a filosofia explica as grandes questoes da humanidade clovis de barros filho

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  • Ficha TcnicaCopyright desta edio 2013 Casa da Palavra e Casa do Saber.

    Copyright 2013 Clvis de Barros Filho e Jlio Pompeu.Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998. proibida a reproduo total ou parcial sem a expressa anuncia da editora e dos autores.

    Este livro foi revisado segundo o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.

    Direo editorial: ANA CECILIA IMPELLIZIERI MARTINS; MARTHA RIBASCoordenao de produo: CRISTIANE DE ANDRADE REIS

    Assistente de produo: JULIANA TEIXEIRAPreparao de originais: SILVIA MARTA VIEIRA

    Reviso: THIAGO CASTAONCapa: Ricardo Bacellar

    Transcrio: FERNANDA CARREIRA

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    B277fBarros Filho, Clvis de, 1965-

    A filosofia explica as grandes questes da humanidade / Clvis de Barros Filho& Jlio Pompeu. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; So Paulo: Casa do Saber, 2013.

    ISBN 97885773440311. Filosofia. 2. Humanidade. I. Pompeu, Jlio, 1971II. Casa do Saber. III. Ttulo.

    13-02803 CDD: 100 CDU: 1

    CASA DA PALAVRA PRODUO EDITORIALAv. Calgeras, 6, sala 1.001, Centro

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  • ADVERTNCIA

    Frias. Sempre estendidas para professores. Descanso merecido de um labor hercleo? Esse odiscurso oficial. Repetido saciedade pelos agentes interessados. Compensao em folga devencimentos sempre vencidos? Mais provavelmente. Optei por Perube. Convite de um amigo,natural dali. Alugamos uma casa. Familiares e amigos. Distante da orla por decisooramentria. Afinal, sempre bom andar um pouco.

    Com mos cheias de apetrechos de praia. Deslocamento custoso em chinelas de areia. Valia apena j levar alguma comida, como ovos cozidos, ainda na casca. Algumas bolachas com lascasde goiabada e queijo intercaladas. Tudo bem embalado. Em papel alumnio. Se no der paramatar a fome, sempre h ambulantes vendendo biscoitos de polvilho. Acompanhados derefrigerante, preenchem todos os espaos.

    Levo o celular? Pra qu?, pergunta algum. Melhor levar, adverte a esposa. Vai que, n! Algo importanteEm casa sou sempre eu quem decide. Bom, ento eu levo.Duas mos apenas e muitas unidades de tralha para deslocar. Queda previsvel. Assim se fez.Entre um mergulho e outro seu vibrar foi flagrado. Atendo? Se trouxe esta porcaria para atender, no? V quem primeiro Tem razo.O nmero me era desconhecido. A voz do interlocutor tampouco parecia familiar. Aqui Mario Vitor. Seu ex-colega da Csper.Vixe Maria! O que ser que o distinto correligionrio de uma greve malograda poderia querer

    comigo naquele instante? Justo ali, onde finalmente depois de alguns milhares de diasvociferando em classes estava numa boa. Pachorrento. Prostrado nestas cadeiras reclinveisem trs angulaes.

    A voz parecia tranquila. Trato elegante, indagou se incomodava. Menti. Props uma aula paraaquela noite. No ca na gargalhada em nome das parcas noes de polidez que minha andinatrajetria social permitiu interiorizar.

    Na casa de um figuro, acrescentou. Ele tem projetos de abrir um espao bem bacana paracursos. Pode ser uma oportunidade.

    Ento Sabe o que ? No vai dar. Estou com a famlia de frias no litoral sul.No sei porque, mas a palavra sul quase sempre confere alguma pompa ao lugar. Quase

    sempre. Acabei de chegar. A galera t curtindo. No tenho como aceitar.Seguro de que eu voltaria atrs, Mario informou sempre com muito tato o quanto estavam

    dispostos a pagar para me ouvir. Onde fica a casa do cara?Afinal, um dcimo quarto salrio em uma noite justificaria qualquer interrupo do veraneio.

    Vesti o melhor de que dispunha no balnerio. Na falta de uma camisa social, meu anfitrio local

  • insistiu que usasse um palet seu. Ficaria estiloso com camiseta de algodo branca por baixo.Agarrava um pouco nos ombros. Mas se no tentasse abotoar talvez passasse batido.

    A bordo do velho Ford Ka, depois de vencido o reto da rodovia Pedro Taques, comecei asubir a serra rumo capital. No rdio AM, fiel antdoto contra a solido e ansiedade, notcias dofutebol e trnsito. Sempre patrocinadas por pilhas e conhaque barato.

    No daria tempo de passar em casa. Acabei chegando cedo. Antes mesmo do contratante. Osporteiros j me aguardavam. Fui encaminhado ao elevador. Dali para a cobertura. A porta doapartamento j estava aberta. Um portal. Destes pivotantes, com eixo a dois teros. E puxadorvertical de dois metros.

    Entrei. Havia pouca gente. No conversavam entre si. Como na igreja, antes da chegada dopadre. Alguma tosse atiava o eco dos grandes espaos. Juntei-me a eles. Fiz-me notar. Fitaram-me com alguma curiosidade. Era hora das boas vindas ao calouro. Com trote e tudo. Sem tintanem corte de cabelo. A distino j cintilava.

    Um jovem perguntou-me se estava informado sobre a temperatura em Aspen. Onde?Na falta de esclarecimento e tentando diminuir o desapontamento esclareci que em Perube o

    calor estava infernal.Uma outra senhora queria saber se tinha ido a Bariloche recentemente. Disse que sempre

    pensou tratar-se de lugar de gente simples, mas que para sua surpresa alguns hotis eramdotados de uma extensa oferta de travesseiros, cardpios comparveis aos melhores do mundo.

    Pensei comigo, quem sero essas pessoas? Imaginei tratar-se de alguma pilheria em vdeo.Uma pegadinha. Eram atores, no havia dvida.

    Eis que comeam a chegar outros convidados. Entre eles a atriz Maria Fernanda Cndido. Atese da conspirao miditica ganhava evidncias comprobatrias. Logo em seguida, o dono dacasa. Com ele, finalmente, Mario Vitor. J no era sem tempo.

    Fui anunciado. Sem os habituais exageros curriculares. O professor falar sobre o amor.Do tema, fui informado ao mesmo tempo que meu auditrio. Experincia de professor para

    isso mesmo. Haveria de servir para alguma coisa. Duas dcadas preenchendo o silncio comdiscursos diversos. No haveria de ser um jantar suntuoso e gente com hbitos distintos que meintimidariam.

    Tomei a palavra e, com o entusiasmo de sempre, fui enunciando o que me vinha mente.Arranquei com Plato e seu eros. O Banquete cairia bem ali. Afinal, amamos mesmo o quedesejamos. E no h quem no deseje. O que lhe faz falta, claro. Amor pela cunhada, porexemplo. Pelas metas e resultados a alcanar. Pelo lucro esperado. Pela fatia de mercado queainda teima em ser do concorrente.

    Na sequncia, Aristteles. Phila. Amor na presena, desta vez. Pelo o que j nosso. Peloencontro vivido. Pelo o que alegra. Pelo regozijo. Amor mais raro que o primeiro, certamente.Afinal, ir atrs do que se deseja movimento de qualquer um. Mas conseguir se alegrar com amesma mulher um quarto de sculo depois do matrimnio, a, sim, j exige um pouco desofisticao. De elevao.

    Faltava um terceiro amor. Os dois primeiros foram rpidos demais. gape, claro. Por que no

  • tinha pensado antes? Minha salvao. Amor muito diferente dos dois primeiros. Amor peloprximo. Por qualquer um. Por isto mesmo no se confunde nem com o desejo nem com a alegriade quem ama.

    Afinal, no desejamos qualquer um hum, depois de uma certa idade, no sei no. Tampouconos alegramos com qualquer um. Como seria boa a vida e a convivncia se assim fosse. Mas nomundo que nos cabe viver, o que mais tem mala, convenhamos.

    gape afeto do amante, centrado no amado. Que por ele e sua alegria muito far. Amor quefaz bem a ambos. Bem demais. Confere s vidas colorido maior. Questo de descolar do prprioumbigo. Transcender o til. Sentimento de muitos por seus filhos pequenos ajuda a esclarecer.

    No meio da fala comentei que voltaria para Perube ainda naquela mesma noite. E que mealegraria ao chegar porque todos me aguardavam. Que tudo fazia para que meus alunos sealegrassem nas aulas. Por pensarem melhor. Por passarem a saber o que ignoravam.

    Decorridos 120 minutos calculados graas ao imenso relgio checado amide com discrio a aula terminou.

    Aplausos masculinos de protocolo. Muito mais intensos das demais. Avaliao suspeita, comotodas. E passamos mesa. Tocou-me sentar ao lado do dono do pedao. Posto de prestgio.Disse que tinha apreciado muito meu bom humor, em especial a criatividade para inventar aquelahistria como era mesmo o nome da cidade? Perube, isso mesmo. Mario Vitor, este cara impagvel. Da onde ele tirou Perube?

    Mario me fitava com dissimulada tenso. Temia o meu esclarecimento. De um sonho de verofinalmente concretizado a uma experincia, criativamente inventada, de uma realidade muitodistante. Transcendncia de classe. Ecumenismo social. No cabia a mim desmentir o chefe.

    Na madrugada, j na Imigrantes, com os bolsos cheios como nunca, perguntei-me sobre o quetinha acontecido. E a resposta s viria mais tarde. Novos tempos. Outros alunos. Novos amigos.Outras estratgias didticas. Novas propostas.

    Em Perube, s a esposa permanecia acordada. Exigia relato completo. Fui logo perguntandosobre o tipo de travesseiro que me esperava: tecido da fronha, material interno, consistnciaao que sem muito entender foi logo esclarecendo:

    No tenho ideia. Mas s tem um. J dobrei uma toalha seca para voc.Sorri feliz. Nem tudo tinha se desmanchado no ar. Fidelidade a uma trajetria compartilhada.

    Para alm do amor.O espao de cursos virou a Casa do Saber. E o primeiro deles, Grandes Questes da

    Humanidade, encontra-se aqui apresentado; um curso compartilhado. As primeiras quatro aulas,que correspondem aos quatro captulos iniciais deste livro, foram ministradas por mim mesmo.As quatro ltimas, apresentadas aqui do quinto ao oitavo captulos, pelo professor capixaba JlioPompeu, coautor desta obra e indicado por mim para encantar na Pauliceia.

    A transcrio foi fiel. S foram eliminadas as repeties indecentes. As incoernciascomplicadoras. As frases que no chegaram ao fim. Os exemplos que nada exemplificavam. Osconceitos equivocados. E as parfrases, enrolaes, indispensveis para completar o tempo dasaulas. Tirando tudo isto, no sobrou muita coisa. So as pginas que oferecemos a sua leitura.

    Nossa preocupao maior com este curso tambm a de muitos outros professores: permitir oacesso de no iniciados a um pensamento por vezes hermtico. Pretenso de muita gente. Com

  • mais talento do que ns, Luc Ferry, em suas obras introdutrias, pega leitores quaisquer pelamo. E promete entregar as chaves do castelo. Permitindo-lhes invadir os cmodos maishermticos dos pensamentos de Immanuel Kant, Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger, SigmundFreud e tantos outros.

    Nossa ambio menor. Conservando a metfora, consideramos este curso como um guiaturstico. Destes que voc pega de graa em servios de informao. Que informa a existncia decastelos naquele lugar e incentiva a visita.

