a gira da rainha -...
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Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes
Apresenta:
A GIRA DA RAINHA
De Luiz Oliveira Santos Colaboração de Alex Moletta
Direção: Ednaldo Freire
PRÓLOGO
AINDA NA PLATEIA ATORES TOCAM E CANTAM, RECEBENDO OS
ESPECTADORES QUE SE APROXIMAM. EM DETERMINADO MOMENTO, A
UM TOQUE, INICIA-SE A FUNÇÃO.
FÁBIO- Boa tarde, muito boa tarde a vocês que aqui vieram!
Bem-vindos aos senhores e senhoras, rapazes,
moças e crianças!
ROBERTO- Nossas boas vindas aos distintos moradores dessa
cidade e também a todos os seus visitantes!
NOVO APITO E OS ATORES SOBEM AO CAMINHÃO, TOCANDO E
CANTANDO A CHEGANÇA.
CARLOS- (JÁ NO PALCO) É com orgulho e satisfação que a
Fraternal Companhia de Arte e Malas Artes sobe mais
uma vez neste palco itinerante para vosso
entretenimento e reflexão!
AIMAN- Primeiro pedimos vossa atenção para os arranjos que
decoram o ambiente. Este pequeno espaço que
dividimos com vocês doravante representará uma
dimensão muito mais abrangente: Este imenso
terreiro chamado Brasil!
DANIELA - Terreiro encantado que é o resultado da encruzilhada
de várias nações e culturas, palco de transformações
mágicas e poéticas, onde se misturam santos
católicos, entidades indígenas e Orixás vindo da
África!
ATOR - Na encruzilhada deste terreiro de transformações era
de se esperar que a mistura de tantas culturas
acabasse gerando alguns desvios. Vamos dizer assim:
a cópia ficou um pouquinho diferente do original.
ATOR - Quando aquelas Grandes Mães Orixás vindas da África
atravessaram esta encruzilhada, acabaram sendo
vestidas como santas e assim perderam a sua principal
característica, a sensualidade. O prazer sagrado que
existe no ato de conceber uma vida lhes foi negado.
Coisa impensável lá na África.
MARIANA- Neste ato, pedimos licença a todos esses Orixás
femininos para revelar com engenho e arte a
trajetória de uma mulher que veio das brumas do
passado, atravessou a encruzilhada e, aqui no Brasil,
acabou se tornando um símbolo do resgate dessas
Grandes Mães africanas. Uma mulher plena de
sensualidade e que assumiu o prazer como um direito
seu e, por extensão, o direito de todas as mulheres
do mundo. Com Vocês:
TODOS: Maria Padilha !!!
NO PALCO, UM TECIDO COLORIDO ESTÁ ESTENDIDO. MARIA PADILHA -
NUMA LONGA CAPA DEBRUADA COM ARMINHO, SEGURA UM CETRO
COM UMA CAVEIRA NA PONTA -, ENTRA NUM CARRO ALEGÓRICO E
DESFILA PELA PLATÉIA. OS ATORES A ACOMPANHAM E CANTAM
Ela vem na calunga
Ela vem na ciranda
Ela tem armadilha
Ela é de Sevilha
Ela é quem comanda
Ela é moça bonita
Ei, cuidado, seu moço
Nunca brinca em serviço
e despacha feitiço
É angu-de-caroço.
É rainha da noite
É mulher que encruzilha
É preciso ter fé.
Ela entra na gira
É Maria Padilha
Ela tem cabaré.
TERMINADA A MÚSICA, OS CANTORES SE DIRIGEM A MARIA PADILHA E
A SAÚDAM. ELA FUMA UMA CIGARRILHA E SE DIRIGE AO PALCO.
ATORES CONTINUAM NA PLATÉIA.
ATORES - Salve, Maria Padilha dos Sete Cabarés!
Salve, Maria Padilha, rainha da Lira
Salve, Maria Padilha da Calunga
Salve, Maria Padilha das Almas.
MARIA PADILHA Boa tarde, querido e distinto público. Bem-vindos, os
estrangeiros de todas as raças e credos que vieram dar
sua contribuição a este país. Bem-vindos, todos os
deuses e entidades de todas as civilizações que já
passaram por esta terra para ajudar os homens. Bem-
vindos, todos os andarilhos do além, aqueles que já se
foram e ainda caminham entre nós.
NO TECIDO ESTENDIDO NO PALCO, APARECEM DOIS BONECOS, ZEFINO E
LANDINHA. ELE É MAGRELO E COMPRIDO. ELA USA ÓCULOS GATINHO,
TEM SEIOS ENORMES E UM PENTEADO ALTO E COMPLICADO.
ZEFINO - Não, não acredito no que eu tô vendo. Cê tá vendo a
mesma coisa que eu, Landinha?
LANDINHA - (OBSERVANDO BEM E RESMUNGANDO) Hum, hum!
Num pode ser. Vim toda bonita porque achei que cê ia
me levar pro Municipal pra ver a dança do cisne e me
traz aqui neste...neste terreiro pra ver a dança da
pomba? Tá tentando me descaminhar, seu trôço?
(DÁ-LHE UM SAFANÃO)
ZEFINO - Ai, minha flor, eu queria te fazer uma surpresa. É que
me falaram que ia ser história de rainha, mas parece
que...
LANDINHA - Então vamo embora já. Isto aqui é propaganda
enganosa, o que eu tô vendo ali é uma...uma...
MARIA PADILHA - Uma o quê, dona Landinha?
LANDINHA - Zefino, diga pra essazinha aí que não me venha com
intimidades. Meu nome é Y-o-lan-da. Diga também
que eu não converso com gente desqualificada. Não
vim aqui pra isso. Vou processar essa companhia.
(PARA O PÚBLICO) Gente, quem aqui quer ir lá
comigo fazer um abaixo assinado?
ZEFINO - Dona...dona...é...o caso é que viemo aqui pra ver um
espetáculo da Fraternal Cia e disseram pra gente que
ia ser história bonita de rainha.
ATOR 1 - Dona Yolanda, a gente vai cumprir o que prometeu.
Pode ficar sossegada.
LANDINHA - Ah, só se forem contar história de rainha de terreiro.
ZEFINO - É, coisa de despacho, velas pretas, galinhas sangrando,
farofa de dendê e muita bebida.
ATOR 1 - Olha o preconceito, vocês é que podem ser
processados.
LANDINHA E ZEFINO BATEM COM OS OMBROS ALTERNADAMENTE.
OS DOIS - Eparrei! Saravá! Laroyê! Saluba!
MARIA PADILHA SOLTA UMA BAFORADA SOBRE LANDINHA E
GARGALHA.
LANDINHA - (TOSSINDO) Me acuda, Zefino, me acuda que tô
morrendo.
ZEFINO SUSTÉM LANDINHA E ABANA SEU ROSTO. MARIA PADILHA
APROXIMA-SE E ESTENDE A MÃO PARA ELA.
MARIA PADILHA - Põe pra fora esses melão sufocado, deixa essas tetas
respirar.
ZEFINO - Sai pra lá, encosto!
MARIA PADILHA- Ô seu Armando, cadê a minha birita?
S. ARMANDO - (FORA DE CENA) Já vai, menina.
ATOR 1 - Deixa eu fazer uma respiração boca a boca.
ZEFINO - Nem vem, na minha muié não.
ATOR 1 - Então vamos chamar alguém dá plateia. Ei você aí, cê
sabe fazer isto? (AGUARDA)
ZEFINO - (PEGANDO UM PORRETE) Vem, vem, quero ver cê
chegar aqui perto... Vem!
ENTRA S. ARMANDO (BONECO) TRAZENDO EM UMA DAS MÃOS UMA
TAÇA COM BEBIDA; NA OUTRA, UMA GARRAFA. É UM NEGRO E ESTÁ
BASTANTE GROGUE.
S. ARMANDO - Aqui, menina. (DÁ A TAÇA A MARIA DE PADILHA E
OLHA PARA LANDINHA) Tá caída por causa de
cachaça?
ZEFINO - Não, é fumante passiva por causa dessa aí.
S. ARMANDO - Então dá cachaça que ela arriba.
S. ARMANDO DESPEJA O CONTEÚDO DA GARRAFA NA BOCA DE
LANDINHA. ELA SE LEVANTA, REFEITA.
LANDINHA - Ui, ai...
ZEFINO - Vamo embora daqui, muié. Isto não é lugar pra gente
decente.
LANDINHA - Ah, não.(MEIO GROGUE, DÁ UM SINAL AO ATOR)
Vem cá, rapaz. Cês vão ter mesmo peito de contar
uma história sobre essa rainha de terreiro? Dessa...
MARIA PADILHA - Tanto peito quanto a senhora...
LANDINHA - (OLHANDO PARA OS LADOS) Parece que ando
ouvindo voz de gentalha...(PARA ATOR) Mas que ideia
de jerico!
