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4 UMA HISTÓRIA PARA A NOÇÃO DE VALÊNCIA QUÍMICA
A noção de valência é um tema ao mesmo tempo controverso e central na história
da química. Através das diferentes aproximações desenvolvidas para precisar o seu papel
no desenvolvimento da química, a noção de valência demonstrou ser pelo menos uma
estratégia metodológica bastante eficiente para aproximação do químico com o misterioso
mundo interior da combinação química. Essa noção se atreveu a tentar explicar os antigos
domínios da afinidade química, acabando com isso por produzir uma maneira especial de
representar a realidade invisível dos átomos e moléculas através das chamadas fórmulas
estruturais. Como se não bastasse, a valência provocou também o mundo periódico,
organizando a posição dos primeiros elementos tanto no sistema russo, proposto por
Medeleev, como no alemão, proposto por Meyer. A partir de todas essas influências,
alguns professores de química concordam que é impossível dar os primeiros passos na
disciplina sem ser apresentado a ela.
Contudo a situação da noção de valência no presente é bem diferente do ponto de
vista acadêmico. Os avanços crescentes da chamada química teórica, na verdade uma sub-
classe do macro-domínio da mecânica quântica, retiraram da valência seus atributos e
designaram-na uma função meramente sintática. Assim, o que outrora fora encarado como
uma teoria fundadora, agora é mormente remetido através de locuções adjetivas tais como:
elétrons de valência, nível de valência e configuração de valência.
Em relação a uma evolução temporal restrita, a história da valência pode ser
dividida, grosso modo, em três períodos. O primeiro, de 1850 a 1870, sendo caracterizado
pela emergência do conceito e seu desenvolvimento no interior do programa de pesquisa
da química orgânica. O segundo, de 1870 até 1920, que assinala a influência da
periodicidade química sobre ela, determinando uma ampla divulgação e utilização do
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conceito tanto no campo acadêmico quanto no didático. E o terceiro, após 1920, que
assinala a colisão entre os antigos referenciais da noção de valência com os resultados da
utilização de métodos físicos modernos no estudo da estrutura das substâncias, incluindo-
se o alcance dos preceitos da mecânica quântica sobre os objetos da química.
Esse trabalho não tratará desse terceiro período, procurando focalizar uma
apresentação histórica voltada para o que se chama comumente de noção clássica de
valência, em contraposição à teoria eletrônica de valência que se verifica como um efeito
do desenvolvimento da mecânica quântica, após 1920.
A anotação da noção clássica de valência pretendida aqui, não estará pautada pelo
intervalo temporal indicado anteriormente, em seu lugar recorreremos como ponto de
partida a uma investigação das origens da noção de afinidade química. Essa escolha
decorre principalmente da identidade que a noção clássica de valência assumiu com essa
noção ao longo de sua evolução. Por sua vez, o ponto final dessa apresentação pretende
trazer à tona as mutuas implicações que ocorreram entre a noção de valência e a
periodicidade química no final século XIX. A estratégia/organização é mais bem
identificada como um mapa histórico das idéias que em diversas épocas constituíram ou
foram constituídas pela noção de valência, preservando sempre que possível uma ordem
cronológica. Denota-se assim, uma pretensa história das idéias que em diversas épocas
constituíram o currículo dessa noção.
Os critérios de escolha para a configuração desse mapa de idéias pertinente à noção
clássica de valência foram amparados, mas não determinados, pela bibliografia consultada.
O quadro histórico desenhado aqui é uma história e não a história da valência, ele deve
apoiar a leitura da análise dos livros que virá posteriormente. Todavia não foi delegado a
ela, em nenhum momento, um caráter secundário, mas sim o de uma poderosa ferramenta
na metodologia desse trabalho e de sua proposta.
4.1 AS PRIMEIRAS IDÉIAS SOBRE AFINIDADE QUÍMICA
A metáfora mais antiga correspondendo a uma explicação para a transformação da
matéria recorre aos primeiros mineradores que acreditavam que os minérios cresciam no
solo como embriões, resultado da união do céu masculino com a terra feminina. Para eles
os vários tipos de minerais eram uma forma passageira, de gestação natural para
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progressão até o estado mais perfeito, o ouro, que correspondia ao estado mais raro dessa
união. Procedimentos ritualísticos extremamente elaborados foram desenvolvidos para
auxiliar a natureza no seu trabalho de transformar minérios simples em ouro puro. Sejam
como lendas ou simples metáforas, a força dessas concepções pode ser verificada pela sua
insistência em se manter presente desde a Grécia Antiga, atravessando a Idade Média, até o
Renascimento.
Mesmo tendo como referência o caráter místico de suas origens, pode-se inferir que
os primeiros contatos com diferentes tipos de matéria, através de experimentos controlados
ou não, indicaram que a ação química – algumas vezes vigorosa e outras vezes vagarosa e
incompleta – poderia ser devida a forças ou a atrações particulares. Os primeiros químicos,
no entanto, não estavam interessados em interpretar tais fenômenos por meio de causas
físicas, ficando satisfeitos com a observação e considerando as causas como manifestações
de intenções divinas, ou devidas a misteriosos poderes ocultos. Em períodos posteriores,
chegou-se a considerar que a causa que estimularia a combinação química seria a
semelhança entre as substâncias. A frase “Similia similibus”35 (Stilmann, 1960),
personifica um dos mais antigos simbolismos e reflete uma vontade primeira de exprimir a
causa dos processos de transformação química.
A palavra afinidade, quando utilizada pelos antigos praticantes da arte36, implicava,
entre outros aspectos, também a idéia de uma semelhança ou similaridade entre os corpos
que reagem. Durante o século XIII, Alberto Magno (1193–1280) utiliza a palavra
“affinitas” com esse sentido quando diz que “o enxofre escurece a prata e queima os metais
em geral, devido à “afinidade natural que existe entre eles” (propter affinitatem naturae
metalla adurit)37. Alberto Magno foi o primeiro a demonstrar que o lapis Rubens (cinábrio
– sulfeto de mercúrio), que se encontrava nas minas de onde se retirava mercúrio, era um
composto de enxofre e mercúrio (Magno, 1974). Magno descreveu também, com riqueza
de detalhes, a preparação do ácido nítrico, que nomeava água prima, ou água filosófica no
primeiro grau de perfeição.
35 Semelhante gosta de semelhante 36 É entendida aqui como arte toda manifestação vinculada a correntes da alquimia ou tradição hermética e que poderia misturar os conhecimentos tanto de iniciados como de artesãos para os mais diversos fins, desde a cura de doenças até o charlatanismo. 37 De Rebus metaliicis, Rouen, 1476. A obra pode ser consultada indiretamente através do site da ORB – Online Reference Books for Medieval Studies – disponível em <http://orb.rhodes.edu/bibliographies/ almagnus.html> acesso em 14 de outubro de 2002.
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Essa afinidade medieval era plena de características animadas, como se pode
perceber também a partir da narrativa de Johann Rudolf Glauber (1604-1668) em seu livro
Furni novi philosophici (1646), quando dizia que a areia possui uma sociedade com o sal
de tártaro (carbonato de potássio) de modo que eles “se amam tanto que não concordam
em se separar” (Glauber, 1659).