    Por mais que digam o contrrio, coisas lindas de ver esto ao alcance de qualquer um. Mesmoqueles visitantes de menor mobilidade. J outras exigem um guia. Algum que j esteve por alioutras vezes. E que pode dar dicas preciosas. Ensinar o caminho das pedras.

    Sero tantas as experincias fascinantes que voc pode decidir se instalar por mais tempo.Estes castelos tem isso de bom. Acomodam todos os visitantes, indefinidamente. E os que sedispem a conhec-los com mais calma acabam no saindo mais. Quanto mais voc fica, maisquer ficar.

    Portanto, se voc tem alguma coisa de muito urgente para fazer do lado de fora, que nada tem aver com felicidade ou liberdade, deus, morte, valor, medo, alegria, esperana, utilidade, eficcia,conhecimento, linguagem, razo e outras bobagens deste estilo, melhor no entrar. Aos menosocupados, ou preocupados, o convite est feito.

    Cada um dos temas propostos objeto de uma literatura infinita. Sua apresentao em uma aulaexige recortes dramticos. Os critrios so de nossa total responsabilidade. Um mundo inteiro ede grande valor ficou de fora. Mas o que decidimos comentar tambm tem sua graa. Oxaldesfrutem.

    Clvis de Barros Filho

  • Se conscincia significa memria eantecipao, porque conscincia sinnimo

    de escolha.Henri Bergson

  • TICAPara uma vida boa

  • Falar de tica tratar essencialmente da reflexo que se faz toda vez que preciso identificar amelhor maneira de viver e de conviver. Ao primeiro olhar, tica talvez tenha a ver com vida boa,com felicidade. Mas, a verdade que nem sempre se estabelece uma relao de equivalncia,seja na teoria ou na prtica. Ser tico no significa ter o passe livre para um cotidiano feliz.Basta observar como pessoas praticantes e defensoras da tica, ntegras e moralmenteinatacveis, respeitadoras das normas e leis preparadas e dispostas a uma convivncia digna,esto expostas s intempries existenciais. Elas adoecem, envelhecem, so tradas e abandonadaspor amigos e amantes, enfrentam o luto e muitas outras dificuldades. A realidade dura paratodos, virtuosos e pstulas, sem o refresco de qualquer filtro moral.

    A tica no um tema fcil para ser abordado. Sempre haver a suspeita de no haver nada demuito novo a tratar neste campo. Nem a ensinar, muito menos a aprender. A priori, de tica todossabemos um pouco. Por isso, creio no ser recomendvel admitir total ignorncia no assunto.Pense na m impresso que causariam declaraes como: sou mdico e de tica no entendonada. Ou ainda: sou poltico e tica no o meu forte.

    Nosso repertrio sobre tica, em geral, contm alguns arquivos bsicos, dispe de referncias,crenas mais ou menos compartilhadas, at algumas certezas consolidadas. Tudo aprendido noembalo das experincias da vida, na contingncia dos encontros com o mundo e na complexidadedas relaes estabelecidas com outras pessoas. Este conjunto de fatores j estabelecido levafacilmente impresso de que ensinar tica muito mais difcil do que transmitir conhecimentossobre ligaes peptdicas, reas geomtricas ou energias potencial e cintica.

    tica tem a ver com convivncia. Eis o seu objeto. Mas seu entendimento e compreensoimplicam tambm em esforo intelectual porque pensamento sobre a vida partilhada, sobre asrelaes. um saber que mobiliza, que vem pelo outro e que curiosamente est ausente da nossaeducao formal. Na escola, a reflexo sobre a convivncia ocupa posio marginal ou nula.Confere?

    um paradoxo em meio a uma enorme gama de discursos pedaggicos que preconizamemancipao em relao aos contedos transmitidos aos alunos. Ainda hoje so mnimas ou nulasas possibilidades de ingerncia sobre os temas curriculares. H cadeiras obrigatrias e aseventuais disciplinas optativas, quando ocorrem, chegam tardiamente na vida do aluno.

    Os currculos se impem sem clemncia, a ponto de docentes e discentes j saberem deantemo em qual srie se estuda este ou aquele assunto. Na matemtica, o ensino de logaritmoantecede o das matrizes; histria geral a da Europa e a dos Estados Unidos. Mais recentemente,talvez o contedo esbarre um pouco em Amrica Latina. Mas nunca chega at o Zaire, porexemplo.

    Os livros de referncia e as apostilas enquadram o conhecimento, propondo sequncias decontedo cada vez mais engessadas, o que acaba por apenas treinar o aluno para desempenhosconvincentes diante das instncias oficiais de legitimao do conhecimento. Vide os exames paraentrada nas universidades. Mas, o que dizer a respeito de seu mnimo preparo para a vida?

    COISAS QUE CONVMMuito do que aprendemos na escola sobre o mundo. Sobre o lugar onde estamos, o terreno dejogo propriamente dito e as condies materiais da vida. Assim, entre outros temas, o que est

  • em pauta o movimento dos astros, climas e relevo, vegetao, nosso prprio corpo, comclulas, rgos, sistemas vitais, etc. Tudo isso poder nos interessar ou no. Mas raramenteseremos estimulados a relacionar assuntos to diversos com nossas trajetrias especficas.

    At aqueles que adoram fsica e qumica, que se encantaram ao descobrir a biologia comocincia da vida, devem admitir a existncia de saberes que estejam mais diretamenterelacionados ao existir cotidiano e cujo conhecimento essencial para continuar vivendo. Umacoisa saber sobre digesto celular e seu complexo de Golgi, outra bem diferente dar-se contade que rabada e mocot para boa parte das pessoas, acredito no caem bem em refeiesnoturnas.

    Nesta mesma linha de raciocnio, dos saberes para a manuteno da vida, podemos lembrar-nos de outros, quais sejam: como evitar um mergulho de cabea numa piscina vazia ou tentar voarsem nenhum recurso flutuador. Ou como no confundir soro com vaselina na hora em queprecisamos mais dos nutrientes do primeiro do que da natureza lubrificante da segunda em nossacorrente sangunea.

    Neste rol, esto exemplos que caracterizam um aprendizado mais geral, digamos. Isso sinalizaque o saber tambm est relacionado apreenso de dados e informaes que se relacionam demaneira mais particular s nossas demandas especficas, de modo a identificar aquilo que nonos convm, discriminando do que nos convm. Tais informaes so uma espcie de kit bsicopara perceber que as coisas do mundo no nos so indiferentes. Que algumas nos caem bem eoutras nem tanto. Para sempre ou pelo menos por algum tempo. E que isso define o juzo quevamos estabelecer, quanto ao que bom ou mau.

    FAZER TABELAOs mais otimistas poderiam concluir, a partir daqui, que ficou fcil viver. Afinal, pelo que foiexposto bastaria ir ao encontro das diferentes coisas do mundo para, em seguida, relacionar-secom elas, deixar-se afetar e, finalmente, classific-las como convenientes ou no. Aos poucosdisporamos de uma longa lista, com itens que poderiam ser dispostos em duas colunas. O mundoem tabela.

    As coisas que nos fazem bem so comumente posicionadas esquerda enquanto o universo domal devidamente acomodado direita. Uma vez enquadrada e classificada uma amostrasignificativa de mundo, teramos plenas condies de reduzir o risco de encontros lesivos.Bastaria evitar as coisas ruins e forar a barra para encontrar as boas.

    Pensando assim, quanto mais minuciosa for essa categorizao do mundo, menor a chance deter que encarar uma surpresa negativa pela frente. As colunas poderiam se subdividir ao infinito.Assim, poderamos preferir dentre os filmes dirigidos por Woody Allen, somente aqueles em queele participa como ator. Como tambm entre os ovos, exclusivamente os caipiras, fritos e comgema mole. E tambm as entrevistas inspiradas daquele vitorioso tcnico de futebol especificamente em dias de particular mau humor.

    Volta e meia lembro uma conhecida apresentadora de televiso que em seu programa matinalinfantil costumava relatar como dica pessoal infalvel para a vida o ato de colocar-se numabolha. No caso dela, era a prpria casa e tudo o que proporcionava prazer ali. Fora da bolha,eram os serviais que resolviam tudo a parte chata, em suma.

  • Quem dera essa tal bolha realmente funcionasse e que tudo que nos alegra estivesse do lado dedentro, nossa disposio, prevalecendo sobre as tristezas do lado de fora, bem longe de ns.Que bom seria classificar o mundo que encontramos em direita e esquerda e acertar sempre.Quem dera eliminar o desconforto e perenizar o prazer.

    Mas no parece ser assim to simples, nem mesmo para os mais otimistas. Afinal, muitos dosefeitos que o mundo produz em ns no se adequam ilusria segurana do modo tabela.

    VIDAS ESCOLHIDASNas relaes que mantemos com outras pessoas, isso visvel. Quando interagimos, somosafetados pela ao do outro (ou pela interpretao que dela fazemos) e vice-versa. Nossa aoproduz efeitos que participaro da vida desse outro e, geralmente, em alguma medida nosimportamos com este outro. Seja por princpio moral, por amor, por compaixo ou qualqueroutro motivo: sabemos que nossa conduta vai afet-lo. E isso tambm importa. E muito.

    Constantemente somos chamados a decidir pelos melhores caminhos a seguir, a fazer escolhas.Quando decises deste gnero implicam tristeza ou frustrao do outro, nos sentimosresponsveis, sofrendo pela escolha feita. Porm, esta a realidade para viver uma vida deverdade abdicamos de muitas outras. Toda escolha pressupe renncia, sensao de perda. Enesta misso da escolha, muitas dvidas so previsveis e recorrentes.

    Questes que se apresentam com frequncia: devo mentir em meu proveito? Ou em proveito dooutro? Devo respeitar um compromisso assumido h tempos, mesmo sabendo que me trarprejuzo? Se algum suspeito se aproxima, em local deserto, devo partir para cima mesmo semter certeza de tratar-se de um agressor? As perguntas poderiam ser enfileiradas at o infinito.

    ESCRAVOS DAS PAIXESPara alguns pensadores reconhecidos prefiro no nome-los por ora toda escolha existencial,aparentemente resultante de uma atividade soberana da razo, estritamente determinada pelosafetos. Ou seja, por alegrias e tristezas, medos e esperanas. A vida melhor seria simplesmenteaquela que nos alegra mais.

    Neste caso, seramos escravos das paixes. Do esforo para perseverar na luta pelareafirmao da prpria potncia, pela essncia da vida. As deliberaes ditas morais, ento,corresponderiam rigorosamente s inclinaes afetivas dominantes. Sendo assim, optaramos poruma postura mais corajosa, quando o teso fosse maior do que o medo. E por outra mais prudentequando o temor predominasse.

    S nos distinguiramos entre as demais espcies do reino animal pela pelo grau decomplexidade semitica. Pelo rebuscamento na hora de justificar as escolhas feitas, pelasjustificativas apresentadas por ocasio da definio deste ou daquele caminho. E toda impressode liberdade ou de autonomia decisria seria decorrente de nossa ignorncia a respeito daorigem dos nossos apetites relativos interao entre os nossos afetos e a produo intelectiva.

    Neste caso, todo juzo moral no passaria do somatrio de vetores afetivos. De umacombinao de paixes. Toda valorao moral dependeria, em suma, dos sentimentos. E, aprincpio, tudo estaria bem assim. Cada um com suas sensaes, na particularidade de suasrelaes com o mundo.