MARIA PADILHA - Tô me segurando, tô me segurando...
ZEFINO - (AMEAÇANDO-A COM O PORRETE) Vem, vem!
MARIA PADILHA TIRA O PORRETE DE SUA MÃO, JOGA-O AO FUNDO E
GARGALHA.
ZEFINO - Ah, muié dos diabos.
ATOR 1 - D. Landinha, esta rainha de terreiro já foi rainha de
fato lá na Espanha, há muito tempo atrás.
LANDINHA - Não acredito! Essa é boa. Quero ver isso. Venha aqui,
menina. (ANALISA-A) Ei, me dá mais um gole disso.
MARIA PADILHA DÁ-LHE UM POUCO DA BEBIDA.
ZEFINO - Que que é isso, Landinha? Não se meta com essa...
MARIA PADILHA- O que foi, magrelo bicudo? Vem não, num tô aqui pra
ser xingada.
ZEFINO - Vamo embora, muié. Cê não tá bem.
LANDINHA - Quieto, marido, deixa eu ver (OBSERVA M. PADILHA
POR TODOS OS CANTOS) Vira um pouquinho, moça.
S. ARMANDO - Um pitéu, ela pode ser rainha da Espanha, de terreiro,
sei lá, mas eu queria memo é que fosse rainha lá em
casa.
LANDINHA - É, tenho que admitir que o material é dos bons e...
ZEFINO ESTÁ FASCINADO E NÃO DESGRUDA O OLHO. LANDINHA DÁ-LHE
UM BOFETÃO.
LANDINHA - Aqui quem olha sou eu, safado.
ZEFINO - Ai, minha frô!
LANDINHA - (OLHANDO MELHOR) É...nós mulheres nos
reconhecemos. Sabe, menina? Parece que eu tô vendo
lá no fundo, mas bem longe mesmo alguma coisinha aí
de nobreza, mas posso tá enganada.
ATOR 1 - Acredite, dona Yolanda, Maria Padilha já foi mesmo
rainha da Espanha.
ZEFINO - Mas cumé que pode ser, homem?
ATOR 1 - Ela foi amante de Pedro, O Cruel, e era...
MARIA PADILHA – (APARTANDO) Deixa que eu explico. Olha, esta
companhia e todo o seu pessoal deviam de tá meio
sem assunto pra algum espetáculo e resolveram ir lá
no terreiro me conhecer.
S. ARMANDO - Devia de ter perguntado pra mim, ara. Minha vida dá
um livro. Ou pr’aquela moça ali que tá com a cara
amarrada. Vai ver que a vida dela é uma desgracera
só./ Ou pr’aquele rapaz ali, aquele com cara de
safado. Ele deve de ter muita coisa indecente pra
contá...
ATOR 1 - Fica quieto, homem. Não é da tua vida que tamos
falando.
MARIA PADILHA - Me fizeram tanta pergunta e queriam saber tanta
coisa que eu falei pra eles: Olha, por que que cês não
conta a minha história no seu espetáculo? Eu posso
dar uma mão.
LANDINHA - (MAIS INTERESSADA) E esses doido toparam?
MARIA PADILHA - Conversa vai, conversa vem... (BAIXO, PARA
LANDINHA) Eles gostam muito de jogar conversa fora,
de complicar. Daí eu disse pra eles: Chega de
prosa, quanta enrolação. Olha, não vim sozinha pra
este país, muitos já estavam aqui antes de mim, então
por que cês não conta a minha história cruzando com
as histórias das mulheres que vieram da África?
Podiam juntar aí as aflições de todas as mulheres
do mundo, que sofreram discriminação ou apanharam
dos maridos. E olha que isso tem a ver contigo, dona
Landinha.
LANDINHA - Eu, hein?! Tá me estranhando? Este pamonha aí que
tente levantar um dedo! (BATE EM ZEFINO)
ZEFINO - Ai, meu quindim, que foi que eu fiz?
LANDINHA - É pra não perder a mão. Ei, dá mais um gole aí, seu
Armando. Tô gostando disso...
S. ARMANDO VIRA A GARRAFA EM SUA BOCA.
ZEFINO - Landinha, cê tá loca...
ATOR 1 - Posso continuar, dona Landinha?
LANDINHA - (ESTALANDO A LÍNGUA) Coisa boa! Vai lá, rapaz.
Manda bala!
ATOR 1 - Foi daí que surgiu a ideia de usar tudo isso aqui, o
palco e a plateia, como um terreiro.
MARIA PADILHA - Um terreiro que é o grande terreiro do Brasil. A
encruzilhada.
ATOR 1 - Onde se misturam santos católicos, entidades
indígenas e os Orixás vindos da África.
ZEFINO - (PUXANDO LANDINHA) Vam’bora, muié. Num tô a fim
de ter indigestão com este angu.
LANDINHA - Ah, não, nem vem, agora eu quero ver como é que
essa aí passou de rainha da Espanha pra rainha do
terreiro, rainha do cabaré e da porta do cemitério.
ZEFINO - Muié, ainda vão fazer encruzilhada com coisas da
África e índios. Não vai ser coisa boa.
ATOR 1 - Vai ficar então, dona?
LANDINHA - Vou sim, mas só se for de camarote e poder dar minha
opinião na hora que eu quiser. Tá bom?
ATOR 1 - Tá, tá, dona Landinha. Fique no seu camarote que nós
vamos pra encruzilhada.
S. ARMANDO - Beleza! Vamo lá.
ZEFINO - Ai, ai, que que eu fui fazer? Ainda dá tempo de ir pro
Municipal, minha frô...
LANDINHA - Quem mandou? Agora é que tô animada.
OS BONECOS SAEM. MARIA PADILHA PÕE UM BONÉ DE MARINHEIRO, SE
POSTA ATRÁS DO TECIDO E SEGURA UM TIMÃO. OUTROS ATORES ,
TAMBÉM COM CHAPÉU DE MARINHEIRO, SEGURAM O TECIDO EM “V”,
FORMANDO COM ELA O GRUPO 1 - A TRIPULAÇÃO. OUTRO GRUPO DE
ATORES PERMANECE NAS LATERAIS OU LOGO ATRÁS, FORMANDO O
GRUPO 2 - OS PASSAGEIROS. CANTAM.
GRUPO 2 - Pra onde vamos nesta nau
que já cruza o azul do mar?
fale um pouco desta terra
fale antes de ancorar.
GRUPO 1 - Vou então contar aqui
qual destino vamos ter
Na encantada encruzilhada
é ali se quer saber.
GRUPO 2 - Chamem todos que aqui esperam,
entrem logo, minha gente.
Tudo isto é um terreiro,
desde aqui até na frente
GRUPO 1 - Venham ver coisas da encruza
nos palmares de aflição,
vejam santos bem juntinho
com a negra escravidão.
GRUPO 2 - Como o povo de Tupã
recebeu toda esta tropa,
recontou tempo das trevas,
reinventou bruxas de Europa.
TODOS - Ande, entre aqui, meu povo,
vem trilhar reino andaluz.
Vou parar no mundo novo,
a chamada Santa Cruz.
TODOS SAEM. ATOR 1 E ATRIZ/D. MARIA TRAZEM UM CARRO EM QUE
UM CORPO ESTÁ ENCOBERTO.
ATOR 1 - A história de Maria Padilha começou na Espanha
medieval por volta do ano de 1350. Época difícil pra se
viver e mais difícil ainda para conseguir se manter no
poder. (PARA A ATRIZ). Por favor, D. Maria.
ATRIZ - (VESTINDO-SE) Eu não tive muita sorte na vida, pois
me casei com D. Alfonso, este defunto que aqui está.
Estão vendo? Tive mais azar ainda quando gerei um
único filho para ele, Pedro, um menino tão
desmiolado quanto o pai aqui. O que este pivete
caprichoso não tinha de volume no cérebro, tinha em
fartura na sua bundinha cheia de carnes. Desde bebê
as duas partes traseiras pareciam olhar para o céu,
sempre empinadinhas. Eu também carreguei duas
coisas que apontavam para o céu. (DESCOBRINDO O
TECIDO) Dois chifres que este aqui me colocou. Ah, D.
Alfonso, desgraçado! (PARA O PÚBLICO) Este canalha
aqui tinha uma amante e...
ATOR 1 - Por favor, D. Maria, cada coisa a seu tempo.
(VESTINDO-SE C/ D. ALBUQUERQUE). D. Alfonso
deixou D. Pedro, o Pedrito Rabiola, como seu único
herdeiro... Mas deixou também outras coisas.
ATRIZ - Este ordinário me deixou um enorme abacaxi pra
descascar. O que eu tive de fazer com a ajuda deste
ministro todo poderoso aqui, D. Albuquerque.
