a garota do outro lado da rua
DESCRIPTION
Mas será que esse conhecimento resultará em uma grande amizade? Será que o amor de Enzo sobreviverá além das aparências? Afinal, quem é verdadeiramente a garota do outro lado da rua?TRANSCRIPT
A garotado outro lado da rua
Lycia Barros
a garota.indd 3a garota.indd 3 09/02/2012 16:01:3809/02/2012 16:01:38
7
A BORBOLETA
Há momentos em que cruzamos linhas invisíveis que
jamais poderíamos imaginar. Nunca imaginei que ele
seria meu, ou que eu seria dele. Nunca imaginei que
derrubaríamos os muros que nos separavam por nossas
fraquezas. Mas fico feliz que tenha sido desse jeito. Nin-
guém me compreendia muito quando tudo aconteceu, eu
também não conseguia explicar como me sentia. Na verda-
de, a maioria das pessoas não estava disposta a me dar o
tempo que eu precisava para falar. Houve noites com lágri-
mas solitárias, houve dor, precisei esperar... Mas, quando
enfim nos unimos, eu e ele já estávamos preparados para
seguirmos em uma viagem sem volta. Uma viagem rumo à
felicidade, que só os puros de coração conseguirão alcan-
çar. E nós dois felizmente conseguimos.
a garota.indd 7a garota.indd 7 09/02/2012 16:01:3809/02/2012 16:01:38
9
ENZO
Eu sempre havia percebido algo especial naquela me-
nina, mas não apenas por ela ser bonita. Contudo, não
nos conhecíamos. Não havia intimidade entre nós dois,
nem sequer cordialidade. Nunca havíamos trocado uma
palavra sequer. Mas eu a observava frequentemente sair e
entrar em casa com a mãe — morava só com ela, o que vim
a descobrir mais a frente. Entretanto, nunca nos cumpri-
mentamos. Às vezes, eu ficava durante horas sentado na
calçada com a minha caixa da coleção de insetos colocada
entre os joelhos, pensando em chamá -la para brincar, mas
nunca tive coragem. Talvez porque, assim como meu pai,
nunca fui muito dado a interagir com os vizinhos. Ao con-
trário, meu pai estava sempre resmungando sobre os maus
hábitos alheios: seus cachorros latiam alto demais, suas
a garota.indd 9a garota.indd 9 09/02/2012 16:01:3809/02/2012 16:01:38
10
festas eram muito barulhentas, todos estavam sempre es-
tacionando na calçada errada... Todavia, tenho dúvidas se
ele teve culpa de ficar assim. Desde que minha mãe se foi,
há quatro anos, meu pai se despediu de qualquer alegria
na vida. A única coisa que lhe restou foi o prazer de pescar.
Houve ocasiões em que pensei que ele a esqueceria, mas
percebi que isso não era algo que ele quisesse fazer; muito
menos que simplesmente lhe acontecesse. E, de fato, não
lhe ocorreu. Ainda assim, ele sempre foi um bom pai para
mim. Preocupava -se demais, confesso, e com muita fre-
quência, com praticamente tudo. Mas sei que só tentava
cumprir bem o seu papel.
Começamos a estudar juntos no quinto ano — eu e Rafaela.
Talvez tenha sido esse o ano em que tudo começou. Nessa
época, eu sentava atrás dela na classe. Ficava olhando para
sua cabeça por trás e admirando seus cabelos, compridos,
dourados e perfumados. Parecia uma sereia. Mas éramos
incomunicáveis, como se vivêssemos em dois polos distan-
tes. Ela era linda, desejada e popular, e eu era o quatro -olhos
CDF da nossa turma. Na única vez em que se virou para trás
para me passar uma prova, senti minha cara ficar vermelha
e meus óculos escorregarem pelo nariz. Sua mão ficou ali,
estendida, e Rafaela a me encarar. Acabou em cinco segun-
dos. Quando olhei para a prova e a peguei, fitei as palavras,
mas nada assimilei devido ao meu encantamento. Era como
se aquela simples troca de olhares tivesse repentinamen-
te nos tornado mais íntimos. Infelizmente, quando voltei a
mim, dei -me conta do papel à minha frente. É impressionan-
a garota.indd 10a garota.indd 10 09/02/2012 16:01:3909/02/2012 16:01:39
11
te como uma prova de matemática pode sugar até a última
gota de felicidade da sua alma!