4.2 INFLUÊNCIAS DO CORPUSCULARISMO DE ROBERT BOYLE
Robert Boyle (1627-1691), em seu livro Químico Cético (1661), protesta contra a
crença generalizada nas idéias de simpatia/antipatia, amizade/aversão, quando associadas a
substâncias materiais. Para Boyle tais atributos são do domínio da alma humana e não
podem ser comuns a corpos inanimados. Tanto no Químico Cético quanto no As Origens
das Formas e Qualidades Boyle critica os modos de explicação que são comuns nos
séculos dezesseis e dezessete e considera que existem basicamente duas correntes de
pensamento: os aristotélicos ou peripatéticos e os químicos ou espagiristas38.
Os peripatéticos usavam os elementos aristotélicos (terra, água, fogo e ar) para
explicar os fenômenos naturais, de modo que todas as substâncias eram compostas desses
elementos em diferentes proporções, explicando-se assim as propriedades observadas e os
comportamentos em termos dos constituintes dos diferentes corpos. Esses elementos não
eram idênticos ao que se concebe cotidianamente por terra, água, fogo e ar, mas sim
responsáveis por suas qualidades, ou seja, por propriedades observáveis em seus
compostos tais como dureza, peso, volatilidade, por exemplo. Já as explicações dos
químicos dependiam daquilo que chamavam princípios químicos e de seus conceitos
básicos. Um das idéias mais populares era conhecida como a tria prima39 e se referia ao
sal, enxofre e mercúrio de forma que todos os materiais consistiam de uma mistura desses
três princípios em proporções diferentes, e as diferenças nas proporções eram responsáveis
pelas diferentes características desses materiais. Assim como no caso dos elementos
aristotélicos, os princípios sal, enxofre e mercúrio não remetiam diretamente às substâncias
38 O espagirista era um alquimista interessado em preparar remédios utilizando as vias da tradição hermética. A espagíria precedeu historicamente a corrente iatroquímica (também conhecida como quimiatria) que pode ser reconhecida como um conjunto de idéias que explicavam o funcionamento do corpo humano e as doenças segundo processos químicos. 39 A tria prima, conforme professava o maior de todos os espagiristas – Phillipus Aureolis Theophrastus Bombastus von Hohenheim, o Paracelso (1490–1541) – era o conjunto dos elementos formadores do cosmos.
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observáveis, mas correspondiam a uma espécie de essência pura que explicava ou causava
as qualidades observadas nas substâncias40.
Os argumentos de Boyle procuram indicar que, mesmo a despeito das diferenças
em seus conceitos fundamentais, peripatéticos e químicos possuíam modos de explicação
com as mesmas falhas, modos estes divergentes quanto à forma de identificação e
separação das mesmas substâncias. Descrevendo no livro vários experimentos que não
podiam ser explicados por nenhuma das duas correntes, Boyle acredita que conceitos mais
simples e de fácil entendimento aumentam o grau de explanação de um conjunto de idéias
tornando-o mais abrangente, econômico e claro. O corpuscularismo de Boyle está
fundamentado nessas idéias41.
Da mesma maneira que muitos outros membros da Royal Society, Boyle é muito
cauteloso ao utilizar entidades ocultas, mas considera possível recorrer a alguma coisa
oculta se esse for o único meio de explicar satisfatoriamente uma propriedade particular ou
um fenômeno e não haver outro método de confirmar sua presença. Assim, dado seu receio
de introduzir forças ocultas como causadoras dos fenômenos químicos, sua filosofia
corpuscular é considerada por alguns historiadores como cinemática (Alexander, 2000).
Por exemplo, Boyle afirma que ao examinar um fenômeno natural de perto, especialmente
com o auxílio de recursos óticos, pode-se encontrar que a cor depende de modificações na
estrutura interna das substâncias e que as explicações mais fundamentais podem também
depender da estrutura mais íntima das substâncias e de partes muito pequenas delas que
não podem ser observadas.
Boyle se sentia atraído pelo antigo atomismo, mas descontente com sua grande
dependência de raciocínios a priori e hipóteses ad hoc. Mesmo assim, as explicações
atomistas possuíam para Boyle clareza bastante aceitável, uma vez que recorriam a
entidades e eventos muito familiares àqueles que podiam ser conquistados pela experiência
sensível. Uma das correspondências mais peculiares entre o atomismo e a experiência
sensível estava na possibilidade de entender as evidências atômicas, a partir do
comportamento das bolas de ‘croquet’, envolvendo simplesmente seu peso, forma,
40 O mercúrio é o agente transformativo, responsável pela fluidez e pela volatilidade. O enxofre é o agente de ligação e de transformação entre as substâncias, é o responsável pela combustibilidade da matéria. O sal é o agente da solidificação, que é responsável pela forma. 41 Mesmo antes da crítica realizada por Boyle, o iatroquímico belga Joan Baptista Van Helmont (1577–1644) criticou a tria prima em seu livro Ortus medicinae que foi publicado em 1648. A crítica de Van Helmont tratava, principalmente, de demonstrar como a análise pelo fogo não poderia ser considerada como uma prova final da pré-existência da tria prima nos compostos (Newman, 2000).
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tamanho e movimento. Tais explicações eram simples e podiam produzir os efeitos
desejados. Boyle desejava obter as vantagens do poder explanatório do atomismo sem cair
em argumentos metafísicos, apoiando-se ao invés disso na observação e na experiência. A
fim de marcar claramente as novidades existentes em seu atomismo purificado, Boyle
atribui, no lugar de átomo, o termo corpúsculo (corpuscule) para sua partícula mínima.
Outro motivo para não usar o termo átomo era sua associação com o ateísmo42. Os
corpúsculos eram como pequenas bolas de ‘croquet’ de várias formas que possuíam as
mesmas qualidades que podiam ser verificadas nos objetos materiais observáveis. Esse
contexto indicava para ele que somente hipóteses sustentadas por observações e
experimentos podiam de alguma forma ser significativas para a complementação da
hipótese corpuscular.
Para Boyle, o fenômeno químico era entendido como um conjunto de interações
físicas, explicadas em termos da modificação de um arranjo de corpúsculos chamado
textura. A textura era uma coleção de corpúsculos arranjados de maneira particular, na
qual cada corpúsculo era exatamente um igual ao outro (esse arranjo também era chamado
de matéria universal). As alterações químicas eram devidas ao rearranjo, espaçamento,
adição ou retirada de corpúsculos na textura. Boyle se refere a sua hipótese corpuscular
como mecânica, uma vez que procura recorrer exclusivamente a peso, forma e tamanho
como qualidades. No Químico Cético, Robert Boyle apresenta uma definição para
elemento, procurando se distanciar do que pretendiam os peripatéticos com esse mesmo
termo43:
(...) [o] que entendo por elementos são certos corpos primitivos e simples, perfeitamente sem mistura, os quais não sendo formados de quaisquer outros certos corpos, nem um dos outros, são os ingredientes dos quais todos os corpos perfeitamente misturados são feitos, e nos quais podem finalmente ser analisados. (Boyle, 1661)
É muito importante ter claro que essa definição de elemento de Boyle possui caráter
de contestação em relação às idéias dos peripatéticos, tendo pouca relação com o elemento
42 O ateísmo pode ser encarado sob o ponto de vista filosófico como uma atitude ou doutrina que dispensa a idéia ou a intuição da divindade, quer do ângulo teórico (não recorrendo à divindade para se justificar ou fundamentar), quer do ângulo prático (negando que a existência divina tenha qualquer influência na conduta humana). 43 Uma cópia digitalizada do original de 1661 do Químico Cético pode ser obtida na página da Biblioteca da Universidade da Pensilvânia, disponível em <http://www.library.upenn.edu/etext/collections/science/boyle/ chymist/index.html>, acesso em 14 de dezembro de 2002.
