjunto de todos os objectos de experiência possível. “Se posso duvidar de um objecto
determinado isso não significa que possa duvidar do mundo na sua totalidade, porque é
só a partir da minha situação no mundo que tal dúvida é possível.”70 Se o sujeito
perceptivo é já um ser-no-mundo e qualquer acto de consciência se funda em última
análise na consciência perceptiva, então o mundo é horizonte da minha existência. E o
problema de saber como a consciência entra em relação com o mundo não tem sentido.
Tal relação é já sempre pressuposta.71 Para pensador francês, a consciência perceptiva é
sempre uma consciência incarnada num corpo, uma consciência já situada no mundo,
assim é radicalmente um ser-no-mundo. Trata-se do mundo pré-objectivo, do mundo
anterior ao conhecimento e determinação científica. A sua fenomenologia quer
descrever a experiência primordial de nós mesmos e do mundo.
Para Merleau-Ponty o homem é um sujeito votado ao mundo. O corpo próprio e
o mundo natural aparecem em Merleau-Ponty como os pólos duma unidade dramática,
que é, afinal, a própria existência humana. Contudo, o homem não é só corpo. Um
espírito o penetra e o anima, tornando-o um corpo humano.72
O homem e as coisas tão mutuamente se reclamam e exigem que trocam entre si
as intencionalidades próprias e formam como que um sistema de referência e de
complementariedade. “De tal modo, que se queremos descobrir o real tal qual nos
aparece na experiência perceptiva, encontramo-lo carregado de predicados 67 CANTISTA, Maria: Verbete “Merleau-Ponty, Maurice” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. III, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1999, pp. 818. 68 PAISANA, João: História da Filosofia e Tradição Filosófica. Lisboa, Edições Colibri, 1993, p. 84. 69 CANTISTA, op.cit., p. 819. 70 MERLEAU-PONTY, Maurice: Phénoménologie de la Perception. Apud PAISANA, op.cit., p. 87. 71 PAISANA, op.cit., p. 87. 72 SOUSA, José Antunes de: Vergílio Ferreira e a Filosofia da Sua Obra Literária. Lisboa, Aríon, 2003, p. 150–151.
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antropológicos”.73 As coisas relacionam-se comigo, mas sempre através da mediação
do meu corpo, o que significa que a natureza reclama a presença do ser humano. Trata-
se duma coexistência directa e imediata entre o sujeito e o objecto. O homem polariza-
se com o mundo por um movimento espontâneo e natural e através do seu
comportamento, abre-se ao mundo e às coisas, com as quais partilha a sua existência. A
existência humana define-se e interpreta-se por uma espécie de “apego primordial” que
tem ao mundo.74
3.2. Filosofias da existência
Sob o termo existencialismo, ou filosofia da existência, percebe-se o movimento
que surge a partir da Primeira Guerra Mundial, e que atingiu o apogeu nos anos 40 e 50.
Não se pode, porém, de modo nenhum estudar o existencialismo e a fenomenologia
separadamente, como não é possível omitir os filósofos que muito mais cedo do que no
século XX já começaram ponderar sobre a condição humana. Portanto o título deste
capítulo – Filosofias da existência.
Também não queremos classificar rigorosamente os fenomenólogos como os
fenomenólogos e os filósofos da existência como os filósofos da existência. Fazemos
assim para que o nosso trabalho seja bem organizado, inspirando-se na história da
filosofia. Por exemplo Heidegger, ainda que utilize o conceito existência e em redor
dele estabeleça a sua filosofia, declina ser chamado existencialista, designa a sua
filosofia pela “ontologia fundamental”. Sartre, por sua vez, nunca poderia chegar às
suas conclusões sem ter estudado os sistemas fenomenológicos. E ainda por cima o
existencialismo e a fenomenologia interpenetram-se e misturam-se com a antropologia e
com a filosofia do diálogo.
Nas filosofias de existência é sempre do homem concreto que se trata, sujeito à
morte, nas suas relações com os outros, buscando um sentido para o seu viver. O
existencialismo está ligado, de ponto de vista histórico-cultural, a um certo espírito de
interrogação e angústia, pondo em questão valores religiosos, sociais, ideológicos,
fundamentos da existência humana, em suma, devido ao trauma da Segunda Guerra
73 MERLEAU-PONTY, Maurice: Phénoménologie de la Perception. Apud SOUSA, op.cit., p. 155. 74 SOUSA, op.cit., p. 155.
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Mundial.75 Entre todos os autores desta “corrente” há grandes distâncias, embora
apresentem alguns aspectos relativamente comuns. Em primeiro lugar, todos têm uma
certa aversão à “filosofia das essências”. Em segundo lugar, a existência humana é a
actualidade, o momento presente, a realização de possibilidades que revelam as
qualidades do homem. Em terceiro lugar, o existencialismo considera a existência como
uma forma de ser especificamente humana, só o homem existe, as outras coisas são. As
questões que não podem resolver-se objectivamente, terão de ser colocadas
subjectivamente. O homem tem de utilizar a sua liberdade para se afirmar perante o
mundo.
Semelhante pensamento manifesta-se também no romance, novela, teatro, diário
e mesmo em cinema. Influencia a vida literária e artística, tornando-se uma filosofia da
moda, tal como acontecera no século XVII com o cartesianismo.76
Em Portugal, o existencialismo foi uma tendência na ficção nacional que se
manifestou sobretudo entre finais da década de 40 e finais da década de 50. Podemos
salientar que o principal intérprete e expositor português de filosofia existencial foi
Delfim Santos.77 O que é interessante, o existencialismo niilista de Sartre ou de Camus
teve em Portugal mais reflexos literários do que propriamente filosóficos.78 Além de
Vergílio Ferreira, maior expositor da concepção existencialista, convém nomear
Fernando Namora, Urbano Tavares Rodrigues, Fernanda Botelho ou Augusto Abelaira.
3.2.1. Sören Kierkegaard e Friedrich Nietzsche: precursores do existencialismo
No princípio do século XIX, Hegel, no seu sistema dialéctico de carácter
universal, necessário e determinista, parecia reduzir o homem a ser exclusivamente um
momento evolutivo da ideia absoluta. Contra esse abstraccionismo toma posição Sören
Kierkegaard79, esforçando-se por elaborar o que designa por “pensamento subjectivo”.
O essencial da sua reflexão filosófica é a questão da destinação do homem. Procura
superar o absurdo da existência humana recorrendo à fé. A religiosidade é única forma
de dar verdadeiro sentido ao homem e à sua vida. A existência humana só será
75 Cf. MACHADO, Álvaro Manuel (org.): Dicionário da Literatura Portuguesa. Lisboa, Editorial Presença, 1996, pp. 520–521. 76 MORUJÃO, Alexandre: Verbete “Existencialismo” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1990, p. 390. 77 Mais em QUADROS, António: Verbete “Existencialismo e filosofia existencial em Portugal” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, op.cit., pp. 400–404. 78 Lembremos da relação complicada entre filosofia e literatura que analisámos no capítulo precedente. 79 Devemos salientar que Kierkegaard foi muito traduzido e estudado em Portugal. Cf. Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, op.cit, p. 402.
29
verdadeiramente autêntica se for relação com Deus.80 A existência humana caracteriza-
se pela solidão radical resultando na angústia e na vida no limite da incerteza, por isso é
a única salvação a crença em Deus que, pela impossibilidade de ser “apanhada”, pode
ser atingida apenas por um “salto”.
Contrariamente a Kierkegaard, Nietzsche afirma que a procura do sentido do
mundo e da vida, fora deste mundo conduziu à negação do mundo e da vida. O homem,
incapaz de enfrentar a realidade única inventa um mundo para onde se pode refugiar.
Este outro mundo chama-se o “mundo do ser”, “a verdadeira realidade”, “o reino de
Deus”. Deus é visto por Nietzsche como o instrumento de crucificação da vida. Em
nome de Deus, a moral cristã declarou guerra aos instintos fundamentais da vida e
valorizou a mortificação do corpo.
Deus é a negação suprema da vida, um contra-senso. Estar à altura da “morte de
Deus” implica colocar a vida acima de qualquer suspeita, de qualquer objecção, preferi-
la a todo e qualquer outro valor. A “morte de Deus” corresponderá à sagração da vida, o
que definirá o novo modelo da humanidade: “o super-homem”. Este devia celebrar e
amar a vida na sua totalidade, não só no que tem de agradável, mas também nos seus
aspectos trágicos.81
3.2.2. Karl Jaspers
No centro do pensamento do filósofo alemão, influenciado por Kierkegaard e
parcialmente pela fenomenologia, surgem três termos importantes: Dasein, Existência e
Transcendência. O Dasein é objectivo, ou objecto do saber próprio das ciências. A
Existência equivale ao Dasein de Heidegger, exprime o homem na sua vida pessoal e
autêntica. A Transcendência refere-se à Divindade, ou Ser Absoluto e atinge-se pela “fé
filosófica”. Jaspers pretende esclarecer a Existência apoiado no Dasein e abrindo-se à
Transcendência. A liberdade, a comunicação e a historicidade são três índices
fundamentais da Existência.
Um dos pontos mais característicos da filosofia de Jaspers é a “fé filosófica”.
Difere da “fé teológica” porque não está baseada em nenhuma revelação ou crença.
Mas, a filosofia não pode prescindir da religião como não pode desprezar as ciências. A
religião, como as ciências, está ao serviço da filosofia, à qual se submete. Como a
80 CARDOSO, Miquel: Notas sobre uma Aparição existencialista. Revista ...à Beira, 1, Outubro 2002, p. 162. 81 Idem, Ibidem, pp. 163–164.
30
verdade científica, sem ser negada, é superada na verdade da Existência, também a
religião é superada na filosofia, e a “fé teológica” é um meio para a “fé filosófica”, que
é a mais excelente. Um espírito não preparado para a filosofia adere-se a uma religião.
Mas o verdadeiro filósofo não a necessita porque está numa posição que a ultrapassa.82
3.2.3. Jean-Paul Sartre
Sartre é, sem dúvida, um dos principais fenomenólogos e existencialistas
franceses. O seu pensamento, fortemente influenciado por Hegel, Husserl, Heidegger,
Kierkegaard, Nietzsche e Marx, situa-se na linha do existencialismo ateu. Na sua
bibliografia encontramos romances, ensaios, peças de teatro, textos políticos e trabalhos
filosóficos.
Não é só a obra escrita de Sartre que é profundamente filosófica, mas também a
sua própria postura na vida. Sartre perdeu o pai quando tinha dois anos. Marcado pela
ausência original de um pai, dirige-se a uma época órfã de Deus, propondo-se fazer o
homem. É nisso que o existencialismo é um humanismo. Trata-se de reconhecer que o
homem é o seu próprio futuro.83 Sartre ergue o valor do próprio homem, através do
qual precisamente há valores. Ao primado do indivíduo opõe, por alargamento o
primado do homem.
Segundo Sartre temos de partir da subjectividade, ou por outras palavras, “a
existência precede a essência”.84 Isto quer dizer que todo o existencialismo é um ataque
contra o essencialismo, nega qualquer essência que pudesse exprimir a natureza humana
e que antecedesse a sua existência. Deus, o criador primordial, ou seja, o Logos, não
existe. Por isso não há ninguém quem tenha o conceito da natureza humana em mente.
Conforme Sartre: “[…] o homem primeiramente existe, encontra-se com o mundo,
surge nele e depois se define”.85 O homem é o projecto de si, tem a liberdade absoluta,
é condenado a ela, mas é responsável por aquilo que é e ao mesmo tempo por todos os
homens. O homem não pode escapar à sua total responsabilidade e consequentemente
sente a angústia.
82 Mais em FRAGATA, J: Verbete “Jaspers, Karl” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. III, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1999, pp. 29–37. 83 REIMÃO, Cassiano: “Apresentação do Colóquio”. In Jean-Paul Sartre, uma Cultura da Alteridade: Filosofia e Literatura/Actas de Colóquio, coord. Cassiano Reimão. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2005, p. 11. 84 SARTRE, Jean-Paul: Existencialismus je humanismus (trad. P. Horák). Praha, Vyšehrad, 2004, p. 13; a tradução é nossa: [existence předchází esenci]. 85 Idem, Ibidem, p. 15; a tradução é nossa: [člověk nejprve existuje, setkává se se světem, vynořuje se v něm, a teprve potom sám sebe definuje].
31
Afinal, se o homem nada é antes de existir e se existir é escolher-se a cada
instante, ele é apenas o que fizer de si e cada escolha é, simultaneamente, realização de
si. Muitos são os homens que não conseguem viver na angústia e procuram escapar
através de diversos comportamentos de fuga à liberdade: a mentira, a ironia e a má-fé.
O existencialismo ateu de Sartre termina, contudo, com um apelo nitidamente
optimista. Segundo ele o existencialismo não é a doutrina trágica como no pensamento
de Kierkegaard ou de Schopenhauer, senão optimista. Cada homem tem o seu destino
nas suas mãos, “[…] a única coisa que facilita ao homem viver é uma acção”.86
3.2.4. Albert Camus
Dos existencialistas contemporâneos, Albert Camus é talvez aquele que mais
influencia Vergílio Ferreira. Para Camus, a condição humana é absurda. O homem
encontra-se confrontado com este mundo mortal e limitado, onde tudo é dado para ser
retirado.
Os seus romances L`Étranger (1942) e La Peste (1942), e particularmente os
seus ensaios Le Mythe de Sysyphe (1947)87 e L`Homme revolté (1951) possuem um
cariz eminentemente filosófico, apesar da sua forma literária.88 O suicídio e o absurdo
são dois temas que se entrelaçam profundamente nas obras deste autor.
O problema central do Mito de Sísifo é saber se a descoberta do absurdo conduz
necessariamente ao suicídio. Para o homem absurdo é o suicídio um problema filosófico
verdadeiramente sério. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é, para o homem
absurdo, a questão fundamental. Camus recusa a opção pelo suicídio. É que, o suicídio
seria a libertação do homem da sua condição absurda. O suicídio seria o limite extremo
da aceitação do absurdo.89
Camus rejeita a separação entre a filosofia e a arte. Entre o criador e o pensador
há uma raiz comum: o absurdo da situação conduz o homem à arte e à filosofia. Através
da obra de arte o homem torna-se mais consciente da sua condição. Tanto a arte como a
filosofia procuram responder às mesmas preocupações existenciais que se deparam no
homem. É por isso que a criação implica lucidez, tal como o pensamento implica
86 Idem, Ibidem, p. 38; a tradução é nossa: [jediná věc, která umožňuje člověku žít, je jednání]. 87 Tradução portuguesa O Mito de Sísifo de ano 1983 com qual trabalhamos é de Urbano Tavares Rodrigues e Ana de Freitas. 88 Cf. RIBEIRO, Henrique: Verbete “Camus, Albert” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. I, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1997, pp. 823–825. 89 GIRÃO, op.cit., p. 44.
32
criatividade. “Para que uma obra absurda seja possível, é preciso que o pensamento
sob a sua forma mais lúcida esteja misturado com ela.” 90
Camus com o seu pensamento absurdo afasta-se das filosofias existenciais. A
preocupação essencial do espírito absurdo – permanecer fiel a este mundo – é esquecida
pelas filosofias existenciais. Todas estas filosofias acabaram por se demitir desta
fidelidade, desembocando num caminho muito próximo da atitude mística ou religiosa.
O que se censura no pensamento existencial é o seu intolerável salto metafísico que
Camus designa como “suicídio filosófico”, exactamente o título dum capítulo do Mito
do Sísifo. A afirmação do absurdo é, de certo modo, consequência de conceito de razão.
A razão é o único meio que possuímos de conhecer. O homem absurdo é aquele que
sabe que o seu escasso recurso é a sua razão. Camus mantém-se fiel à razão que entende
finita. O absurdo de Camus não é mais que a razão lúcida que constata os seus limites e
rejeita o “suicídio filosófico”, próprio das filosofias existenciais.