  • O problema que no vivemos sozinhos. Se fssemos somente eu e a cerejeira, por exemplo,tudo estaria resolvido. Esta ltima seria linda desde que inspirasse em mim, seu observador, omais puro e pleno encantamento. Ou, nem to linda assim seria, se me entediasse. Mas, dentro doprincpio bsico de realidade, temos que considerar que fora do doce crculo eu-cerejeira-eu, hum mundo inteiro de pessoas. H quem traga na bagagem alguma potncia de vida e j cheguequerendo mais. H quem anseie por alegrias, que resista e insista na essncia do prprio ser.

    uma gente com desejos semelhantes, ao primeiro olhar, mas se comparadas mostraro queso afetadas diversamente pelo mundo. O que me alegra pode entristec-las e vice-versa. Ento,temos aqui um problema na hora de identificar o valor das coisas e das condutas. Pela primaziados afetos, uma mesma coisa ou conduta poder assumir valores opostos dentro de um mesmouniverso de referncias. E qual a questo, afinal? Que cada um estabelea um critrio devalorao em funo da singularidade dos seus prprios afetos. Neste caso, a cerejeira seria belapara uns e feia para outros.

    VALORES CONVERGENTESNada demais se a sociedade pudesse comportar a tenso de tamanha diversidade de opinies.Pois at aqui, se o desentendimento sobre a beleza da cerejeira no compromete tanto a ordemsocial, o mesmo no se pode dizer de um estupro, a conjuno carnal sem a aquiescncia de umadas partes. Ao tomar a valorao da conduta atrelada aos afetos, poderamos, com os exemplosmencionados, chegar a dois cenrios: positivo para o estuprador e seu gozo; negativo para avtima e seu trauma ou at morte, talvez. Neste caso, teramos que aceitar um empate. Alegriaque anula tristeza.

    Suponho que agora seja mais difcil concordar com o romantismo da tica pautada pelaspaixes. Fica claro que o valor moral deste tipo de conduta no pode ficar merc das variveisafetivas trazidas pelos agentes do fato. A vida em sociedade supe alguma concordncia sobre oque seja valor. Tanto das coisas como das aes humanas. Pelo menos daquelas que podemcomprometer gravemente os fluxos sociais.

    No por acaso, as instituies condicionam a admisso de seus membros ao conhecimento eaceitao de alguns valores. Para que sejam conhecidos constam em cdigos de conduta, soexibidos em cartazes, repetidos a exausto em alto e bom som, exercitados em eventosmotivacionais. Mas sempre caber a pergunta: por que determinados valores so eleitos comovlidos em detrimento de seus contrrios?

    A desconfiana no lugar da confiana, a opacidade no lugar da transparncia, o prazer no lugarda disciplina, o mximo benefcio imediato no lugar da sustentabilidade do negcio, asuperioridade tnica no lugar da equidade e assim por diante. Frente tamanha oferta, precisosimplificar. Reduzir. Escolher alguns valores que possam ser respeitados por qualquer um.Universalmente talvez. Porm, como o que alegra uns no atende a todos, o que se v uma lutapela generalizao do valor que corresponda prpria alegria. Aos prprios interesses. Que sejao meu valor, o verdadeiro valor.

    Desta forma, o mundo acaba por se converter numa arena de luta, onde agentes se digladiampela definio do valor legtimo das coisas. Com isso, os resultados so sempre provisrios eficamos refns de uma relao de foras sempre passvel de subverso. Por este caminho, a tica

  • torna-se uma questo de poder.

    LIVRES PARA VIVERPara muitos outros pensadores, tambm considerados clssicos, as escolhas da vida no podemestar merc de nada disso. Quero dizer, dos afetos especialmente. De modo diverso, devemrespeitar normas e critrios que no levem em conta o sentimento ou a paixo, mantendo-sealinhadas com valores denominados absolutos. Assim, seria possvel deliberar na contramo dosafetos e em nome do dever. Em teoria, s neste caso teramos certeza da prpria liberdade edignidade.

    Mas, quando usamos a razo para escolher entre as vrias condutas possveis para seremadotadas na vida, no difcil constatar que nem sempre a conjugao de fatos obedece a umaequao na qual as componentes se combinam perfeitamente. Muitas vezes parece nem haver umaequao. A fertilidade mental e a riqueza de variveis complicam ainda mais a histria e jogamcontra, imobilizando e potencializando os efeitos contraditrios que as coisas do mundo impemsobre ns, como no caso das interaes com outras pessoas.

    POR QUE NO MENTIR?Por exemplo: a mentira , para muitos, sempre condenvel. Inaceitvel, porque corri umapremissa importantssima da vida e da boa convivncia que a confiana. Mas h quem noconcorde que o princpio da verdade seja vlido em qualquer situao. Proponho a reflexo, masconfesso que no consigo faz-lo sem deixar vir lembrana os gritos do meu pai, condenandocategoricamente a mentira e ameaando-me de severa punio.

    Para poder viver, supomos a existncia de muitos fatores que no momento de fazer escolhasno esto diante de ns e que no podemos checar por ns mesmos. Partimos de determinadascertezas que prescindem de constatao e pressupomos que estaro presentes na hora de exercera convivncia com o prximo, com suas aes e seus discursos. Na hora de agir, de optar poruma conduta, valorizando-a em relao a muitas outras, de jogar no lixo solues de vida emnome daquela que nos parece melhor, servimo-nos deste tipo de certeza. Confiana para alguns,f para outros.

    Quando interagimos, recebemos informaes de terceiros sobre coisas que no podemosverificar a veracidade, a qualidade. E no h escapatria em relao a isso. Precisamos sabermuito mais do que nossos olhos enxergam ou do que a posio de nosso corpo no mundo nosautoriza perceber. Por isso, o nico caminho confiar e acreditar naquilo que nos contam.

    Um jornalista assina uma matria. Sabemos que seus patres e os anunciantes do jornal para oqual ele trabalha tm muitos interesses a preservar. Sabemos ainda que costumam apresentar osfatos no espao que dispem e da forma que mais lhes convm. E no poderia ser diferente, umavez que o mundo grande demais para ter a ntegra de acontecimentos acomodados em umaspoucas pginas ou em alguns segundos de notcias.

    Mas, a despeito deste contexto, na hora em que voc abre o jornal de manh e se dispe a lersuas pginas porque tem boa margem de certeza de que os fatos relatados ali aconteceramrealmente. E, quando voc conduz seu veculo e muda de trajeto por conta de uma informao detrnsito ouvida no rdio, por estar seguro de que o caminho habitual estar congestionado.

  • Se mentirmos sobre ns mesmos, estaremos impedindo nossos interlocutores de conheceremnossas prticas, hbitos, apetites Em resumo: de saber quem somos, o que impediria nossaidentificao e qualquer crdito de confiana na veracidade de nossas afirmaes.

    O efeito benfico de qualquer afirmao mentirosa sempre de curto alcance. Poucosustentvel. Porque uma vez associada a prtica da mentira a um determinado autor, suasdeclaraes tornar-se-iam a partir de ento suspeitas. Este no de confiana, diramosseguramente. E, se por hiptese, todos se tornassem mentirosos, se a mentira virasse regrauniversal, qualquer iniciativa mentirosa seria ineficaz. Ningum daria crdito a um mentiroso,ainda mais consciente de estar diante de um deles. Isso tornaria a convivncia impossvel.Portanto, s podemos concluir que mentir no adequado. No ajuda a viver e conviver bem.

    POR QUE MENTIMOS MESMO ASSIM?Apesar de toda essa argumentao, o fato que mentimos com frequncia. Uns mais, outrosmenos. O que nos leva a pensar que de duas uma: ou somos ignorantes e no sabemos viver,servimo-nos de uma razo viciada e erramos a cada mentira; ou ento, a mentira nos parece, emsituaes concretas da vida, muito conveniente.

    Primeiramente para ns, com certeza. Mas tambm conveniente para o outro, o interlocutor, avtima que ser em tese preservada e dispor de um unguento, uma sobrevida, um alvio aindaque temporrio, um blsamo protetor face tristeza que supostamente ensejaria a verdade. Seriaum recurso para os momentos em que a sinceridade fosse cruel demais. Ser que um doente, emestado terminal, precisa mesmo de relatos verdicos?

    E voc, na hora de terminar um namoro ou casamento, no momento de dar as devidasjustificativas, precisa mesmo revelar que encontrou outro ou outra, em melhores condies deproporcionar prazer? Com apetrechos e dotes que no consegue tirar da cabea? Ser tonecessrio assim passar em revista os talentos e competncias profissionais do pretendente?

    Muita gente sabe bem as razes que motivam o novo amor. Ou pelo menos conhece os fatoresdeterminantes da troca. Mas mente, na hora de justificar ao incrdulo cnjuge a deciso tomada.Diz que o problema pessoal. Que no se sente altura daquele parceiro. Garante que o outro legal em demasia, que se pudesse escolher algum para passar a vida eterna no hesitaria emprocur-lo novamente. Mentiras: por compaixo. Mentiras no lugar da verdade que pode agredirmuito. E, convenhamos, muitos de ns no suportamos ser a causa da tristeza do outro. Seja ooutro quem for.

    Resumindo: parece bvio que a mentira no convm. E, ao mesmo tempo, parece inevitvelmentir. Isso nos remete a uma comprovao simples: no h facilidades quando se trata deaprender a viver. muito diferente de saber lidar com geografia ou eletricidade, porque no casodestas e de outras cincias, mesmo que suas leis possam ser a qualquer momento revisadas poralguma experincia superveniente, as tais leis estaro presentes e com aplicabilidadereconhecida. J sobre a melhor forma de ao na convivncia, no h lei que impere, no hreceita ou frmula que assegure sucesso nas escolhas.

    VALORES COMPLEXOSPorque para deliberar preciso lidar com opostos. Neste campo, o tempo todo estamos nos

  • ocupando com contradies, com uma gigantesca complexidade de situaes, em conflitos demximas e deveres. Max Weber para citar o exemplo de apenas um dos analistas destacomplexidade distingue a tica de princpios ou de convico da tica de responsabilidade. Altima est fundada nos fins e a primeira nos meios, com propostas absolutamente inconciliveis.Sem que se possa impor a quem quer que seja a adoo de uma ou de outra.

    Encontra-se uma contradio entre valores, entre meios e fins. Tanta complexidade acaba pordesautorizar um entendimento sistmico da tica. H uma frase de Lenin que expressa bem esteaspecto. Se no for exatamente este o texto, muito prximo de algo como: ns reconhecemos ovalor da camaradagem, o valor da ajuda a todos os camaradas, o valor de tolerncia s suasopinies. Mas para ns este valor da camaradagem secundrio em relao ao dever que temosface social democracia russa e internacional, e no o contrrio.

    A segurana tica parece necessria para a convivncia. Para a vida em sociedade. Mas aindafica faltando explicar o fundamento da hierarquia de valores que ela envolve. O porqu daprimazia de uns sobre outros. O valor do valor.

    Certa vez, em palestra para a alta cpula de uma multinacional, um diretor da empresa mepediu para apresentar em telas de Powerpoint os valores ditos essenciais, em ordem decrescentede importncia. Para facilitar a minha vida, segundo ele, bastaria indicar os top ten. Fiqueisurpreso com a demanda e com a suposta gentileza. Esquivei-me ao mximo, alegando ignornciaquanto ao uso do software para apresentaes. Mas, a desculpa no foi eficiente. O homem meautorizou a usar lousa e giz!

    Foi quando tive que esclarecer que eu ignorava a tal lista que ele pedia. No pegou bemadmitir ignorncia num mundo de tantas certezas. Meu interlocutor fitou-me como se houvesseuma lacuna imperdovel no meu repertrio de saberes pessoais, tomando-me por displicente,como se eu houvesse cabulado aula de importncia fundamental.