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químico de Lavoisier e quase nenhuma com a noção atual, apesar da insistência de muitos
autores de livros e revistas em imputar essa simetria.
O modelo corpuscular de organização da matéria de Boyle caracteriza uma
afinidade mecânica entre as partículas do corpo químico, mas é muito mais um conjunto
de restrições empíricas que procurou censurar o uso de argumentos e explicações que não
recorressem explicitamente ao domínio da experimentação ou da observação. Isso
implicou na busca de novos dados experimentais a respeito das transformações químicas,
procurando-se indicar exatamente o que era visto, sem metáforas herméticas, sem
simpatias e antipatias, mas com tentativas de estabelecer relações mecânicas como
responsáveis pelas mudanças na organização dos corpos químicos. Contudo, antes dessa
busca pela ordem a partir da experimentação, um dos alunos de Boyle irá provocar grandes
mudanças, curiosamente utilizando como referência a mesma doutrina hermética que seu
mestre havia se dedicado a criticar ostensivamente.
4.3 A AFINIDADE NA QUESTÃO 31 DO ‘ÓTICA’ DE ISAAC NEWTON
Um dos esforços mais interessantes e significativos para caracterizar a afinidade
química teve origem na obra de um físico, talvez o mais famoso deles, Sir Isaac Newton
(1642–1727). Em seu livro Ótica, Newton fornece na questão 31 (a última de uma série de
questões propostas ao leitor ao final do livro) uma série de inquietantes provocações a
respeito de transformações químicas que ele mesmo havia conduzido.
Não têm as pequenas partículas dos corpos certos poderes, virtudes ou forças por meio dos quais elas agem a distância não apenas sobre os raios de luz, refletindo-os, refratando-os e inflectindo-os, mas também umas sobre as outras, produzindo grande parte dos fenômenos da natureza? Pois sabe-se que os corpos agem uns sobre os outros pelas ações da gravidade, do magnetismo e da eletricidade; e esses exemplos mostram o teor e o curso da natureza, e não tornam improvável que possa haver mais poderes atrativos além desses. (...) Não examino aqui o modo como essas atrações podem ser efetuadas. O que chamo de atração pode-se dar por impulso ou por algum outro meio que desconheço. (Newton, 1998, p. 274)
Newton propõe a existência de um tipo especial e específico de força de atração,
como responsável pela ação química, diferente dos fenômenos de gravitação, magnetismo
e eletricidade, que estaria sujeita a suas próprias leis e até aquele momento não conhecida.
A fascinação de Newton pela transmutação alquímica e sua convicção do caráter hermético
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desse conhecimento fez com que ele criticasse um trabalho de Boyle a respeito de estudos
alquímicos, não pelo assunto mas porque acreditava que o público em geral não devia ter
acesso a tal conhecimento. Muitas de suas notas em alquimia revelaram sucessos em
experimentos onde outros contemporâneos haviam falhado, no entanto, o físico alquimista
falhou em seu propósito de descobrir qual a força que governa os pequenos corpos
componentes dos processos químicos, as quais procurava submeter à mesma interação que
age nos grandes corpos.
O monge croata Ruggero Giuseppe Boscovich (1711-1787), por exemplo, utilizou
uma tese de Newton, que tratava o corpo químico como sendo constituído por um edifício
complexo de partículas, podendo este ser modificado pelas reações. Nesse caso, Boscovich
indica que as forças de atração que atuam no corpo químico são específicas pois são
determinadas pelo edifício e resultantes da atuação de cada ponto individual que participa
dele. A dinâmica do sistema idealizado por Boscovich era bastante complexa, de tal forma
que a porção de uma partícula pertencente ao edifício poderia atrair uma outra, enquanto
outra porção poderia repelir uma terceira. Nesse sistema, essa partícula última, responsável
pela ação química, é um centro de força pontual. Com isso, o monge croata pretendia
unificar todas as ações naturais em torno dessa noção, como indica o nome de seu livro
publicado em 1758 Uma teoria de filosofia natural – Reduzindo a uma única lei todas as
forças que existem na natureza44. Boscovitch conclui que mesmo que se constitua uma
teoria das operações químicas não se conseguiria prever que combinações poderiam ser
feitas. As origens ou causas dos efeitos que produzem os diferentes tipos de edifícios
químicos “excedem de longe o poder do espírito humano” (Stengers, 1989, p. 131).
É patente o traço de semelhança entre os sistemas de Newton e Boscovich, assim
como foi influente o caminho que abriram para novas possibilidades de uma afinidade que
poderia incluir entidades até então desconhecidas.
4.4 AS DIFERENTES FACES DA AFINIDADE QUÍMICA
A edição de 1732 do Elementa Chemia de Hermann Boerhaave (1668-1738) cita
extensivamente a questão 31 de Newton e a utiliza para demarcar o domínio de atividade
da Química:
44 Theoria Philosophiae Naturalis - Redacta ad Unicam Legem Virium in Natura Existentium
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Todas as operações, como conseqüência as que a Química realiza nos corpos também, são meras trocas em relação ao movimento. Um corpo pode operar trocas em relação ao movimento de duas formas: quando todo o seu tamanho é removido de um lugar para o outro, o qual não é considerado pela Química, mas sim pela Mecânica; ou quando suas partes são trocadas entre elas mesmas, ou seja, quando há uma transposição entre suas partes.(...) por isso a Química pode ser definida como a arte de modificar os corpos por dissolução e coagulação (...) separando parte que estavam unidas, ou unindo partes que antes estavam separadas (...). (Boerhaave, apud Stilmann, 1960, p. 503)
As trocas assinaladas por Boerhaave não produzem alterações nos elementos que
constituem os corpos45. Apesar de não haver uma definição específica para o termo
elemento, com ele Boerhaave quer assinalar o último nível de mudança na organização do
corpo químico, indicando uma aproximação com as tendências corpusculares da época.
Boerhaave utiliza o termo affinitas em seu tratado não no sentido dos antigos46, mas
aplicada a tendência de reagir entre corpos de qualidades iguais ou semelhantes, tal como
Newton havia proposto. Muitos tratados após Boerhaave usam o termo afinidade como
atração, no mesmo sentido que Newton, procurando indicar uma atração específica entre
corpos regentes, e colocam ênfase, preferencialmente, na descrição das limitações e
regularidades dessa atração do que sobre o entendimento de sua causa última.
O naturalista francês e famoso matemático Georges Buffon (1707-1788), antecipa
em 1778 a proposição de que o fenômeno de afinidade química poderia ser calculado pela
força de gravitação, sendo que a as manifestações dessa ação seriam modificadas pelas
pequenas distâncias entre as partículas e por suas diferentes formas. Buffon, entende que
devido ao fato dos corpos químicos estarem muito mais próximos uns dos outros do que os
planetas, e mesmo apesar da razão 1/r2, a aproximação newtoniana que faz reduzir as
massas a pontos não valeria na escala das operações químicas. A diversidade e a
especificidade das reações químicas devem e podem ser explicadas pela diversidade de
formas dos corpos. Haveria como se calcular as reações químicas. Ao entender as formas
das partículas que constituem a matéria, poderiam ser deduzidas as afinidades e quais as
possibilidades de reação. A teoria de Buffon foi apoiada por Torbern Olof Bergman (1735-
1784) e Louis Bernard Guyton de Morveau (1737-1816), entre outros. Na França, nesse
momento, evidencia-se a procura por uma química racional, enquanto na Inglaterra, talvez
45 “Art goes no farther than to elements (...)” (p. 503). 46 Dando a entender a semelhança existente entre as propriedades dos corpos que reagem de forma semelhante.