(APRESENTA-O)
ATOR 1 - (AFIANDO DUAS FACAS) Já dei jeito em tudo quanto é
problema deste reino e nós haveremos de dar um
jeito de descascar esta fruta, D. Maria. (PARA OS
FUNDOS) Tragam o abacaxi.
RUFAR DE TAMBORES. TROMPAS. ATOR ENTRA COM UM ENORME
ABACAXI NUM CARRINHO E COLOCA-O NO CENTRO.
ATRIZ - Este defunto descarado tinha uma amante chamada
D.Leonor. (TIRA UMA PINTURA DE D. LEONOR SOB O
TECIDO) Esta ratazana vivia como rainha no palácio.
Eu e Pedro fomos mantidos afastados, bem longe do
reino. (C/D. MARIA, ESMURRA O CADÁVER, DEPOIS O
ABACAXI) Ah, miserável, infame, traidor!
ATOR 1 - Vocês acham que ela está assim só por causa da
amante? Que nada, a amante era o de menos. O pior
era o abacaxi que veio com ela e tinha que ser
descascado.
ATRIZ - Ele teve dez filhos, dez filhos bastardos com esta
ratazana branquela. (C/ D. MARIA, TIRA UMA FACA
DO BOLSO E ESFAQUEIA A PINTURA, EM SEGUIDA O
ABACAXI) Ah, maldita D. Leonor, sua ratazana
parideira.
NUM ALÇAPÃO EM FRENTE DO PALCO, APARECEM OITO BONECOS. D.
MARIA/ATRIZ CONTA.
ATRIZ - Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito. Ei, tá
faltando dois.
ATOR 1 - E estes dois filhos de D. Leonor eram os piores. D.
Henrique e D. Fadrique.
APARECEM DOIS BONECOS TREINANDO COM ESPADAS.
D. HENRIQUE - (ESGRIMINDO) Vamos lá, mano Fadrique. Cê precisa
ficar mais em forma pra enfiar tua espada no fiofó do
Pedrito Rabiola.
D. FADRIQUE - (ESGRIMINDO) Que que é isso, mano Henrique? Não
vou sujar minha espada no Zé bundinha.
D. MARIA - Como é que vamos fazer para ajudar Pedro, D.
Albuquerque? Este filho desmiolado vai ter que lutar
contra estes dez bastardos para se manter no trono.
APARECE O BONECO DE PEDRO NO OUTRO ALÇAPÃO.
PEDRO - Oi, mamãe. Oi, D. Albuquerque. Olhem só a minha
nova capa. Hoje eu vou caçar com ela.
D. MARIA - Você devia estar treinando esgrima pra se defender
dos teus irmãos bastardos, isso sim.
D. HENRIQUE - Ei, Fadrique, olha lá o Zé bundinha de capa nova.
D. FADRIQUE - Tô vendo, Henrique. (PARA PEDRO) Vai caçar
tartarugas, ô almofadinha?
D. PEDRO - Vem cá se cês for homem, bastardos!
TODOS OS IRMÃOS BASTARDOS RIEM. D. MARIA E D. ALBUQUERQUE
ESTÃO IRRITADOS.
D. MARIA - Não aguento mais isso.
BASTARDOS - Olha só o Zé bundinha,
vai pro mato co’a capinha
refrescar sua argolinha.
D. PEDRO - Bostardos!
BASTARDOS- Caga-rendas/Papa-hóstias/ Borra-botas.
D. PEDRO - Vou mandar queimar todos vocês, cagões!
NERVOSO, D. ALBUQUERQUE TAMPA O ALÇAPÃO DOS BASTARDOS. D.
PEDRO CONTINUA NO MESMO LUGAR.
D. ALBUQUERQUE- (C/MINISTRO) Quietos, seus bastardos de merda!
(PARA D. MARIA) D. Maria, não dá mais pra aguentar
isso. Temos que casar Pedro e fazer uma aliança com a
França para acabar com as revoltas destes bastardos.
D. MARIA - Ah, e quem é que vai querer se arriscar a casar com
este traste?
D. ALBUQUERQUE -Já pensei nisto. D. Blanca de Bourbon, a sobrinha do
rei de França está disponível.
D. PEDRO - Não gosto destas francesas aguadas!
D. MARIA - Cale a boca, você não tem que querer. ( PARA D.
ALBUQUERQUE ALBUQUERQUE) Ótimo, então mande
embaixadores para mediar o casamento e que D.
Blanca traga muitos dotes. Agora só falta escolher a
amante pra ele também. (D. PEDRO VIBRA).
D. ALBUQUERQUE- Mas, D. Maria, a senhora sabe os estragos que as
amantes podem causar.
ATRIZ - Já que meu filho provavelmente vai seguir os passos
do pai, então precisamos escolher a amante para nos
precaver. Tem que ser bobinha e dócil. (ANDANDO)
Mas quem?
D. PEDRO - Tem a Dorotéia que arruma o meu quarto.
D. MARIA - Esta você já usa, canalha. Pensa que não sei? Ela tem
que ser da nobreza. Vê se fica quieto.
D. ALBUQUERQUE- Já sei. Aquela mocinha que vive em casa sob a minha
proteção.É uma órfã obediente, dócil e muito bonita.
D. MARIA - Maria de Padilla? Sim, D. Albuquerque, o senhor é um
gênio. Ela pertence a uma das famílias mais antigas e
nobres da Espanha.
D. PEDRO - É morena?
D. ALBUQUERQUE- Sim, é morena.
D. PEDRO - Oba!
D. ALBUQUERQUE- D. Maria, agora que a família Padilla ficou pobre por
causa destas guerras, os irmãos desta menina não se
oporão a isto.
D. MARIA - Pelo contrário, eles lucrarão, isto sim. Conheço muito
bem a nobreza. Então vá lá buscar a garota. Ah, tire
ocorpo deste traidor daí e mande enterrar.
D. PEDRO – (MASTURBANDO-SE) Depressa, depressa!
D. ALBUQUERQUE PEGA O CORPO E SAI. ATRIZ, C/D. MARIA, DESCASCA
COM VIOLÊNCIA UMA PARTE DO ABACAXI E GRUNHE COM RAIVA.
ATRIZ - (PARA PEDRO) Pronto, meu filho, esta parte já foi
descascada. agora, Pedro, eu quero descascar essa
outra parte aqui (MOSTRA), quero a morte de D.
Leonor, esta meretriz que pariu estes dez bastardos.
Mande matá-la!
D. PEDRO - É pra já, mamãe. Guardas!
SURGE UM BONECO/GUARDA RAMON AO LADO DE D. PEDRO.
D. PEDRO - Ramon, pegue mais dois homens e vão lá matar
D.Leonor. (O GUARDA FAZ UMA VÊNIA E SAI)
D. PEDRO - (INDICANDO O ALÇAPÃO OPOSTO) Abra, mamãe, que
a senhora poderá assistir à sua vingança.
ATRIZ ABRE O ALÇAPÃO E APARECE O RAMON SEGURANDO D. LEONOR.
D. LEONOR - Oh, oh, oh! Desgraçada! Meus filhos irão me vingar,
sua vaca!
O GUARDA ABAIXA O CORPO DE D. LEONOR E UM GRANDE FACÃO
CORTA SUA CABEÇA. D. MARIA, RINDO, JOGA UM LENÇO NO BURACO.
ATRIZ - Adeusinho! (VIRA-SE) Agora vamos tirar mais uma
casca deste abacaxi (TIRA) Menos uma!(RI)
RAMON - (SURGINDO) Mas D. Maria logo viu que a sua vingança
só prestou pra jogar mais merda no ventilador. O
abacaxi engordou!
OS DEZ BASTARDOS IRROMPEM DESESPERADOS DO ALÇAPÃO E FAZEM
GRANDE ALGAZARRA, ORA DIRIGINDO-SE A D. PEDRO, ORA PARA D.
MARIA.
BASTARDOS - O que vocês fizeram com nossa mamãe, família do
capeta?/ Tadinha, era tão boa/ Aguarde, Pedrito
Rabiola, nós juntaremos forças! Vamos fatiar essa
cadela aí que nem presunto./ Vamos fatiar também
essa bundinha gorda antes de se sentar no trono/ Os
nobres virão em nosso apoio, carniceiros.
D. MARIA - (FECHANDO O ALÇAPÃO C/ VIOLÊNCIA) E não é que
eles conseguiram mesmo o apoio da nobreza? Ai, que
bosta! (ENFIA A FACA NO ABACAXI) Ainda volto pra
completar minha tarefa.(SAI)
MÚSICA DANÇANTE E MELÍFLUA. CUPIDO ENTRA, TEM UMA COROA DE
FLORES NA CABEÇA, SALTITA E ATIRA FLEXINHAS CONTRA O PÚBLICO.