    Para tentar reverter a frustrao do homem tive que apelar. Afinal, tratava-se de um diretor.Comecei por perguntar se ele conhecia Deus. Ele respondeu que sim, em tom de total obviedade.Muito normal, alis, afinal Deus e diretores costumam trabalhar no mesmo andar. Cruzam-se nocorredor. So ntimos.

    Pois bem, continuei dizendo que quando Moiss se comunicou com Deus l no alto do MonteSinai, recebeu uma lista de valores, objetivados em mandamentos. Mas no constava em nenhumaparte da mensagem, que o quarto mandamento tivesse prevalncia sobre o quinto, o primeirosobre o terceiro Conclui-se, assim, que, no caso de conflito entre eles, Deus deixava na modo nobre executivo a tarefa de decidir. Livre arbtrio total, exclamei com sarcasmo.

    Meu anfitrio indignado concluiu, ento, que jamais poderia saber qual dos valores tinha maiorrelevncia. Concluiu tambm que, naquele caso, nunca poderia ter certeza do melhor critrio e,consequentemente, da melhor opo para a vida. Inquiriu-me sobre como fazer para no errar eteve nova decepo.

    Admiti no ter a menor ideia sobre isso e, sem poder oferecer uma resposta, completeiafirmando que, se fosse diferente, erraria menos nas minhas prprias decises. Argumentei quese ele encarasse a complexidade da vida com humildade ganharia distncia deste mundodelirante das frmulas garantidoras de sucesso. E proximidade da crueza das coisas, como elasrealmente so.

  • Quando algum argumenta no campo da tica sobre a melhor maneira de viver e conviver, nose contenta com a parcialidade de seu ponto de vista, busca o convencimento, aspira auniversalidade. Porque a sociedade ou a civilizao no tolera tanta diversidade de valores.Precisa se proteger. Manter a ordem.

    No processo de reduo desta complexidade, alguns pontos de vista sero elevados ao statusde regra para todo mundo. quando algumas impresses dispersas viram cdigo. E outras no. Ealgumas vidas de qualidade so convertidas em protocolo de qualidade de vida. Conversesconflituosas, que implicam quase sempre na luta pela legitimidade de definir o que tico e oque no interessa que seja.

    Para prosseguir no tema, experimente enveredar pelo conhecimento disponvel em: tica, oartigo do professor Renato Janine Ribeiro, publicado no livro Comunicao na Polis: ensaiossobre mdia e poltica, e no captulo sobre moral do livro Apresentao da filosofia, de AndrComte-Sponville. Depois, explore o excelente tica para o meu filho, do professor daUniversidad Complutense, Fernando Savater. E, se ainda houver tempo e nimo, no abra mo daleitura de Edgar Morin, em tica, livro que integra uma extensa coleo chamada O mtodo. Obest-seller Aprender a viver: a filosofia para os novos tempos, de Luc Ferry, uma introduosaborosa, e Convite filosofia, de Marilena Chau, ser sempre bem-vindo.

  • Primeiro vem o estmago, depois a moral.Bertold Brecht

  • MORALReflexes para viver

  • tica e moral tm a mesma origem etimolgica. Ethos, em grego, e mor, em latim querem dizer amesma coisa: hbito, prtica recorrente. Um bom ponto de partida para a reflexo iniciada agora observar que para o senso comum, tica e moral sempre foram usadas indistintamentemescladas em seus significados. Mesmo entre os iniciados, muitos no veem interesse ou sentidoem estabelecer diferena entre os dois termos. No entanto, apesar de tanta proximidade, para amaioria dos autores especializados, tica e moral querem dizer coisas muito diferentes.

    Antes de falar mais detalhadamente sobre isso, cumpre fazer um alerta bsico. precisolembrar que palavras como tica e moral so signos. Como tal, so tambm materialidades queremetem a significados que lhes so exteriores. Pense que as coisas do mundo que no sopalavras tambm podem ser entendidas na sua literal materialidade ou como signos, indicativosde outras coisas. Uma ma, por exemplo. A palavra tem como correspondente fsico a fruta. Noh dvida. Mas ela remete tambm s ideias de alimento, sade, pecado, erotismo, dieta, entremuitas outras.

    Quando refletimos sobre tica h um complicador. Vejamos: se, no caso da ma, tanto apalavra como a respectiva materialidade so facilmente distinguveis, na tica a histria diferente. O pensamento que se serve da palavra e a materialidade se confundem. Tudo porquetica tambm pensamento, elucubrao intelectiva, que ganha completude na vida, na ao, naconvivncia.

    Mais um detalhe: costumamos dizer que todo signo ideolgico. Seu uso, portanto, no neutro. Isto , atende aos interesses daqueles que dele se servem. Tudo porque significar ascoisas do mundo forma privilegiada de manifestar o que se pretende. Seja quando somosagentes sociais singulares ou como membros de um grupo, classe, etc.

    Por exemplo, quando digo as palavras universidade pblica, confiro-lhes um sentido que meinteressa: 100% gratuita, laica, sem fins lucrativos, voltada para a pesquisa, dedicada produode conhecimento e para a sociedade como um todo. Mas essas mesmas palavras podem quererdizer muitas outras coisas. E esses mltiplos sentidos tm a ver com os interesses dos agentesque se servem desta significao. E todos estaro sempre empenhados em obter a adeso dosdemais aos sentidos que mais lhes convm, para, assim, torn-los legtimos.

    O problema que vivemos em sociedade e nem sempre os interesses so compatveis osnossos podem divergir dos outros, podem ser inclusive excludentes entre si. E diante deinteresses contraditrios, haver luta pela definio daquele que seja o bom sentido. No caso datica, o trofu precioso.

    DISTNCIAS E APROXIMAESTodo homem na singularidade de sua trajetria pessoal vive situaes que se convertem emproblemas morais. Para resolv-los, ele analisa possibilidades, pondera efeitos das possveiscondutas, formula juzos e acaba tomando finalmente uma deciso.

    No entanto, quando pretendemos que nossos juzos tenham validade que transcenda nossassingularidades, que possam ser aplicados para qualquer situao, passamos do pessoal para oimpessoal, do particular para o genrico, da ao para uma filosofia da ao, da moral para atica.

    Desta forma, prope-se que a tica seja uma teoria ou uma cincia da moral. Ou, esta

  • ltima objeto da primeira. Por isso, os cdigos de exerccio profissional bem como os damaioria das empresas e organizaes no so denominados cdigos de moral, mas sim de tica.

    Uma vez entendida e aceita esta diferena entre tica e moral, sempre ser possvel destacaraproximaes. De um lado porque uma tica que ignorasse os dilemas morais de gente de carne eosso seria um simples arranjo lgico de mximas e princpios. Inversamente, por maisespecficos e particulares que possam ser as situaes em que vivemos no mundo, sempre haverde se considerar socializados que somos princpios ticos objetivados em cultura, emsaberes prticos, em disposies. Mas aqui cabem algumas precises conceituais.

    REFLEXO PARA A VIDANo captulo inicial, falamos que tica ao mesmo tempo reflexo sobre a vida e vida praticada.Simultaneamente princpio e ao. Norma e deliberao. Para Aristteles, o objeto da tica apraxis. Para Kant, a vontade. Para ambos, a ao submetida razo.

    Scrates, por sua vez, nos adverte que uma vida impensada, no examinada por quem a vive,no vale a pena ser vivida. Isso nos leva a refletir sobre o seguinte: toda ao que no estejaimbricada num processo deliberativo est excluda do campo da moral. Como ficamos, ento,diante das exigncias do cotidiano e dos inmeros processos que se tornam automticos na vida?

    Nosso corpo est em movimento. Internamente, na relao entre suas partes. Externamente, narelao com outros corpos. Quase todo este movimento dispensa inteleco e ocorre quandoestamos pensando em outras coisas diferentes dele mesmo.

    Ao dirigir nosso veculo, agimos o tempo todo. Movimentos intercalados, correlatos,sequncias de grande complexidade. Mas, exceto se estivermos ainda na autoescola ou quetenhamos algum problema, todas estas aes dispensam a interveno explcita de nossasinstncias deliberativas. Na maior parte do tempo, andamos no piloto automtico.

    Internamente, os movimentos dependem menos ainda de ns. Interferimos episodicamente, pormeio da alimentao, do uso de medicamentos, etc. Mas quase a totalidade dos processos queocorrem dentro do nosso corpo dispensa nossa participao. At mesmo quando implica algumarelao com o mundo. Na premncia da diurese. Ou da diarreia. Ou ainda no trabalho do que sepoderia classificar devoluo alimentar ou, mais popularmente, convocao do Raul.

    Mencionar esse tipo de situao me faz lembrar de Madame Catrangy, professora do meu filhono maternal, em Paris. Na iminncia da aposentadoria, era mulher de aparncia trivial para aidade. Certa vez, chamou-me na escola e advertiu: Escute, senhor, seu filho Martin vomitou nocorredor. No primeiro momento, imaginei que estivesse preocupada com o estado de sade domenino. Mas depois logo entendi tratar-se de uma advertncia. De uma avaliao decomportamento. De um tratamento moral a uma manifestao anomalia digestiva que nopertencia ao seu campo de atividade. A conduta ali apreciada no era objeto da moralidade, masfoi tomada como tal, contrariando a teoria de Scrates.

    No dia a dia lidamos com muitas situaes semelhantes. certo que deliberamos o tempointeiro para viver e muito da nossa interveno no mundo resulta diretamente de uma apreciao,de um juzo. Em outras palavras, quero mostrar que se a vida fora da moral ampla, aquela quelhe diz respeito diretamente tambm o .

  • ATO MORALVou alm para dizer que o objeto da tica no tanto a ao, mas tudo o que possa gui-la,norte-la. Em suma, a tica se dispe ao estudo de um certo tipo de ao humana, normatizvelpela razo e que doravante denominaremos ato moral. E que no se entenda esta norma como leicientfica sobre o comportamento, como em algumas psicologias e sociologias. Mas como umconjunto de princpios seguidos livremente pelo agente.

    Por conta desta interdependncia entre a razo prtica e a conduta, a estrutura do ato moral complexa. Constituda por elementos subjetivos e objetivos, diria um jurista. Tais comomotivao para agir, conscincia dos fins visados, valores morais, conscincia dos meios maisadequados para alcan-los e materializao dos resultados.

    Sobre a motivao, podemos dizer o seguinte: todo ato moral tem uma motivao. Sua causaeficiente. Material e afetiva. E muitas podem ser as motivaes para qualquer ato. Assim, noaceitar um cargo pblico em um governo local sabidamente corrupto pode ter muitas motivaes.Isso pode se dar pela paixo por certos princpios, pela preocupao com a imagem impoluta,pelo altssimo salrio j percebido na iniciativa privada. Enfim Nestes casos, o sujeito templena conscincia dos motivos que levam s suas atitudes. E esta motivao da qual o sujeito temconscincia integra o ato moral. sua condio.

    Mas nem sempre temos conscincia das nossas motivaes. De um modo geral, nossacompetncia para perceber os prprios afetos muito rudimentar, o que explica o fato de muitasvezes agirmos em plena melancolia, por cime, por excitao ou por ira, sem nos darmos conta.E tais aes encontram-se, por isso, excludas do campo da moral. No podem ser objeto deaprovao, desaprovao ou responsabilizao. Sero levadas em conta em outras esferas,jurdica e psicanaltica, por exemplo. Afinal, algum precisa proteger a sociedade. Ou tentarlidar com nossos demnios.