Kierkegaard nega a razão por causa da “inspiração religiosa” Mas,
paradoxalmente, essa negação também pode nascer da própria “ordem racional” o que é
o caso da filosofia de Husserl e especialmente do tema da intencionalidade. O método
husserliano é uma negação da razão clássica. Husserl pretende descobrir a essência de
cada objecto do conhecimento. Assim afasta-se do espírito absurdo e salta para a Razão
Eterna. Em Husserl vemos a racionalização total de universo. Não há, portanto, a
grande diferença entre o filósofo religioso e o filósofo abstracto, o que é caso de
Husserl. Ambos aspiram sempre ao eterno, quer na forma de Deus quer na forma de
razão, e é nisso que dão a salto. A crítica de Camus ao pensamento dito existencial é,
pois, assaz curiosa. Ele critica estas filosofias não por serem existenciais, mas no fundo
por o não serem. O problema de todos estes filósofos foi o de não se terem mantido
solidamente fiéis à concretude deste mundo. Assim Camus seria o mais genuíno dos
pensadores existenciais. A sua aversão ao termo existencialista, corresponderia à
necessidade de demarcação de um rótulo, coisa que por coerência nunca poderia aceitar.
Segundo Camus, o homem não tem dificuldade em reconhecer que pertence ao
tempo. Desejamos o futuro e fazemos projectos. Desejamos o futuro, o que significa
que tendemos para a morte, a qual tememos. E também isto é absurdo. Há momentos
em que julgamos compreender o mundo. Mas o mundo foge-nos e transforma-se
naquilo que é. Camus fala abertamente no sentimento de náusea que também preocupou
90 CAMUS, Albert: O Mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Lisboa, Edição Livros do Brasil, 1983, p. 121.
33
Sartre. Esse afastamento do mundo, essa negação de nós próprios em cada coisa, que
nos atira para uma extrema solidão é para ele absurdo. O absurdo camusiano nasce do
confronto entre a consciência e a irracionalidade do mundo. Portanto o homem absurdo
pondera sobre o suicídio que Camus recusa. Rejeita também a atitude de esperança que
aniquila o irracionalismo do mundo.
A única possibilidade é a revolta.91 Só ela respeita os elementos da experiência
absurda. A lucidez da consciência revoltada liberta a consciência da banalidade dos
gestos quotidianos. Um homem quotidiano é um homem anterior à descoberta do
absurdo que vive preocupado com o futuro e acredita na sua liberdade plena. O facto de
viver no futuro impede-o de viver o presente. Um homem absurdo está consciente do
absurdo que se revela, em primeiro lugar, como consciência da morte. Este já não vive
na ilusão de liberdade, para o homem absurdo não existe amanhã. O homem absurdo
ao aceitar – como um Sísifo feliz – o seu destino, o transcende pela liberdade. Trata-se
de uma liberdade limitada. O homem absurdo é livre dentro dos seus limites. Se
aceitarmos a evidência do absurdo, não faz sentido, segundo Camus, desejar viver
melhor, mas enfrentar o mundo o mais frequentemente possível, ou seja, viver o maior
número das experiências possíveis.92
91 No Homem Revoltado de Camus surge uma continuação da reflexão iniciada no Mito do Sísifo onde se trata da relação absurdo – suicídio. No Homem Revoltado aparece a relação revolta – homicídio. O problema da morte e das suas múltiplas formas afirma-se mais uma vez como uma obsessão central da sua obra e elemento indissociável do absurdo. 92 GIRÃO, op.cit., pp. 27–48.
34
4. Filosofia em Vergílio Ferreira
4.1. Chegada ao existencialismo
Logo no início deste capítulo queremos frisar duas evidências na vida literária de
Vergílio Ferreira que partilhamos com Hélder Godinho93, um dos maiores críticos da
obra vergiliana. Primeiro, apesar dos primeiros livros de Vergílio Ferreira terem sido
sofrido influências neo-realistas, pode-se ver que um mesmo universo imaginário
percorre toda a sua obra, desde os poemas da adolescência. Isto quer dizer, que em
obras vergilianas muito anteriores ao conhecimento de Sartre ou do existencialismo,
podem-se, facilmente, encontrar afinidades com a temática existencial. Segundo,
durante a sua vida literária, Vergílio Ferreira escreveu, falou, citou muitos autores, mas,
talvez, sobre nenhum tenha escrito ou falado tanto como de Sartre, umas vezes com ele
concordando, outras dele discordando. De resto, em Gouveia, na Biblioteca Municipal,
que hoje se chama “Vergílio Ferreira” está guardada a biblioteca pessoal do autor, onde
podemos consultar as obras de Sartre.
Vergílio Ferreira exprime-se nos vários lugares da sua obra, particularmente nos
seus diários e ensaios, acerca da sua relação ao existencialismo. Não contesta que o
influenciou muito:
[…] tenho tomado sempre como ponto de referência a filosofia existencialista […] foi o existencialismo que me falou mais profundamente. Não podia, portanto, abdicar de mim próprio. Mas termo existencialismo é muito vago. (EA-se, p. 173)
Mas não se sente ser o existencialista sem restrições:
[…]dizer-me existencialista não me agrada, por mil razões, entre elas a de que tal denominação pode englobar alguns aspectos que não me dizem respeito. Fundamentalmente, o que no existencialismo me interessa é o meu interesse pelo homem-problema e o que num domínio profundo se exprime pela interrogação. (EA-se, p. 172)
E pronto. Não gosto que me digam existencialista. Não é por nada. É só porque dizê-lo é investirem-me de uma exterioridade visível e pitoresca que deturpa o lado visível. (CC V, p. 571)
93 Em GODINHO, Hélder: Vergílio Ferreira e Sartre. In Jean-Paul Sartre; Uma Cultura da Alteridade: Filosofia e Literatura/ Actas de Colóquio. Coord. Cassiano Reimão. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2005.
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Como próprio Ferreira afirma, as suas relações com o existencialismo foram de início
um bocadinho ambíguas:
Hoje começa-se a marcar o aparecimento do existencialismo na Literatura Portuguesa a partir da publicação de um livro meu aparecido em fins de 1949, Mudança. Quando esse livro apareceu, imediatamente alguns críticos […] o ligaram ao existencialismo. Devo dizer-lhe que nessa data, em que já tinha lido o “L`Être et le Néant”, de Sartre, eu estava sobretudo ligado a Hegel. Demorava tempo a explicar-lhe como se pode passar de um Hegel para o existencialismo. Mas passa-se perfeitamente. De resto, hoje Hegel é dado, por M. Ponty, como um dos antecessores do existencialismo. (EA-se, pp. 230–231).
A passagem do neo-realismo para o existencialismo faz-se, pois, em Vergílio
Ferreira através de Hegel, que está na base do marxismo e também do existencialismo.
Ferreira traça o seu percurso literário em Espaço do Invisível II, dizendo que “Kant
estabelece na “Crítica do Juízo” que um artista se descobre através de outro artista.
Começa-se sempre por imitar” (EI II, p. 11). A arte é segundo Ferreira uma recriação
do mundo pela ordenação dos seus específicos elementos. A propósito, recorda a forte
impressão que o primeiro livro que leu de Eça de Queirós lhe deixou:
Mas porque nascia para a literatura com a explosão da guerra (o meu primeiro livro escrevi-o em 1939) as regras do jogo literário não as aprendi bem no Eça mas nos brasileiros. Decerto em Eça marcou-me até à inconsciência disso. […] Toda a minha geração, dita neo-realista, foi com Jorge Amado, Graciliano, Veríssimo, Lins do Rego que se descobriu para a literatura. (EI II, p. 12)
Além de Eça que Ferreira chama “o meu sempre admirado Eça” (EA-se, p. 166) existe
outro escritor de quem Ferreira nunca deixa falar. Sempre menciona que existem dois
escritores de que nunca abdicará. “Os dois escritores que de facto me impulsionaram,
me entusiasmaram e por quem continuo a ter uma grande admiração, foram Eça de
Queirós e o grande Malraux.” (EA-se, p. 166) Naturalmente, não foram só estes dois.
Ferreira não esquece também por exemplo “o grande mestre de todo o romance
contemporâneo” (EA-se, p. 166), Dostoievski, que é, pelas palavras de Ferreira, “o pai,
o avô, o bisavô de todo o romance do século XX” (EA-se, p. 166). E, por altura de
Vagão J:
foi quando descobri Hegel, […] e daí nasceu o meu livro “Mudança”. Singularmente, porém, mas não paradoxalmente, com este meu heterodoxo
36
hegelianismo, cruzou-se a descoberta do Existencialismo, mormente através de “L`Être et le Néant. E o ponto de união foi a célebre “consciência infeliz” hegeliana, mola de todo o seu pensar. (EI II, pp. 13 e 14)
Como observa Hélder Godinho, Hegel foi a descoberta que pôs Vergílio Ferreira
no caminho que, desde Mudança, nunca mais abandonou e que, cruzado com Sartre, o
levou ao existencialismo. Sartre não foi, porém, como Vergílio Ferreira nos diz, talvez o
mais importante, mas nunca mais Ferreira deixará de com ele se confrontar. As várias
referências que faz a Sartre são, às vezes, contraditórias. Por exemplo:
L`Être et le Néant atingiu-me profundamente. Mas não me mobilizou todo. Aliás, a primeira vez que o li foi com a óptica neo-realista e foi para o repudiar. Reli-o mais tarde […] e vibrei com a inteligência de Sartre ou antes com aquilo que nele é uma locomotiva de pensar. E uma máquina admira-se mas não se ama. (CC II, p. 11)
Alguma coisa semelhante pode-se encontrar em Um Escritor Apresenta-se:
Sartre nunca me estimulou muito. Sartre é uma poderosa locomotiva de pensar, deslumbra pela sua cabeça espantosa. (EA-se, p. 173)
E, mais a seguir:
Um Sartre, sendo dos autores que muito admiro, não é dos que mais me impressionam. À sua arte prefiro de longe a de um Malraux, e à sua filosofia prefiro a de um Jaspers, que como “filosofia” lhe é talvez inferior, mas que lhe é sem dúvida superior como voz de profundeza ou simplesmente voz humana. (EA-se, p. 172)
Em Conta-Corrente III, na morte de Sartre escreve:
Sartre foi sempre para mim um escritor que muito admirei. Mas a afeição passa por outro lado, às vezes por quem lhe é inferior como Camus. (CC III, p. 33)
E, para terminar, algumas citações de Conta-Corrente V:
Mas o existencialismo de Sartre não me influenciou absolutamente em nada, para além de episódicos encontros, sempre, aliás, discutíveis. Heidegger e Jaspers e Hegel e Pascal, por exemplo, disseram-me infinitamente mais do que Sartre. (CC V, p. 87)
37
Desde “Mudança” que toda a minha literatura tem que ver com o existencialismo. Mas sendo assim, por força se tem querido descobrir nela o rasto dele, nomeadamente de Sartre. Ora eu só tenho que ver com uma problemática geral, a que não vem codificada em alíneas e parágrafos, a que se define por uma certa posição em face da vida, a que tem menos que ver com Sartre do que com Dostoievski ou Pascal, a que é menos uma filosofia do que um tonalidade de ser. (CC V, p. 571)
Vergílio Ferreira é, às vezes, considerado como o porta-voz do existencialismo
português, porque foi ele quem introduzia o existencialismo na literatura portuguesa, e
foi ele, quem traduzia para a língua portuguesa o ensaio de Sartre O Existencialismo é
um Humanismo, completando-o com o prefácio extenso Da Fenomenologia a Sartre.
Também não se pode esquecer que dedicou um livro ao seu favorito, a Malraux,
Interrogação ao Destino, Malraux. Apesar de tudo isso, ele próprio recusa o rótulo do
porta-voz, explicando que tudo foi uma grande coincidência. É que, a Editora Presença
comprara os direitos de tradução de O Existencialismo É Um Humanismo, de Sartre e
pediram-lhe que alongasse o prefácio para se conseguir um bom volume com um preço
que equilibrasse o tamanho dos direitos pagos (a título de curiosidade, o ensaio de
Sartre tem na tradução portuguesa – 3ª edição, do ano 2004 – 38 páginas, enquanto o
prefácio de Ferreira é de 180 páginas).
A ambivalência em relação a Sartre e ao existencialismo corre através da toda
obra vergiliana. Mas como Ferreira afirma, tudo começou com A Fenomenologia do
Espírito de Hegel e com o L `Être et le Néant de Sartre. E apesar da ambiguidade com
que a Sartre sempre se referiu, não deixou de lhe sublinhar a grandeza e a importância.94
E é só porque ele existe nosso irmão desejável ou indesejável, que à sua voz a ouvimos como nossa. […] Sartre é hoje uma força irrecusável, mais força talvez que a de tantos intelectuais que pessoalmente prefiramos. E ainda que a sua obra se perdesse na demanda do futuro. […] Mas agora é viva, não como centro nominal de convergência, não como indicativo histórico, mas como presença a nós próprios, voz nossa que nos exprime e desencadeia as interrogações que não sabíamos formular. (FS, p. 189)
94 GODINHO, op.cit., p. 244.
38
4.2. Pensamento de Vergílio Ferreira
Vergílio Ferreira foi um artista, foi um atento leitor de filósofos e foi também o
filósofo. Como escreve José Antunes Sousa sobre a obra vergiliana: “A arte e a filosofia
gozam de um estatuto de geminidade aparicional e ambas mostram idêntico grau de
indiciação ontológica.”95 Um desejo de transcendência, uma valorização da arte, uma
afeição ao homem e à humanidade, a presença do amor, a defesa ou mesmo a luta pelo
valor da liberdade, a perda da fé, a consciência de ser arremessado a um mundo absurdo
são os leitmotivs que perpassam por toda a obra de Vergílio Ferreira.96
Antes de começarmos a analisar detalhadamente de ponto de vista filosófico os
três romances da sua fase existencial, achamos útil esboçar no texto coerente os pilares
do pensamento vergiliano. É que, Vergílio Ferreira desenvolve o seu pensamento
designadamente nos seus ensaios. A sua obra ficcional serve-lhe, depois, como a
confirmação daquilo já dito, especialmente em Invocação ao Meu Corpo, e em Espaço
do Invisível I – IV.
4.2.1. Essência humana e a redução fenomenológica
Em Espaço do Invisível II, Vergílio Ferreira recusa a célebre definição de Sartre
segundo a qual o existencialismo se caracteriza por ser a existência que precede a
essência, ou seja, que o homem primeiro existe, age, e que de acordo com o que fizer
assim ele é. Não gosta desta definição porque, e de acordo com o que próprio Sartre
pretende, não lhe parece muito válida. Mais correcta, embora vaga, lhe parece a
definição que o mesmo Sartre nos frisa que todos os existencialismos se unificam por
admitirem que temos de partir da subjectividade. Vergílio Ferreira propõe a definição
seguinte: “o existencialismo é a corrente de pensamento que, regressada ao existente
humano, a ele privilegia e dele parte para todo o ulterior questionar” (EI II, p. 47). Ou
então, e paralelamente ou implicitamente a essa definição, preferia dizer que “o
existencialismo é uma corrente de pensamento que reabsorve no próprio EU de cada
um toda e qualquer problemática e a revê através do seu raciocinar pessoal ou
preferentemente da sua profunda vivência.” (EI II, p. 47). Nenhum questionar portanto
95 SOUSA, José Antunes de: Vergílio Ferreira In CALAFATE, Pedro (dir.): História do Pensamento Filosófico Português. Vol. V, Tomo I. Lisboa, Caminho, 2000, p. 435. 96 Cf. QUADROS, op.cit., pp. 518–520.
39
se estabelece em abstracto, de fora para dentro, mas antes se retoma a partir da nossa
dimensão original, ou seja, verdadeiramente, de dentro para fora.
Para Vergílio Ferreira a realidade existe porque o homem está aí para a captar e
enquanto ele está. Esta conotação antropológica tem como ponto de partida, não só a
realidade do sujeito que pensa, mas a anterioridade da sua existência a todo o pensar.