CUPIDO - Corria o mês de maio, em maio, quando faz calor,
quando o trigo amadurece, quando canta o rouxinol...
(PIPILAR DE PÁSSAROS)
D. PEDRO - Que boiolice é essa agora?
ATOR 2 - (CORRIDINHAS) Em maio, quando os enamorados vão
servir ao amor. Foi em maio quando Pedro de Castela
conheceu e caiu definitivamente cativado por D. Maria
de Padilla, uma doce e equilibrada castelhana.
ATOR 2 FAZ EVOLUÇÕES COM O TULE SOBRE O ALÇAPÃO. D. MARIA DE
PADILLA (BONECO) SURGE E ENVOLVE D. PEDRO. BEIJOS. MÚSICA
APAIXONADA. COREOGRAFIA ROMÂNTICA.
ATOR 2 - Enfim, mergulharam para o amor, no doce fosso da
paixão...
O CASAL/BONECOS MERGULHA. ATOR 2 JOGA O TULE NO FOSSO.
ATOR 3 - (TRAZENDO A MESA EM QUE ESTIVERA O CADÁVER)
A rainha-mãe e o ministro pensavam ser muito
espertos ao arrumar aquela amante tão dócil, aquela
órfã tão pequetita que lhes devia favores. Só que... só
que...
TAMBORES E PRATOS. NARRADOR 3 ABRE O ABACAXI E DE DENTRO SAI
D. MARIA DE PADILLA COROADA COM UM GRANDE ABACAXI. MÚSICA
FESTIVA.
NARRADOR 3 - Arrumaram outro abacaxi!
NARRADOR 2 - E este se revelaria bem mais difícil de descascar.
D. MARIA DE PADILLA APRESENTA UM SHOW DE REVISTA. OUTROS
ATORES ENTRAM VESTIDOS COM PAETÊ E COLARES DE FLORES.
Quando o rei Alfonso foi para o além,
os seus filhinhos fincaram pé ali
pois queriam no trono sentar também,
O que foi um tremendo abacaxi. (SURGE UM
ABACAXI)
A mãe e o ministro buscaram na França
a bela Blanca que morava em Paris,
colocando nela toda esperança,
mas ganharam é mais dois abacaxis. (OUTRO)
Foram em Sevilha buscar a amante,
pois Pedro, tristinho, nem falava xis
Até ver Dona Padilha provocante
e ganharam é mais três abacaxis. (MAIS UM)
Um, dois, três
Não saia já daí
olha que lá vem
mais outro abacaxi. (MAIS UM)
O rei, caído pela bela potranca,
ficou no bem bom com sua rainha,
nem foi se encontrar com a virgem Blanca,
mamãe Maria confortou a francesinha.
Quatro, cinco, seis (VÁRIOS ABACAXIS)
Segura o rojão,
olha que lá vem
mais merda no vagão.
EM FILA, JOGAM A BUNDA PARA OS LADOS E REPETEM OS TRÊS
ÚLTIMOS VERSOS POR VÁRIAS VEZES. FINDA A APRESENTAÇÃO, OS
ATORES LEVAM O ABACAXI. FICAM NO PALCO MARIA PADILHA, DUAS
ATRIZES E D. PEDRO.
D. MARIA ACARICIA BLANCA, QUE CHORA CONSTANTEMENTE.
MARIA PADILHA - Oh, foram muitas noites de amor. Foi o primeiro e
último homem que conheci. Sinto até um frenesi pelo
corpo quando penso nisto. (ESTREMECE)
D. MARIA - Hija de mil potras, se aquele desgraçado de mi hijo era
tão bueno garanhon, porque não deixou um poquito
pra essa niña que só llora?
MARIA PADILHA - (FALANDO AO PEDRO/BONECO) Pedro, se você quer
salvar o nosso amor, deve se casar com D. Blanca de
Bourbon ou toda a nobreza vai cair em cima de ti.
D. MARIA - (PARA BLANCA) Mas no llores más, chica. Vou lá pegar
este hijo desgraçado. (SAI)
MARIA PADILHA - (PARA PEDRO/BONECO) Você precisa fazer uma
aliança com os franceses, pois estes teus irmãos
bastardos estão pondo o reino de ponta cabeça.
D. PEDRO - Não tô a fim de ver aquela branquela. Gosto das
morenas como você. Vem cá, me dá um besito.
QUANDO MARIA PADILHA APROXIMA-SE, ELE SOME REPENTINAMENTE.
D. MARIA ARRASTA D. PEDRO/ATOR PELO COLARINHO E COLOCA-O NA
FRENTE DE BLANCA. ELA ARMA UM BERREIRO.
D. MARIA - Santa mierda, Pedro, estoy a ficar sorda con esta
lamentación. Você precisa casarse com esta niña.
Temos un acuerdo a cumprir com os franceses.
D. PEDRO DÁ VOLTAS EM TORNO DE BLANCA E CORRE PARA M.
PADILHA. AJOELHA-SE A SEUS PÉS E BEIJA SUAS MÃOS. D. MARIA TORNA
A PEGÁ-LO E A LEVÁ-LO PARA JUNTO DE BLANCA
D. MARIA - Por el cullo de Satanás, mi hijo, o que tiene esta
mujer, una cachufleta de oro?
D. PEDRO OLHA RAPIDAMENTE PARA BLANCA E CORRE PARA MARIA
PADILHA. MÚSICA FRENÉTICA. VAI E VEM. BEIJOS PARA PADILHA E
GESTOS DE REPÚDIO PARA BLANCA.
D. MARIA - (XINGAMENTOS DURANTE A MOVIMENTAÇÃO) Mas
que cullo./ Maldita cachufleta tem esta mujer. /Bica
aberta dos demônios. /Cojones!
CHORO DESBRAGADO DA PRINCESA.
D. MARIA - Por el chorizo de Belzebu, voy a cortar tus huevos, hijo
de mierda!
MARIA PADILHA- (LEVANDO PEDRO PARA A FRENTE) Chega, basta! Vá
de uma vez se casar com ela, senão nosso amor estará
em perigo.
D. PEDRO CAMINHA MAQUINALMENTE PARA BLANCA E PEGA EM SUA
MÃO. D. MARIA DÁ A ELA UM BUQUÊ. MÚSICA NUPCIAL. CAMINHAM
PARA O PROSCÊNIO. BLANCA ARMA UM ENORME SORRISO.
D. MARIA - Finalmente meu filho resolveu se casar com D. Blanca
de Bourbon. Castela estava salva.
D. PEDRO DEIXA BLANCA E CORRE PARA M. PADILHA. A PRINCESA
DESABA NUM CHORO ABERTO NOS OMBROS DE D. MARIA.
D. MARIA - Ai que não posso mais suportar esta merda! (C/
NARRADOR) No dia seguinte após o casamento, D.
Pedro correu de novo aos braços de Maria de Padilha,
o que comprova que realmente ela tinha una
cachufleta de oro. (C/ D. MARIA) Tirem essa bica
aberta fora da minha vista, antes que me cago toda en
la leche de tu madre, coño!
D. MARIA OLHA COM RAIVA PARA A PRINCESA E SAI. BLANCA A SEGUE
CHORANDO ALTO COMO CRIANÇA DE QUEM ROUBARAM UM DOCE.
PARA ANTES DE SAIR E SE VOLTA PARA O PÚBLICO.
D. BLANCA - Rien, rien encore. Moi, eu continuo virgem. Foutre la
merde!
LANÇA O BUQUÊ NO CHÃO E SAI. MARIA PADILHA PEGA O BUQUÊ. D.
PEDRO E DÁ O BRAÇO A ELA. CAMINHAM ATÉ O PROSCÊNIO AO SOM DA
MARCHA NUPCIAL.
MARIA PADILHA - Eu e Pedro nos casamos em segredo e acho que este
casamento era sim o que valia perante Deus, pois era
baseado no amor.
FÁBIO - O povo da Idade Média, mesmo a classe pobre, era
incapaz de entender aquela paixão tão arrebatadora e
desinteressada, pois só podiam compreender a união
de dois seres como uma forma de unir fortunas ou
poder. Vai daí que essa gente começou a imaginar
histórias, a tecer rendas fantásticas. Acusaram Maria
de Padilha de ter enfeitiçado o rei com filtros de
amor... Ah, e quem precisa de magias e sortilégios
para se apaixonar pela doce Padilha?
MARIA PADILHA - (C/ PADILHA ENVOLVE O ROSTO DE PEDRO, DEPOIS
C/NAR.) Me acusaram bruxaria e ingratidão contra
quem sempre havia me protegido, o D. Albuquerque.
Olhem só o que o povo dizia!
ENTRAM DUAS MULHERES DO POVO.
XIMENA - Ah, não diga, Juanita... um judeu?
JUANITA - Hum, hum, judeu sim, dona Ximena. Um judeu no
palácio de Castela! Pode?