    FINSPor conta das motivaes, sejam elas percebidas ou no, conjecturamos sobre as vriaspossibilidades de vida futura. So os fins do ato moral. No sei se me caso ou se compro umabicicleta, sugere o dito popular quanto trata do indeciso. A questo aqui que todo ato moralimplica a conscincia de um fim. Um ponto de chegada. Mesmo que seja provisrio. E este fim sempre uma antecipao mental, ideal da vida a ser vivida.

    No se pode confundir motivao com fim. Um tem a ver com o outro, mas definitivamente noso a mesma coisa. Motivao energia vital. Oscilao de potncia. Afeto. Coisa que sentimos.O fim ou finalidade planejamento. Projeto. Coisa que pensamos.

    Se no ficou claro, podemos tentar com outras palavras. Motivao teso. Excitao. Ganhosetorizado de potncia, nem sempre consciente. Fim fantasia, imaginao, sempre consciente.Nem a motivao nem o fim esgotam o ato moral. Porque moral praxis. preciso decidir, almde antecipar. E agora voc j tem todos os ingredientes para entender o que vontade, o quesignifica um ato voluntrio. Trata-se da antecipao mental da vida, seguida da deciso de viv-la.

    Mais um detalhe: h uma distncia entre o fim e a deciso. Tudo porque vrias vidas podempassar pela sua cabea. So muitas as antecipaes possveis. Muitos os fins que podemos

  • perseguir. Bem como os meios para alcan-los. Porm, para que haja deciso, no comparativode vrias vidas cogitadas, preciso jogar no lixo a maioria. S aquela que identificada comomelhor ser vivida.

    VALOR MORALE essa identificao pressupe a adoo de um critrio. Isto , de um valor moral que nada mais do que um critrio existencial, a partir do qual os fins sero valorados. Sobre a definio devalor moral nunca houve unanimidade. Grosso modo, podemos encontrar duas formas muitodiferentes de conceb-lo.

    De um lado, est aquela definio defendida pelos herdeiros de Plato ou por muitos dos queso chamados objetivistas. De outro lado, est a corrente que trabalhada por subjetivistas ourelativistas. Os primeiros tendem a entender o valor determinado a partir de um critrio nico,que j est definido e se impe a ns indistintamente. absoluto, portanto. Para algunspensadores, como Marcel Conche, filsofo contemporneo e excelente professor, o sofrimento deuma criana o mal absoluto. Inaceitvel em qualquer situao. Tanto como meio para algumacoisa melhor quanto como fim. diferente da dor de dente, um mal relativo, aceitvel comomeio para uma boca melhor e mais saudvel.

    Segundo esta concepo, o valor no depende de nada. Nem da poca, nem do lugar, nem daseventuais oscilaes de humor de cada um de ns. Este critrio nico ideal e conhec-lo condio para uma boa deciso moral. nisso que est pautada a perspectiva objetivista ou oobjetivismo axiolgico, para os mais pedantes, que defendido por autores idealistas do nossotempo como Max Scheler e Nicolai Hartmann.

    Mas, e se no houver este gabarito absoluto para a melhor das vidas a viver? Para a boa aula?O bom romance? Ou para nada? Neste caso, tudo estaria na nossa mo. Dependeria do nossoapreo do momento. Valor inscrito no fluxo da existncia. Sem referncia fora dela. Sem nadanem ningum acima, para empatar o jogo.

    Os valores agora seriam, ento, relativos. Determinados ao sabor dos encontros com o mundo.Dos afetos de Espinosa. Das alegrias e tristezas, dos prazeres e das dores. Neste caso, seria bomtudo que alegra, no tempo e na intensidade que alegra. E ruim, tudo o que entristece. Perspectivasubjetivista, portanto. Ou subjetivismo axiolgico, defendido por R. B. Perry, I. Richards, C. H.Stevenson, entre outros.

    Subjetivismo, com uma ressalva. Que este sujeito, todo poderoso definidor dos valores domundo, seja entendido como o resultado, sempre provisrio, de um interminvel processo desocializao, num mundo social concreto, inserido histrica e geograficamente. Porque ele viveneste mundo. E est em relao ininterrupta com ele. Na impermanncia dele e do mundo.Relao objetivada em encontros. Que vo esculpindo seu corpo. Transformando.

    Tudo posto sob a perspectiva de interesses dominantes, com posies de poder e supostaordem social. Com meios e fins morais legtimos e autorizados pela civilizao. Com os trofusreconhecidos. Canalizando as energias vitais na direo do que vale a pena perseguir. Para quebusquemos o bem e evitemos o mal.

    MAL E BEM

  • Quando o tema tica, a reflexo sobre o mal se impe quase naturalmente. O primeiro impulso defini-lo como o contrrio do bem. Mas pode ser uma medida pouco eficaz, quando no se temclareza sobre o que exatamente vem a ser o bem. Acredito que definir o mal pelo bem regredirem entendimento e minha afirmao est fundamentada na certeza de que conhecemos muitomelhor o mal do que o bem.

    H uma ideia que sempre me encantou e que inspirada na leitura de Pensamentos, de BlaisePascal, um dos pesos pesados da filosofia crist. Tambm muito cara a Sponville, quando ofilsofo francs fala do assunto. Trata-se de discutir a assimetria entre o bem o mal. Este ltimo,de acordo com os dois pensadores que acabei de mencionar, gigante, cristalino e onipresente.Enquanto o primeiro, configura-se suspeito, frgil e raro.

    Sugiro que para compreender melhor esta comparao, voc pense tambm na assimetria entreo verdadeiro e o falso, que analisada por Karl Popper, filsofo nascido no incio do sculoXX. O falso parece estar em todas as partes, enquanto o verdadeiro encontra-se sempre sobsuspeita, desde as reflexes propostas por David Hume, sobre a induo. Como passar do fato lei? Como a observao emprica de uma infinidade de fatos poderia autorizar uma lei universal?A rigor, no autoriza.

    Como verificar a veracidade da proposio: todos os cisnes so brancos? Por mais cisnes quetenhamos visto, que sejam mil, por exemplo, e todos brancos, nada garante que o milsimoprimeiro seja tambm branco. A proposio , portanto, inverificvel. Bastaria encontrar umnico cisne negro para que fosse falsa.

    O mesmo se passa com o bem e o mal. Quando julgamos que algum agiu bem, logo nos damosconta da fragilidade de nosso juzo. A boa ao parece sempre suspeita. O bem sempreduvidoso. Assim, dar algum trocado a um pobre pode corresponder a inmeras motivaesegostas: aliviar algum peso de conscincia, parecer generoso a terceiros, ser merecedor dealguma recompensa transcendente, etc.

    Em contrapartida, algum que rouba de pobres como no desvio de verbas pblicas deprogramas de assistncia emergencial a vitimados por alguma catstrofe natural age mal.Indiscutivelmente. Porque o mal se presta menos a dvidas. mais transparente. Cristalino.

    Partindo da Teodiceia, o filsofo alemo Gottfried Leibniz nos prope trs tipos de mal: ometafsico a imperfeio de no ser Deus o fsico o sofrimento e o moral o pecado, acanalhice. Do primeiro, o mal metafsico, ocupar-nos-emos nas aulas sobre Deus. Interessam-nosaqui os dois outros. O fsico e o moral.

    O mal fsico sofrimento. dio pelo mundo, que entristece e faz sofrer. Nada disso seconfunde com o mal moral. Que deliberao racional inadequada sobre a prpria conduta.Mesma distncia que separa o amor do bem moral, da virtude. Amor sentimento. Afeto docorpo. Inexorabilidade decorrente dos encontros com o mundo. Sensao que se impe. O amor tudo de bom.

    De outra parte, virtude amor falsificado. Assim, generosidade virtude, deliberao moralde dar, que supre a falta de amor. Respeito virtude. Prmio de consolao, racionalmenteescolhido, para ocupar o lugar de um amor que j se foi. Gratido virtude.

    Mas a verdade que no amamos muito. No amamos muita gente. Faa uma conta rpida:filhos pequenos; filhos grandes quando no se tornaram delinquentes; cnjuges, nos primeiros

  • tempos; pais quando no tiranizaram muito; alguns amigos talvez. Se formos rigorosos, umas dezpessoas, no mximo. No caso de algum particularmente amoroso, quem sabe o dobro.

    Admitamos: falta muita gente. E as relaes com as pessoas no podem contar com o amor. Porisso, a moral to importante. Deliberao autnoma, que pressupe alguma soberania da razo.Justamente para quando no h amor. J que no ama, delibere e faa como se amasse. Um amorprtico para Kant. Se amssemos mais, careceramos de menos moral.

    Mas quando o mal fsico, a assimetria mais que evidente. Hiper-real. Porque o amor escasso. E o dio, abundante. Inesgotvel. Assimetria afetiva. Excesso de mal. Mediocridade debem. Enquanto os orgasmos so efmeros, em conta-gotas, as dores so contadas aos baldes.

    E no pretendemos aqui nenhuma negao da vida. Afinal, todo vivente continuar lutando pelaprpria potncia, buscando gozar o mais possvel e sofrer o menos possvel. Princpio freudianodo prazer j presente em Michel de Montaigne. Trata-se de estender a alegria e diminuir tantoquanto pudermos a tristeza. Mas, todo este esforo tem limites. Porque gozar sem entraveesbarra sempre na existncia do outro. Questo moral por excelncia. Questo relevante, quandoo amor rareia.

    DEVER MORALKant, na Religio nos limites da simples razo, comea por constatar que o mundo mau. E queo homem mau. Ele joga luz sobre a assimetria entre o bem e o mal moral. H quem noconcorde. Quem considere o mundo maravilhoso. No que me diz respeito, tendo a concordar comKant 200% neste ponto.

    No captulo O homem mau por natureza, Kant investiga sobre a origem do mal moral. Ohomem teria conscincia do seu dever, da lei moral, e, na hora de agir, daria um jeito de seafastar dela. Quando isto lhe conviesse. Haveria no homem uma inclinao natural ao mal.Desejado livremente. Mal radical inato na natureza humana. Para quem no est entendendo o quesugere Kant, basta olhar em volta.

    A primeira suposio, comentada por Kant sobre a tal origem do mal moral a de que ohomem seria mau por sua sensibilidade. Entenda-se por seus afetos, inclinaes corporais,instintos, pulses. Poderiam estas ser a causa do mal moral? Teria o corpo apetites que levariamo homem a agir de forma moralmente inaceitvel? Estaria nas vsceras a inclinao natural para omal? No caso de um indivduo que lana mo de uma arma de fogo e dispara contra toda a suafamlia, ou de outro que viola uma criana, agiriam simplesmente por raiva e apetite ertico?

    No, responde Kant. Porque se assim fosse, o mal moral seria dio. E, como acabamos dedizer, moral no dio. Como tambm no amor. Se o homem fosse simplesmente regido pelosinstintos, seria bestial. No transcenderia a mais estrita animalidade. Os animais no tm moral.Falta-lhes, para tanto, justamente a condio de autonomia deliberativa. Um lobo, um javali ouum polvo no so maus. So o que so. Esto fora da moral. E o homem no se confunde comeles.

    Bem, j que a origem do mal no est nos apetites, onde mais poderia estar? Na razo, talvez?Na instncia deliberativa? Adviria o mal de uma perverso da conscincia moral? De um vcioda razo prtica? De uma vontade absolutamente maligna? Optaria o homem pelo mal, na hora deagir, por uma caracterstica intrnseca ao prprio pensamento?