Ferreira transforma a afirmação de Descartes. Já não é “penso, logo existo”, mas o
“existo, logo penso”. O existir, o sentir que se existe, é anterior a qualquer pensar. “O
antes de todos os antes é a emergência do EU, esse EU de que Vergílio Ferreira tem
uma agudíssima consciência e que é o pressuposto de qualquer pensamento posterior
(sem qualquer minimização do pensamento).97
A metafísica moderna fisicalizou-se, positivou-se, ao hipertrofiar a essência,
sede única da verdade. Assim se estabeleceu, segundo Merleau-Ponty, uma oposição
radical entre “o facto cego e a essência transparente, entre um sujeito absolutamente
constituinte, e um objecto plenamente construído”.98 A ciência moderna é guiada por
uma epistemologia que “quer saber para dominar”. A denúncia de um pseudo-absoluto,
neutralizador do sentido irredutível do eu vivo, é o pano de fundo do discurso
vergiliano.99 Coerente com a matriz filosófica, Vergílio Ferreira aplica-se zelosamente
na redução transcendental.
Há duas zonas no homem que são a das origens e da concretização, a do indizível e a do dizível, a do absoluto e a da redutibilidade. O mundo em que nos movemos é o da realidade imediata onde nos é possível o localizável, o referenciável, o convertível e explicável. Mas o que se explica e referencia e localiza tem a sua identificação última, a sua legitimidade, no que já não pode legitimar-se ou identificar-se senão como a categórica e pura verdade de se ser, a indiscutibilidade do que se é que frequentemente […] nós traduzimos pela fórmula quase desesperada do “porque sim.” (IC, pp. 101–102)
A verdadeira redução fenomenológica, a suspensão do juízo, desemboca no ser-no-
mundo heideggeriano, no corpo-próprio pontyano, ou no eu-corpo vergiliano. Desta
suspensão fenomenológica do mundo fica a subjectividade corpórea do EU que se vê no
seu próprio estar sendo. Como observa José Antunes de Sousa100, dessa epoché
97 CARDOSO, op.cit., p. 172. 98 CANTISTA, Maria: Filosofia, Hoje: Ecos no Pensamento Português. Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1993, p. 283. 99 Idem, Ibidem, p. 284. 100 SOUSA: 2000, op.cit., p. 437.
40
existencial que desontologiza o real objectual surge, na sua trágica solidão, o sujeito
fundante e absoluto que se dá num clima de oblíqua a ambígua com-vivência mundana:
O mundo existe como projecção do nosso corpo, como o necessário termo de uma apetência, como o objecto que a luz busca para que essa mesma luz exista. (IC, p. 261)
Nós somos o nosso corpo. Aqui surge uma certa ambiguidade. O nosso EU é eterno no
mais profundo e íntimo de nós, mas é o corpo que contraria esse desígnio:
Na profundidade de nós o nosso “eu” é eterno, e todavia é justamente o corpo que nos contesta a eternidade. (IC, p. 257)
A redução transcendental, de perfil existencial, desemboca, pois, na subjectividade
corpórea como autêntico começo, realidade do sentido auroral, enraizamento sensível
do inteligível”.101
4.2.2. Absurdo humano
Além da questão do homem existe no pensamento vergiliano outra questão
muito importante. É questão de Deus. Em redor delas cristaliza-se todo o discurso de
Vergílio Ferreira. A sua concepção da suprema dignidade do homem condiciona a sua
concepção de Deus. A relação entre Deus e o homem não deixa de se pôr em termos de
conflito. Deus constitui a grande ameaça para a liberdade e dignidade do homem. O
homem não se contenta com declarar a “morte” de Deus, vai mais longe. Substitui Deus
pelo homem. A liberdade humana retoma a Deus o que lhe pertence. Na antropologia
vergiliana, a imensa dignidade do homem lhe vem essencialmente de ser livre, de poder
dispor de si e de ter conhecimento disso. O homem é o único ser livre no mundo.102 Mas
esta liberdade parece pela primeira vista não absoluta.
O homem vive sempre num drama. Como aponta José Antunes de Sousa, é
como se o homem vergiliano se realizasse apenas no destino de desejar realizar-se. O
homem realiza-se no acto de sonhar, mas não na concretização do sonho que sonha.
Assim surge o drama humano. Cada um experimenta realizar-se, mesmo sabendo que o
101 CANTISTA: 1993, op.cit., p. 286. 102 CARDOSO, op.cit., p. 172.
41
não poderá nunca conseguir devido ao desconforto da “infinitude limitada”, ou seja da
morte.
Ferreira afirma, que mesmo assim, o homem é absolutamente livre: “Cada
homem escolhe-se na obscuridade de si e em face do que a sua hora lhe oferece.” (IC,
p. 118). Mas é ele sempre e só ele que escolhe e se obriga nessa escolha que é a escolha
que corresponde à pessoa que é.103 “O que escolho é o que sou. Mas o que sou é
indiscutível.” (IC, p. 131) “O humanismo é assim o valor da plena realização de nós –
é assim um “conceito-limite” como o é o da liberdade.” (IC, p. 333). Ao humanismo
vergiliano liga-se também a questão de verdade. Ferreira nega uma Verdade
transcendente e universal, mas “não aceita ficar de mãos a abanar e transcendentaliza
a necessidade dessa verdade no absoluto necessário do ser pessoal”.104
O homem moderno não vive em vista da morte. Sabemos que temos de morrer,
mas vivemos como se não fossemos morrer. Só através desta recusa da morte o homem
consegue continuar a agir seriamente e a dedicar ás suas acções a importância que lhes
dedica. A vida não é aniquilada pela presença da morte, pelo contrário. A morte é o que
há de mais próximo à vida. A morte serve para me fazer pensar sobre a vida. O saber da
morte apenas nos surge de quando em quando, nas situações-limite. É sempre o outro
que morre. O EU nunca morre “para si”, morre sempre para os outros. O EU não
testemunha o acto de morrer pessoal. Nunca coexistimos com a nossa morte, morremos
mas nunca estamos mortos.105 A morte não se espera, ela simplesmente acontece. Neste
facto consiste o absurdo das nossas vidas. Sabemos que temos que morrer, mas não
sabemos quando. A nossa morte surpreende-nos. O determinismo em que estamos
colocados torna-se mais fácil de compreender na velhice. Mesma coisa acontece com a
ideia de liberdade. As possibilidades do futuro diminuem e o homem torna-se menos
livre.
Vergílio Ferreira procura a adequar a vida, que é um pleno de ser, um absoluto,
uma positividade necessária, com a morte, que é uma nulidade integral, uma pura
ausência, um nada-nada. Ferreira decreta a aporia de absolutizar a inutilidade da vida
perante a inevitabilidade da morte. Se é absurda a vida individual, condenada
irremediavelmente, podia ser que fosse libertação o suicídio, mas bem pelo contrário. O
103 SOUSA: 2000, op.cit., p. 441. 104 Idem, Ibidem, p. 443. 105 CARDOSO, op.cit., p. 180.
42
suicídio é recusado pelo Vergílio Ferreira.106 A questão do suicídio relaciona-se
intimamente com a questão do sentido da vida.
Os pilares do pensamento vergiliano esboçados neste capítulo aumentaremos nos
capítulos que se seguem. Transferi-los-emos na prática, analisando os três romances da
sua fase existencial.
106 SOUSA: 2000, op.cit., pp. 448–449.
43
5. A temática das obras analisadas
Mas a força maior vinha-lhe, sim, da plenitude
do acto da criação. Por isso a arte fora para
ele sempre uma necessidade de viver.
Vergílio Ferreira: Cântico Final
5.1. Cântico Final107
5.1.1. A ligação com o Absoluto através da Arte
A concentração na actividade artística, o valor indispensável à justificação da
existência, é o leitmotiv do romance que apesar de ter sido publicado um ano depois de
Aparição, predeterminou a problemática principal que se vai revelar no romance que
analisaremos a seguir. É que, Vergílio Ferreira escreveu Cântico Final108 já no ano
1956.
Como Alberto Soares, o protagonista principal de Aparição, escreve para ser,
Mário, o pintor de Cântico Final pinta pelo mesmo motivo: “Eu pinto para estar vivo.”
(CF, p. 161) Na expressão artística une-se experiência e projecto num tempo único de
fixação.109 Cântico Final parece mesmo representar um esboço de Aparição, quer na
estruturação das personagens principais, quer na problemática que as atinge. Durante a
leitura assalta-nos a ideia pôr o sinal de igualdade, além das personagens principais,
também designadamente entre as três personagens femininas. Assim Elsa de Cântico
Final com quem Mário vive uma história amorosa, evoca a personagem de Sofia de
Aparição, Guida faz lembrar a figura de Ana e Paula pela sua vocação à arte é parecida
com pequena Cristina de Aparição.
Todos os romances que vamos analisar começam com a evidência da morte.
Assim também inicia Cântico Final. Logo no primeiro capítulo Mário, pintor e
professor de desenho num liceu da Guarda, recebe a notícia sobre a morte da mãe. Dias
107 O nome original de romance Corpo da Alegria foi posteriormente substituído por Cântico Final, provavelmente foi por causa da construção da obra em função do tempo. O título aponta a temática ligada ao passado. 108 Cântico Final foi o primeiro romance de Vergílio Ferreira levado ao cinema, com realização de Manuel Guimarães e estreado em 1974. Posteriormente foi Manhã Submersa do director Lauro António. 109 FIALHO, Maria do Céu: Homem “Paixão Inútil” na Aparição de Vergílio Ferreira. In GODINHO, Helder (org.): Estudos sobre Vergílio Ferreira. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982, p. 49.
44
depois também o seu pai morre. Mário vai para Lisboa, onde já estivera, e refaz as suas
relações com um grupo de artistas: romancista Matos, pintor Armando, médicos
Cipriano e Félix, Paula - pianista e mulher de Cipriano, advogado Rebelo com a sua
mulher Guida que é escritora. As reuniões regulares na casa de Cipriano onde se fala
sobretudo da arte, da política e questões sociais, frequentam também os outros como
Carlos Mira, contista sem sucesso que publicou só um conto, cuja alcunha é Mira-
Adamastor, e “detestável” Cidália, escritora.
Nos serões, Mário desenvolve as suas preocupações metafísicas acerca da
evidência da morte e condição do homem e da presença de si a si próprio, preocupações
que vão constituir a problemática central de Aparição. Em certos capítulos, as
personagens permanecem em longas discussões o que quase transforma o romance em
ensaio filosófico. Mário apercebe-se que discutir as questões graves é muito diferente de
vivê-las, problematizá-las a partir de si, ser o sujeito delas. É isso que o inquieta.110
“Não defendo a morte. Defendo a vida […]a vida é um prodígio enorme. Devo
defender o milagre até onde puder!” (CF, p. 45), responde Mário a Félix que proclama
que todos temos de morrer. Em Cântico Final é também acentuado o facto da ausência
do divino, o facto que se vai confirmar nos romances seguintes. Mário confessa-se
materialista, faz da arte a sua divinidade e defende o princípio da santidade sem Deus:
“Sou materialista! Mas o meu materialismo não fala só de pedras.” (CF, p. 130)
Mais importante do que o problema religioso é a perspectiva da arte como valor
justificável da existência humana. O romancista preocupa-se com a associação dos
interesses das suas personagens com outras artes, ligando a literatura com outras
manifestações artísticas. Em Cântico Final é a pintura e a dança que têm grande
importância, enquanto em Aparição será a música que vai comover a personagem
principal.
Numa das reuniões Paula prepara a surpresa: toca piano, enquanto a sua irmã
Elsa dança. Deste modo Mário conhece a bailarina, a qual, a seguir, vai pintar e com
quem vai viver a emoção amorosa. Elsa depois desaparece sem aviso qualquer.
Mário chega a saber que vai morrer muito em breve, com um cancro no
estômago. Mário antes tinha consciência que o homem é um ser-para-a-morte, mas uma
coisa é saber-se a morte, dum saber vago, outra coisa muito diferente é saber-se que se
110 JÚLIO, M. J. Nobre.: O Discurso de Vergílio Ferreira como Questionação de Deus. Lisboa, Edições Colibri, 1996, p. 55.
45
morrerá muito em breve.111 Mário portanto regressa ao seu espaço original, à sua aldeia
na Serra da Estrela (esse regresso e a vida depois constituem um plano narrativo escrito
em itálico) e sente-se fascinado pela velha e abandonada capela da Senhora da Noite,
que ele conhece desde a infância. Como última tarefa da sua vida, como acto (cântico)
final, apesar de ser o ateu, decide comprá-la e quer restaurá-la. Segundo José Luís
Gavilanes Laso, a tentativa de reconstrução e decoração de uma capela deve interpretar-
se em termos de projecto. Com o seu projecto final Mário pode superar os seus
projectos anteriores como profissional do ensino, como amante e como pintor.112
“Qualquer reconstrução é um acto de rebelião contra o que está em ruínas.”113 Neste
acto material simboliza-se outro tipo de rebelião espiritual.
Mário via no ateísmo a condição de arte religiosa114. Paradoxalmente, sendo
ateu, sente o impulso de decorar a capela tal como fizeram outros artistas, como
Matisse, Goya, Chagal e outros. Mário pretende fazer da arte um absoluto. Portanto, na
parede do fundo, no lugar do altar, onde haveria de estar a Senhora da Noite, passa a ter
a face de Elsa. Mário assim junta a arte à mulher e à religião. Graças à arte consegue
unir a mulher ausente e a Ordem Universal. A morte é aqui substituída pela arte. Mário
assim cumpre a essência do humanismo vergiliano, mais patente em Aparição, de
colocar o homem nos aposentos divinos, porque Deus morreu. Em O Homem
Revoltado, Albert Camus escreve que o homem deve ocupar o lugar de Deus, em
consequência da revolução metafísica que é a continuação da revolução humana.
Para Vergílio Ferreira o ser artista determina a maneira mais autêntica de
assumir uma condição humana no tempo de Deus morto. “A arte torna-se religião e o
artista é um sacerdote.”115 Esta posição vergiliana coincide com a interpretação de
Heidegger segundo qual o pensador diz o Ser e o artista nomeia o Sagrado.116
Ao final do romance, depois da morte de Mário, todos os seus amigos vão para
aldeia de Mário a fazer algumas reconstruções da capela. A última imagem evoca a
vitória da arte. O filho de Cidália, cujo pai não é durante a leitura evidente – hesita entre
111 Idem, Ibidem, p. 56. 112 GAVILANES LASO, José L.: Vergílio Ferreira: Espaço Simbólico e Metafísico (trad. António José Massano). Lisboa, D. Quixote, 1989, p. 178. 113 Idem, Ibidem, p. 180. 114 “A aproximação de arte e religião remonta à antiguidade e, concretamente, às doutrinas platónicas sobre a inspiração divina dos poetas. Essa teoria é incorporada nas culturas da Idade Média como um dos muitos lugares comuns da época e incorpora-se nas poéticas neoplatónicas do Renascimento.” CURTIUS, Ernst Robert apud GAVILANES LASO, op.cit., p. 191. 115 GAVILANES LASO, op.cit., p. 187. 116 Idem, Ibidem, p. 188.
46
Félix e Mário – confirma a sua origem, exigindo lápis e papel e gastando “horas a
reduzir o seu pequeno mundo à invenção de um “outro” mundo que o habitava, o
fascinava e só ele entendia...” (CF, p. 243)
5.1.2. A narração heterodiegética e híbrida
Cântico Final estrutura-se numa dualidade de planos narrativos, um que se
ocupa da narração do passado (a letra redonda) e o outro, referente à situação presente
(escrito em itálico). O plano de tempo referente ao passado tem uma justificação directa,
aparece como recordação expressa. A obra inicia pelo presente, é quando Mário
apercebendo-se da sua doença mortal, regressa à sua casa:
Por uma manhã breve de Dezembro, um homem subia de automóvel uma estrada de montanha. Manhã fina, linear. O homem parou um pouco, enquanto o motor arrefecia, e olhou em volta, fatigado. Aqui estou. Regressado de tudo. (CF, p. 9)
Logo na segunda página torna-se evidente que o sujeito vai cair na sua memória:
“Frente à velha casa, no automóvel parado, o homem recordava. Há quantos anos?”