XIMENA - Mas como é que D. Pedro teve a coragem de colocar
este D. Samuel Levi no lugar de D. Albuquerque?
JUANITA - O que cê acha que aconteceu? Dá pra entender que aí
tem a mão daquela Maria Padilha. É mulher cheia de
feitiço e manha.
XIMENA - E pensar que D. Albuquerque acolheu ela em sua
própria casa. Cobra criada!
JUANITA - Uma bruxa ingrata. Aposto que ela e esse judeu,
Samuel Levi, (PERSIGNANDO-SE) se juntaram pra
enfeitiçar D. Pedro e fazer ele despedir o pobre D.
Albuquerque.
XIMENA - Acho que tem coisa aí. Ouvi dizer que D. Albuquerque
andou metendo a mão no balaio do tesouro. O
homem tá mais rico que o rei, Juanita!
JUANITA - Mentira, mentira, Ximena! É uma desculpa que esta
Padilha e o Samuel Levi andaram espalhando pra
disfarçar as suas bandalheira.
XIMENA - Ah, Juanita, tô cuma dó do home. Agora ele deve tá
amargando a dor do exílio.
JUANITA - Cê acha que ele ia deixar barato? D. Albuquerque se
juntou aos irmãos bastardos, aqueles filhos da égua da
D. Leonor.
XIMENA - Ahá, não diga! Ele não larga o osso.
JUANITA - Ximena, sabe onde devem estar agora a amante e o
judeu? (APONTANDO) Lá em cima, naquela torre,
traçando cabalas pra atazanar a vida da sua próxima
vítima.
XIMENA – Quem?
D. BLANCA ENTRA, ESCOLTADA POR RAMON. TEM AS MÃOS PRESAS
POR CORRENTES E CHORA.
D. BLANCA - Oh, D. Pedro, tão Cruel, serei eu culpada por não ter
lhe agradado se nem sequer tentou deitar em meu
leito?
XIMENA - A pobre francesinha!
JUANITA - (BENZENDO-SE) Eu sabia! Vamo, vamo sair daqui de
baixo, senão vai espirrar feitiço na gente.
SAEM AS DUAS MULHERES E D. BLANCA.
RAMON - O rei D. Pedro ordenou que eu prendesse D. Blanca
numa torre distante e o povo, sem entender a razão
disso, começou de novo a criar histórias. As
companhias teatrais de saltimbancos perambulavam
pelo reino de Castela e apresentavam a sua versão
para os fatos. Olha só o que inventaram. Tome
posição, Padilha. (PERMANECE EM CENA)
OS PRATICÁVEIS DA PLATÉIA SÃO UNIDOS. MARIA PADILHA E SAMUEL
LEVI SE DIRIGEM A ELES E ASSUMEM GESTOS ESTEREOTIPADOS DE
FEITICEIROS. MÚSICA. ELA TRAZ UM CINTO CRAVEJADO DE PEDRARIAS.
D. LEVI TRAZ UM CALDEIRÃO FUMEGANTE E TRAÇA CABALAS NO AR. M.
PADILHA ENVOLVE O CINTO NA NÉVOA QUE SOBE.
M. DE PADILLA- (RINDO) Pronto, Samuel Levi, aqui tens o cinto. Já está
com o disfarce pronto?
SAMUEL LEVI - Tá tudo aqui dentro, pode deixar. Estudou o teu papel
direitinho? Vamos repassar.
M. DE PADILLA - Eu me transformarei numa velha e direi a D. Blanca
que depois de presentear o rei com este cinto, ele se
apaixonará perdidamente por ela.
SAMUEL LEVI - Depois que o feitiço der certo, D. Blanca será presa
como bruxa e tu...
M. DE PADILLA - Serei a mais bela e a única rainha de Castela.
DÃO GARGALHADAS SINISTRAS E LEVAM O CALDEIRÃO, MURMURANDO
ESTROFES HERMÉTICAS. O BRUXO SAI E M. PADILHA RETORNA COM
LANDINHA.
MARIA PADILHA - (COM AS MÃOS NOS QUADRIS, PARA LANDINHA)
Pode, D. Landinha? E ainda tem gente que diz que a
imaginação do povo é a riqueza de uma nação.
LANDINHA - Ah, sei, só se for uma nação de gente mentirosa. Mas
e aí, o que é que deu esta história de cinto?
MARIA PADILHA - Espera, dona Landinha. Vamos lá ver o que os
saltimbancos inventaram sobre o cinto.(SAI)
MÚSICA DA CORTE. ENTRA D. PEDRO SEGUIDO POR RAMON. ESTE LEVA
UMA CAIXA. VÃO ATÉ OS PRATICÁVEIS.
D. PEDRO - Um presente? Você já olhou aí dentro? Tá cheio de
gente querendo me matar.
RAMON - Pode abrir, majestade. Eu já averiguei. É coisa muito
linda. Vais gostar.
D. PEDRO - (PEGANDO A CAIXA) Então vamos ver, vamos ver.
Acho que é coisa de mulher. Quem enviou? (ABRE)
RAMON - Ela me pediu segredo, por enquanto, mas vai se
revelar.
D. PEDRO - (LEVANTANDO O CINTO) Mas que maravilha! Jóias
encrustadas em pele de cobra. Que mulher é esta?
ENTRA D. BLANCA, MEIO TÍMIDA E SORRINDO.
D. PEDRO - Tu?
D. BLANCA - É para selar a paz que agora retorna entre nós.
D. PEDRO - (COLOCANDO O CINTO) Você deve ter vasculhado
toda a terra pra encontrar esta maravilha. Muito
obrigado, vou usá-lo pra sempre.
PEDRO COMEÇA A SE AGITAR. SACODE TODO O CORPO.
D. PEDRO - Ramon, me ajude! (TENTA TIRAR O CINTO) Ele está
vivo, está vivo!
RAMON CORRE PARA PEDRO E TENTA AJUDAR.
RAMON - (GRITANDO) Ai, ela me mordeu.(TIRA O BLUSÃO)
D. BLANCA - (CONFUSA) Tava mortinho quando eu comprei ele
daquela velhinha.
O GUARDA EMBRULHA O CINTO COM A BLUSA E TENTA TORCER A
COBRA.
D. PEDRO - (APROXIMANDO-SE COM CAUTELA) Tá morta?
RAMON - (OSCILANDO) Não sei, mas quem tá morrendo sou eu.
A COBRA TENTA MORDER PEDRO. ELE ARRANCA-LHE A CABEÇA COM
UM GOLPE DE ESPADA. RAMON CAI.
D. PEDRO - Mas o que você queria fazer comigo, sua bruxa? Olha
só quem sofreu com o teu feitiço.
D. BLANCA - Pedro, eu juro, eu não...
D. PEDRO - Guardas, guardas. (LEVANDO BLANCA) Você será
trancada numa torre, bem longe do meu castelo,
depois decidirei o que farei contigo.
D. BLANCA - Pedro, Pedrito, não tive culpa.
D. PEDRO - Ah, pensava que ia reinar sozinha, né? Vais ver o que é
bom.
ELA DESATA NO CHORO E OS DOIS SAEM.
RAMON - (LEVANTANDO-SE) Dizem que depois de sofrer este
golpe pela mão da própria esposa, D. Pedro se
enfureceu, resolveu que iria defender o trono de
qualquer jeito. Dizem até que as suas bandas traseiras
ficaram maiores ainda. Ele foi tratar da questão de D.
Albuquerque. Bem, o caso é que este ex-ministro, que
havia se juntado aos rebeldes, acabou sendo
envenenado pelo seu médico dias depois... Aposto
que cês já sacaram quem foi que subornou o médico,
não é?
APARECEM LANDINA E ZEFINO.
LANDINHA - Aposto que foi o D. Pedro.
D. ALBUQUERQUE ENTRA SEGURANDO UM ATAÚDE. M. PADILHA TAPA
O NARIZ.
D. ALBUQUERQUE- Ele mesmo. Aquele canalha.
ZEFINO - (PUXANDO LANDINHA) Cruz credo, vam’bora,
Landinha. Não quero saber de defunto que levanta.
LANDINHA - (BATENDO) Vai em ocê embora, se não quiser virar
defunto.
ZEFINO - Desta eu tô fora, ciao mesmo!
D. ALBUQUERQUE- E a senhora, dona Landinha, deve ter descoberto
também quem foi que enfeitiçou D. Pedro pra que ele
encomendasse a minha morte, né? (APONTANDO) Foi
ela, essa aí que tá do teu lado.
LANDINHA - Cê fez isto, menina?
MARIA PADILHA - Mentira! Não enfeiticei ninguém, são futricas,
histórias inventadas. (PARA ALBUQUERQUE) Vai
embora, homem, que vai empestear tudo aqui.
ALBUQUERQUE - Não vou e não vou.