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influenciados pela Revolução Industrial, institui-se um químico utilitarista47, preocupado
mais com a popularização da prática dessa disciplina do que com seus aspectos
conceituais.
Durante o século XVIII as atenções estão concentradas na apuração de leis e
generalizações relativas à afinidade química, começando a surgir trabalhos sistemáticos a
respeito do comportamento de substâncias através da mesma metodologia – a criação das
tabelas de afinidade. O primeiro trabalho a ser publicado com essa ênfase pertence a
Étienne François Geoffroy (1672-1721), professor de Química que apresenta na Academia
de Ciências de Paris em 1718 um ensaio intitulado Tabela de diferentes Afinidades
observadas na Química entre diferentes Substâncias48. Geoffroy utiliza como premissa
para a confecção de sua tabela uma lei básica da época:
Sempre que duas substâncias, possuindo a mesma tendência de combinação uma com a outra, encontram-se combinadas e introduz-se uma terceira que possua maior afinidade com uma das duas, a terceira se unirá a esta, deixando a outra livre. (Stengers, 1996, p. 127)
FIGURA 4.1 – Tabela de Afinidades de Geofroy no original (Hudson, 1992, p. 49)
47 O Historiador Joseph Bem-David (1974) indica que na Inglaterra do século XVIII mede-se o valor da ciência por sua eventual contribuição ao desenvolvimento técnico, econômico e social Segundo Stengers (1996) esta seria uma adequação ao modelo de ciência útil de Fancis Bacon, que imputa seu prestígio mais de um serviço prestado à comunidade do que à razão 48 Table of different Connections (‘rapports’) observed in Chemistry between different Substances (Stilmann, 1960, p. 504)
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A tabela de afinidades de Geofroy consiste de dezesseis colunas listando
substâncias por seus símbolos alquímicos. No topo de cada coluna está uma substância ou
uma classe de substâncias que reage com todas colocadas abaixo da coluna em ordem de
afinidade, de forma que a mais próxima possui maior afinidade. Uma substância acima
pode deslocar outra abaixo, mas o inverso não pode ocorrer.
TABELA 4.1 – Adaptação da Tabela de Afinidades Relativas, segundo Geoffroy (Stilmann, 1960, p. 504)
A F I N I D A D E S R E L A T I V A S
ácidos ácido de sal marinho49 ácido nitroso50 terra absorvente
álcali fixo51 estanho ferro ácido vitriólico52
álcali volátil53 régulo de antimônio54 cobre ácido nitroso
terra absorvente55 cobre chumbo ácido de sal marinho
Metais prata mercúrio
mercúrio prata
Outros dois químicos da segunda metade do século XVIII que dedicaram muita
atenção à determinação das afinidades relativas das substâncias são Torbern Bergman e
Guyton de Morveau. Bergman apresentou seu trabalho sobre afinidade na academia de
Upsala em 1775, e Morveau publicou Elementos de Química, Teórica e Prática em 1777.
Ambos acreditavam na existência de um valor constante para as afinidades mas
encontraram muitas dificuldades experimentais quando procuraram obter tais valores.
Muitas das dificuldades encontradas pelos dois cientistas eram devidas a alterações no
comportamento de afinidade provocadas tanto pelo excesso de um reagente como pela
temperatura. Dessa forma, as tabelas construídas eram em muitos aspectos as expressões
de seus juízos, uma vez que haviam sido obtidas a partir de dados experimentais não
sistemáticos para as afinidades relativas a temperaturas normais de trabalho. Bergman
construiu tabelas para a via seca e para a via úmida, reconhecendo assim a influência de 49 Ácido clorídrico (HCl). 50 Corresponde ao ácido nítrico (HNO3) atual. 51 Carbonato de sódio (Na2CO3). 52 Ácido sulfúrico (H2SO4). 53 Termo muito comumente associado a soluções amoniacais, e.g. hidróxido de amônio. 54 Os antigos mestres, quando se referiam ao antimônio queriam indicar o respectivo mineral, ou seja, a estibina (antimonita) ou sulfeto natural de antimônio. Para distinguirem o mineral do metal designavam este último por régulo de antimônio. 55 Não há fórmula correspondente específica, normalmente associado a carbonatos (incluindo o mármore por exemplo), silicatos e sulfatos.
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uma grande faixa de temperatura nos processos que conduzia. Ele dispôs as substâncias em
49 colunas encabeçadas pelas mais diferentes delas: ácidos, álcalis, “calces”56 de metais,
etc., ou seja, todas as substâncias conhecidas até aquela época, arranjadas abaixo das
anteriores em ordem decrescente de afinidade relativa. A partir dessas tabelas, chamadas
de Atrações Eletivas Simples pretendia-se que os químicos poderiam antever o curso de
qualquer ação57 entre as correspondentes substâncias.
TABELA 4.2 – Primeira e penúltima colunas da tabela de atrações eletivas simples de Bergman (Stilmann, 1960, p. 507)
C o l u n a 1 Á c i d o S u l f ú r i c o
C o l u n a 4 8 C a l x d e M e r c ú r i o
Pela via úmida Pela via seca Pela via seca Pela via úmida 2. barita pura58 barita pura ácido sebácico ouro 3. potash puro59 potash puro ácido hidroclórico prata 4. soda pura soda pura ácido oxálico platina 5. cal ligeira60 cal ligeira ácido arsênico chumbo 6. amônia pura magnésia pura ácido fosfórico estanho 7. magnésia pura61 calces metálica ácido sulfúrico zinco 8. alumina pura amônia ácido lático 9. calx de zinco alumina pura ácido tartárico bismuto 10. calx de ferro ácido cítrico 11. calx de manganês ácido fórmico cobre 12. calx de cobalto ácido nítrico antimônio 13. calx de níquel ácido fluorídrico arsênio 14. calx de chumbo ácido acético ferro 15. calx de estanho ácido carbônico 16. calx de cobre 17. calx de bismuto 18. calx de antimônio 19. calx de arsênio 20. calx de prata 21. calx de ouro62 22. calx de platina
56 Qualquer substância obtida por aquecimento forte em presença de corrente de ar, normalmente óxidos. 57 No sentido de uma combinação química. 58 Óxido de bário. 59 Carbonato de potássio. 60 Óxido de Cálcio. 61 Carbonato de magnésio. 62 Não realmente um composto, mas pedaços de ouro sem cor, formados após longa exposição a temperaturas elevadas.
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As tabelas de afinidade, e em especial a de Bergman, atraíram a atenção dos
químicos do final do século XVIII. Lavoisier, por exemplo, ficou impressionado com o
poder de organização das tabelas e apontava que finalmente a Química encontrava seu
caminho para uma verdadeira ciência, destacando no entanto os obstáculos que poderiam
ser encontrados no curso desse caminho. No livro de Richard Kirwan (1733-1812) Essai
sur la Phlogistique, traduzido para o francês pela esposa de Lavoisier, há uma crítica a
uma tabela de afinidades feita pelo próprio Lavoisier a respeito das relações de
combinação de diversas substâncias com o oxigênio. Lavoisier nessa mesma edição
francesa rebate:
O Sr. Kirwan, em suas críticas à minha tabela de afinidades do princípio oxigênio com várias substâncias, não me julga mais severamente do que eu mesmo, então deve ser avisado de que todas as objeções que faz em relação à minha tabela, eu mesmo havia feito antes dele, e talvez de maneira mais competente. (Stilmann, 1960, p. 506).