Nesse tempo, comecei a sonhar acordado com Rafaela.
Costumava imaginar -nos juntos e sentados em seu jardim,
conversando sobre a natureza, e ela admirada com todo o
meu conhecimento. Sempre tive certeza de que, se ela me
conhecesse melhor, se compreendesse as minhas qualida-
des, certamente gostaria de mim, mas nunca imaginei o
que nos sucederia mais tarde. No pôr do sol finalmente nos
beijaríamos, mas nunca imaginava nada indecente com ela.
Pelo menos, não naquela época.
Quando estávamos de férias, não costumávamos nos ver
muito, ou melhor, ela não me via, mesmo a minha casa sendo
bem em frente à dela. Rafaela só saía e entrava, rapidamen-
te, geralmente acompanhada de suas espevitadas amigas,
dando gargalhadinhas, ou então com algum playboyzinho
barulhento e espalhafatoso. O que, evidentemente, acabava
me deixando verde de inveja e emburrado pelo resto do dia.
Somente uma vez nas últimas férias, pela janela do meu
quarto no segundo andar, tive o privilégio de observá -la sen-
tada no jardim e jogando um disco de frisbee1 para o seu
yorkshire pegar. Foi uma das raras vezes em que não a vi
maquiada. Ficou ali por cerca de meia hora. Provavelmente,
ela havia acabado de sair da piscina, pois estava de biquíni
e com uma canga enrolada no quadril. O sol de fim de tarde
reluzia em seus cabelos e sua pele era tão dourada quanto o
1 Frisbee®: disco plástico usado para recreação (N. E.).
a garota.indd 11a garota.indd 11 09/02/2012 16:01:3909/02/2012 16:01:39
12
sol. Em certo momento, Rafaela deitou -se na grama e fechou
os olhos para descansar. E ficou tão linda que extraiu -me a
respiração. Eu sabia que minha câmera estava ali na escriva-
ninha, bem perto da minha mão, mas não me atrevi a usá -la
para bater uma foto. Sabia que não conseguiria capturar a
beleza daquele momento, por isso preferi memorizá -lo.
No oitavo ano, comecei a reparar que ela não parava de
conversar com um garoto encorpado e com o cabelo espe-
tado com gel: Mateus. Um dos meninos mais esnobes da
nossa classe. Apesar de andarem sempre cercados de estu-
dantes, eles frequentemente davam um jeito de conversar
mais afastados dos outros alunos. Eu sempre ficava de lon-
ge, observando -os, mas não me atrevia a examiná -los muitas
vezes, pois tinha medo que Rafaela reparasse.
Mateus sempre foi o tipo de cara grosseiro e vulgar, e
o linguajar que circulava entre seus amigos faria qualquer
detento de Bangu I sentir -se ultrajado. Apesar de não nos
falarmos, vira e mexe ele entrava na sala e me dava uma co-
ronhada na nuca, no estilo “e aí, meu amigo?”, mas eu sabia
que era só para me humilhar. Porém, eu nunca fui esse tipo
de idiota -agressivo que fazia de tudo para aparecer. Na ver-
dade, sempre tive aspirações mais elevadas. Talvez por isso
não conseguisse me enturmar com facilidade. Mas Mateus
sempre “se achava” na frente dos outros alunos: era o mais
forte, o mais esportista, o com a melhor aparência... Sempre
achei que todos aqueles músculos lhe davam um ar imbecil.
Estava na cara que ele andava tomando bomba. O tipo de
sujeito que só posta fotos sem camisa no Facebook, pois é
o atributo que lhe resta. O problema era que, além disso, ele
a garota.indd 12a garota.indd 12 09/02/2012 16:01:3909/02/2012 16:01:39
13
possuía todos os bens duráveis conhecido pelo homem, an-
tes mesmo que chegassem ao Brasil. Por isso, vivia cercado
de almofadinhas bajuladores.