(CF, p. 10) E imediatamente o narrador passa ao plano do passado, demarcado por uma
limitação de parágrafo. O passado vai constituir o verdadeiro corpo da narrativa. Maria
Alzira Seixo tenta justificar a escolha do autor acerca do tipo das letras, redondo e
itálico, dizendo que o plano do presente tem o carácter onírico, até separativo da vida
objectiva. O actual é quase um sonho porque é desesperado e considerado como uma
espécie de repouso final e um limite de toda a existência (Cântico Final).117 Os dois
planos alteram-se, evoluem paralelamente até a fusão final, causada pela morte de
Mário.
O tipo da narração difere dos restantes romances que analisaremos. Enquanto os
narradores de Aparição e de Estrela Polar são autodiegéticos, em Cântico Final
depara-se com o narrador heterodiegético. O narrador não descreve a história de fora, da
incursão extradiegética, mas aproxima-se o mais possível daquilo que chamamos a
focalização interna. O narrador não é personagem da diegese, mas narra do ponto de
vista de Mário. E abertamente aproxima-se de próprio Vergílio Ferreira. Essa ligação ao
autor é mais patente em Aparição, onde aparece o narrador-personagem-autor. Mas a
117 SEIXO, Maria Alzira: Para um Estudo da Expressão do Tempo no Romance Português Contemporâneo. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987, p. 125.
47
narração heterodiegética é frequentemente interrompida pela invasão de Mário que
utiliza a primeira pessoa: “Velha casa. Velha gente. E eu só, aqui erguido com a minha
interrogação inútil.” (CF, p. 26) Ou segunda pessoa, nos casos de interpelação:
“Cidália. Que imagem de ti persegues tu na vida, com […]o teu eterno livro debaixo do
braço?” (CF, p. 101) Esta atitude deriva da forte emotividade que comove a
personagem central. Nos romances que analisaremos a seguir essa intenção aparecerá
mais nítida.
A minha vida é eterna porque é só a presença
dela a si própria, é a sua evidente necessidade.
Vergílio Ferreira: Aparição
5.2. Aparição
5.2.1. A busca da presença do EU
“Vivemos normalmente à superfície de nós. A presença de nós a nós próprios
tem algo extraordinário, de miraculoso. Assim, Aparição surgiu-me como a
necessidade de abordar e de fixar o que há de novo e perturbante nesse encontro com a
pessoa que nos habita.” (EA-se, p. 223). Com estas palavras Vergílio Ferreira justifica
a sua escolha acerca do tema do romance Aparição. O romance desenvolve a pergunta
sobre como pode o homem suportar a evidência da sua condição, sobre como
responder-lhe. Segundo Vergílio Ferreira temos de reconhecer o que somos e reabsorver
hoje, ou amanhã, ou um dia em plenitude, o que se transpôs outrora a uma dimensão
divina em que já não acreditamos.
A história começa com a chegada da personagem principal, Alberto Soares, que
é, ao mesmo tempo, o narrador da história, a Évora onde desempenha o cargo do
professor liceal. Quase num início vimos a saber que o pai de Alberto está morto e
Alberto não consegue libertar-se das suas lembranças através das quais o leitor é
transferido à aldeia natal de Alberto no tempo de Setembro quando o seu pai morreu. A
história desenrola-se em Évora, mas as recordações de Alberto são tão fortes que, lendo
48
a história de Évora, somos de vez em quando subitamente envolvidos na acção da terra
natal.118
Depois do encontro com o doutor Moura, o ex-colega de estudos do pai de
Alberto, Alberto começa-se a relacionar com toda a família da burguesia do Dr. Moura
cujos membros importantes são os seguintes: três filhas de Moura – Ana, Sofia e
Cristina, Alfredo – marido de Ana, o engenheiro Chico, amigo do Dr. Moura, e o seu
primo Carolino, alcunhado Bexiguinha, que será o aluno de Alberto. Sua presença e
suas inquietações metafísicas119 conturbam os membros desta família e as pessoas do
seu relacionamento. Os pontos de vista das outras personagens são assumidos pelo da
personagem central, Alberto, que os elabora e depura. Porque é o tempo do herói que
realmente se manifesta na narrativa. As restantes personagens aparecem-nos sem um
tempo específico, porque vivem “em função da visão que delas tem o protagonista,
porque uma primeira pessoa está connosco e as terceiras pessoas que existem em
função dessa primeira só chegam até nós através dela.” 120
O pensamento de Alberto discorre em permanente interrogação sobre o seu EU
(=Sein, em termos heideggerianos), aquele que se oculta sob a forma do existente
(=Dasein), e cuja verdade autêntica só é alcançada numa súbita aparição, nunca
apreendida pelo conhecimento lógico-discursivo, mas pelo conhecimento intuitivo-
emotivo.121 Aparição não provém de uma fonte racional, mas irracional, como afirma
Vergílio Ferreira já no curto ensaio Carta ao Futuro, publicado um ano antes de
Aparição. Aliás, é neste ensaio, onde se fala pela primeira vez sobre o conceito de
aparição. “A luz que ilumina o estarmos sendo é intransmissível como o sentirmo-nos a
viver. Que ninguém nos demonstre a nossa verdade ou erro: não se demonstra o ser
pedra uma pedra, o ser estrela uma estrela.” (CFut, p. 50).
Como observa Beatriz Berrini, Alberto aproxima-se daqueles que já tiveram
alguma vez aparição do EU a si próprios, daqueles que têm a consciência do milagre da
vida e do silêncio da morte. E afasta-se dos que negam o mistério e absurdo, dos que se
refugiam na fé, dos tolos.122 Alberto dá aulas particulares a Sofia para que ela resolva as
118 A terra natal pertence entre os leitmotivs da obra vergiliana. No Aparição é representada por Tomás, o irmão mais velho do protagonista. 119 Aqui pode-se notar uma das diferenças principais entre Alberto e Adalberto, a personagem central de Estrela Polar. Enquanto Alberto fala dos seus pensamentos com os outros, no caso de Adalberto não é assim. É que, quase ninguém se interessa pelas suas inquietações, além das conversas curtas com o pintor Garcia. 120 SEIXO, op.cit., p. 130. 121 GAVILANES LASO, op.cit., p. 213. 122 BERRINI, Beatriz: “Aparição” de Vergílio Ferreira, Breve estudo. In GODINHO, op.cit., p. 75.
49
suas dificuldades na escola. Para o leitor, alguma coisa incompreensível estabelece-se
entre eles.
Durante as férias natalícias, Alberto vai para a sua aldeia onde se trata da
partilha dos bens paternos entre os três irmãos. O papel significativo cabe ao seu irmão
Tomás com quem faz a discussão sobre o assunto que o inquieta – o sentido da
existência da vida e da morte. Quando volta a Évora, algumas coisas têm mudado.
Sofia agora namora com Carolino. E, com o andar do tempo, Alberto começa a sentir
que pouco a pouco perde interesse pela família do Dr. Moura. Isto parece evidente
porque ele tenta convencer os outros em seu redor da sua verdade, impõe as suas ideias
de uma forma violenta, fatigando às vezes até o leitor. Ele quer encontrar as respostas às
suas questões com tanto empenho que mesmo nas suas aulas no Liceu fala sobre a
experiência da aparição de si a si próprio.
Num acidente de automóvel, acontecido no dia do Carnaval, a pequena Cristina,
que desempenha o papel da criança que toca piano, representando arte e parecendo não
pertencer ao mundo terreno, sofre uma ferida de morte e a seguir com efeito morre num
hospital. A morte de Cristina foi traumática principalmente para a sua irmã mais velha,
Ana, que não podendo ter filhos, via na sua irmã uma espécie de filha (e provavelmente
por isso Ana e Alfredo decidir-se-ão pela adopção dos dois filhos do homem que se
enforcou por não ter mais a mão direita apta para semear).
Depois da morte de Cristina, Alberto esteve durante algumas semanas sem ver
ninguém da família do Dr. Moura. Alberto aluga uma casa no alto de São Bento onde
passa tempo nas suas meditações. O tema da solidão, não sendo notável só no Aparição,
não é concebido no sentido proclamado por Kierkegaard, mas aproxima-se da doutrina
heideggeriana. A solidão figura como a condição para que o homem possa apreender o
seu “EU”.
Os ciúmes de Carolino entretanto alcançaram o clímax: revela-se sinistro e hostil
em relação ao professor, tenta matá-lo, mas finalmente assassina Sofia porque não pode
tê-la de outra maneira.
Toda essa situação força Alberto a deixar Évora e ir para o Faro. Qualquer dos
romances de Vergílio Ferreira termina nos prolegómenos de uma sabedoria que é a
reconciliação, sem quaisquer ilusões, do homem com o seu destino. No final de
Aparição, Alberto submete-se à evidência da sua condição, abandona-se “ao anúncio de
50
alguém numa porta que se abre” e o amor humano recria um momento novo onde
passado, presente e futuro coincidem.123
5.2.2. O narrador-personagem-autor
Como já mencionámos, o romance desenrola-se através do narrador
autodiegético. Mas o género da narração é pouco mais complicado. Desde o início
sabemos que o narrador-personagem é também idêntico com o escritor do romance, isto
quer dizer que foi o próprio Alberto Soares quem escreveu este romance. O narrador
relata a sua própria história num contexto distante daquele em que os factos narrados
foram vividos. As primeiras palavras do romance são:
Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. (AP, p. 7)
A mesma frase repete-se no final:
Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de fim de Verão entra pela varanda, lava o soalho numa pureza irreal, anterior à minha humanidade e onde, no entanto, sinto presente uma parte de mim. (AP, p. 255)
Esta presença cíclica é uma estratégia vergiliana, como veremos também em Estrela
Polar. O início e o final do romance distinguem-se também pelo tipo de letra, o itálico,
que os separa da narração que começa no primeiro capítulo. É que, O romance Aparição
está dividido em dois planos temporais. O tempo da narração, ou seja, a situação própria
do narrador (neste sentido do escritor), sempre caracterizado pelo isolamento, pelo
silêncio, é ancorado no presente. Por outro lado, o tempo narrado, protagonizado pelo
narrador-personagem, ocorre no passado que se abre através da memória de Alberto.
Podemos aqui notar uma certa evolução do romance Cântico Final: a utilização
do presente verbal. Já em Cântico Final o presente aflorava, mas o seu emprego tinha o
carácter de uma fuga à norma, tal como as intromissões da primeira pessoa no discurso.
Outra novidade consiste precisamente no aparecimento da primeira pessoa narrativa.
Utilização da primeira pessoa irá ser adoptada nos romances posteriormente publicados,
denunciando assim que esta técnica se afigurou justa para a expressão de uma intenção.
123 BRÉCHON, R. Dois textos sobre Vergílio Ferreira: 1. A metafísica do corpo; 2. Um humanismo trágico. Colóquio/Letras, 123-124, Janeiro-Junho 1992, pp. 352–353.
51
Essa intenção liga-se a um desejo de emprestar à obra uma vivacidade que, ao contacto
com o leitor, o convença de que ela existe por si própria. “O romance desvalorizou a
narrativa de personagens para adoptar a presença de uma pessoa, precisamente a do
autor.”124 Como consigna justamente Maria Alzira Seixo, a exigência de participação
do leitor na obra e que neste caso o uso da primeira pessoa liga-se em geral à realização
dos romances mais directamente ligados à corrente existencialista.125
Mas eu quero mais: a minha presença em alguém,
a minha duração em alguém... Estamos todos cheios
do nosso dom. Mas não se é rico numa ilha solitária.
Vergílio Ferreira: Estrela Polar
5.3. Estrela Polar
5.3.1. Como ser eu nos outros?
“Como é que estabelecemos uma relação com alguém? Que é que define e
identifica esse alguém?A que é que de uma pessoa nos dirigimos? (CC III, p. 218) O
romance Estrela Polar fala disso. “Estrela Polar […] continua de algum modo
Aparição. Pretendi nele acentuar o assalto ao que tenho designado por pessoas,
tematizando fundamentalmente o problema da comunhão” (EA-se, p. 239), afirma o
autor. Apesar de Estrela Polar prolongar de certo modo a temática de Aparição,
segundo Vergílio Ferreira é este romance melhor do que Aparição:
[…] esse meu pobre livro mal-amado. Livro “enigmático”, por isso mesmo ou apesar disso, penso que um dia terá talvez mais interesse que Aparição. (CC II, p. 57)
Tenho um livro mal-amado por quase toda a gente. Chama-se Estrela Polar. Ora bem, é um bom livro, de boa arquitectura e melhor escrita que Aparição. (CC IV, p. 257)
No outro lugar até avalia: “esse é o meu livro mais importante” (EA-se, p. 242).
124 SEIXO, op.cit., p. 127. 125 Idem, Ibidem, p. 127.
52
Adalberto, o protagonista e narrador autodiegético, recebendo a notícia sobre a
doença da mãe, regressa às suas origens, a Penalva. Logo depois da morte da mãe, o seu
pai também morre e Adalberto fica em Penalva com a livraria que era dos seus pais. Na
livraria trabalha como empregada Aida, com qual Adalberto inicia a relação amorosa e
através dela quer procurar a essência do TU. Em breve, Adalberto conhece Alda, a irmã
gémea de Aida, extraordinariamente parecida com ela. A existência das gémeas é,
porém, desde o início posta em causa. Quando Faustino, empregado da livraria, explica
a Adalberto a história familiar da Aida/Alda, dá assim o começo à hesitação do herói:
Aida e Alda são irmãs gémeas, filhas do senhor Sousa e de D. Aura. Mas há quem diga que não, que Alda é filha de uma irmã gémea de D. Aura, uma D. Alma, que teve aquela filha quando era solteira e que D. Aura, para dignificar a irmã, a recolhera como irmã gémea de Aida, por terem ambas nascido no mesmo dia. Mas também se diz que nem sequer a filha do senhor Sousa é filha do senhor Sousa. (EP, p. 50)
Adalberto não consegue distinguir uma da outra, estabelecendo-se certa confusão, que o
leva, às vezes, trocar Aida por Alda. Uma espécie de jogo entre os três permite a
Adalberto relacionar-se com as duas irmãs ao mesmo tempo, sem saber com qual delas
está. Mas é forçado as reconhecer, que Emílio, o médico e o seu amigo, as distingue,
apaixonando por Alda:
- A Alda está aqui? – perguntei abruptamente, absurdamente, estupidamente. Emílio pôs-se sério, lutando evidentemente contra a força que lhe apagava o sorriso: - Está, está. Está aí para dentro. - Mas tens a certeza de que é ela? - Se tenho a certeza? Eh! eh! Então não havia de ter certeza? - Não a confundes nunca com a irmã? Emílio corou um pouco ou isso me pareceu por vê-lo um pouco perturbado. Conseguiu todavia recompor-se, ou assim o julguei, talvez por se ter recostado de novo: - Bom, bom. Tu sabes que a irmã é mais bonita... (EP, pp. 190–191)
Sucessivamente, a paixão de Adalberto desloca-se de Aida para Alda,
simplesmente porque Aida se lhe gastou (o conceito típico vergiliano), embora ele
continue sem saber distinguir uma da outra. Além de Emílio, no romance aparece
Garcia, um pintor, para quem pintar é algo que não pode evitar (faz lembrar Mário de
Cântico Final), Irene, mulher cega e amante de Garcia, com a qual o pintor vive uma
relação especial, até transcendental, o que Adalberto admira. A figura de Jeremias
53
representa a criatura que não aguenta a sua solidão e em consequência disso bate na sua
mulher.