LANDINHA - Ô defunto insistente! Quer que eu dê um jeito nele?
D. ALBUQUERQUE- Eu deixei um testamento em que ordenava que meu
corpo não deveria ser enterrado até que a ordem
voltasse ao reino.
MARIA PADILHA - Demorou uma eternidade, arre! Vou lá passar
perfume pra me livrar dessa inhaca.(SAI)
LANDINHA - Eu também quero passar um pouquinho. (SAI)
ALBUQUERQUE - (C/ NAR. E PERSONAGEM) Antes que eu saia daqui
levando meu caixão, tem mais um crime de D. Pedro,
o cruel, que eu quero narrar aqui bem depressinha
para não incomodar vocês com meu cheiro. Ele
mandou cortar a cabeça do seu meio-irmão, D.
Fadrique. O povo, que era muito religioso, começou a
misturar história de Bíblia com bruxaria. Acusaram
Maria de Padilla de ter pedido a cabeça de D.
Fadrique, como na história de Salomé e São João
Batista.
MARIA PADILHA ENTRA COM A CABEÇA DE D. FADRIQUE.
MARIA PADILHA - Oh, D. Fadrique, há quanto tempo esperava por esse
momento, agora podemos conversar face a face,
cunhadinho. Oh, nunca foste belo, mas deixa que eu
te embelezarei com minha saliva de bruxa. (COSPE E
RI) Ah, agora sim ficou bem melhor. Tu e aqueles teus
irmãos bobocas espalharam por aí que eu envolvi D.
Pedro em minha teia de aranha... (LEVANTANDO A
BANDEJA) Olha, olha pra mim, D. Fadrique. Estás
vendo mesmo uma tarântula em frente de ti?
D. FADRIQUE MOSTRA-LHE A LÍNGUA.
MARIA PADILHA - Oh, menino mal-educado, que coisa feia! Vossa
mamãe vos mimou demais. Então se achas que sou
mesmo uma tarântula, saiba que foste apenas o
primeiro, estenderei minha teia sobre todos os teus
irmãos.
D. FADRIQUE - Bruxa, filha de Satanás, irmã de Barrabás, de Caifás e
súcubo daquele bruxo judeu. Meu irmão Henrique vai
por fim às tuas mandingas.
MARIA PADILHA - (ENFIANDO UM LENÇO EM SUA BOCA) Que horror!
Sujeitinho escroto! Pois vamos ver, D. Fadrique, vamos
ver quem vencerá. Vai, vai lamber el cullo del diablo.
GARGALHA E JOGA A CABEÇA NO FOSSO. OUVE-SE A VOZ DE D. MARIA.
D. MARIA - (FORA DE CENA) Ai, santa mierda, o senhor por aqui,
D. Fadrique?
MARIA PADILHA SE RETIRA GARGALHANDO. D. ALBUQUERQUE SAI DO
CAIXÃO.
D. ALBUQUERQUE- Licença, gente. É já já que eu vou embora. Tem mais
um crimezinho de D. Pedro, que eu tava me
esquecendo. E este acabou colocando até o povo
contra ele. O caso é que o rei mandou os guardas
atrás de D. Blanca de Bourbon, que ainda estava presa
na torre. (SENTA-SE NO CAIXÃO)
BONECOS - D. BLANCA É TRAZIDA POR RAMON E OUTRO GUARDA.
D. BLANCA - Oh, oh, oh! Morrerei como as virgens e com as virgens
me vou, pois o rei nunca me conheceu.
NO ALTO, AO FUNDO, SURGEM DOIS ANJOS CANTANDO EM CORO.
ANJOS - Oh, pobre, pobre D. Blanca de Bourbon vais morrer
virgem sem saber o que é bom.
OS GUARDAS ABAIXAM O CORPO DE BLANCA E UM GRANDE FACÃO
CORTA-LHE A CABEÇA. NO OUTRO ALÇAPÃO APARECE D. MARIA (ATRIZ)
EM MEIO CORPO, QUE VÊ A EXECUÇÃO.
RAMON - Adivinhem, minha gente, em quem o povo pôs a culpa
do assassinato de D. Blanca? (SAEM)
D. MARIA - Foi aquela yegua de mierda da Padilha! Ah, hijo del
diablo, a pobre chica morreu con la cachufleta
ignorante. Vou lá me juntar com aqueles nobres
rebeldes. A queda de Pedro é uma questão de tempo.
Quero mais é salvar a minha pele e continuar
mandando..
D. PEDRO - Um dia peguei todo mundo de surpresa. Os nobres
rebeldes e a minha própria mãe estavam reunidos em
volta do caixão desse aí, como se fosse mesa.
(APONTA PARA D.ALBUQUERQUE) Pode sair e levar o
seu caixão. (ELE JUNTA O CAIXÃO E SAI
RESMUNGANDO) A senhora vai ser deportada para
Portugal e nunca mais quero ver a tua cara.
D. MARIA - (BATENDO COM OS PUNHOS) Estiérco, mierda! Fico
matutando aquí comigo se não foi Satã quem visitou
minha cachufleta para gerar um filho de merda como
tu. Adios, nunca más quiero volver a verte.(AFUNDA)
UMA FIGURA COBERTA COM PANOS PRETOS EM ANDRAJOS CAMINHA
PELO PALCO. MÚSICA.
ATOR/PEDRO - Eram tempos terríveis. A partir de 1346 toma conta de
toda a Europa, ceifando quase a metade de sua
população. A dama negra visitava todos os lares
semeando desolação. Os nobres fugiam para seus
castelos distantes, mas acabavam recebendo a tal
visita não convidada. D. Maria de Padilla também não
escapou deste destino.
A DAMA NEGRA COBRE MARIA PADILHA COM UM VÉU BRANCO.
ATRIZ/MP - D. Pedro fez celebrar luxuosas pompas fúnebres em
todo o reino e o povo chorou a minha morte.
Lamentaram a perda da favorita, da rainha sem coroa.
ATOR/PEDRO - D. Pedro solicitou à igreja que declarasse nulo o seu
casamento com D. Blanca e reconhecesse D. Maria de
Padilla como sua legítima esposa. Sua vontade foi
satisfeita e numa magnífica cerimônia ele coroou sua
favorita como rainha da Espanha.
LANDINHA - Oh, oh, que triste, é igualzinha àquela história de Inês
de Castro que morreu e depois foi coroada como
rainha pelo rei de Portugal.
ATOR/D. PEDRO- Ele era meu tio, dona Landinha.
LANDINHA - Adoro histórias de amor mesmo que cê tenha sido tão
cruel. Fazer o quê, né? Cê vivia entre os lobos.
ZEFINO - Deixa de ser tonta, Landinha. Não vê que esses ator
dispõe as coisa de um jeito que é pra pegar a gente, só
prá comover? Aposto que agora eles vão entrar com
negócio de bruxaria e encruzilhada.
LANDINHA - Vá te catar, desmancha prazer.(DÁ-LHE UM TAPA)
D. PEDRO COROA MARIA PADILHA, EM SEGUIDA SE AJOELHA E FAZ
REVERÊNCIA. SONS DAS ALFAIAS E GANZÁS DO MARACATU. ATORES
ENTRAM VESTIDOS COM VOIL BRANCO (OU ENGLOBANDO TODO O
GRUPO) E APÓS BREVE COREOGRAFIA, SE DESCOBREM: DUAS DAMAS
DO PAÇO, UMA DELAS SEGURA UMA CALUNGA (BONECA); O PORTA-
ESTANDARTE LEVA A BANDEIRA; O CABOCLO DE LANÇA E O DUQUE (OU
UM VASSALO QUE LEVA O PÁLIO). DURANTE A EVOLUÇÃO, A CALUNGA
PASSA DE UMA MULHER A OUTRA E TERMINA NAS MÃOS DE MARIA
PADILHA.
Minhas alma, venham cá!
Venham ver quem tá chegando
ela é rainha da Espanha
que agora vai dançá.
Cante sinhô, cante sinhá
que a calunga vai passá
abre a porta e a janela
venha aqui mais perto dela.
Senhora rainha trigueira
o teu corpo tem mil cheiros
cheira cravo, cheira rosa
cheira flor de laranjeira.
Cante sinhô, cante sinhá
que a calunga vai passá
a rainha da Espanha
quer licença pra dançá.
Cante sinhô, cante sinhá
que a calunga vai passá.
Cantem, almas que estão cá
a passagem pelo mundo
da Padilha não findou
muito chão tem pra andá
A calunga vai dançá
e no universo de sonho
da criação popular
a rainha vai entrá
Toque o agogô e o ganzá
que a rainha vai chegá.
ATORES SE RETIRAM, FICANDO EM CENA APENAS MARIA PADILHA E D.
PEDRO. APARECEM D. LANDINHA E ZEFINO, ELA ENXUGA OS OLHOS
COM UM LENÇO.