  • Tambm no, dir Kant. Porque se assim fosse, no poderia haver conscincia do mal. Nohaveria, em relao ao mal, nenhum recuo. Distanciamento. Condio da conscincia. O homem,neste caso, seria o prprio demnio. Que faz o mal pelo mal. O que tambm no o caso.Segundo Kant, o homem sempre faria o mal visando algum tipo de bem ou vantagem para siprprio. Em defesa do autor, sempre se poder argumentar que sdicos e perversos agem mal porque tem algum prazer nisto. Se assim no fosse, seriam demnios, na categorizao kantiana.

    Bem, at aqui conclumos que o homem no nem animal nem demnio. Mas, se a origem domal no est na sensibilidade, coisa de corpo e de animal, nem na razo prtica, coisa de alma ede demnio, onde poderia estar?

    Preste ateno agora. Aqui est o pulo do gato. De acordo com a teoria kantiana, a origem domal estaria no encontro da sensibilidade, apetites e pulses com a conscincia moral, com arazo prtica. E qual seria o problema nesse encontro entre o que sentimos e o que pensamos? Omal estaria na inverso da hierarquia legtima entre ambos. Numa defasagem entre o que deveriaacontecer e o que acaba acontecendo.

    Comecemos pelo que deveria acontecer. Para Kant, qual seria a relao hierrquica legtimaentre a conscincia moral e os apetites do corpo? A prevalncia da primeira, claro. Casocontrrio, no seria Kant. De tal maneira que os ltimos devem ser satisfeitos dentro dos limitese das condies definidos pela primeira. Em outras palavras: a satisfao deve ser buscada deacordo com a lei moral. Se preferirem, a busca da felicidade deve estar subjugada ao dever.

    Passemos, agora, ao que acaba acontecendo. A inverso desta hierarquia legtima. Isto , naadequao indevida das normas aos apetites. No alinhamento do dever aos interesses domomento. Na lei como trampolim para a felicidade. Quando s deveramos aceitar o gozo e afelicidade na medida em que estivessem conforme a lei moral, o que fazemos respeitar estaltima nos limites e nas condies que nos permitam gozar e buscar o mais eficazmente possvela felicidade. Perceba que nesta reflexo kantiana, a busca da felicidade pode ser o prprio mal.Mas nem sempre os filsofos pensaram assim.

    Se voc est com a sensao de dvida, de dispor de menos certezas sobre a vida e sobre aconvivncia do que contava algumas pginas atrs, o objetivo da reflexo feita aqui j foialcanado. Afinal, tica e moral tm mais a ver com problematizao da nossa convivncia doque propriamente com um gabarito de respostas certas apresentado por um professor.

    Para explorar um pouco mais o tema, eis algumas sugestes, entre tantas imperdveis: tica, deAdolfo Sanchez Vazquez, Kant e A religio nos limites da simples razo, Marcel Conche e suaOrientao filosfica, Sponville e o captulo Labirintos da moral, do Tratado do desespero eda beatitude.

  • Ningum mais escravo do que aquele quese julga livre sem o ser.

    Johann Goethe

  • LIBERDADEA definio do homem e suas consequncias

    Hora de falar sobre liberdade. Momento de discutir se somos ou no livres, se podemos ou noser livres. Isso implica, primeiramente, responder a duas perguntas preliminares. A primeira: oque exatamente pode ou no ser livre? E a segunda: quais os eventuais obstculos da liberdade?O que poderia impedi-la? Se no h liberdade, o qu ou quem pode ser o responsvel por isso?

    Comecemos com uma provocao, s para aquecer a leitura. Se fossem perguntadas sobre osignificado de liberdade, muitas pessoas diriam, espontaneamente, que somente so livresquando podem fazer o que bem entendem. Pensando assim, em ordem cronolgica, inicialmentehaveria um querer e, s depois, a possibilidade de agir livremente, para realiz-lo. De acordocom este entendimento do senso comum, eu me tornaria livre quando os outros me deixassemfazer o que eu quisesse. Essa liberdade adviria, portanto, de um estatuto da vida social, de umapermisso civilizatria.

    Mas, alcanando alguns centmetros alm do senso comum, somos forados a constatar que no s uma outra pessoa que pode nos libertar ou escravizar. Quando agimos determinados pelonosso prprio querer, continuamos submetidos a uma fora que nos constrange, aos apetitespessoais. Neste caso, o caminho no tem nada de livre, uma vez que toda liberdade pressupesoberania na hora de decidir, inclusive em relao s prprias vsceras, digamos.

    E voc, que um dia mandou tudo s favas, deu uma banana para o patro e saiu a bordo de umcarro conversvel para refestelar-se na praia, cabelos ao vento, em pleno dia de semana,antecipando os prazeres de um banho de mar, s ter auferido um ganho de potncia alimentadopelo imaginrio. Isso nos permite concluir que fazer o que se quer uma forma a mais deescravido. Menos visvel que algemas, correntes, celas, etc. Mas to significativa quanto.

    Seguindo nesta linha de pensamento, no seria difcil concluir que para agir livremente de fatoteramos que fazer o que no queremos. Na contramo dos apetites. S assim teramos certeza deno estar sob o jugo tirnico da prpria carne, o que, convenhamos, tiraria da liberdade todo oseu charme. E mais: faria dos seus smbolos mais diversos, desde o cartaz com a imagem de CheGuevara at s pick-ups 4 x 4, uma fonte a mais de tristeza no mundo. E, diante da tal realidade,voc se alistaria, sem titubear, como candidato voluntrio servido.

    Como dito anteriormente, era uma provocao. Ou talvez uma proposta de reflexo para dar otom da conversa que entabulamos aqui. Muita gente antes de ns, de pocas, lugares e emcircunstncias muito diferentes das atuais, fez por onde se ocupar com o tema liberdade. Tratadospoderiam ser escritos sobre o assunto. Autores conduziram discusses grandiosas, estabelecerammarcos. Por isso no h inteno de ir longe demais, mas sim de trazer para c um ou maisrecortes que ajudem a pensar o cotidiano. A dificuldade comea com os sentidos mltiplos deliberdade. Arthur Schopenhauer destaca trs deles: liberdade de agir, de pensar e de querer.Sentidos que tm a ver com o que pode ou no ser livre.

  • LIBERDADE DE AGIRO primeiro tem a ver com o que acabamos de mencionar, como a livre ao, com o sentido fsicoda liberdade. De agir, de fazer alguma coisa, de ir e vir, de pegar a estrada, ir de helicptero,descer a escada rolante de dois em dois para conseguir pegar aquele trem de metr que anunciapartida, de parar de correr para degustar um pastel de feira e acompanhado de um copo de caldode cana. De ficar morgando. Liberdade de no se mover, simplesmente. Liberdade sem dvidas,realidade comprovada todo o tempo pela experincia de cada um.

    O mesmo raciocnio vale para a coletividade quando define sua prpria trajetria. Sobretudo,quando recebe uma ajudinha de foras supracelestiais, por exemplo, para abrir o mar. Liberdadede assentamento. De poder ficar. Mas tambm de ser nmade. De atravessar fronteiras. Afinal, aliberdade poltica , antes de tudo, fsica.

    Esta liberdade para agir o contrrio da obrigao. Ou da escravido. Ou ainda, comoobserva Thomas Hobbes, a ausncia de qualquer impedimento que se oponha ao movimento. Agua que se encontra num copo no livre. Porque este ltimo impede seu movimento. O copo serompe. E, ento, a gua recupera sua liberdade. Da mesma forma, qualquer um de ns ser livrepara agir quando nada nem ningum impedir nosso movimento.

    Esta liberdade, portanto, nunca nula. Nem absoluta. De um lado, porque algum movimento sempre possvel. Mesmo com obstculos: retida no copo, a gua se agita. Roupas apertadasesgaram com o tempo. E ainda, na cela, o prisioneiro simplesmente age, comanda operaes detrfico ou mesmo uma revoluo contra o poder do Estado. Enquanto h vida em seres ditosmoventes, nunca nula a liberdade de movimento.

    Em contrapartida, esta mesma liberdade tambm nunca ser absoluta. Afinal, ningum podefazer, a todo o momento, tudo o que quer. A limitao pode ser a condio fsica, como voar, semo auxlio de algum meio propulsor externo ou planador. Ou a condio social, porque quasenunca estamos ss. No d para aloprar toda vez que d vontade. Deslocamentos produzemefeitos. Afetam a trajetria alheia. Atrapalham os outros, convertendo toda convivncia numasequncia de obstculos.

    Muitos deles ganham estatuto de lei. E , paradoxalmente, graas a ela, que algumas liberdadesremanescentes se tornam efetivas. No h liberdade sem lei, ensina John Locke. como abrirmo de um pedao da torta para ter certeza de dispor do resto.

    LIBERDADE DE PENSAROutro ponto de observao da liberdade pode se dar a partir do pensar. Liberdade intelectual,que tem por objeto o pensamento. Condio de um livre pensador. Liberdade do esprito, paraalguns. Da parte superior da alma, para outros. Da substncia pensante ou da mente. A histria dopensamento prdiga nas nomenclaturas. Mas enquanto no for possvel identificar o que estpor trs das coisas que passam pela nossa cabea, ficar difcil saber quem goza desta tocobiada liberdade.

    O direito, nos estados ditos democrticos por intermdio das liberdades pblicas garantidasconstitucionalmente , j cuidou em parte do problema. Afinal, esta liberdade de pensamentosobre a qual falamos muito correlata de informao, de expresso, de culto, etc. Todos nssabemos que livre o povo que fala o idioma da sua cultura, que cultua os deuses de sua f,

  • define o que sagrado, materializa o absoluto em arte e faz suas escolhas. Delibera seuscaminhos e, assim, define seus pontos de chegada e o que quer vir a ser um dia.

    Escolher o que queremos da vida pressupe pensamento livre, responsabilidade e conscinciaa respeito das prprias decises sobre a importncia de agir com conhecimento de causa, comose diz. Toda escolha resulta de um exerccio intelectivo, da aplicao de um critrio, ou de umamxima de conduta. Por isso, quando se pretende reduzir ou eliminar a responsabilidade, tarefarecorrente de advogados de defesa, discute-se a plena conscincia do agente no momento daao. Ele no sabia direito o que estava fazendo.

    Mas, para alm da moral e da poltica, cabe perguntar: haver liberdade intelectiva quandoestamos em plena resoluo de um problema matemtico? Destes que j tm uma resposta certa?No estaramos, neste caso, limitados por uma resoluo que se impe a ns? No seria umaforma de escravido ter que seguir certos passos para chegar a um resultado que no podemoscontornar? Como poderia ser livre o pobre do aluno que resolve um problema de geometriaaplicando o teorema de Pitgoras? Ou alguma frmula para calcular a rea de um polgono?

    Por um lado, seria fcil dizer que, em um caso assim, h liberdade, afinal, na hora de resolveruma questo matemtica pensamos o que queremos. Sem nenhum constrangimento externo. Oesprito pensa o que quer. Sem obedecer a ningum. Porque livre. E se busca a resoluoverdadeira, faz o que quer. Porque quer. Ao encontrar o resultado verdadeiro do problema,consuma nele mesmo sua prpria liberdade. Porque se no buscasse livremente a verdade, todoesprito estaria deriva. Delirante.