O leitor nunca tem a certeza se é o narrador quem se engana ou se são as
personagens. Em uma das mais importantes cenas da obra, Adalberto entra na livraria e
reconhece Alda:
Alda esperava-me com a sua alegria clara, a sua unção de vitória, essa sua evidência de beleza e de amanhã. Covas breves nas faces, o sorriso dos lábios distendidos e cerrados. Mas nesse instante, como em imagens sobrepostas ou como num ondeado de água, eu vi o rosto de Alda transformar-se. Lentamente, os lábios refluíram-lhe à gravidade, as faces descaíram a uma massa de abandono e o brilho dos olhos transfigurou-se. Era ainda o brilho vivo da frescura, eram ainda os mesmos olhos, exactamente os mesmos ou quase os mesmos que eu veria se os visse só a eles. Mas toda a mutação do rosto os alterara e eram agora só noite e cansaço e alucinação. Estonteado - Aida – clamei. […]Então, pela primeira vez, ocorreu-me a ideia absurda de que Aida e Alda tivessem sido sempre uma única pessoa. Era evidentemente absurdo que o pensasse. […]E, todavia, quantas vezes me assalta ainda esta ideia! (EP, pp. 215–216)
Certo dia, com a família de Aida/Alda vai em excursão à praia, ambas irmãs
sofrem um naufrágio e só uma delas se consegue salvar – Aida, mas Adalberto pensa
que é Alda. Alda deixa-o permanecer no equívoco, os dois casam-se e têm o filho que
irá morrer pouco tempo depois de nascer. Mais tarde, Alda revela a sua verdadeira
identidade e Adalberto não vê outra solução senão matá-la. Se matou Aida ou Alda é
um dos muitos equívocos deste romance. Adalberto é condenado a vinte anos de prisão.
E de prisão o herói escreve e reconstitui a história através da sua memória, ou seja,
como escreve Maria Joaquina Nobre Júlio: “escreve, não para se justificar, mas para
melhor se entender, para recriar um futuro que será circularmente, até ao nível
sintagmático, igual ao passado.”126 Com efeito, o final do romance resume a fábula de
Estrela Polar. Já reparámos num certo esboço em Aparição que o escritor nos fornece o
carácter circular da narração. Em Estrela Polar é deste modo apontada a problemática
não resolvida. Assim Vergílio Ferreira terminou o romance de todos os equívocos:
Só. Decerto a vida expulsou-me. […] Então, provavelmente, encontrarei Aida. Ela tem uma irmã parecida com ela, até no nome. E amarei Aida e direi: “tu, ó única”. Tudo quanto em mim é de mais o sonharei então nela e o sentirei então
126 JÚLIO, M. J. Nobre: Estrela Polar lida por Vergílio Ferreira. Vária Escrita, Nº 9, Dezembro de 2002, p. 301.
54
nela e tudo em mim será ainda um excesso e perguntarei ainda: quem? onde? para que? Depois confundirei Aida com Alda e direi a Alda, que é Aida: “ó única”. Então Aida dir-me-á: “não sou quem julgas, mas que admira? Tu nunca amaste ninguém”. Haverá um filho entre os dois e já morto. E eu matá-la-ei ou dirão que a matei, porque a morte é o signo do meu excesso – e serei condenado a vinte anos. Abrir-me-ão as portas depois, se viver ainda. E voltarei para Penalva. Então encontrarei decerto Aida que tem uma irmã extraordinariamente parecida com ela. (EP, pp. 318–319)
A personagem principal, Adalberto Nogueira, vive numa solidão devido à
incapacidade de produzir a comunhão, o que é o problema central da obra. Adalberto
segue a linha de Alberto de Aparição, mas ao contrário do herói de Aparição, Adalberto
não consegue transmitir o seu problema a ninguém. Alberto Soares faz a aparição de si
a si próprio, a auto-revelação do que é nele mais profundo, do que faz dele a pessoa que
é. Ele consegue ensinar aos outros essa experiência. Isso não ocorre com Adalberto.
Ninguém o entende e portanto não chega à comunhão com os outros. O seu problema
fundamental é alcançar a comunhão com outra pessoa, conhecendo o ser de um TU que
da perspectiva do outro é um EU também. O homem faz de si o objecto que quer
conhecer. Como se escreve mais adiante na entrevista com o escritor: “Se Aparição é o
romance do eu, Estrela Polar é o romance do tu.” (EA-se, p. 243) O tema da
comunicação surge na obra segundo Vergílio Ferreira em vários níveis, “desde a
degradação do “grupo” até à situação-limite da impossível comunicação, ou antes
identificação” (EA-se, p. 239). Em relação à filosofia heideggeriana, podemos afirmar
que Alberto representa o ser-em (estar sendo) e Adalberto o ser-com.127 A
impossibilidade de conhecer a individualidade do outro (distinguir Aida da Alda) desde
a perspectiva desse outro (daí o desejo de Adalberto ser eu nos outros) condena-o à
solidão. Adalberto não é capaz cumprir a redução fenomenológica, o processo
husserliano que consiste na tentativa de extirpar da essencialidade do ser tudo “inútil”,
irrelevante. Tal como escreve José Rodrigues Paiva, nesta ficção vergiliana:
o homem é um ser-com-alguém, mas ainda assim condenado à solidão, porque cada ser, ou cada individualidade, não se revela de forma absoluta e não pode ser plenamente conhecida pelo outro.128
127 PAIVA, José Rodrigues: O Espaço-Limite no Romance de Vergílio Ferreira.Recife, Edições Encontro, 1984, p. 176. 128 Idem, Ibidem, pp. 178–179.
55
5.3.2. Na sombra do novo romance
Próprio Vergílio Ferreira consigna que neste livro “a história se desenvolve num
plano de realidade-irrealidade” (EA-se, pp. 238–239), o que já observámos na temática
do romance (não sabemos se Aida/Alda é uma pessoa ou duas, não é explicitamente dito
se Adalberto matou a sua esposa, a cidade Penalva parece mais fictícia do que real,
nunca se chega a saber se Irene cega existia...etc.). Também a própria estrutura
romanesca é fundada em várias alternativas. O narrador não obedece a ordem
cronológica e assim torna a narração saltada e cheia de repetições. Em Estrela Polar
podemos então observar a influência do novo romance. O escritor, como explica numa
das entrevistas, ficou alheio à ideologia, à filosofia, à temática que o novo romance
trouxera. Mas interessou-lhe tudo o que o novo romance mudara na estrutura formal do
romance: a concepção de espaço, de tempo, a distribuição da matéria romanesca:
Ninguém, doravante, poderá escrever romance segundo os quadros, as formas da estrutura tradicional desse género. […] Nós contávamos os romances até agora, a começar pelo princípio, conduzíamo-los por aí fora até ao fim. O novo romance diz-nos: isso é artificial, ninguém recorda nada assim seguidamente. Nós recordamos aos saltos. (EA-se, pp. 240–241)
Algo parecido escreve-se em Estrela Polar, a noção do tempo é subjectiva:
O passado é um labirinto e estamos nele, um passado não tem cronologia senão para os outros, os que lhe são estranhos. Mas o nosso passado somos nós integrados nele ou ele em nós. Não há nele antes e depois, mas o mais perto e o mais longe. E o mais perto e o mais longe não se lê no calendário, mas dentro de nós. (EP, p. 57)
O leitor deste romance consegue construir o fio narrativo só com as dificuldades.
Segundo José Luís Gavilanes Laso Estrela Polar “é mais discurso do que a
narração”.129
Nesta obra desaparece o plano presente, habitualmente escrito em itálico. O
plano agora está totalmente mergulhado no passado. A narrativa constitui-se, assim,
única, sem diferenciação de planos. Há, no entanto, uma estratificação de tempos, que
deriva precisamente do ir e vir da memória do passado ao actual. O plano narrativo que
em princípio era linear, não se mantém. Verifica-se uma intromissão constante de factos
129 GAVILANES LASO, op.cit., p. 257.
56
adventícios, produzida normalmente pela associação de ideias.130 O narrador-
personagem narra algumas cenas várias vezes, acrescentando sempre alguma alternação.
O texto é além disso cheio das antecipações que surgem devido à citação de um nome
que associa ideias emocionais. Por exemplo:
São três empregados com ele: o rapaz dos mandados, que passa a vida na rua, e a rapariga da caixa, da correspondência e da escolha da literatura estrangeira – Aida. Escrevo o teu nome e estremeço. Subitamente, a tua face... Há uns papéis a assinar, tu entregas-mos à minha secretária, e a tua mão como uma flor... (EP, p. 33) [Esta cena, com efeito, surge de novo mais adiante.]131
O leitor não consegue compreender tudo e fica assim cheio da curiosidade o que se
acontecerá mais adiante. “E temos assim o leitor a acompanhar o narrador na sua
inquietação.”132
Estrela Polar, é, indubitavelmente, levando em conta o seu carácter híbrido, um
dos marcos evolutivos da obra vergiliana.
130 SEIXO, op.cit., p. 143. 131 Obs. é nossa. 132 SEIXO, op.cit., p. 145.
57
6. Subjectividade e temporalidade
6.1. EU – o início absoluto
Todo o questionamento filosófico tem de partir, segundo Vergílio Ferreira, da
nossa subjectividade. A nossa dimensão original é primordial. Neste capítulo e naqueles
que se seguem aprofundaremos os aspectos essenciais da filosofia vergiliana, já
esboçados na parte do nosso trabalho chamada Pensamento de Vergílio Ferreira,
apoiando-nos nos ensaios filosóficos do autor e nas obras romanescas – Cântico Final,
Aparição e Estrela Polar.
Alberto Soares proclama: “A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o
que me cerca é de dentro de mim.” (AP, p. 9). Em Estrela Polar diz-se que nós somos o
absoluto de tudo:
[…]só nós somos testemunhas de nós neste princípio absoluto que nos somos, presença absurda, total, definitivamente suspensos sobre um mundo que nos ignora. (EP, p. 51)
O trecho de Estrela Polar faz lembrar Camus segundo o qual não conseguimos
compreender o mundo plenamente.
Alberto preocupa-se demasiadamente com o seu estar sendo, ou seja, com o seu
verdadeiro ser, ser-em. O termo de estar sendo já surge no ensaio Carta ao Futuro. Um
dia encontramos uma evidência nova que nos habita os nervos, corporiza-se connosco.
É a nossa pessoa. Estar sendo quer dizer que “um dia descobrimo-nos uma realidade
miraculosa, uma certeza de sermos, o puro acto da nossa identidade.” (CFut, p. 32)
Estar sendo é autodescoberta, chegada à nossa realidade profunda. É aquilo:
[…] o que nos afirma uma totalidade de ser, o que nos define e é a própria realidade de estarmos sendo – é o todo que nos sentimos e nos projecta, é a absoluta presença de nós a nós próprios, esta irredutível e impensável realidade do que somos, impensável e irredutível porque não podemos sê-la de fora, desdobrá-la em duas totalidades. (CFut, p. 33)
Alberto Soares quer saber a resposta à pergunta “o que é que sou?” O autor usa a
expressão estar sendo cujo sentido exprime o melhor o facto da nossa estadia no
mundo. O narrador, de acordo com Sartre, é consciente de não haver nenhuma natureza
58
humana, cada um de nós apresenta uma personalidade única. O mesmo declara-se em
Invocação ao Meu Corpo:
[…] um EU ou um TU não têm género […] porque tanto o homem como a mulher dizem EU, anunciam indistintamente o puro princípio de si […] simultaneamente, porém, um EU não tem plural. Porque o plural de EU é NÓS e não EUS. Pois como ser EUS se um EU é princípio e fim de si mesmo? Para que o plural fosse EUS seria necessário que a irredutibilidade que eu sou fosse uma redutibilidade, que o princípio que em mim existe não existisse, que aquilo que me exprime fosse apenas o expresso […] (IC, pp. 76–77)
O EU tem, essencialmente, duas faces, primeira é o EU pensante, outra o EU -
objecto da reflexão. O afastamento temporal favorece a objectividade do
autoconhecimento que tem de ser no primeiro lugar antes de qualquer outra descoberta,
por outras palavras, o autoconhecimento condiciona as cognições seguintes.
Sobre o EU como objecto da reflexão escreveremos mais no capítulo dedicado à
intersubjectividade.
6.2. O corpo espiritualizado
EU é um complexo inseparável do espírito e do corpo, ou seja, o EU poderia ser
concebido só como o espírito, mas sempre se exprime através do corpo. O corpo é assim
mencionado como a morada do espírito: “Que é que te habita, que é que está em ti e és
tu?” (AP, p. 41). Ou mais adiante em Aparição escreve-se: “estou eu e aquilo que me
povoa” (AP, p. 117). Mário, ao chegar a saber da sua morte próxima, não consegue
imaginar o seu corpo desabitado:
Sinto-me todo presente a mim próprio, como é possível morrer? Como imaginar este corpo despovoado de tanta coisa que nele me criei, como imaginá-lo desabitado de mim? (CF, p. 131)
Não se trata do dualismo na consideração do homem como espírito incarnado num
corpo. O corpo não é nenhuma prisão do espírito de que este deseje libertar-se. O corpo
e o espírito constituem uma unidade: “ eu sou o meu corpo” (IC, p. 255).
Eu sou o meu corpo, posso sair dele, mas sempre e ainda dentro dele. Neste
aspecto é impressionante a parecença com a filosofia de Merleau-Ponty. Vergílio
Ferreira diz: “o homem […] é o corpo espiritualizado” (IC, p. 261) e Merleau-Ponty
59
afirma: “sou uma carne animada”.133 A bailarina Elsa de Cântico Final representa a
importância do corpo, falando com Mário sobre a diferença entre a pintura e a dança:
“Você sente a vida em cor, em estrutura, penso eu. Eu sinto-a onde ela começa: no meu
corpo.” (CF, p. 64). Para Elsa o corpo é uma realidade fulgurante que se lhe revela só
na dança.
Como o nosso corpo faz uma parte inseparável do nosso EU, a mesma coisa
ocorre com o nome. Não podemos despojar-nos do nosso nome.
Porque eu não fui apenas Adalberto: fui também Alberto ou Berto, Beto, Betinho, Betinha... Quem sou? Quem fui? Que súbita e imprevisível unidade me esperava em cada nome? Porque alguma coisa em mim se transfigurava com a mudança do nome. […] Porque um nome, como o corpo, é eu também, sou ele e estou nele. (EP, p. 25)
Alberto Soares também quer saber qual pacto se estabelece entre pessoa que somos e o
nome que nos deram: “o nome, como o corpo, é nós também.” (AP, p. 18) Esta
importância do nosso nome é frisada pelo próprio escritor em Conta-Corrente V, onde
Vergílio Ferreira tenta esclarecer os nomes das suas personagens: “[…] ainda não
resolvi o problema dos nomes. Porque um nome não é coisa de somenos. Ele tem de ter
um valor eufónico apropriado à personagem.” (CC V, p. 170)
A afirmação sartriana segundo a qual a existência precede a essência quer
também dizer que a existência não é redutível à mera efectividade mas, pelo contrário,
implica necessariamente a questão do seu ser. A irredutibilidade do EU é o postulado
vergiliano. Daí a interrogação interminável de Alberto acerca do seu estar sendo.134 O
EU é o sujeito e o objecto. Adalberto pensa sobre essência de Aida/Alda:
Eu não amava Alda, mas Aida, porque Aida é que era a minha mulher, era o seu corpo que eu conhecia, era com ela que eu falava, era dela o seu olhar. Podia mesmo o seu nome não ser Aida, mas Alda. Alda, aliás, estava morta, e era pois como se não tivesse nascido. Mas tinha vivido, tinha sido, um modo único de ser a habitara, a fora. E era esse ser que eu atingia na minha ilusão. Assim era irredutível como um “eu” em cada “nós”. (EP, p. 291)
Heidegger disse que o Dasein é o ser-no-mundo, Vergílio Ferreira acrescenta
que é o nosso corpo que é no mundo. De acordo com o ensino fenomenológico também
confirma o mundo existir como projecção do nosso corpo, porque o corpo é a
133 Apud CANTISTA: 1993, op.cit., p. 291. 134 Veja também de novo a citação de Carta ao Futuro, p. 33.
60
consciência. E segundo Heidegger não é possível ter a consciência pura, sempre há algo
nela, sempre se trata da consciência de algo. Isto é pela fenomenologia chamado a
intencionalidade. A consciência humana no ver de Vergílio Ferreira é aquilo que
distingue o homem do animal.