LANDINHA - E aí, moça, cê morreu e o D. Pedro, como é que ficou?
MARIA PADILHA - D. Pedro continuou lutando contra os bastardos.
ATOR/D. PEDRO - Mas um dia D. Henrique armou uma emboscada e me
matou sem dó, aquele covarde.
LANDINHA - Cruzes. Irmão contra irmão.
ATOR/D. PEDRO - D. Henrique se tornou o rei e iniciou a dinastia dos
Trastâmara e...
MARIA PADILHA - Deixa pra lá, são histórias já passadas. O que importa
pra gente, aqui e agora, é que a minha saga continuou
na boca do povo e, quando chegou no Brasil, iria
mudar muito mais. (FORA DE CENA, MARACATU EM
SURDINA)
ZEFINO - Ah, viu, não te falei, muié? Agora estes espertos tão
chegando lá onde queriam...
LANDINHA - Ô prisão de ventre, cala a boca. Vamos lá ver.
O CASAL SAI. ENQUANTO ATOR/D. PEDRO FALA, OUVE-SE A MÚSICA DO
MARACATU AO FUNDO.
A calunga vai dançá
e no universo de sonho
da criação popular
a rainha vai entrá.
Toque o agogô e o ganzá
que a rainha vai chegá.
ATOR/D. PEDRO - O amor que eu dediquei a Maria Padilha ajudou a
difundir as histórias de feitiçarias na imaginação do
povo. Foi o amor, amor que é feitiço puro, feitiço do
qual ninguém escapa, foi ele o arquiteto de todas
estas lendas.
MARIA PADILLA ENTRA E PEDRO A LEVA PARA O CENTRO.
NARRADOR - As histórias de Maria Padilha começaram a crescer no
meio do povo espanhol, gente muito dada a florear e
a reinventar lendas. Era a época da Inquisição e as
fogueiras não paravam de tremular. Os feitiços eram
feitos às escondidas pra solucionar amores infelizes e
levavam sempre a mesma fórmula.
FEITIÇOS EM FORMA DE PANTOMIMAS
1- ESPANHA – PABLO, XIMENA E JUANITA - FEITIÇO DO BONECO
NARRADOR - As histórias de Maria Padilha começaram a crescer no
meio do povo espanhol. Os feitiços eram sempre
feitos em nome de amores infelizes e todos sempre
levavam a mesma fórmula.
CENA COMO NUM FILME MUDO. MÚSICA.
HOMEM ENTRA E MOSTRA AO PÚBLICO UM CARTAZ EM QUE INDICA
QUE SEU NOME É PABLO. ELE CARREGA AS SUAS TROUXAS. MULHER 1
ENTRA E MOSTRA A PLACA EM QUE ESTÁ ESCRITO SEU NOME: XIMENA.
PABLO AMEAÇA IR EMBORA. ELA SEGURA SUAS PERNAS E CHORA,
PEDINDO PELO AMOR DE DEUS. ELE DEMONSTRA QUE ELA ESTÁ FEIA E
ACABADA, ARRASTA O BIOMBO E TIRA O TECIDO QUE O COBRE. UMA
BELÍSSIMA E GOSTOSA MULHER ESTÁ REPRESENTADA NA IMAGEM. ELE
MOSTRA À ESPOSA INFELIZ QUE ESTA SIM VALE A PENA E QUE ELA
ESPERA POR ELE NA SUA CAMA. XIMENA TENTA UM ÚLTIMO RECURSO:
VAI ATRÁS DO BIOMBO E COLOCA SUA CARA NO LUGAR DO ROSTO DA
GOSTOSA. O MARIDO FAZ CARA DE NOJO, DEMONSTRANDO QUE ELA
NÃO COMBINA COM O RESTO E RESOLVE IR EMBORA. CHORANDO, ELA
SE ARRASTA ATRÁS DELE E ACABA ARRANCANDO UM PEDAÇO DE SUA
CALÇA. ELE SAI.
ENTRA JUANITA. ELA TRAZ UM CALDEIRÃO E UM BONECO. AJUDA A
AMIGA A SE LEVANTAR E VÃO POR MÃOS À OBRA PRA TRAZER O
HOMEM DE VOLTA. JOGAM FEITIÇOS SOBRE A IMAGEM DA GOSTOSA E
A COBREM. JUANITA PEGA O PEDAÇO DA CALÇA DO HOMEM E COM ELE
ENVOLVE O BONECO, EM SEGUIDA ENROLA-O COM UM CORDÃO E O
SUSTÉM SOBRE O CALDEIRÃO.
JUANITA - Senhora Santana, assim como o mar mareja, o céu
estreleja, o vento venteja e os peixes não podem
entrar no mar sem água, nem o corpo viver sem alma,
assim Pablo não possa estar sem pra Ximena aqui
voltar. Por Barrabás, Satanás, Caifás e Maria Padilha
com toda a sua quadrilha.
AS DUAS - Assim Pablo não possa estar sem pra Ximena aqui
voltar. Por Barrabás, Satanás, Caifás e Maria Padilha
com toda a sua quadrilha.
REPETINDO A ÚLTIMA FRASE, ELAS SAEM.
2- CIGANOS – CARMEN E JOSÉ – FEITIÇO DA BACIA
NARRADOR - Os feitiços em nome de Maria Padilha passaram do
povo espanhol para os ciganos. Na Espanha medieval
muitas raças se cruzavam, mais ou menos como se
deu aqui no Brasil. Ali viviam muitos ciganos que
acabaram conhecendo as histórias de Maria Padilha e
fizeram dela a rainha de suas magias.
CENA COMO NUM FILME MUDO. MÚSICA.
DESTA VEZ A COISA É INVERSA. JOSÉ SE ARRASTA AOS PÉS DE CARMEN,
ELA O REPUDIA E VAI ATÉ O BIOMBO. VIRA-O E APRESENTA A META DE
SEU DESEJO: UM BELO TOUREADOR EM ROUPAS FAUSTOSAS (CANÇÃO
DO TOUREADOR). ELA DEMONSTRA QUE ESTE SIM É QUE VALE A PENA E
NÃO O TRASTE QUE SE ARRASTA AOS SEUS PÉS. JOSÉ IMPLORA E, NUM
ÚLTIMO RECURSO, VAI ATRÁS DO BIOMBO, COLOCANDO SEU ROSTO NO
LUGAR DO TOUREADOR. CARMEN REPUDIA E DEMONSTRA QUE ELE
NÃO COMBINA COM O TODO. JOSÉ SE ATIRA AOS SEUS PÉS.(A
HABANERA AO FUNDO) ELA PEGA UMA BACIA E A COLOCA EM FRENTE
DA IMAGEM DO TOUREADOR. DESPEJA ALGUNS PÓS, ABRE SEU LEQUE E
MOVIMENTA-O.
CARMEN - Eu te conjuro, vinagre, pimenta e enxofre, com três da
padaria, três da cutilaria, três do terreiro, todos três,
todos seis, todos nove se ajuntarão, mais nove varas
de amor apanharão e no coração do toureador se
cravarão. Ó Rainha que anda pelas encruzilhadas
descasando os casados e ajuntando os amancebados,
me trazeis o toureador pelos ares e pelos ventos, que
ele não possa dormir nem sossegar, até comigo vir
estar. Valha-me Barrabás, valha-me Caifás. Por D.
Maria de Padilha com toda a sua quadrilha.
CARMEN RETIRA-SE, GARGALHANDO. JOSÉ SE LEVANTA E A SEGUE COM
O PUNHAL LEVANTADO. SAEM.
3- PORTUGAL - ANTONIA MARIA E A INQUISIÇÃO – FEITIÇO DA PENEIRA
NARRADOR - Por onde cruzava Maria Padilha, os povos nela mais
um retalho de sua cultura. Estes sortilégios e bruxedos
foram parar em Portugal e em 1718 uma linda
portuguesa, Maria Antônia, foi presa pela Inquisição.
TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO. TAMBORES GRAVES MARCAM A ENTRADA
DO VISITADOR. ATRÁS DELE ENTRA ANTÔNIA DE BEJA, ALGEMADA.
VISITADOR - Sabe por que está aqui, dona Antonia Maria?
ANTÔNIA MARIA - Sei sim, foi por causa daquela vaca da minha vizinha,
que me denunciou. Eu só quis ajudar a piranha.
VISITADOR - Modere esta linguagem, feiticeira, ou é o demônio
que está a falar por esta boca suja? (COM TESÃO) O
maligno usa de mil disfarces para enganar. Entrou aí
neste teu corpo de ninfa, cobriu-te com uma pele
branca e aveludada, deu-te formas que despertam o
desejo dos homens...
ANTÔNIA MARIA - Não tem demônio nem nada. Se eu estou aqui, a
Marlise devia de tá também, pois foi ela quem me
pediu que fizesse uns trabalho pra trazer o namorado
de volta.