Quando pela primeira vez vi os dois se beijarem, me senti
agoniado. Esmaguei meu celular com tanta força que por
pouco o coitado não tocou de desespero. Achei Mateus mui-
to afobado. Se ele sentisse uma fração mínima do que eu
sentia por Rafaela, jamais se atreveria a tocá -la daquela ma-
neira. Eu juro que tentei esquecê -la, desarquivá -la da memó-
ria, mas simplesmente não consegui. Comecei a acreditar
que, assim como meu pai, eu não seria um homem de pular
de galho em galho. Amaria minha escolhida para sempre.
Que furada...
É claro que, com dezesseis anos, eu já havia beijado ou-
tras garotas na vida. Na verdade, duas. Uma era minha prima
Patrícia. Bem, ela não era minha prima de sangue, pois era
adotada. Nosso beijo, entretanto, foi mais uma espécie de
caridade que fiz quando ela confessou que era apaixonada
por mim. Achei que como éramos parecidos, como tínhamos
os mesmos interesses e éramos ambos negligenciados pela
sociedade, aquilo poderia dar certo. Mas não consegui cor-
responder aos seus sentimentos e acabei por perder a sua
amizade. E ela ainda espalhou boatos maldosos na minha
família — e que fique bem claro, não verdadeiros — sobre o
meu hálito. Por isso meus primos me batizaram de “boca de
esgoto”. A outra que beijei foi a irmã mais velha do meu
melhor amigo Leandro. Nesse caso, a caridade foi invertida.
Mas acho que brincar de salada mista não conta muito.
a garota.indd 13a garota.indd 13 09/02/2012 16:01:3909/02/2012 16:01:39
14
Sucedeu então que teríamos uma excursão ecológica no
colégio. Acordei angustiado naquela manhã. Em qualquer ou-
tra ocasião, eu amaria aquele passeio. Já era um assíduo pra-
ticante de trekking,2 pois, assim como minha mãe, eu adorava
a natureza, e já havia feito trilha centenas de vezes, apesar
de nenhuma delas ser na Floresta da Tijuca. Contudo, passar
um dia completo vendo aqueles dois se agarrando seria de-
mais para mim. Pensei em não ir, mas sabia que a visita valia
cinquenta por cento da avaliação de ciências e, para o meu
embaraço, e deleite do resto da classe, eu era o queridinho da
professora — que não era burra, e percebia o meu interesse
pela matéria. Por isso, a título de punição, eu era oficialmente
a única pessoa a quem Eva se dirigia na classe.
Desci a escada com a mochila preparada nas costas e não
avistei meu pai por ali. Lembrei -me que era sábado, dia em que
ele religiosamente pescava com seu irmão. Certamente, Mau-
ro já passara para pegá -lo e miraculosamente não acordei
com o barulho do bugre. Minha avó, como boa madrugadora
que era, já estava sentada na sala, olhando para a televisão
desligada. Fazia isso muitas vezes. Com o passar do tempo,
deixei de me perguntar o porquê. Sua acompanhante, Dorali-
ce, estava passando um café na cozinha e cantarolando uma
espécie de hino de igreja. Por causa da idade, minha avó an-
dava muito esquecida — para não dizer esclerosada — e con-
tava as mesmas histórias dezenas de vezes. Narrava os mes-
mos detalhes e se emocionava nas mesmas pausas quando
2Trekking: esporte constituído de provas onde se deve percorrer trilhas pré-estabelecidas em planilhas (N.E.).
a garota.indd 14a garota.indd 14 09/02/2012 16:01:3909/02/2012 16:01:39
15
me contava sobre sua imigração para o Brasil. Jurava que era
estrangeira e sobrevivente do Titanic, e não uma paraibana
arretada. Certas vezes, ela parava no meio da história e entra-
va numa espécie de transe esquisito, e eu ficava ali, parado,
imaginando se ainda havia alguma coisa por vir. Confesso
que por puro constrangimento às vezes eu a evitava por causa
disso. Mas isso foi antes de tudo aquilo acontecer, ao que vou
lhe narrar mais à frente. Talvez, pensava eu, se ela visse a te-
levisão quando estivesse ligada, tivesse novas histórias para
contar. Poderia ser a rainha Elizabeth ou alguma personagem
anciã da novela das oito. Tinha ocasiões em que se lembrava
de mim, mas percebi que aquele não seria um daqueles dias.