Lavoisier admite ter utilizado a estratégia das tabelas de afinidade a fim de
encontrar regularidades na ação de seu principe oxigéne com outras substâncias, mas
defende-se expondo que não era ignorante das dificuldades envolvidas nessa estratégia.
Primeiramente, ele indica que tais tabelas representam afinidades simples, enquanto
existem casos de afinidade dupla, tripla e outros mais complicados. Em seguida, a
influência da temperatura também é considerada, o que complica as combinações através
da fusão e ebulição dos corpos e altera suas afinidades relativas. De modo a serem obtidas
tabelas em acordo maior com a experiência, seria necessário fazer uma para cada grau do
termômetro. Outro aspecto considerado pelo químico francês é com relação a incapacidade
das tabelas de expressar modificações que ocorrem na força de atração das substâncias
devido os diferentes graus de saturação que possuem, ou seja, o enxofre e oxigênio
possuem no ácido sulfúrico diferente atração daquela manifestada no ácido sulfuroso.
Mesmo ciente de todas essas limitações, Lavoisier aponta que optou pelo uso de tabelas de
afinidade uma vez que poderiam, ainda assim, ser de alguma utilidade pelo acúmulo de
experimentos que conseguem organizar. “Talvez, algum dia, a precisão dos dados
conduzirá a ponto dos matemáticos poderem calcular o fenômeno da combinação química
de qualquer substância, da mesma forma que calculam o movimento dos corpos celestes”
(ibidem). Enfim, Lavoisier preferia não depositar esperança totalmente na afinidade devido
à ausência de dados experimentais confiáveis, e de toda forma, para ele, seria muito confiar
65
que esse tipo de instrumental constituísse a base fundamental de uma parte tão importante
da Química.
O programa de pesquisa químico se inaugura com uma extensão empirista, onde há
um grande investimento em atividades experimentais para produção de tabelas de
afinidades que pretendem fornecer subsídios para o entendimento do que há por trás da
ação química. Tanto esse frenesi empírico quanto o alerta agnóstico de Lavoisier em
relação aos perigos de sua adoção indistinta, marcaram as pesquisas posteriores. A posição
de Lavoisier é na verdade de respeito em relação às afinidades, sendo digno de nota que
em seu tratado de nomenclatura, ao apresentar a nomenclatura dos sais de vários ácidos, o
químico francês arranja as bases “em ordem de suas afinidades com os ácidos” (Stilmann,
1960, p. 510); sendo essa a mesma ordem usada por Bergman na via úmida.
As antigas noções de matéria não foram simplesmente descartadas, mesmo quando
reavaliadas à luz do racionalismo. Na verdade, o trabalho empírico pioneiro desses
cientistas, mesmo quando exposto à luz de uma racionalidade científica, está carregado de
paixão, ciúme, mistério e espiritualidade, somente não mais de forma hermética como
preferiam os iniciados.
4.5 A AFINIDADE POSITIVA DE BERTHOLLET
Claude Louis Berthollet (1748-1822), nascido italiano de pais franceses, foi
discípulo tardio de Lavoisier e procurou desprezar na noção de afinidade qualquer atributo
intrínseco e constante desse ou daquele elemento, mostrando que a manifestação da ação
química depende de fatores físicos variáveis e externos ao corpo químico: quantidade de
substâncias, calor, pressão, bem como o estado físico63 dos compostos capazes de surgirem
da eventual reação. Os enunciados de Berthollet são, ainda hoje, as bases didáticas para o
entendimento dos processos de dupla troca:
Todas as vezes que, por dupla decomposição puder formar-se um corpo menos solúvel dentre diversos que se acham em presença, esse composto se formará, efetuando-se completamente a dupla troca. Todas as vezes que, por dupla decomposição, puder formar-se um composto volátil nas circunstâncias da
63 Quanto à influência do estado físico das substâncias, Berthollet persegue o mesmo caminho proposto por Bergman, quando assinalou que a reação entre certos corpos se processa de modo diverso conforme ajam no estado natural (via seca), ou dissolvidos na água (via úmida).
66
experiência esse composto se formará efetuando-se completamente a dupla troca. (Garcia Paula, 1950, p. 41)
Para Berthollet as forças que produzem os fenômenos químicos são todas derivadas
da atração mutua das moléculas dos corpos, as quais são chamadas de afinidade, com o
objetivo de serem distinguidas daquilo que ele chamava de atração astronômica. Para
Berthollet, essas duas atrações, uma inerente aos corpos químicos e a outra inerente aos
corpos celestes podia ser governada segundo os mesmos princípios. A afinidade,
entretanto, seria totalmente modificada por condições particulares e freqüentemente
indetermináveis, ou seja não dedutíveis a partir de um princípio geral, mas que mesmo
assim podiam ser constatadas sucessivamente. Nenhum desses efeitos que modificariam a
afinidade de um corpo ocorreria isolado dos outros, de modo que não poderia ser
submetido a um cálculo.
O efeito imediato da afinidade de uma substância seria uma combinação, na qual
todos os efeitos que são produzidos pela ação química são uma conseqüência da formação
de qualquer combinação. Toda a substância que tende entrar em combinação age pela ação
de sua afinidade e de sua quantidade, mas não somente por causa delas.
A ação química de uma substância não depende somente da afinidade que é própria das partes que a compõem, e da quantidade; ele depende ainda do estado que essas partes se encontram, é pela alteração disso que se pode fazer aumentar ou diminuir uma parte de sua afinidade, pela dilatação ou condensação que faz variar a distância recíproca. (...) A análise da ação química deve levar em consideração todas essas condições. (Berthollet, 1803, p. 3)
Berthollet minimiza a constituição química como definidora das características do
corpo químico e procura colocar na disputa o estado de agregação da substância. Essas
convicções são decorrentes de sua premência pelo visível, o qual revelaria que as
substâncias quando se encontram dissolvidas tomam parte na ação química de modo muito
mais efetivo do que quando se encontram no estado sólido.
Seguindo o caminho do positivismo, Berthollet procura formular uma teoria que
organize as características peculiares dos processos químicos de transformação. Nessa
peculiaridade, Berthollet parece querer encontrar também uma forma própria da ação
química que seja, por exemplo, independente das forças características dos corpos celestes.
O caminho trilhado por ele é preferencialmente de demarcação dessas interseções através
de definições de atributos da matéria que seriam totalmente particulares à química.