6.3. A mortalidade do nosso corpo e a (i)mortalidade do nosso EU
6.3.1. O tempo irreversível
Não se pode falar da subjectividade sem lhe supor, como correlato essencial, a
temporalidade: “O tempo não passa por mim: é de mim que ele parte.” (AP, p. 256) A
evidência que somos o nosso corpo assinala o facto que o homem é mortal. O nosso
corpo vive com o tempo que passa.
O tempo é a forma humana de se ser, a condição que tudo em nós condiciona, o fluido em que o todo do homem mergulha e o homem todo se unifica. Ponte de ligação de tudo o que ao homem acontece […] (IC, p. 78–79).
Assim a problemática do tempo […] do nosso interrogarmo-nos no mundo. […] o tempo revela-se-nos agora como a estrutura do que somos. (FS, pp. 93–94)
De acordo com Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre e Camus, Ferreira afirma que o
homem é o ser-no-mundo e vive no tempo que decorre constantemente avante e
portanto o homem é o ser-para-a-morte. Mas ao contrário destes pensadores, como
veremos adiante, Vergílio Ferreira oferece uma via ainda mais positiva.
A questão do tempo de Aurélio Agostinho influenciou os seguintes estudos
filosóficos sobre o tempo, incluindo os de Husserl, de Heidegger e também de Vergílio
Ferreira. O conceito do tempo agostiniano desenvolvemos no nosso trabalho anterior
Aspectos Filosóficos no Romance Aparição de Vergílio Ferreira (p. 28). Lembremos só
que Agostinho reduz os três modos do tempo (passado, presente e futuro) à existência
dos três tempos presentes: o presente com a vista do passado (“memoria”), o presente
com a vista do presente (“contuitus”) e o presente com a vista do futuro
(“exspectatio").135 O que Vergílio Ferreira escreve no seu ensaio Da Fenomenologia a
Sartre não é mais do que a homenagem à filosofia agostiniana:
135 HEINZMANN, R.: Středověká filosofie. 2. díl ediční řady Dějiny filosofie. (trad. B. Horyna). Olomouc, Nakladatelství Olomouc, 2002, pp. 86–87.
61
Na realidade, o “passado”, “presente” e “futuro” são constituições secundárias do tempo fundamental que é o estarmos sendo como um puro presente, donde a tríplice ek-stase temporal se irradia. O homem é. O passado e o futuro formam uma “rede de intencionalidades” para o antes (retenção) e para o depois (protenção) […]a partir de um puro presente que em rigor não é presente, porque é o puro estar-se sendo. (FS, p. 95)
O futuro fica assim no horizonte das nossas possibilidades, o passado se reabsorve no
nosso presente e através do presente estabelecemos as relações com o passado e o
futuro. “Porque o presente não existe nem como instante: o presente presentifica-se
sob a forma de fuga.” (FS, p. 96) Alberto Soares também considera o futuro como o
seu projecto:
Mas o tempo não existe senão no instante em que estou. Que me é todo o passado senão o que posso ver nele do que me sinto, me sonho, me alegro ou me sucumbo? Que me é todo o futuro senão o agora projecto? (AP, p. 256)
6.3.2. Da morte inverosímil até a reconciliação
O homem, cujo futuro é um projecto, sabe que a sua morte também faz parte do seu
futuro. Tendemos para a morte que não significa a aniquilação da vida, mas é apenas a
margem da nossa vida. “Ora este “eu” é para morrer” (AP, p. 42), diz Alberto de
Aparição. Em Estrela Polar escreve-se: “Mas há um limite do querer, que é o limite do
que somos.” (EP, p. 10) Mário de Cântico Final, por sua vez, diz: “estava condenado
ao silêncio” (CF, p. 129). Para todos os heróis principais das obras analisadas a morte é
no início o facto inverosímil e no fim estes chegam à reconciliação. Alberto quer
“justificar a vida em face da inverosimilhança da morte”. (AP, p. 43) Mário fala com o
médico da sua aldeia natal da “inverosimilhança da morte, da certeza absurda da vida”
(CF, p. 80). E em Estrela Polar: “Acaso a morte existe assim, à face da vida […]” (EP,
p. 111)
Como vimos, Vergílio Ferreira associa sempre a morte à vida. Respeita assim a
filosofia heideggeriana. Ser o homem é, para Heidegger, um ser que se define pela
constante procura ou projecto. É natural que o homem preocupa-se também com a
morte, uma vez que esse acontecimento corta radicalmente com todos os projectos
humanos. Preocupar-se com a morte tende a preocupar-se com a vida:
Só meditando profundamente no que significa a morte é que nós poderemos ver bem o que com ela se perde e o valor disso que se perde. […] A meditação da
62
morte não é pois um fim, mas um meio. Meio de valorizarmos a vida […] Se eu não valorizar a vida do homem (e não posso fazê-lo devidamente, se não souber o que na morte se perde), eu estou apto a destruir um homem com a mesma insensibilidade com que destruo um verme. Morte por morte, uma e outra são iguais. O que já não é igual é o que com uma e outra se destrói. (EI II, p. 42)
A morte faz parte da vida e este facto temos de aceitar. Só assim será a nossa vida
segundo Heidegger autêntica. No entender camusiano, o homem quotidiano, ao aceitar a
sua mortalidade, torna-se o homem absurdo que já não vive preocupado com o futuro. E
o herói vergiliano chega deste modo à reconciliação. Mário, já no fim da sua vida sente
a resignação, que não é, porém, concebida no sentido negativo:
Jamais, porém, como agora, se lhe revelara a resignação, quase a beleza de um limite atingido, e uma certa urgência inquietante de que tudo coincidisse com este limite: se a vida se lhe prolongasse, seria “excessiva”. E Mário descobria assim de novo que o artista não procurava “sobreviver” para além da morte. (CF, p. 231)
O homem para poder aceitar o facto da sua finitude, tem de ter a aparição, o termo
tão frequente no discurso vergiliano sob o qual entendemos a revelação instantânea de si
a si próprio, a consciência absoluta da nossa existência (e da nossa morte). Como já
avisámos, este conceito surge pela primeira vez em Carta ao Futuro, onde se escreve:
[…]a voz obscura que me fala transcende o passado e o futuro, vibra verticalmente desde as minhas raízes até aos limites do universo, aí onde a lembrança é só pura expectativa despojada do seu contorno, é só pura interrogação. Nesta hora absoluta, conheço a vertigem da infinitude, o halo mais distante da minha presença no mundo... (CFut, p. 20)
Em todas as obras de Vergílio Ferreira há a morte dos pais. Isto é, no entender de
Helder Godinho, um aspecto crucial. O herói fica sempre sozinho no mundo onde não
se consegue afirmar e procura uma possibilidade de existir. Vive assim o momento do
sofrimento e da peregrinação à procura da Verdade. Porque o pai faltou e não ensinou o
caminho. O herói quer reconquistar um reino que no fim da vida encontra na terra da
origem.136 Em todas as narrativas analisadas temos o sujeito que é confrontado com a
sua aldeia natal. Especialmente em Cântico Final, a meditação sobre a morte é a mais
forte. Mário regressa à aldeia, à casa em que nasceu, e aí espera a sua morte: “Nascer,
136 GODINHO, Helder: Os parentescos simbólicos em Vergílio Ferreira. In Afecto às Letras: Homenagem da Literatura Portuguesa Contemporânea a Jacinto do Prado Coelho. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984, pp. 230–231.
63
viver, morrer.” (CF, p. 131) De novo deparamos com a imagem do círculo. O morrer
reassume o nascer e ciclo da vida e da morte fecha-se sobre si mesmo.137 Na casa
antiga, Mário sente-se sozinho:
E ali, sozinho, em face de si, a luz pálida do candeeiro velando a presença obscura da morte, sentiu-se visitado, num instante de vertigem, pela solidão absoluta. (CF, p. 26)
A solidão final é uma evidência que o homem também tem de aceitar. “Todo o homem
morre só; mas nem todos o sabem.” (CFut, p. 18) Mas Mário percebeu: “Morria só,
estava só à hora da morte como todos os homens.” (CF, p. 238)
Como já apontámos no capítulo dedicado ao absurdo do homem, a nossa morte
surpreende-nos porque não estamos preparados. Mário sabia que morreria em breve,
mas também não tinha certeza quando seria. Vergílio Ferreira incorpora nos seus
romances o suicídio como a antecipação da morte. Em Aparição oferece-nos o episódio
do semeador Bailote, o homem que já não tinha boa mão para semear. Em Cântico
Final encontramos o indício sobre o suicídio do pai de Mário. Guida e Rebelo também
falam do “valor” do suicídio. E Adalberto de Estrela Polar não sabe o que devia pensar
sobre o suicídio:
Só não sei ajuizar, definitivamente, sobre o valor da solidão ou da comunidade. Tal como do suicídio. É cobarde, é corajoso, o que frontalmente se mata? (EP, p. 12)
Todavia, no fim de tudo, o suicídio não representa a solução, enquanto a natural
caminhada para a morte permite uma autenticidade para a vida.
Além disso, em Cântico Final, a morte é anunciada na obra literária de Guida, o
que é um exemplo de mise en abyme. O conteúdo do livro Condenados à morte é
seguinte:
Era ainda um mundo estranho, agora marcado todo ele pela evidência absoluta que os seus personagens tinham de que haviam de morrer. (CF, p. 185)
Sintetizando, os romances vergilianos estão cheios da morte. É o nosso corpo que
morre e em consequência disso morre também o nosso espírito, ou seja, somos mortais
137 JÚLIO: 1996, op.cit., p. 112.
64
porque morre o nosso corpo que faz parte inseparável do nosso espírito. Sartre oferece a
saída positiva, dizendo que apesar da evidência da morte somos livres, porque podemos
escolher. Vergílio Ferreira ainda acrescenta algo positivo. É verdade que um dia
morreremos, mas a nossa essência sempre fica nas mentes dos outros, como resta, por
exemplo, Cristina na memória de Ana.
65
7. A comunhão intersubjectiva
7.1. A solidão com alguém
O homem, não conseguindo conceber-se a si próprio, procura o TU como o
elemento indispensável à compreensão do seu EU. A aparição do EU a si próprio é
também aparição do EU do outro. Um TU é para Vergílio Ferreira um EU que vemos
em alguém. Mas as análises do EU da outra pessoa são mais objectivas porque esse EU
da outra pessoa, ou seja, o TU está diante de nós, portanto Vergílio Ferreira usa o termo
o “EU objectivado”.
Porque, repara: um “tu” comparticipa ainda de um “eu”, está ainda perto dele. Um homem diz “eu”, diz “eu” uma mulher – e a ambos dizemos “tu”. (EP, p. 153)
Para podermos dizer a palavra EU, é inimaginável viver no mundo sozinho, no mundo
privativo:
Mas como conceber até um “eu”, se o não concebêssemos inexoravelmente num “tu”? […] Num mundo despovoado e nulo, como dizer “eu”? Adão, para o dizer, teria de esperar pela presença de Eva... Porque a própria relação de um “eu” com um objecto, não a imaginamos facilmente sem a relação de um “tu” com o mesmo objecto. (FS, p. 98)
A solidão existe pelo facto de não estarmos sós. Os narradores vergilianos depois de não
conseguirem a comunhão com a outra pessoa fogem à solidão e assim tentam conseguir
a comunhão, o que é impossível. Assim oscilam no círculo.
Estrela Polar é dos três romances aquele que desenvolve o mais o tema da
solidão e comunhão com a outra pessoa, neste caso com Aida/Alda. O autor escolheu de
propósito as irmãs gémeas para poder mostrar com mais facilidade que comunhão
absoluta – o desejo de Adalberto estar em outro – não é possível. “Mas eu quero mais:
a minha presença em alguém, a minha duração em alguém...” (EP, p. 87) Adalberto é
uma das personagens da obra de Vergílio Ferreira que vivem mais o sentimento da
solidão. No entanto, Emílio, o médico que vive na comunhão com os doentes nega a
existência da solidão:
66
A solidão vence-se com os outros, concretamente, inequivocamente – disse Emílio de súbito. É uma evidência elementar. Aliás, a solidão não existe, é uma invenção gratuita, é uma coisa abstracta. O que há é o “grupo”. E só assim, de resto, se é eficaz. (EP, p. 192)
E mais adiante é Aida/Alda quem diz que a solidão é só a solidão com alguém:
De resto – acrescentou ainda – é exactamente porque não há solidão que dizes que há solidão. Imagina que eras o único homem no universo. Imagina que nascias de uma árvore, ou antes, porque eu quero pôr a hipótese de que não há árvores, nem astros, nem nada com que te confrontes: supõe que o universo é só o vazio e que tu nascias no meio desse vazio, sem nada para te confrontares. Como dizeres “eu estou sozinho”? Para pensares em “eu” e em “sozinho” tinhas de pensar em “tu” e em “companhia”. Só há solidão porque vivemos com os outros... (EP, p. 267)
Quanto à importância da presença do TU é Vergílio Ferreira mais perto de Husserl
e ainda mais perto de Sartre e afasta-se de Heidegger. Husserl inspirou-se na filosofia
cartesiana que consigna que o indivíduo pode apreender o corpo de outra pessoa, mas
não pode apreender esse indivíduo como sujeito:
Conheço a minha alma melhor que o meu corpo, mas eu só posso conhecer o corpo do outro uma vez que não tenho acesso à consciência dessa pessoa.138
Husserl, transformando um pouco a afirmação de Descartes, diz que estamos
conscientes dos sentimentos e experiências de outra pessoa apenas na base de
interferências empáticas a partir das nossas.139 Mas Ferreira não compartilha
plenamente deste modo solipsista de Husserl. Os seus heróis querem conhecer-se em
sentido objectivo, não em sentido psicológico. Para estes fins aproveitam o método
fenomenológico. Sartre salienta a urgência doutra pessoa, do TU, para que o EU se
aperceba de si e se autoconheça (Heidegger não exclui as outras pessoas do mundo mas
não as acha necessárias para que EU possa conhecer o seu ser, a sua existência).
138 DESCARTES, René: Meditations on First Philosophy Apud GIDDENS, Anthony: Modernidade e Identidade Pessoal (trad. port. Miguel Vale de Almeida). Oeiras, Celta Editora, 2001, p. 47. 139 GIDDENS, op.cit., p. 47.
67
7.2. O espelho e a evidência do duplo
A presença do TU é na obra vergiliana também concebida pela imagem do
espelho, através do qual surge a dialéctica do visível X invisível. Como nos vários
lugares da sua escrita Vergílio Ferreira sublinha, o ver é a condição humana, os animais
olham. É propriamente o sentido do visão que o escritor considera o mais importante. O
encontro com os outros descreve-se no cruzar de olhares. Adalberto ao chegar a saber
que Irene, amante de Garcia, é cega, tem dificuldades perceber o valor da relação deles
que, ao mesmo tempo, plenamente admira.
Na visão do espelho praticamos o encontro consigo mesmo. Por exemplo quando
Alberto depara com a sua própria imagem reflectida num espelho assusta-se:
Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia e me metia medo. (AP, p. 64)
No romance, porém, surge o momento quando o narrador à distância dos anos pondera
sobre a sua relação com Sofia: “Não és nada para mim, eu o sei, eu o sei, não és mais
do que o inverso do que me aspiro, como um espelho de feira.” (AP, p. 187) A
comparação à lantejoula banal desvaloriza a função do espelho como o modo do nosso
autoconhecimento. Por isso Alberto assustava-se ao ver-se no espelho e por isso
também ninguém consegue descobrir a identidade da outra pessoa. O motivo de espelho
está também presente em Estrela Polar no sonho de Adalberto que este tem sobre cem
mulheres absolutamente iguais, cem cópias de Aida, como “num reflexo de espelhos”
(EP, p. 52). Sem hesitação avançou para uma delas, que era a única. Mas isso aconteceu
no sonho, na realidade Adalberto não sabia qual de duas (só!) mulheres era Aida.