— Quem é você e como entrou na minha casa? — assustou-
-se a velha Rose, assim que me viu, apontando -me o controle
da tevê como se fosse uma faca.
Aproximei -me cautelosamente e sentei no braço do sofá.
Ela ainda me apontava o objeto.
— Sou eu vovó, Enzo, seu neto. O papai já saiu?
— Ainda não vi meu pai hoje — disparou ela, parecendo
dar -se conta disso naquele momento.
Eu ri e passei o braço nos ombros dela.
— Não o seu pai, vovó, mas o meu pai, seu filho, Gustavo.
Ele já saiu?
— Não conheço seu filho — disse -me ela, em tom de des-
culpas.
Eu suspirei, desejando que ela pudesse mesmo me trocar
de canal.
— Doralice! — berrei eu, já me levantando. — Já estou indo.
Diga para o meu pai que volto antes do almoço.
a garota.indd 15a garota.indd 15 09/02/2012 16:01:3909/02/2012 16:01:39
16
Interrompendo a cantoria, a acompanhante apareceu na
porta da cozinha.
— Enzo, querido, não vai tomar seu café?
— Como algo pelo caminho.
— Nada disso — ralhou ela —, seu pai mandou que eu pre-
parasse um lanchinho reforçado pra você. Disse que faria
uma caminhada. Só um minuto.
Ao que parecia, a definição de lanchinho de Doralice
acabaria com os problemas de fome na Somália. Ela havia
separado dois sanduíches gigantes, uma barra de cereal,
uma maçã, duas bananas e uma garrafa de isotônico de uva.
Como se não bastasse, jogou um pacote de biscoitos rechea-
dos dentro do saco. Fiquei olhando para ela, me sentindo
desnutrido. Devido ao estirão da adolescência, eu sabia que
ficara magro, mas aquilo era ligeiramente ofensivo. Porém,
antes que eu dissesse alguma coisa, ela virou -me brusca-
mente de costas e enfiou todo o lanche na minha mochila.
Fiquei me perguntando se não tombaria para trás ou arru-
maria uma lordose por causa do peso. Vovó ainda me apon-
tava o controle remoto, de modo que resolvi não contestar
nada. Só queria dar o fora dali antes que ela começasse com
a história do cruzeiro.
o
Quando cheguei ao colégio, Rafaela já estava lá, linda de
morrer, junto com a galera e esperando pelo ônibus. Ves-
tia uma legging preta, uma regata roxa e usava um rabo
de cavalo no alto da cabeça. Tinha um casaco amarrado na
a garota.indd 16a garota.indd 16 09/02/2012 16:01:3909/02/2012 16:01:39
17
cintura. Maquiada como sempre. Fiquei um pouco preocu-
pado quando olhei para os seus pés: All Star não era bem a
melhor escolha para se fazer uma trilha. Mas eu a entendi,
pois a cor roxa do tênis combinava com sua blusa. Rafaela
era muito ligada em moda.
O dia estava perfeito. O céu de um azul firme e intenso.
Mas, apesar do dia ensolarado, o ar estava um pouco frio
naquelas últimas semanas. Era abril, e a maioria dos alu-
nos, assim como eu, havia trazido um casaco. Os alunos que
vinham chegando se embolavam numa confusa troca de
abraços, socos no peito e tapas nas costas. Eu ainda estava
olhando Rafaela quando Mateus apareceu, agarrou -a pela
cintura e plantou -lhe um beijo na boca. Um ressentimento
agudo quase me sufocou. Fumegando de raiva, olhei para o
relógio. Eram sete e quinze e o ônibus já estava atrasado.