67
O primeiro efeito da afinidade sobre o qual eu fixo atenção, é o que produz a consistência das partes que entram na composição dos corpos. É esse efeito recíproco das partes em afinidade que eu distingo pelo nome de força de coesão, que se torna uma força oposta a todas aquelas que tendem a fazer o corpo entrar em combinação. Todas as afinidades que tendem a diminuir a força de coesão devem ser consideradas com uma força que lhe é oposta, cujo resultado é a dissolução. (...) A ação recíproca que tende a unir as partes de uma substância, pode vir a se tornar uma força dissolvente, e sua energia diminui à medida que se aumenta a quantidade de solvente, ou aumentada pela ação do calor. (...) A cristalização é um dos efeitos mais notáveis da força de coesão, as partes que se cristalizam assumem um arranjo simétrico que é determinado pela ação mútua das partes sólida, cujas forças de coesão separaram do líquido. (Berthollet, 1803, p. 10-12, sem grifo no original)
Berthollet procurou proteger o conceito de afinidade das fantasias metafísicas que o
assombravam, buscando legitimação através de um caráter racional apoiado em dados
empíricos e da experiência sensível. Agora, não bastava somente a afinidade para por um
corpo em ação química com outro, outros fatores deveriam ser observados64.
4.6 A VALÊNCIA PREMATURA DE HIGGINS
Em 1789, o químico irlandês William Higgins (1763-1825) foi responsável por uma
antecipação da noção de valência com fundamentos atomistas quando, ainda estudante de
Oxford, publicou um livro comparando opiniões contra e a favor da teoria do flogisto.
Durante suas especulações sobre combinação química, Higgins utiliza um sistema baseado
em partículas últimas, que são assinaladas em diagramas, procurando explicar as forças
que as mantém unidas, usando como exemplo óxidos de nitrogênio. Nesse caso, tem-se que
a força entre a partícula última de oxigênio e a partícula última de nitrogênio é 6,00
(conforme a figura 4.2), e esse valor é dividido igualmente entre os elementos. Se duas
partículas de oxigênio se combinarem com uma de nitrogênio, a força 3,00 da partícula de
nitrogênio é dividida em duas forças de 1,50 de modo que a força que une cada partícula de
oxigênio à de nitrogênio é agora 4,50.
64 Para Berthollet os outros fatores continuavam provocando modificações na afinidade dos corpos. Em certa medida, ele mantinha a afinidade como a causa última da ação química. Essa relação mútua de causa e efeito entre um fator e a afinidade era prioritariamente de natureza química, a dissolução de um sólido em um líquido era governada por conjunto de ações químicas que poderiam, inclusive alterar a composição química da substância em questão. Ironicamente, em 1864, 61 anos depois da primeira edição do Statique Chimique, Cato Maxmilliam Guldberg e Peter Waage num artigo intitulado “Estudo a respeito da afinidade” formulariam matematicamente, pela primeira vez, as bases da ação química pretendida por Berthollet, que acabaria por se consagrar mesmo como uma influência física e não química – a concentração dos reagentes.
68
FIGURA 4.2 – Diagramas de Higgins para óxidos de nitrogênio (Partington, 1957, p. 167).
Ao adicionar 3, 4 e 5 partículas de oxigênio, as forças entre as partículas em
combinação se tornam, respectivamente, 4,00; 3,75 e 3,60. Higgins conclui em seguida que
a força que resultaria da adição de mais uma partícula a esse sistema, seria tão pequena que
não seria suficiente para manter as partículas unidas, desse modo, compostos de nitrogênio
com quantidades relativas de oxigênio maiores do que cinco unidades não deveriam existir.
Mesmo sendo as idéias de Higgins derivadas apenas em parte de informações
experimentais, mormente a partir de especulações, e principalmente sem ter levado em
consideração os pesos relativos dos elementos, sua proposta poderia ter sido um
“esqueleto” muito promissor, tanto da própria valência, quanto de questões como energias
de ligação e proporções múltiplas. O momento, no entanto, não era oportuno para um
atomismo químico uma vez que a química analítica ainda estava em estado rudimentar, e
assim sendo, mesmo tendo suas idéias bem divulgadas no continente o trabalho do irlandês
atraiu pouca atenção.
4.7 A AFINIDADE, O EQUIVALENTISMO E OS ÁTOMOS DE DALTON
O inglês John Dalton (1766-1844) era ainda um jovem professor interessado em
estudos meteorológicos, quando teve acesso ao trabalho de Newton e começou a investigar
o fenômeno da difusão gasosa, o qual apontava problemas para o quadro newtoniano de
comportamento dos gases. Newton demonstra na proposição 23 do livro II do Principia
que em um gás as partículas se repelem pela ação da força proporcional à raiz quadrada do
inverso da distância entre elas, e que a pressão de uma quantidade fixa de gás dobra
69
quando o volume é diminuído à metade, obedecendo à lei de Boyle. As descrições
históricas existentes em muitos livros didáticos apontam o modelo atômico de Dalton
como um sucessor de Lavoisier e fazem concluir que haveria sido nessa trilha que o
cientista inglês teria elaborado seu átomo. Mas foram as pegadas de Newton e não de
Lavoisier que Dalton seguiu inicialmente. Dalton empregou um modelo muito similar ao
usado por Newton, essencialmente estático, que imaginava o gás como sendo um arranjo
tridimensional de partículas mutuamente repulsivas e idênticas.
Dalton não fez nenhum trabalho experimental importante até o final do século
XVIII, quando se interessou pelo estudo da natureza da atmosfera. Ele verificou que a
quantidade de vapor d´água no ar aumentava com a temperatura, determinando o mesmo
comportamento para outros gases. Seus estudos sobre a pressão de vapor da água levaram-
no a rejeitar as idéias de Lavoisier e da escola francesa que indicava que esse vapor estava
quimicamente combinado com o nitrogênio e o oxigênio na atmosfera, convencendo-se
mais tarde de que o ar não era um composto químico. Durante esses estudos, em 1801,
Dalton percebe que a adição de vapor d´água ao ar seco aumenta a pressão total do
sistema, o que é indicado pelo aumento da quantidade de pressão de vapor. Ele passa a
entender que a pressão que o vapor d´água exerce na mistura é igual à pressão que seria
exercida se nenhum outro gás estivesse contido no mesmo volume total, concluindo então
que a pressão que um gás exerce em uma mistura independe da pressão exercida pelo outro
gás, e que a pressão total do sistema é a soma das pressões que cada gás exerce
isoladamente. Está formulada então a lei das pressões parciais.
Porque a história das pressões parciais é importante para a afinidade? O sucesso na
descrição desse tipo de comportamento de sistemas gasosos, promove um alerta no
químico inglês quanto à possibilidade de descrever tais propriedades em função de suas
partículas constituintes últimas. A física do século XVII postulava que a pressão de um
sistema gasoso era devida a repulsão de suas partículas constituintes. Para Dalton era
difícil conciliar um sistema onde só houvesse repulsão entre as partículas do mesmo tipo,
então ele passa a considerar que as partículas gasosas devem consistir de centros de massa,
rodeados por uma atmosfera de calórico65. O calórico seria o responsável pela força
repulsiva, sendo desse modo possível à repulsão entre partículas diferentes. O próximo 65 O calórico era considerado como um tipo especial de substância, responsável pelos efeitos térmicos da natureza. Quando se aquecia qualquer tipo de matéria, se estava adicionando calórico a ela. O calórico era uma espécie de invólucro do átomo nessa concepção estática da matéria. Para uma consulta detalhada sobre a participação do calórico na teoria dos gases, incluindo a participação de Lavoisier, Laplace e Sadi Carnot, pode-se consultar Fox (1971).
70
passo de Dalton é indicar que diferentes tipos de partículas possuem diferentes tamanhos,
exercendo assim diferentes forças entre elas. Outra indicação decorrente dessa explicação é
que, provavelmente, se as partículas possuíam diferentes tamanhos deveriam possuir
diferentes pesos.