VISITADOR - Cale esta boca. Sua vizinha trabalhou para nós, ela
lançou a isca e você mordeu.
ANTÔNIA MARIA - Sei, e cês usaram uma mulher que todos sabem o que
é como espiã pra ajudar nas suas santas intenções?
VISITADOR - Oh, mulher dos demônios, saiba que são insondáveis
os caminhos que Deus usa para fazer sua justiça.
ANTÔNIA MARIA- Ele tá precisando melhorar suas fonte de informação.
VISITADOR - Infame! Agora então se julga uma conselheira de
Deus? (ANOTANDO) Isto será acrescentado ao seu
processo.
ANTÔNIA MARIA - Fazer o quê, né? Qualquer coisa que eu disser aqui vai
me levar pra fogueira mesmo.
VISITADOR - Não é bem assim, se você quiser que sua pena seja
abrandada, deve nos dizer exatamente como fez o teu
sortilégio de amarração, senão vamos supor coisas
piores e aí você estará perdida. Aqui estão os objetos
que foram encontrados em sua casa. Mostre-nos!
O VISITADOR ENTREGA-LHE UMA PENEIRA COM VÁRIOS OBJETOS.
ANTÔNIA MARIA - Primeiro eu fiz um fervedouro com raízes fortes,
depois eu coloquei um coração de pombo e um
tiquinho de pó de cantárida, daí eu coloquei os
pedaços de pano das roupas do namorado dela. Garrei
a peneira e rezei assim: Por São Pedro e por São Paulo,
por Jesus crucificado, por Barrabás, Satanás, Caifás,
por quantos eles são, por Dona Maria Padilha e toda a
sua quadrilha, me digas, peneira, se o namorado vai
voltar pra ela, senão eu vou trazer o diabo coxo, que
tem aquilo roxo, pra comer no meu cocho e fazer ele
engolir este carocho...
VISITADOR - (EXPLODINDO) Chegaaaa! Tirem esta mulher da
minha frente, pelo amor de Deus. Que ela seja
degredada para Angola embrulhada em mil peneiras.
(SAI)
ANTONIA MARIA - Fiquei lá em Angola aprendendo as artes mágicas
daquele continente, mas nunca me esqueci de Maria
Padilha. Um dia eu embarquei num navio e fugi para o
Brasil.
ATORES ENTRAM COM VELAS DE NAVIO. ANTÔNIA MARIA VAI NA
FRENTE. MARIA PADILHA, EM PÉ, ATRÁS DELA. SONS DE PÁSSAROS. OS
MARINHEIROS CORREM APAVORADOS. OS GRASNADOS DESAPARECEM.
ELES RETOMAM A POSIÇÃO E SINGRAM OS MARES. ENQUANTO MARIA
PADILHA FALA, OS ATORES CANTAM BAIXO A MÚSICA DOS
MARINHEIROS E FEITICEIRAS SEM A LETRA (LA RA RA...).
MARIA PADILHA - Atravessei o Atlântico a bordo da imaginação de
Antonia Maria. Deixei toda a tristeza pra trás, naquele
velho continente. Deixei as lutas e as guerras
fratricidas, não quis mais ver a luz das fogueiras que
queimavam pobres mulheres inocentes. Deixei pra
trás aqueles velhos casamentos bolorentos que uniam
fortunas e levavam as mulheres à loucura. Deixei pra
trás os castelos frios e sombrios onde as damas
passavam horas a bordar lágrimas em tamboretes, pra
trás ficaram os tristes claustros que serviam de prisão
a mocinhas sem dote.
ATORES CANTAM A CANÇÃO DOS MARINHEIROS E FEITICEIRAS.
MARINHEIROS - Florestas, praias e corais da minha terra,
estou chegando enfim.
Moças bonitas do cais,
guardem seus lábios pra mim.
AS DUAS - Falem mais desta terra pra onde nos levam,
nos distraiam com seu cântico.
Por nossa sina de mulheres perseguidas,
vamos cheias de temor por este Atlântico.
MARINHEIROS - Não há porque se inquietar
na minha terra terão paz e calor,
tempo teu pra ensinar
arte e feitiços de amor.
AS DUAS - Que as mulheres de além escutem este aviso:
despachos semeamos num zás-trás,
Por Barrabás, Caifás, e Satanás!
TODOS - O vento pode ventejar
o céu pode estrelejar
o mar, marejar
Ninguém vai entrar nesta quadrilha
sem antes passar pela Padilha.
Maria Padilha.
ASSIM QUE A MÚSICA TERMINA OUVE-SE O GRASNADO DE PÁSSARO
NOVAMENTE. CORRE CORRE DOS MARINHEIROS. TODOS SAEM.
NARRADOR - Enquanto Maria Padilha atravessava os mares
montada na imaginação de Antonia Maria, duas
mulheres muito ansiosas esperavam na praia do outro
lado do Atlântico: Oxum, a senhora dos rios e das
águas doces e Nanã Buruquê, a mais velha de todas as
orixás, senhora dos pântanos e da morte.
ENTRAM OXUM E NANÃ. OXUM FIRMA A VISTA AO LONGE. NANÃ
AGUARDA IMPACIENTE.
NANÃ - E aí, tá vendo alguma coisa?
OXUM - Ainda não, mãe Nanã. Ela tá demorando pra chegar.
NANÃ - Não aguento mais esperar. Não quero que este povo
aqui continue a me enfiar vestes da Senhora Santana.
OXUM - Não se desespere, mamãe Nanã, é só uma questão de
tempo. Padilha vai acabar com isto e mostrar o valor
das mulheres.
NANÃ - Eu vou lá arrumar mais algumas flores pra receber a
menina.
OXUM - Não precisa forçar mais a tua vista cansada, mãe.
Iansã, Iemanjá, Ewá e Obá já deixaram tudo pronto
pra receber a Padilha.
NANÃ - Ah, e eu vou ficar aqui fazendo o quê?
OXUM APURA OS OUVIDOS.
OXUM - Espera, mãe. Será possível? Parece que estou ouvindo
o grande pássaro! (RADIANTE) A Grande Mãe vem na
forma de pássaro acompanhando a rainha da
Espanha.
NANÃ - Não é possível, a própria Iyami Oxorongá, a primeira
mulher que veio ao mundo, está trazendo a Padilha?
OXUM - Sim, é a nossa Grande Mãe ancestral que tá
protegendo ela.
NANÃ COMEÇA A RIR SEM PARAR.
OXUM - Que foi, endoidou?
NANÃ - Não, menina, só tô imaginando aqui a caganeira que
devem tá passando estes marinheiros. Imagine só,
este grande pássaro grasnando e eles não podendo
ver onde ele está.
OXUM - Os homens sempre tiveram medo da Grande Mãe e
chamaram ela de feiticeira. Devem ter esvaziado as
tripas no mar.
NANÃ - É uma honra muito grande receber ao mesmo tempo
a Grande Mãe e Maria Padilha. Ah, agora é que eu
preciso ir lá ver como as meninas estão indo com os
preparativos.
OXUM E NANÃ SE RETIRAM. ENTRA MARIA PADILHA NUM CARRO,
SEGURANDO UMA VELA DE NAVIO. ELA COLOCA A MÃO DIANTE DOS
OLHOS E PROCURA.
MARIA PADILHA - Ao longe, eu vi aquela terra prometida. Lugar
estranho, com muito verde e florestas emaranhadas.
Não podia saber o que me esperava, mas qual não foi
a minha surpresa quando pisei no Recife com Antonia
Maria e ali fui recebida com festas pelas entidades
alegres que habitam esta terra de mistérios.
MÚSICA ALEGRE. MARIA PADILHA É RECEBIDA POR TUPÃ, NANÃ E
OXUM (grandes bonecos).
Bem-vinda à nossa gira
vem reinar, minha senhora.
Bem-vinda à nossa gira
que chegou a sua hora.
Gira, gira, gira, meu povo,
entra na roda e vem cantar nossa rainha.
Rodou, rodou e veio lá de longe,
na gira ganhou vida esta andorinha.
Bem-vinda à nossa gira.
vem reinar, minha espanhola.
Bem-vinda à nossa gira.
Sambolê pemba de Angola.
ATORES CONTINUAM A CANTAR EM VOZ BAIXA. O CARRO PASSEIA
ENTRE O PÚBLICO.
MARIA PADILHA - Minha história termina aqui, minha gente, mas o povo
continuará reinventando este mito. Não me importo
com isso, pois minha essência continuará sendo a
mesma! Por mais que mudem, serei sempre a mulher
que soube ocupar o seu lugar num mundo dominado
por homens.
RETORNA À MÚSICA ANTERIOR. FESTA NO MEIO DO PÚBLICO.
FIM