Naquele momento, eu não conseguia pensar em nada me-
lhor para mim além de tentar ignorar aqueles dois. Ignorar
Rafaela! — pensei desanimado. Como eu gostaria de obter
êxito! Se pudesse fazer um único pedido naquele momento,
seria uma lavagem cerebral, para poder esquecê -la. Perden-
do as forças, voltei a olhar para os dois. À nossa volta, alguns
pais espiavam os filhos mais afastados e o ônibus já estava
estacionando. Suspirei.
— Não sabia que você também vinha... — Uma voz anima-
da me assustou.
Olhei para o lado e avistei Alana. Ela era da minha classe,
aliás, a única garota da turma que falava comigo. Ou, pelo
menos, a única que era educada. Falava, não. Tagarelava sem
parar. Como sabia que eu era um amante de biologia, ela
a garota.indd 17a garota.indd 17 09/02/2012 16:01:3909/02/2012 16:01:39
18
sempre me procurava para discutir cada novo microorga-
nismo que descobria pela esfera terrestre. Ela sorria alegre-
mente, me olhando com seu rosto cheio de sardas e arrega-
lados olhos azuis. Seu cabelo liso estava eternamente preso
em um rabo de cavalo desarrumado e com alguns fios soltos
caídos por cima dos óculos de hastes vermelhas. Como sem-
pre, parecendo não fazer absolutamente questão de se des-
tacar das outras meninas, vestia uma blusa bege sem graça
e uma bermuda de mesmo tom, que descia até os joelhos.
Agarrava o livro de biologia como se fosse uma bíblia e me
olhava como se fosse anunciar a salvação. Por que será que
eu atraio esse tipo de gente?
— Resolvi vir de última hora — eu disse —, mas pelo visto
já me arrependi. — Olhei para a bagunça dos alunos perto do
ônibus.
O sorriso de Alana abriu -se ainda mais quando olhou para
os alunos, inexplicavelmente feliz.
— É sempre assim, a espécie humana fica muito animada
quando tem novidades. Logo, logo eles vão se acalmar. — Ela
virou -se novamente para mim. — Escuta, Enzo, estou com um
trabalho sobre genética pra fazer e vi na aula que você sabia
tudo sobre esse negócio de “azinho” e “azão”. Será que po-
dia me dar uma ajuda?
— Claro — falei, forçando o sorriso. — É só a gente combi-
nar de estudar.
— Maravilha! — Era fácil ver o cérebro de Alana se ani-
mar ao ouvir a palavra “estudo”. — Também podemos nos
sentar juntos no ônibus hoje, o que acha? Assim, na volta,
a garota.indd 18a garota.indd 18 09/02/2012 16:01:3909/02/2012 16:01:39
19
poderemos ficar comentando sobre a flora que vislumbra-
remos por lá.
Claro, pensei, já com pena dos meus ouvidos, não há
nada que eu deseje mais neste mundo!
Sem saber como recusar, olhei para a galera e, pela ca-
beça vermelha, vi que Leandro também já estava por ali, ao
lado da mãe e jogando M&M´s para dentro da boca. Senti-
-me aliviado. Ele acenou para mim vigorosamente e sorriu,
sobressaltando suas bochechas permanentemente verme-
lhas. Era o único aluno cuja mãe estava perto e limpando a
sua blusa. Um perfeito suicídio social.
— Sinto muito, Alana, mas eu e Leandro já combinamos
de sentarmos juntos. Nos vemos quando chegarmos lá na
trilha, ok? — Despedi -me dela e fui caminhando em direção
aos estudantes.
A porta do ônibus abriu e todos começaram a entrar. Ain-
da agonizando por causa da minha musa, aproximei -me do
grupo. Estou agindo como um idiota, eu dizia a mim mesmo
ao caminhar para o ônibus. Afinal, eu não tenho nada com
ela. Basta ignorá -los, resmunguei ao chegar perto da porta.