O primeiro anúncio de sua teoria a respeito dos tamanhos e pesos das partículas
constituintes dos gases veio num artigo referente à solubilidade de gases em água, lido em
1803 na Sociedade Literária e Filosófica de Manchester, e publicado em 1805. Nesse
artigo, Dalton esclarece que o processo de dissolução de um gás em um líquido é
“simplesmente uma mistura mecânica” e não uma combinação química. O modelo
mecânico newtoniano anterior, que supunha a existência de partículas gasosas semelhantes,
indicaria que a água deveria dissolver todos os gases da mesma forma, ou seja, na mesma
quantidade, mas isso não acontece; essa dificuldade diversificada estaria associada aos
diferentes tamanhos e pesos das “partículas finais” desses gases. Nesse artigo também
Dalton apresenta a primeira tabela de pesos atômicos, apesar de não revelar como os teria
obtido.
FIGURA 4.3 – Representação de Dalton para os átomos com seus invólucros de calórico. Note-se que entre os átomos semelhantes às linhas de calórico se tocam perfeitamente, havendo repulsão entre eles. Entre os átomos diferentes, as linhas de calórico não se tocam, garantindo a mistura. (Dalton, 1808)
71
O relato completo, na forma de uma “teoria atômica”, foi dado primeiramente em
1807 por Thomas Thomsom66 (1773-1852) na terceira edição do seu livro Sistema de
Química67 e definitivamente pelo próprio Dalton em 1808 no livro Um Novo Sistema de
Filosofia Química68, onde Dalton substitui suas “partículas finais” pela palavra átomo. Os
elementos seriam compostos de átomos elementares e os compostos de átomos compostos.
A forma de combinação entre os átomos nos diferentes compostos, obedecia ao que Dalton
Chamava de Princípio da Simplicidade, no qual ele postulava que quando dois elementos
A e B, por exemplo, formam um único composto, este contém um átomo de A e um de B;
se um segundo composto existir o átomo composto conterá dois átomos simples de A e um
de B; se ainda um terceiro existir será formado por um de A e dois de B, seguindo-se as
menores combinações inteiras simples entre eles. Com base nisso Dalton propõe que a
molécula da água era composta por um átomo de hidrogênio e um de oxigênio. Apesar de
totalmente infundado, Dalton fez boas previsões com seu princípio para alguns compostos.
Uma parte significativa do trabalho de Dalton está relacionada ao simbolismo que
ele criou para seus átomos. Diferente dos símbolos existentes, que possuíam relações
místicas e alquímicas implícitas, Dalton impunha um significado quantitativo na sua forma
de representação, que utilizava círculos com desenhos específicos para cada um dos
átomos elementares. O arranjo dos átomos elementares nos átomos compostos era
arbitrário mas procurava manter a noção de que átomos iguais se repeliam.
66 Thomsom havia sido convertido para os pontos de vista de Dalton a partir de uma visita em 1804. 67 System of Chemistry. 68 A New System of Chemical Philosophy.
72
FIGURA 4.4 – Representação proposta por Dalton para seus átomos. (Dalton, 1808)
Os átomos de Dalton não foram aceitos de pronto, apesar do amplo poder
explanatório que esse modelo oferecia para muitas evidências empíricas surgidas, ou já
amplamente conhecidas no começo do século XIX. Uma das características singulares dos
átomos de Dalton, conforme alguns historiadores da ciência (Thuillier, 1994, p. 178), é a
de exemplificar que uma teoria pode ser utilizada sem que necessariamente sejam
admitidas como realidade às “entidades teóricas” criadas por ela, ou seja, a adoção prática
da teoria de Dalton não implicava necessariamente na crença da existência real dos átomos.
Isso fornece uma medida do tamanho do caráter especulativo que os átomos de Dalton
carregam. Há uma certa ingenuidade na crença de que os modelos de Dalton são
conseqüência de uma atividade experimental organizada, bem como também é ingênua a
crença de que as famosas leis ponderais sejam uma coleção de fatos puramente empíricos e
teoricamente neutros, que implicam imediatamente nos átomos de Dalton. Na verdade,
Dalton hesitou entre apostar firmemente nos seus átomos materiais, e desenvolver uma
coleção de dados empíricos que demonstrassem a relação de quantidade existente entre os
elementos que participavam de um composto. O vacilo de Dalton fez com que alguns
atomistas recém-natos abjurassem, e se voltassem para terrenos mais seguros como o
equivalentismo.
73
4.7.1 O Equivalentismo
O intenso trabalho experimental de Jeremias Richter (1762-1807), e sua obsessão
por descrever os processos de transformação a partir de relações matemáticas, colocam-no
como um dos precursores que ajudaram no estabelecimento do conceito de equivalente ou
peso de combinação. Muito desse trabalho realizado anteriormente foi sumarizado em
1802 por Ernst Fischer (1754-1831), que produziu uma tabela de equivalentes de ácidos e
bases, considerando o valor do ácido sulfúrico como 1000. Nessa escala, o ácido
muriático69 possuía o valor 712, a soda 859 e a potassa 1605. Isso significava que 859
partes de soda ou 1605 partes de potassa eram necessárias para neutralizar 1000 partes de
ácido sulfúrico ou 712 partes de ácido muriático.
Uma das mais graves objeções à teoria atômica de Dalton estava no Princípio da
Simplicidade. Em 1814, William Hyde Wollaston (1766-1828) que fora um dos primeiros
adeptos da teoria atômica já havia perdido seu entusiasmo devido às limitações que a
simplicidade impunha à determinação dos pesos atômicos, propondo que fossem usados
em seu lugar os pesos equivalentes. Ritcher havia calculado os equivalentes em termos de
ácidos e bases, Wollaston ampliou esses resultados incluindo sais e outros elementos. Os
equivalentes de Wollaston usavam uma escala baseada no oxigênio que era assinalado com
o valor referencial 10, baseado nisso, por exemplo, o hidrogênio assumia o valor 1,32.
Wollaston indicava em seus trabalhos que não rejeitava a teoria atômica completamente,
mas considerava que o trabalho de determinação de pesos atômicos era em vão, uma vez
que havia uma suposição arbitrária que governava às razões pelas quais esses átomos
combinavam. As opiniões de Wollaston foram muito influentes e muitos químicos
utilizaram os equivalentes químicos no lugar de pesos atômicos.
Em 1814 Wollaston publica Escala Sinótica de Equivalentes Químicos70 (Nye,
1996, p. 36), a qual usava o oxigênio no lugar do hidrogênio como base de referência para
os cálculos dos chamados pesos equivalentes. Essa tabela foi extremamente popular na
Inglaterra até a década de 1860, inspirando inclusive o germânico professor de química da
Universidade de Heidelberg, Leopold Gmelin (1788–1853).
69 Ácido clorídrico, HCl. 70 Synoptic Scale of Chemical Equivalents.