    O que falta deixar claro? Que neste caso da matemtica, a liberdade nada tem a ver comescolha ou com a liberdade da moral. Porque a rea de um quadrado corresponde ao quadradodo seu lado. E o tringulo retngulo que o divide em dois tem a sua rea definida pela metadeda rea do quadrado. Necessariamente. E chamamos de liberdade a este discernimento. De umaverdade que nunca se imps. Mas que, com liberdade, alcanada.

    LIBERDADE DE QUERERAt aqui falamos sobre dois sentidos para liberdade: a de fazer e a de pensar. Mesmo juntos,ambos no do conta de enquadrar a provocao inicial desta aula. Afinal, como vimos, nobasta, para ser livre, fazer ou pensar o que queremos. Ainda seria preciso ser livre para querer oque queremos. Aqui, o sentido de liberdade muda sobretudo porque outro seu objeto.

    No primeiro sentido, ser livre questo de poder agir. Seu objeto , portanto, a ao. Aliberdade fsica. De fazer ou no. No segundo sentido, ser livre questo de poder pensar. Seuobjeto , ento, o pensamento. A liberdade intelectiva. De pensar ou no. Neste terceirosentido, ser livre questo de querer. E o objeto agora a vontade. A liberdade deixou de sersimplesmente fsica ou intelectiva. Por isso, muitos a denominam metafsica. E at absoluta ousobrenatural.

    Ser que somos livres para querer o que queremos? Voc optou pela leitura do livro que temem mos. Nada nem ningum o impediu. Tampouco o obrigou. Voc veio ao encontro destaspginas livremente, movido pela prpria vontade. Em algum instante teve vontade de vir. Mas,neste preciso instante, ter sido livre para querer ler o livro? Liberdade de ter vontade? Percebaque estamos falando de liberdades diferentes.

  • Uma coisa a liberdade de pegar o livro e tomar os ensinamentos que transmito. Outra bemdiferente a liberdade de querer ler. Algo do tipo a partir de agora vou sentir uma vontadeenorme de acompanhar as explicaes do professor sobre liberdade!, ou ainda, quando algumperguntar por que voc quer aprender sobre de filosofia, no lugar de um acanhado deuvontade!, a resposta poder ser: porque sou senhor da minha vontade!

    Posso supor no seu semblante algum desconforto. Tudo porque certamente deve estaracostumado com o contrrio. Com um querer que se impe. Que simplesmente surge. Com umimpotente deu vontade, que acaba conferindo ao cotidiano um novo rumo. Essa estria de serlivre para querer parece incompatvel com as nossas experincias de vida.

    Vejamos outro exemplo. Em uma eleio democrtica, quando respeitadas as regras eleitoraise a oferta do mercado das candidaturas, cada cidado comparece urna e vota, semconstrangimento. Tem total liberdade de ir votar. Ou at de no ir, quando o voto facultativo.Liberdade fsica de apertar os botes correspondentes ao candidato que considera maisadequado. De fazer parte de um contingente que de fato eleger uma autoridade.

    Votar tem a ver com reforar convices. Com a liberdade de pensar sobre o futuro da prpriasociedade. Isso pressupe uma vontade anterior. Uma inteno de voto. Mas, ainda assim, cabe apergunta: ter havido liberdade de querer votar neste ou naquele candidato? Ou ser o voto osimples resultado mecnico da socializao poltica do eleitor que aprendeu, na famlia, classeou cl a que pertence, a definir suas escolhas com base em certos valores? Ou das inclinaesemocionais de simpatia e antipatia patrocinadas pelo trabalho poltico de apresentao miditicados candidatos? Ou ainda da construo de identidade prpria que nos leva ainda que cada vezmais raramente a posar socialmente como sendo de esquerda ou de direita, liberal ouconservador, simpatizante ou at militante deste ou daquele partido? Ou talvez de tantas outrasvariveis que pretendam explicar cientificamente a inteno de voto? Neste caso, votarlivremente em quem queremos no implicaria estar refm de tantas condies que nada teriam aver com a nossa livre deliberao?

    Esta liberdade metafsica de querer, de vontade, a que mais interessa filosofia. A que maisintriga. E, por esta razo, a que mais mereceu ateno de pensadores consagrados. Vamosrecorrer a eles, como forma de mais uma vez descolar do senso comum. Podemos comear comPlato porque para a maioria das questes ditas metafsicas difcil fazer diferente.

    A ASTCIA DE PROMETEUPlato se serve com frequncia de mitos para expor suas ideias. H quem goste dos deuses e desuas aventuras. Mas, num texto filosfico, no o que mais importa. Trata-se de artifciodidtico, como os exemplos dados em aula que ajudam a aproximar a ideia filosfica abstrata dorepertrio presumido do auditrio.

    A cena relatada de um tempo em que homens e animais ainda no tinham dado as caras nomundo. S havia deuses. Como Epimeteu e Prometeu, dois irmos, filhos de tits. E imortais,claro, como todos os deuses. Mas, a despeito de gozarem de tal privilgio, eram divindadessecundrias. Dessas que nunca seriam chamadas para decidir ou fazer nada de importante.

    Essa dupla vai merecer a ateno de Protgoras, conhecido sofista, num momento em que Zeusj havia vencido os tits e colocado ordem na casa. Apesar da filiao, os irmos no foram

  • trancafiados no Trtaro, como seus pais. E curioso o motivo de sua apario na cenamitolgica.

    Zeus tinha institudo o Cosmos. Distribuiu o mundo aos seus parceiros. Passado um primeiromomento de alvio pelo fim da guerra entre a primeira e a segunda gerao de deuses, seguiu-seum enorme tdio. Imaginem, depois do caos completo, as coisas todas em seus devidos lugares.Tudo adequadamente disposto. Lgico, cclico e previsvel. Astros em suas rbitas, dias e noites,ventos e mars. Tudo numa regularidade irritante, excluindo rigorosamente toda e qualquerpossibilidade de surpresa. Os deuses no suportavam mais tanto marasmo. Era preciso dar umjeito naquilo. Epimeteu e Prometeu foram, ento, escalados para fabricar mortais.

    Uma interrupo rpida aqui para algumas inferncias. Primeiro: o motivo inicial da produode mortais foi o tdio. Isto , se voc, caro leitor, e eu estamos por aqui porque os deusesestavam aborrecidos com a engenhoca csmica que eles mesmos inventaram. Somos filhos doenfado divino. C entre ns, se no for do divino, pelo menos do tdio de muitos pais mortais,especialmente nos tempos pr-televisivos ou restritos TV aberta.

    Segundo: podemos deduzir deste enfado o que os deuses esperavam de ns, mortais, aopatrocinar e autorizar nossa existncia. No mnimo, divertimento ou entretenimento. Bobos dacorte olimpiana. E no s para fazer rir. Mas gozar tambm. Sabe-se que Zeus, deus dos deuses,tinha clara preferncia pelas amantes humanas.

    Terceiro: na hora de executar a fabricao dos mortais, o que inclua outros animais e plantas,deixaram a tarefa para dois deuses de quinta categoria! Como aqueles jogadores que ficamsempre no banco de reservas. Desprestgio total. Um deles, menos ligeiro das ideias que o outro.Epimeteu quer dizer aquele que pensa depois. E Prometeu, o contrrio, aquele que pensa antes.Um lerdinho, outro espertinho.

    Bem, o fato que Epimeteu e Prometeu arregaaram as mangas. E este ltimo, sempre maisafoito para agir, props uma diviso da tarefa. Aquele se incumbiria dos animais. E deixaria oshomens para o irmo, Prometeu, o mais antenado, que pensava um pouco mais antes de agir.

    Epimeteu recorreu a todos os recursos naturais disponveis para produzir os animais. E o fez moda de Zeus. Buscando o equilbrio, criando uma verdadeira biosfera. De tal modo que todosos animais pudessem dispor de algum recurso para enfrentar as intempries e predadores. Assim,os mais pesados, os mais velozes, os mais contundentes, os mais geis. Uns com couro, outroscom carapaa, outros com ferro, etc. Cada um na sua.

    Preocupou-se tambm com o todo. Com a preservao de todas as espcies, do entorno, domeio ambiente. Assim, por exemplo, carnvoros alcanam mais rapidamente a saciedade do queherbvoros. A distribuio dos recursos naturais alinhava naturalmente cada criatura ao cosmosdefinido por Zeus. Apesar de Epimeteu ser Epimeteu, fez um trabalho de grande inteligncia.

    A no ser pelo fato de ter deixado seu irmo na mo. Ao conceder aos animais todos os bensnaturais, note bem, TODOS, acabou condenando Prometeu a fazer o homem sem nada,praticamente sem recursos. Lembro-me de meu primeiro Chevette S. Nunca soube o que o Squeria dizer ao certo. Simples, talvez. Standard, diro os mais entendidos. Ou, S de sem nada.Nenhum acessrio. Recurso zero. Nem couro, nem barbatana, nem muita fora, nem peso, nemfaro potente, nem mandbula, nem nada.

    Atente para este nada. Vamos precisar dele mais tarde. Em pleno sculo XX. Na hora em que

  • o existencialismo de Jean-Paul Sartre for explicar o que entende por liberdade em O ser e onada.

    Para compensar tanta carncia natural, Prometeu se viu obrigado a roubar, no palcio de Atena,a astcia. Surrupiou tambm o fogo em outro lugar. Assim, o homem, zerado de natureza,nadadizado de recursos, poderia, produzir com prprio esforo tudo o que precisasse, asferramentas que lhe fossem necessrias. Poderia tambm fazer da vida o que bem entendesse.Sem as habilidades garantidas por Epimeteu aos animais, o homem viu-se desobrigado dequalquer alinhamento. Se a vida dependia da sua astcia, o homem no poderia ser nada antes deus-la. Em outras palavras, a burrada de Epimeteu nos deixou num mato sem cachorro. Porm,livres para viver do prprio modo. No nosso caso, alinhar-nos com o universo csmico umaquesto tica. Uma escolha. Contingente. Que exige saberes sobre ns mesmos e sobre ouniverso. Saberes que nem sempre temos.

    Ancestralidade pouco nobre, portanto, esta da liberdade. E, como se no bastasse, os deusesficaram furiosos. Prometeu foi castigado por Zeus. Amarrado em um Rochedo, sofreu com oataque das aves de rapina que queriam comer suas vsceras. Crueldade redobrada seconsiderarmos que se tratava de um deus, que no morria nunca. Prometeu acabou solto pelainterveno do filho de Zeus. Vale a pena a leitura do relato platnico. Sempre tendo em mente aproblemtica filosfica que lhe confere densidade. Esta reflexo sobre a liberdade acabou tendosequncia no pensamento moderno. Com Jean-Jacques Rousseau.

    APERFEIOAMENTO CONTNUOAlis, quando se fala em liberdade, a visita a Rousseau obrigatria. Temos um texto forte dereferncia: O discurso sobre a origem e o fundamento da desigualdade entre os homens . Ttulolongo, texto curto e muito fcil de ler.

    Se voc no tiver tempo de ler o texto todo, conclua ao menos as primeiras pginas do textoonde Rousseau pretende apresentar o especfico do humano. Aquilo que permite defini-lo oudistingui-lo dos demais viventes. Principalmente dos outros animais. Trata-se de uma teoria dohomem. Um exerccio de antropologia que reflete uma preocupao comum a muitoscontemporneos de Rousseau. Por que ser que s na modernidade a filosofia precisou sedebruar imperativamente sobre esta questo do especificamente humano?