Não será tão difícil, acrescentei para mim mesmo ao subir
as escadas. Será simplesmente impossível! concluí, vendo
os dois se agarrando num banco no fundo.
Rangendo os dentes, procurei uma cadeira vazia no meio
do ônibus. Leandro se sentou ao meu lado.
— Dia ruim? — foi o que perguntou.
Meti a mão no saco de M&M´s, sem ser convidado.
a garota.indd 19a garota.indd 19 09/02/2012 16:01:3909/02/2012 16:01:39
20
— Mais ou menos — respondi. — A meu ver, sábados deve-
riam ser vinte e quatro horas mágicas sem nenhuma preo-
cupação com o colégio.
Erguendo uma sobrancelha, Leandro girou o corpo para
mim.
— Não estou te reconhecendo. Desde quando você não
gosta de fazer trilha?
— Desde que estou sendo torturado. — Olhei para trás,
Leandro me acompanhou.
— Cara, você é doente... — ele resmungou e sacudiu a cabe-
ça. — Sabe quando terá uma chance com a Rafaela? Nunca!
Você não é o tipo de cara com quem ela sai.
— Não entendi — retruquei. — O objetivo foi me elogiar ou
me insultar?
— Nenhum dos dois. — Ele riu. — Olha — Leandro respirou
fundo, parecendo evitar falar de supetão algo que julgava
melhor ser abordado com delicadeza —, a Rafaela nem ao
menos te cumprimenta. E olha que vocês são vizinhos há
anos! Se você tivesse aproveitado enquanto eram peque-
nos... As meninas são mais vulneráveis quando são crianças.
Mas agora suas chances de ela notar sua existência são de
uma em um milhão. Ainda que você se torne um cientista
famoso, ela nunca vai saber, pois não deve ler esse tipo de
revista. Já o jornal de esportes... — Ele olhou para trás, em
um tom sugestivo.
Lancei -lhe um olhar gelado. Graças a Deus, meu mau
humor raramente transbordava. Para suavizar a bofetada,
Leandro me ofereceu o M&M’s novamente. Deixei escapar um
suspiro desconsolado e enfiei a mão no saco. Em seguida,
a garota.indd 20a garota.indd 20 09/02/2012 16:01:3909/02/2012 16:01:39
21
foquei os olhos na visão através da janela. Partimos, buzi-
nando, em meio a uma grande quantidade de pais e um ca-
chorro que nos seguiu por cerca de dois quilômetros. Um
pandemônio absoluto se instaurou. Como era de se prever, o
trajeto até o nosso destino foi uma aporrinhação. Barulhen-
to, caótico e torturante. Um dos meninos botou funk alto no
celular e tive vontade de me atirar pela janela. Ou melhor, de
atirá -lo pela janela. O motorista não tirava os olhos da rua,
as mãos apertadas no volante. Parecia tão irritado quanto
eu, que saquei meu mangá do Naruto para ler no mesmo ins-
tante em que uma cabeça apareceu por cima da cadeira da
frente. Era Alana. Fechei a revista.
— Você sabia que milhões de árvores no mundo são plan-
tadas acidentalmente por esquilos que enterram nozes e
não lembram onde as esconderam? — ela perguntou.
E lá vamos nós de novo, pensei comigo mesmo.
o
Depois de quarenta minutos de puro suplício, finalmente
chegamos. Como masoquistas adoradores de filas que so-
mos, levantamos todos ao mesmo tempo para sair do ôni-
bus juntos. Pablo, um aluno sentado mais à frente, que era
amigo de Mateus, tentou fazer Leandro tropeçar na minha
frente enquanto passava. Mas antevi o que ele ia fazer e
acabei empurrando Leandro e atropelando o pé do garoto,
esmagando seu calcanhar. O infeliz uivou alto. Olhei para
ele e pedi desculpas, com uma mistura de raiva e vontade
de rir. Ele disse que iria trocar uma palavrinha comigo de-
a garota.indd 21a garota.indd 21 09/02/2012 16:01:3909/02/2012 16:01:39