Também a tentativa de ver-se repercutido no olhar do outro simboliza um espelho.
Alberto num jantar pensa por outros. Assim, através dos olhos de Ana, vemos Alberto
como “extraordinariamente magro, de pequeno bigode estúpido” (AP, p. 98) Elsa de
Cântico Final repara que Mário olha para ela de três modos diferentes:
Quando conversas, sobretudo quando discutes, olhas-me nas palavras como toda a gente. Outras vezes, olhas-me aquém das palavras, nos próprios olhos, como o
68
homem banal da lascívia banal. Mas outras vezes olhas-me para lá das palavras. E então eu tenho pena de ti, porque vejo que estás triste. (CF, p. 68)
A fotografia é o outro meio metafórico que substitui o verbo ver. Em Aparição surge
através do álbum da tia Dulce.
O espelho é além disso o causador de desdobramento. Em toda a obra de
Vergílio Ferreira as personagens aparecem redobradas. Daí que encontramos em Estrela
Polar as personagens gémeas – Aida/Alda. Frequentemente aparecem personagens que
se completam, representando cada uma um aspecto do herói principal. É, por exemplo,
o caso de Adalberto, Garcia e Emílio e Jeremias. Jeremias desdobra Adalberto enquanto
futuro assassino de Aida, ele é o profeta. Emílio ama também as gémeas (Alda) e Garcia
tem uma relação com Irene que é cega, mantendo assim a união máxima.140 Em
Aparição podemos reparar numa certa afinidade entre Sofia e Ana. Sofia é mais bela e
Ana tem maior “dom metafísico” e juntamente criam uma mulher ideal para Alberto. A
dualidade Sofia/Ana encontra-se também em Cântico Final mas representada pelas
personagens Elsa/Guida. A dualidade Alberto/Carolino de Aparição faz lembrar as
personagens Adalberto/Jeremias.
Temos, aliás, outros níveis da presença do duplo em Estrela Polar. Dupla é a
paisagem: duas escadarias, loja de duas portas, etc. Espaço da história situa-se numa
pequena cidade, Penalva, mas a autenticidade desta cidade não corresponde a nenhuma
das Penalvas da geografia portuguesa. Será um marco absolutamente imaginado? Este
facto participa da atmosfera de realidade/irrealidade que entrelaça todo o romance. José
Luis Gavilnes Laso chega à conclusão que Penalva é Guarda.141 Adalberto vagueia
pelas ruas de Penalva/Guarda como se fosse perdido no labirinto. Não tem nenhuma
“estrela polar” que lhe mostrasse o sentido certo, nem a mulher certa. O narrador
explica a sua escolha acerca do título:
Talvez que se eu pusesse um outro título a esta história. Por exemplo “O Traidor”. Ou “O Criminoso”. Duas palavras breves negando e moralizando os milhares de palavras em que me comprazi. Chamo-lhe apenas “Estrela Polar”, porque sou mais corajoso ou o desejo parecer. Luz breve, que existas, onde? fugidio indício que me anuncie o meu lugar na vida... (EP, p. 309)
140 GODINHO, Helder: O Universo Imaginário de Vergílio Ferreira. Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985, pp. 56–57. 141 Cf. GAVILANES LASO, op.cit., pp. 258–260.
69
7.3. O amor e a questão do terceiro
Os heróis vergilianos relacionam-se com as mulheres porque acham que se pode
conseguir a comunhão perfeita através do amor, que só no amor é possível alcançar o
TU e então o seu EU. Entre Adalberto e Aida recomeçou um dia segundo narrador uma
espécie de jogo de compreensão e de aprofundamento do encontro deles:
Amava-te eu? – quantas vezes mo pergunto. Decerto amava-te, porque amar é reconhecer nos outros um ser misterioso, e não um objecto – tu eras uma vibração à tua volta, não a estreita presença de um corpo. Aqueles que não amamos nem odiamos são nítidos como uma pedra. Sentir neles uma pessoa é começar a amá-los ou a odiá-los. Só amamos ou odiamos quem é vivo para nós. (“Nunca amaste ninguém...”) (EP, p. 91)
Aquilo que está escrito entre parêntesis são palavras tardias de Aida/Alda que são
repetidas quase no fim do romance:
Porque te iludes tu? Que é realmente para ti um outro? Ah, “o homem, um ser único, irredutível”... Único tu! Não os outros! […] Tu nunca amaste ninguém. (EP, p. 289)
Próprio Adalberto nos outros lugares do livro revela que Aida se lhe gastou. Também
Alberto de Aparição confessa que nunca amava Sofia e Mário, por sua vez, nunca podia
ter a relação verdadeira com Elsa. Por esta razão estes três protagonistas não são
capazes responder às suas perguntas metafísicas que dizem respeito ao EU e ao TU.
Emílio adivinha a razão verdadeira acerca do amor que Adalberto está a procurar, aliás,
é o facto que se refere a todos três protagonistas:
Mas como se ilude você? O que você busca não é uma mulher, não é alguém ao pé de si; é alguém além de si. (EP, p. 223)
Em Estrela Polar Vergílio Ferreira põe a questão do terceiro. A relação com o
outro, sobretudo com a mulher amada, é sempre uma relação triangular (não no sentido
do triângulo amoroso). É preciso alguém que autentique a comunhão dos outros:
Quem nos está fitando? Perante quem somos? Tu à minha face, eu à tua: mas perante quem? Quem nos une? […] Porque só se está unido perante o que nos transcende. Mas nada estava acima de nós... (EP, p. 94)
70
Nada está acima de nós – o problema típico vergiliano. Deus não existe, portanto o
narrador vive na busca de um terceiro perante quem será a comunhão com a outra
pessoa verdadeira. A comunhão não é suficiente, “é preciso uma terceira testemunha”
(EP, p. 136). Daí surge a investigação vergiliana: para quem somos? O ser no seu
entender é também ser-para-alguém. Vivemos no mundo no qual as coisas relacionam-
se connosco através do nosso corpo. As coisas são para nós. E nós vivemos para quem?
...Porque eu dizia: isto é uma pedra, isto é um livro. E isso era logo evidente, Alda reconhecia que estava ali um livro, uma pedra. Havia portanto no universo um lugar do nosso encontro. Havia um lugar de encontro para todos os homens. Ponho a minha mão sobre uma pedra do Castelo. É áspera, rugosa. Os seus grânulos enterram-se-me na pele e sei que a pedra existe. Depois puseste a tua mão. Eu dissera: - Põe a tua mão. Pousaste-a, apenas, mas eu carreguei sobre ela para ela existir bem, até a mão te ficar como um crivo de bexigas. Sorrimos. Uma pedra existia. Estava ali entre nós e nós sabíamo-lo. Mas nesse momento onde estávamos nós? Porque nós então não existíamos, a pedra é que existia por nós. Ora eu pensava: é isto a vida? um monte de pedras? […] Quando fala de pedras, está bem, um homem pode entender-se com outro homem. Mas a vida não é uma pedreira. Onde existimos nós? (EP, pp. 260–261).
Este terceiro, diante de quem ou por quem Adalberto e Aida podiam estabelecer a
comunhão, é o filho deles. O filho representa uma abertura à esperança. O motivo de
filho aparecia em Aparição através da personagem de Ana, que adopta os filhos do
semeador Bailote para solucionar o seu problema existencial. Em Cântico Final o filho
de Guida morre logo depois de sair o romance dela sobre a morte do mundo. Mário tem
o filho com Cidália que representa o contraste com Guida porquanto Cidália é a
escritora já fora de moda. Assim, Cidália predetermina a morte de Mário.
O filho estabelece então o elo de ligação entre o EU e o outro. Mas o filho de
Adalberto logo morre. Adalberto, diante do filho morto, sente-se desdobrado (aqui de
novo a imagem do espelho):
Sinto-me desdobrado e a outra pessoa de mim aterra-me. Há um muro de gelo a separá-las, há uma muralha de fogo. Ardem-me os olhos e a boca. […] Estou agora ao pé de mim, junto de mim. Quase sou feliz. (EP, p. 297)
O carácter do desdobramento de uma pessoa Vergílio Ferreira descreve em Invocação
ao meu corpo:
71
O meu desdobramento é portanto do tipo daquele em que me desdobro entre o “eu” e o “mim”, entre aquele que observa e o que é observado. Porque o “eu” que observa está ainda no “eu” observado, o “mim” que contemplo inclui aquele que contempla. (IC, p. 255)
Mas depois da morte do filho de Adalberto há um muro entre o seu EU e o seu MIM.
No entanto, os pais estão sempre sem filhos, como diz o narrador: “Não és filho de
ninguém – quem é filho de alguém? (EP, p. 51) Outro caso representa Tomás, irmão de
Alberto. Para ele, a sua vida tem sentido só na comunhão com os filhos, mas estes não
funcionam como terceiro perante quem Tomás realiza comunhão. É que, para ele a
comunhão verdadeira é propriamente aquela que tem com os seus filhos. Uma
preocupação heideggeriana de EU é na percepção de Tomás modificada no sentido de
preocupação para com os filhos que fazem parte inseparável do seu EU.
A única solução que resta aos heróis vergilianos é assassinar a sua amante,
porque “a morte é a comunhão mais perfeita?” (EP, p. 70) O momento precursor do
assassínio é, a nosso ver, o sexo violento que está presente nos todos três romances,
entre Adalberto e Aida, Mário e Elsa e entre Alberto e Sofia. As cenas eróticas levam
consigo as conotações de violência e de perigo:
Sinto apenas o aroma do seu corpo e um desejo violento de o destruir, de passar além... Assim, quando entramos no ascensor, enquanto vamos subindo, um em face do outro, comprometidos, inquietos da longa espera, os nossos olhos evitam-se, sangrentos de crime, de suplício ou banham-se mutuamente de amargura. (EP, p. 96)
E Mário tomou-a, apoderou-se dela, angustiado em cada fibra do seu corpo. Doíam-lhe as vísceras, os ossos. Uma multidão de séculos de aflição e de raiva centrava-se-lhe em cada célula, uma fúria iluminada rasgava-lhe as mãos de sofrimento. […] Tinha, possuía! Executado de fertilidade, recuperava nas articulações, o triunfo sobre a vida, sobre a terra – triunfo quente, profundo como um urro. E sentia em Elsa o eco feliz do seu apelo, na resposta aberta e fremente à invasão da vida, na igual procura hiante dos astros inacessíveis... Enfim a noite absoluta e outra vez o mistério do amanhecer. (CF, pp. 66–67)
Passei à Porta de Avis, passei por sob os altos arcos do Aqueduto, vim sair à estrada de Arraiolos. E, chegados a casa, Sofia apoderou-se de mim com uma raiva de desespero. Abruptamente, senti inchar-me nas mãos, nas veias, o seu corpo frágil e extraordinariamente vigoroso. Os ossos doeram-me de novo, uma milenária sede de conquista, de vitória cruel, estalava-me a boca, as narinas. A lua entrava por uma janela aberta... (AP, p. 240)
72
As cenas eróticas desembocam, então, na tentativa da personagem principal de se
apoderar absolutamente da outra pessoa o que se não pode fazer senão através do
assassínio, o que é, afinal, o acto desesperado. Como escreve o narrador de Estrela
Polar, enfim a comunhão perfeita não existe: “esquecia que estava só, que ninguém
podia ser por ti, nem um deus. Tu só, irredutível, princípio e fim, fechada, única e para
sempre.” (EP, p. 263)
73
8. A Arte no lugar de Deus
8.1. O antropocentrismo de Vergílio Ferreira
Converter a teologia em antropocentrismo não foi a descoberta de Vergílio
Ferreira. Foi a pretensão de alguns filósofos post-hegelianos, sobretudo Feuerbach, que
queriam criar o império dos homens. Esta tentativa influenciou os escritores existenciais
como Albert Camus, em cujo livro O Homem Revoltado se analisa este problema e se
propugna a “revolução metafísica” que visa destronar o Deus.142 O desejo de fundar o
império dos homens podemos encontrar nos todos romances de Vergílio Ferreira.
8.1.1. O mundo sem Deus
O ponto de partida é para Vergílio Ferreira a afirmação proclamada em
Aparição: “Deus está morto porque sim […] Sei que ele está morto, porque não cabe
na harmonia do que sou.” (AP, p. 41) O escritor retoma a célebre ideia nietzschiana
enunciada por Zaratustra: “Deus está morto”. Também próprio Vergílio Ferreira diz que
não sabe explicar porque deixou de ser crente. Diz que estas coisas acontecem. Somos
feitos de um equilíbrio interior e certas verdades entram ou não entram nesse equilíbrio.
Pelas suas palavras:
Em dado momento a crença está certa com a nossa maneira de ser. Acreditamos. Depois deixou de estar, e deixamos de acreditar […] A crença, como o amor, o humorismo, como inclusivamente o clubismo ou a paixão política, como tantas outras coisas, nascem, morrem, entram em jogo com tudo aquilo que somos. E por vezes desaparecem. No meu caso a crença desapareceu. Um dia reparo que não acredito. Não tenho argumentos para opor à pessoa que defende que Deus existe ou, se os tenho, são argumentos que não convencem. (EA-se, pp. 122–123)
A morte de Deus é para Alberto Soares tão óbvia que não precisa nenhuma
justificação da sua inexistência: “Deus não é a minha meta, é o meu ponto de partida.”
(AP, p. 93) Ou no outro lugar: “Deus não existe. Não existia mesmo. Era evidente,
natural, claro, como era claro não haver Pai Natal.” (AP, p. 90) Vergílio Ferreira de
novo usa o verbo gastar-se: “Deus se me gastou.” (AP, p. 41) Como se gastou o amor
de Mário por Elsa, ou o amor de Alberto por Sofia, gastou-se o amor a Deus. Por sua
vez, Ferreira compartilha tal abordagem com Sartre dizendo que o seu existencialismo
142 Idem, Ibidem, p. 238.
74
não tem por objectivo provar a inexistência de Deus. Sartre proclama: “ainda que Deus
existisse, nada ficaria diferente”.143 É preciso que o homem se convença que nada o
protegerá de si, nem a prova da existência de Deus.
A questão de Deus e do ateísmo surge em Cântico Final em conversas de Mário
com Elsa e, sobretudo, nos serões de sábado na casa do médico Cipriano. A morte de
Deus é em Cântico Final tão evidente que se pode dizer: “qualquer localista de
província já sabe que a decisiva descoberta destes últimos cem anos foi a de que Deus
morreu” (CF, p. 110) Plenamente concordamos com Maria Joaquina Nobre Júlio que
considera blasfemo o discurso que encontramos em Cântico Final.144 A blasfémia é um
insulto a Deus e assim é assumida por Mário:
[…] escalado o Olimpo – Mário pensava – os homens descobriram que ele estava vazio, e ficaram desapontados: sim, um deus fazia sempre falta nem que fosse para o insultar... (CF, p. 35)
Esta amostra é anti-religiosa porque nega a existência de Deus ao afirmar que o Olimpo
estava vazio. E, como veremos adiante, o homem vai retomar o lugar de Deus. O texto é
anti-religioso a um segundo nível, ao lamentar a inexistência de Deus, porque assim os
homens não o podem insultar. Outro exemplo de blasfémia, apesar de não ser tão
insultuoso, encontramo-lo na boca da Elsa:
Lembras-te de Musset? “Quando um ateu puxando do relógio, dava a Deus um quarto de hora para o fulminar”... Que pena Deus ter morrido! Já o não podemos desafiar... (CF, p. 156)
A blasfémia não é tão forte como a na boca de Mário, mas é bastante sarcástica. Segue a
pergunta de Mário: “Acreditas, acreditas que ele morreu?” (CF, p. 156) E Elsa
responde: “Sim! Profundamente, ardentemente, só acredito no meu corpo.” (CF, p.
156) A enunciação de Elsa ganha dois aspectos importantes. Um, que é neste contexto
mais relevante, Elsa acredita no seu corpo no sentido que analisaremos adiante. É que,
Deus vive no nosso corpo. Outro aspecto, já analisado por nós nos capítulos anteriores,
quer dizer que nós somos o nosso corpo.