    Como acabamos de ver, durante sculos o homem acreditou que o universo seria csmico. Eque esse Cosmos seria a grande referncia tica. Definidor do certo e do errado na hora deescolher a vida. Com o pensamento cristo um Deus transcendente, criador de tudo, inclusivedo homem, tem para ns misso e talentos e a referncia tica, passou a valer a vontade deDeus ou aquilo que ele pretende para ns, com o eixo essencial do que ou no pecado na horade escolher a vida.

    Estas duas referncias sofreram forte abalo no comeo da modernidade. Com a revoluocientfica, descobrimos que o universo no csmico. No perfeitamente harmnico, nemordenado. sem sentido, sem direo, sem finalidades pr-determinadas. Quanto vontade deDeus, fragmentou-se nas reformas religiosas.

    E, quase no mesmo momento, o homem viu os parmetros sobre a tica, outrora to firmes,simplesmente virarem fumaa. Neste momento, ao homem s sobrou ele mesmo. E o outro ou os

  • outros. A tal humanidade. E ele mesmo tornou-se referncia, assumindo um protagonismo inditona histria. O sujeito converteu-se na pedra de toque do bem viver. E do bem conviver.

    Mas o que justificaria tal honra? O que teria o homem de to especial que fundamentasse essegiro? Do eterno e absoluto espelhado no cosmos e em Deus para o plano finito e parcial dohumano? Veja porque passou a ser importante investigar sobre a especificidade do homem. Paradefini-lo e, fundar, assim, uma nova moral: a do sujeito, no mais a csmica e nem a divina.

    Rousseau no busca uma especificidade qualquer. Certamente h infinitas que no lheinteressam. Assim, supomos que s os humanos sabem quando um jogador de futebol est emimpedimento. Ou jogam truco, bebem espumante em recipiente apropriado, fritam ovo, levantampesos em academias ou resolvem equaes. Acreditamos serem estas algumas das prerrogativasexclusivas do homem.

    No entanto, Rousseau no est se referindo a nada disso. A especificidade investigada por ele a que permitiu a fundao de uma nova moral, aquela que comea e termina no homem. Moraldo respeito recproco.

    Mas, segundo Rousseau, afinal qual seria essa especificidade? A definio de Aristtelessempre serviu de referncia. Animal poltico, dotado de logos. Trs elementos o constituem: avida social, o uso da razo e a utilizao da linguagem. O homem seria simultaneamente um sersocial, racional e comunicativo. Mas Rousseau no ficou satisfeito com nenhum desses critrios,porque os animais, em alguma instncia, seriam to sociais quanto o homem e disporiam dealgum tipo de competncia intelectiva e comunicacional. A diferena em relao ao homem seriaapenas de grau. No de princpio.

    Rousseau frisava que o animal, seja ele qual for, j nasce com seu instinto. E esse instinto tudo de que precisa. Por isso, qualquer animal dispor, ao longo da vida, dos mesmos recursosdos quais j dispunha ao nascer. Um animal no aprende a viver. Porque no precisa. J nascesabendo.

    Assim, um gato j sabe viver como gato desde o primeiro dia. O mesmo vale para um pombo.Exemplos de Rousseau. A comparao deste instinto com um programa de informtica inevitvel. Como se todo animal fosse programado desde o nascimento para ser aquele animal edispor de respostas para as diversas situaes de vida que supostamente encontrar. Assim,exemplifica Rousseau, um gato, mesmo com muita fome, no se alimentar de gros. No passarpela sua cabea fazer uma boquinha com uma nova iguaria. Da mesma forma que um pombo,tambm faminto, no comer fil. Nem de aperitivo.

    Mais um detalhe: pelo fato de j dispor de soluo para tudo, os animais no precisam inventarnada. Nem improvisar. Nem criar. Devem agradecer a Epimeteu, que to diligentemente lhesproveu de tudo que precisam, poupando-os de toda incerteza sobre a vida. Ou, talvez, amaldio-lo, quem sabe pelas mesmas razes! Por no terem que decidir sobre nada, nem terem nas mosas rdeas da prpria existncia. Por no serem humanos, em suma.

    No pense que perdi a linha de raciocnio. Sim, o homem que nos interessa. A ele coube iralm. Transcender s inclinaes naturais. Descolar dos instintos. Aprender a viver. Por pobrezade natureza, ausncia de instinto expressivo, por carncia de recursos, o homem se v obrigado aaprender a nadar, seno se afoga. A aprender a andar e a correr, para poder sair do lugar. A sedefender, para no ser trucidado. A frmula de Rousseau magnfica, no caso do homem, e diz:

  • a vontade uso livre da razo continua falando, mesmo quando a natureza se cala.Como se no bastasse tanta lacuna de natureza, a vida humana parece bem complicada de ser

    vivida. O mundo cada vez mais prdigo em alternativas existenciais. E o instante de vida sempresingular. nico. Fosse regido pelo instinto, como para o resto da animalidade, tambm para ohomem no haveria alternativas ou possibilidades. A vida seria necessariamente a nica quepoderia ser.

    Mas graas a esse descolamento dos instintos, h essa liberdade frente prpria natureza, aohomem facultado o direito de escolha. O tempo todo. Cabe ao homem inovar, criar, improvisar,exceder. S o homem capaz de exceder. E o excesso aqui no pecaminoso. libertador. E esse descolamento em relao prpria natureza que permite ao homem descobrir soluesnovas para situaes inditas.

    Ele pode contribuir para esse conhecimento coletivo e sempre mutante a respeito de si, da vidae da convivncia. Talvez por isso, s o homem tenha uma histria. Heranas seculares de sobrecomo fazer, apesar de nunca estarmos inteiramente prontos. O aprendizado sem fim.

    Eis o ponto, para Rousseau. Nossa fronteira face aos demais viventes. Nossa faculdade enecessidade de aperfeioamento contnuo. Aprender o que j se sabe e descobrir o que no sesabe ainda. Processo necessrio para quem comeou em desvantagem, sem saber muita coisa.Necessidade de virar o jogo, porque se conservadas as condies originais, no poderamos irlonge.

    Aperfeioamento pessoal pela educao. E coletivo pela cultura, pela poltica. Assuntos degrande interesse de Rousseau. Muito pertinentes para ns, que nos definimos vivendo, queestamos acontecendo em processo, que remamos e construmos o barco ao mesmo tempo.

    A BOA VONTADE DE KANTA reflexo sobre a liberdade est no corao do pensamento moral de Kant, cujas contribuiesno campo da filosofia so destaque tambm quando se trata de abordar as condies doconhecimento e os limites da razo. Seus textos so hermticos. Mas no podemos nos acovardar.Tentaremos identificar o que o autor queria dizer de mais fundamental. O que ele destacaria sequisesse facilitar a compreenso do leitor.

    E, se possvel, voc poder abrir a primeira pgina do texto intitulado Fundamentao dametafsica dos costumes. O que dissermos at aqui facilitar o acesso informao. Kant noespera muito para dar o tom. Apresenta-se como herdeiro da antropologia de Rousseau. E emruptura com o pensamento grego.

    Porque o que pode ser bom, virtuoso e digno no so os talentos naturais. Isto , as aptidesque temos alguns para desenhar, outros para explicar e outros ainda para proporcionarsensaes inebriantes. Para Kant, isso no o mais importante para definir a virtude ou adignidade de uma pessoa.

    Segundo ele, no o fato de voc ter um inegvel talento, proporcionado pela sua natureza, queo torna moralmente excelente. O que realmente importa o uso que far deste talento. E sobreele, voc quem decide. Trata-se de uma questo de liberdade para resolver o que fazer com asaptides que so as nossas. As de cada um.

    Ainda estamos nas primeiras pginas dos Fundamentos. Se minha memria no falhar, creio

  • que Kant diz mais ou menos o seguinte: de tudo que pudermos conceber no mundo, e mesmo foradele, s h uma coisa que possa ser tida, sem restries, como absolutamente positiva: a boavontade.

    Assim, a inteligncia, a faculdade de comparar, de discernir o particular podem ser faculdadesapreciveis. Mas no so qualidades morais. E por que no? Porque todas estas faculdades etodos os talentos naturais em geral podem ser colocados tanto a servio do bem quanto do mal.Nunca so, por eles mesmos, bons ou maus.

    Assim, podemos usar a inteligncia para curar, alegrar, ensinar saberes que traro alegrias emuito mais. Em contrapartida, tambm podemos usar as mesmas faculdades do esprito paraenganar, entristecer, iludir, mentir e tambm muito mais. Perceba que nenhuma destas faculdadespode ser boa em si mesma, porque tudo depender do uso que delas fizermos. Da vontade. Dalivre deliberao sobre um fim em detrimento de outros e que poder ser pautada por uma boavontade ou no.

    A boa vontade tudo de bom, diria Kant. Todo o resto est sob suspeita. Est na boa vontadetoda a virtude e dignidade humanas, supondo, ento, liberdade deliberativa. A primeiraconsequncia desta reflexo sobre a boa vontade a igualdade. Igualdade entre todos ns.Perante Deus, ainda dizem alguns. Perante a lei, garantem os textos constitucionais. A igualdadeentre os homens no saiu mais do cardpio das ideias morais.

    Na moral aristocrtica dos gregos, s h superioridade e inferioridade. Hierarquia, em suma.Natural, moral e poltica. O poder exercido pelos melhores. Senhores e soberanos. E os piores,escravos. Por isso, uma sociedade estratificada.

    Claro que continuamos desiguais em talentos. Em recursos naturais. As faculdades do esprito,que me perdoe Descartes, so to cruelmente concentradas nas mos de dois ou trs quanto aspropriedades rurais em sociedades cruis e distantes. Mas j sabemos que quando o assunto moral isso no tem muita importncia. Porque os talentos, sejam eles quais forem, no tm, poreles mesmos, nenhuma relevncia moral. Podemos ser gnios canalhas. E virtuosos lerdinhos.Feios, brutos e malvados. Lindos heris ou viles. O que importa mesmo a liberdade paradecidir bem. Fazer um bom uso desses talentos que so os nossos. Sejam eles quais forem.

    E essa liberdade todos ns temos. Somos, portanto, igualmente livres para uma boa vontade.Para alm da nossa natureza. Essa sim, cruel e injusta. Perceba o quanto a ideia de igualdade sechoca com a perspectiva naturalista da moral aristocrtica.

    A segunda consequncia desta liberdade como boa vontade o desinteresse. A ao virtuosase confunde com a ao desinteressada. A liberdade, como vimos, a capacidade de descolar danatureza. E, de certa forma, opor-lhe alguma resistncia. Ora, o que entendemos por nossanatureza? O ritmo de nosso peristaltismo? A incrvel propenso para micoses? Ou dores decabea, quando venta muito? Exemplos de manifestao da nossa natureza? Sim, sem dvida.Mas que tm pouco a ver com liberdade. Talvez porque nestes exemplos no haja algo a queresistir.

    Por isso, a natureza que vai nos importar para entender a liberdade e a moral kantiana sematerializa nas nossas inclinaes. Que podem fazer com que nos ocupemos exclusivamente dens mesmos. Da nossa particularidade. Assim, descolar dela, ou resistir a ela, implica levar emconta os interesses dos outros, dando-lhes lugar. Para isto, preciso colocar-se entre parnteses.

  • Considerar outros desejos alm dos prprios. E tal autolimitao supe que no sejamos 100%egostas.

    Esta reflexo est presente no nosso cotidiano. Todos sabemos distinguir uma condutainteressada de sua oposta. E atribumos mais dignidade moral segunda. Tudo porque sendomodernos, somos kantianos sem saber. Por isso achamos to interessante quando algum nos fazum favor aparentemente motivado pelo nada, sem expectativa de retorno.

    A tercei