143 SARTRE, op.cit., p. 56; a tradução é nossa: [i kdyby Bůh existoval, nic by se nezměnilo]. 144 Cf. JÚLIO: 1996, op.cit., pp. 56–57.
75
8.1.2. O reino do homem
Pela morte de Deus, o homem pode nascer. Mas esta morte é considerada como o
assassínio que compromete a humanidade e exprime toda a sua condição. A morte de
Deus tem as suas consequências. Como diz Miguel Cardoso, o homem está agora só
num mundo, desprovido de qualquer sentido. O homem está órfão.145 O homem, porque
está livre, decide sobre si mesmo. Portanto pode também decidir que o Deus não tem
sentido para ele. O mundo sem Deus é, porém, o mundo sem valores que desemboca na
crise da cultura. Karl Jaspers interpreta a crise da cultura contemporânea como a
fractura relativamente a um sistema de crenças, ideologias e categorias veiculadas por
uma tradição. À semelhança de Jaspers, Vergílio Ferreira caracteriza a cultura
contemporânea como se tratando de uma cultura dos “deuses mortos”, isto é, de
esgotamento de importantes mitos que fizeram a história ocidental nos últimos
séculos.146 O mundo sucede à morte de Deus pois com a sua morte desapareceram os
valores universais que existiram a priori, como diz Sartre.
Vergílio Ferreira quer suplantar a crise instaurada pela ausência de valores e põe
como o valor o próprio homem. O absoluto Homem surge como valor irredutível a toda
a questionação. Isto é a proposta humanística de Vergílio Ferreira para a cultura
contemporânea. É propriamente a ausência da existência de Deus, que permite ao
Homem instaurar os novos valores:
Nietzsche disse-nos […] que há dois mil anos não nascia um deus. Era isso uma forma de entender uma organização da vida em torno de um Valor supremo em que todos os outros valores se reconhecessem. Nós sabemos, porém, que toda uma ordenação nova da vida se anuncia em torno da ausência desse Valor.147
“A humanidade futura devia ser puramente ateia,” (AP, p. 102) escreve-se em
Aparição. E Estrela Polar acrescenta: “um deus nasceu da minha carne […] um deus
chegou agora para recriar o mundo...” (EP, p. 275) É evidente que o homem não é
deus no sentido pleno, mas é “um deus à sua maneira pobre de animal.” (CF, p. 132)
E ainda: “Os deuses […] habitam-nos o sangue […] Os deuses não são divinos.” (CF,
145 CARDOSO, op.cit., p. 194. 146 CORREIA, Maria Manuela: Vergílio Ferreira: Um Itinerário Filosófico [tese de mestrado], Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 2003, p. 77. 147 FERREIRA, V.: Ansiedade/Angústia e a Cultura Moderna. Colóquio/Letras, 63, Setembro de 1981, p. 8.
76
p. 235) A terra pertence ao homem, onde este devia construir o seu reino, designado a
Cidade do Homem, porque o mundo antigo (com Deus) já não existe:
A noite avança, a minha cidade arde sempre. Vou fundar outra noutro lado. Mas não sabia eu que ela devia arder? Acaso será possível construir uma cidade como a imagino, a Cidade do Homem? […] Mas o que sei é que o homem deve construir o seu reino […] (AP, p. 253)
No entanto, a questão de Deus nunca se resolve plenamente, nem nos romances
posteriores do autor. Deus sempre surge como a sombra com a qual os heróis
vergilianos se enfrentam. Lembremos a obsessão de Adalberto a encontrar um terceiro
perante quem se possa afirmar a sua comunhão. A palavra Deus oferece-se mas
ninguém quer aceitá-la:
Mas eu quero que os rios se resolvam uns nos outros, que o mundo seja nosso, que a terra seja do homem. […] As questões dos homens resolvem-se entre os homens. (EP, p. 72)
8.2. O artista Criador
Na filosofia de Vergílio Ferreira a Arte e o artista desempenham o papel crucial.
Ao longo da sua obra, Vergílio Ferreira reflectiu sempre sobre a Arte e as suas várias
manifestações: da literatura à pintura, da música ao bailado e ao cinema. As suas obras
são cheias de artistas: romancistas (como Guida de Cântico Final, Alberto de Aparição,
Adalberto de Estrela Polar), músicos (como Paula de Cântico Final ou Cristina de
Aparição), de bailarinas (Elsa de Cântico Final) e pintores (Mário e Armando de
Cântico Final e Garcia de Estrela Polar). Vergílio Ferreira utiliza a expressão “o pastor
do mundo” para designar o artista. Esta expressão adopta da imagem de Heidegger que
definia o poeta como o pastor do ser.148
Vergílio Ferreira vê a afinidade entre Deus e o artista, uma vez que ambos são os
criadores. A arte é assim “a sagração do próprio acto criador” (CF, p. 222). É
propriamente o acto de criação que associa o artista a Deus:
148 RODRIGUES, Isabel Cristina: Uma liturgia invisível: Arte e sagração em Vergílio Ferreira. In Vária Escrita,op.cit., p. 173.
77
Deus criara o mundo à escala humana, o artista recria-o à escala divina. […] O gesto do artista responde assim à ambição-limite de reinstaurar Deus em si, reconduzindo-o desde onde o colocara, retirar-lhe os poderes que lhe concedera para os assumir totalmente. A pureza da arte exprime assim a afirmação do absoluto do homem contra tudo o que nele próprio o não é. (IC, pp. 186–187)
A obra de arte instaura o homem no poder de criação no sentido que este ainda tem
tempo para reconstruir o seu reino. A criação é entendida por Tomás de Aparição como
toda a verdade para a vida. Esta opinião é, porém, convertida pelo louco Carolino que
conclui que o homem é deus porque pode matar, pode destruir: “matar é igual a criar”
(AP, p. 113). Eternidade de Deus é substituída pela eternidade da arte. Em Cântico
Final surge o confronto entre vários tipos de arte – pintura e dança, ou seja, entre Mário
e Elsa. Mário representa a eternidade, porque a sua arte fica para sempre, mas a arte de
Elsa é temporal. No caso de Elsa é acentuada a importância do corpo que já
mencionámos portanto não é surpreendente, que a arte de Elsa morre, mesmo como o
seu corpo:
Vocês, os das artes, das letras, ainda acreditam no futuro. Trabalham com palavras, com as cores que os outros hão-de um dia recuperar. Eu salvo-me e condeno-me só comigo. Jogo tudo nesta coisa que há-de apodrecer amanhã. Creio com toda a minha ira no breve instante. Mas como é fascinante pensar que nada vai restar de mim, que eu própria e o meu público acidental esgotamos totalmente a minha arte! (CF, p. 65)
O trecho citado também mostra a forte afinidade com Camus. O sublinhado pelo autor
(“ainda acreditam no futuro”) pode-se interpretar no sentido camusiano, isto é, os
artistas que ainda acreditam no futuro não estão conscientes da sua morte. Ao contrário,
o homem absurdo já sabe que vai morrer, o que é o caso de Elsa.
Outra questão ligada à arte que assalta o leitor ao ler Cântico Final, é o
problema da arte religiosa. Mário é fascinado pela Capela da Senhora da Noite. Uma
capela é um símbolo religioso, mesmo aquela que é abandonada e que servia a fins
profanos, mantém a aura divina. Mário é tocado pela fascinação da capela enquanto
artista. Mas o acto de reconstrução da capela não representa a conversão do artista, ele
fica ateu.149
Mário porém […] via no ateísmo precisamente a condição de tal arte “religiosa”. Separado de uma crença, que decerto conheceu, o artista podia agora olhá-la
149 JÚLIO: 1996, op.cit., p. 59.
78
como um qualquer valor humano – o amor, o sonho. Mas sobretudo podia reconhecer nela agora a saudade de uma harmonia perdida. Mas a lembrança de um pai que nos morreu não o ressuscita... A decoração de uma capela era o sinal sensível, corrente, de um apelo que não findara, de uma surpresa que se não esgotou. Era o fim de um fim – não o começo de um regresso. (CF, p. 171)
Reconstruir a capela, foi para Mário um acto artístico e não religioso. Especialmente foi
o gesto do seu amor por Elsa, a capela foi consagrada a ela. Ao mesmo tempo foi a
grande demonstração do humanismo vergiliano. Em vez do ente divino, apareceu no
altar a face do ser humano.
Não nos atrevemos a afirmar que se trata da divinização da mulher, mas é para
notar que mulher em geral na obra vergiliana figura como a metáfora da arte e da
comunhão artística. Através da arte os protagonistas encontram a forma mais justa de
comunicação (comunhão) com o outro. Por exemplo, o encontro de Guida com Mário
na exposição. O quadro de Galo que Mário pintara, emocionou primeiro Guida, depois
Rebelo. E, em Aparição a música aparece fundamentalmente ligada a Cristina. Estrela
Polar, por sua vez, traz a ligação entre o canto e Irene.
79
9. Conclusão
Chegando ao fim do nosso trabalho, antes de resumirmos o seu conteúdo,
gostaríamos de frisar que toda a obra de Vergílio Ferreira, quer os ensaios quer os
romances, é bem ponderada e trabalhada. O escritor com muita frequência repete os
seus pensamentos nos diversos pontos da sua obra. Assim, encontrámos as questões
principais surgidas na obra literária e posteriormente desenvolvidas no diário. Ou, ao
contrário, muitas das inquietações metafísicas dos ensaios do autor, sobretudo do ensaio
“par excellence” Invocação ao Meu Corpo, constituem o cerne das suas histórias
romanescas. Mas nunca se contradiz, fica sempre fiel àquilo que em outro local haveria
sublinhado.
A literatura fazia parte da filosofia, como mencionámos no segundo capítulo
deste trabalho. Ao se emancipar do âmbito filosófico, começou a discussão que tem por
seu alvo esclarecer e definir as zonas de interesse de cada disciplina. Acentuámos que a
área da filosofia consiste no facto desta não ter a sua área autónoma, enquanto o campo
literário é muito mais restringido. Esboçámos várias atitudes possíveis acerca da relação
entre filosofia e literatura chegando à conclusão que também a filosofia tem um sentido
por si só. Não prestámos grande atenção ao afirmar a importância da literatura, uma vez
que achámos que se geralmente duvida mais sobre a relevância da filosofia. Escrevemos
sobre a “luta” entre filosofia e literatura no que diz respeito à questão da primazia.
Nenhuma delas tem, a nosso ver, qualquer privilégio, nenhuma delas é a mais
importante. Mas achámos a filosofia superior no sentido que fica em cima de todas as
ciências. Ela não tem a sua área porque todas as áreas do saber humano podem
constituir um campo para a interrogação filosófica.
Diálogo entre a literatura e a especulação filosófica é marcante sobretudo na
segunda metade do século XX, e sempre que se fala da literatura filosófica, frisa-se o
existencialismo. Como Camus nos diz, os grandes romancistas são os filósofos. Na sua
produção literária, como na de Sartre, encontrámos os ensaios filosóficos mas também
as obras ficcionais. Mas, como diz Camus, o pensamento filosófico pode entrar na obra
literária mas a literatura e filosofia não são a mesma coisa.
O existencialismo, assim, parece ser o movimento que une literatura e filosofia.
Mas falar do existencialismo condiciona tocar na fenomenologia. Vergílio Ferreira
deixa-se, notavelmente, inspirar pelos sistemas filosóficos de Husserl, Heidegger,
80
Merleau-Ponty, Kierkegaard, Nietzsche, Jaspers, Sartre e Camus. Naturalmente, não são
só estes pensadores que Vergílio Ferreira gostou de ler e de dar continuidade às suas
filosofias. No nosso trabalho destacámos propriamente aqueles filósofos cujas marcas
são vastas e profundas na escrita vergiliana. O interessante é que, muitos deles, como
também o próprio Vergílio Ferreira, recusam a denominação existencialista. Frisámos a
crítica que Camus fez, orientada aos filósofos que segundo ele eram só um pouco
existenciais. Como já foi dito, Vergílio Ferreira não quer ser chamado existencialista, no
entanto, nos ensaios e nas entrevistas, fala abertamente da sua filosofia e denomina-a de
existencial.
Como podemos ver ao longo do nosso trabalho, Vergílio Ferreira não merece ser
tratado só como escritor, mas também, ao mesmo tempo, como pensador. A sua obra,
em geral, aprofunda os aspectos filosóficos, sobretudo as referentes à morte, à vida e à
condição humana. Este procura as respostas às perguntas sobre a essência humana, a
arte e, ainda, sobre Deus. Não são só, então, os seus ensaios cheios das interrogações
metafísicas, mas também se trata da obra literária que exprime, muitas vezes, grande
afinidade com o ensaísmo e vice-versa. Os ensaios vergilianos têm teor literário.
Ao dizer que obra vergiliana contém muitos vestígios dos outros filósofos, não
queremos minimamente consagrar que Vergílio Ferreira foi só o epígono. Ele escolhe
sempre a sua via própria, uma vez concordando, outra vez discordando com as opiniões
do seus precursores. Assim, por exemplo, acontece, que polemiza com Sartre,
afirmando que a famosa assertiva sartriana a existência precede a essência não é muito
válida. Oferece outro ponto de partida para todo o questionamento filosófico que é a
subjectividade. O EU vergiliano executa a redução fenomenológica que desemboca no
eu-corpo vergiliano. Isto é, nomeadamente o grande tema de Aparição. Alberto Soares
tenta fazer a redução fenomenológica para conhecer o seu EU desprovido de todos os
elementos acessórios. O EU vergiliano é feito de duas partes, que são o corpo e o
espírito. Daí surge um equívoco. Concordando com Heidegger, Vergílio Ferreira
escreve que o nosso EU é ser-para-a-morte. E acrescenta, de modo pontyano, que é o
nosso corpo que vive para a morte. A única possibilidade é chegar à reconciliação,
sabendo que vamos morrer. Neste ponto concilia com Camus. A nossa vida é absurda,
fazemos os projectos para o futuro, mas ao mesmo tempo sabemos que vamos morrer.
O acto de se autoconhecer na comunhão com o outro é desenvolvido em Estrela
Polar. Alberto Soares de Aparição não conseguiu conhecer o seu estar sendo. Portanto
Adalberto de Estrela Polar tenta através da comunhão com a mulher amada, procurar o
81
seu EU. Adalberto quer-se conhecer em sentido objectivo, mas a comunhão absoluta
com Aida/Alda não é possível nem o ajuda na procura do terceiro que autentique a
relação com a outra pessoa.
A questão de morte de Deus é marcante sobretudo em Aparição e em Cântico
Final. O homem não se contenta em declarar a morte de Deus, vai mais longe. Substitui
Deus pelo homem. A liberdade humana retoma a Deus o que lhe pertence. A
antropologia vergiliana consiste no facto do homem criar o seu reino. Vivemos numa
época sem valores e Vergílio Ferreira resolve esta situação pondo como valor o próprio
homem. O exemplo eloquente é a cena de Cântico Final na qual Mário passa a face de
Elsa amada no altar.
Cântico Final valoriza a existência da arte e do artista, que tem para Vergílio
Ferreira um papel importante. Mesmo como Deus, o artista é criador. Deus criou o
mundo e o artista chegou para o recriar. Através da obra da arte, as personagens
conseguem alcançar a comunhão absoluta. Assim, no humanismo vergiliano é o artista
quem, em alguns aspectos, suplanta Deus.
82
Bibliografia
Literatura primária:
FERREIRA, Vergílio: Ansiedade/Angústia e a Cultura Moderna. Colóquio/Letras, 63,
Setembro de 1981.
FERREIRA, Vergílio: Aparição (1959). 10ª edição. Lisboa, Arcádia, 1976.
FERREIRA, Vergílio: Cântico Final (1960). 3ª edição. Lisboa, Portugália Editora,
1972.
FERREIRA, Vergílio: Conta-Corrente II. Lisboa, Bertrand, 1981.
FERREIRA, Vergílio: Conta-Corrente III. Lisboa, Bertrand, 1983.
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