74
4.7.2 Dalton Versus Gay-Lussac e a Molécula de Avogadro
Um trabalho importante que poderia ter colocado luz definitivamente sobre a
questão das razões de combinação entre os átomos e nas relações de afinidade dos
elementos, pelo menos a respeito das reações gasosas, foi apresentado em 1808 por
Joseph-Louis Gay-Lussac (1778-1850). Por aqueles anos, mesmo Dalton sabia que
oxigênio e hidrogênio combinavam-se na razão 1:2 de seus volumes para a formação de
água, Gay-Lussac demonstrou que também em outras reações existem relações inteiras
entre os volumes dos reagentes e produtos, o que poderia sugerir que volumes iguais de
gases diferentes poderiam possuir a mesma quantidade de átomos elementares ou
compostos. Dalton entretanto não concordava, nem aceitava os resultados de Gay-Lussac,
os quais rebatia a partir do exemplo do monóxido de carbono que segundo essa idéia
deveria ser mais denso (contendo um átomo de carbono e um de oxigênio) do que o
oxigênio (que segundo Dalton seria formado por um único átomo elementar), o que no
caso os dados empíricos contestavam71.
Foi o italiano Amedeo Carlo Avogadro (1776-1856) que demonstrou que era
possível reconciliar a teoria atômica de Dalton com os resultados de Gay-Lussac. Partindo
dos exemplos discutidos no trabalho de Gay-Lussac, Avogadro demonstrou que as
ambigüidades desapareciam se fosse assumido que as moléculas envolvidas nas reações se
dividissem em meias-moléculas, ou seja, que se pudesse supor a existência de espécies
com dois átomos elementares como entidades formadoras dos sistemas gasosos. Avogadro
não utilizava a palavra átomo, mas sim o termo meia-molécula como seu substituto, além
de se referir a outros tipos de moléculas: molécula integrante, quando se referindo aos
sistemas combinados de meias-moléculas; molécula constituinte, referindo-se à molécula
dos gases como oxigênio, hidrogênio, nitrogênio, etc.; molécula elementar, usada em
analogia aos átomos dos elementos. Avogadro demonstrou, baseando seus argumentos nos
raios de combinação e na densidade dos gases, de que maneira a densidade do vapor de
água poderia ser menor do que a do oxigênio.
Apesar de suficientemente coerentes e fielmente suportadas por material empírico
confiável, as propostas de Avogadro foram amplamente rejeitadas. Os químicos
aparentemente davam nenhuma importância ao artigo de Avogadro, que comumente é 71 A questão aí é que Dalton entendia que o gás oxigênio seria formado por um átomo elementar, quando na verdade deveria ser formado por dois.
75
encarado como confuso, portador de uma terminologia ambígua e recorrendo a uma
matemática complexa. A análise de alguns historiadores, no entanto, considera difícil
desenhar esse quadro, indicando que a terminologia seria nova mas sem nenhuma
ambigüidade, utilizando uma matemática simples e de acordo com os recursos da prova
que pretendia obter. A hipótese de Avogadro ainda foi revivida em 1814 por André Marie
Ampère (1775-1836), mas sem maiores sucessos.
4.7.3 A Controvérsia a Respeito das Proporções Definidas
A concepção de afinidade que Dalton possuía não era contrária à de seus
contemporâneos, onde um sólido era concebido como um sistema mantido pela afinidade
mútua de pequenas partículas, que no caso de uma dissolução, por exemplo, passariam a
ter maior afinidade pelo líquido que as dissolveria do que entre elas mesmas, mesmo
quando estava no estado sólido. As soluções, como sal de cozinha em água e os gases na
atmosfera, eram consideradas como resultado de combinações químicas conduzidas pelas
afinidades mutuas dos corpúsculos que constituíam essas substâncias. Uma controvérsia
central na Química do início do século XIX decorria dessa evidência empírica a respeito
das soluções. Os químicos queriam saber se haviam proporções constantes nas
combinações químicas, ou seja, se uma combinação química levaria sempre a uma
substância com composição fixa. Dalton achava evidente que sim, pois se uma combinação
não acontecia em proporção fixa não era uma combinação química72. Por Dalton não
possuir uma formação específica em Química, essa não era uma questão central em suas
atividades, sua aceitação acerca das proporções fixas era mais uma concepção a priori do
que um entendimento mais claro das possibilidades de causas desse comportamento.
O debate acerca das proporções fixas foi polarizado em torno de dois personagens
franceses: Joseph Louis Proust (1754-1826) e Claude-Louis Berthollet (1748-1822). O
segundo foi um dos colaboradores de Lavoisier na reforma da nomenclatura química e
dedicou-se ao estudo da produção de salitre, necessário a fabricação da pólvora. Durante a
lavagem das rochas nitrosas, observava-se que quanto maior a quantidade de salitre
existente na água, menor era a eficácia da extração. Berthollet deduz desse comportamento 72 Um dos problemas estava no fato de encararem soluções de sal em água como reações químicas, desse modo, a amostra de águas salgadas de diferentes regiões revelava na maioria das vezes proporções diferentes de sal na água.
76
que a capacidade de um corpo se combinar deve diminuir proporcionalmente em relação à
quantidade de combinação já obtida. A afinidade química, nesse sentido, passa a ser função
de um estado físico quantidade de partículas por unidade de volume dos reagentes
envolvidos. Para Berthollet um composto químico não tem uma identidade determinada,
cada composto é uma mistura particular, que depende de suas condições de produção. As
proporções entre as quantidades de elementos que integram um corpo químico são
variáveis. A proeminência dos resultados de Berttholet e seu poder no sistema político
francês como ministro de Napoleão renderam-lhe algumas tranqüilidades na defesa das
proporções variáveis. No entanto essa noção seria demolida pelo filho de um farmacêutico,
durante uma longa batalha.
Em 1799 Proust analisou o carbonato básico de cobre de ocorrência natural
(malaquita) e o mesmo produto preparado em laboratório, encontrando os mesmos
resultados analíticos. Proust demonstrou que havia constância na proporção de composição
dessa substância assim como em outras, indicando também que diversos metais podem
formar diferentes óxidos e sulfetos, onde cada um deles apresenta composição constante.
As evidências empíricas de Proust não convenceram Berthollet, que desafiava Proust
constantemente. Berthollet citava o exemplo do metal cobre que parecia formar uma ampla
série de óxidos composição diferente. Proust respondia que isso era devido à formação de
diferentes misturas de dois óxidos, cada um desses dois com composição constante. A
disputa entre Berthollet e Proust permaneceu por um bom tempo, a noção das composições
variáveis, no entanto, era inconciliável com as propostas ponderais de Dalton e foi
paulatinamente perdendo espaço, considerando-se que somente a partir de 1808 houve uma
“aceitação geral” das proporções constantes73. Trabalhando em Madri nesse mesmo ano,
Proust tem seu laboratório destruído quando Napoleão invade a Espanha. As proporções
definidas foram enunciadas conforme a seguir pelo próprio Proust.
(...) as propriedades dos compostos verdadeiros são invariáveis, assim como a razão de seus constituintes. Em toda sua extensão são idênticos quanto a esses dois aspectos; sua aparência pode variar devido à forma de agregação, mas suas propriedades nunca. Nenhuma diferença foi encontrada até o momento, entre os óxidos de ferro do norte e do sul. O cinábrio [sulfeto de mercúrio] do Japão é constituído na mesma proporção daquele de Almadenha. (Freund, 1904, p.137)
73 Deve-se destacar que muitos anos depois foram descobertos alguns compostos, como óxidos e sulfetos de ferro II, que de fato podem possuir composição variável. No caso do sulfeto de ferro II, alguns pontos da rede cristalina são substituídos por ferro III ou permanecem vazios, causando essa alteração. Esses compostos “não estequiométricos” são chamados de Berthollide Compounds.
77
Desse modo a lei das proporções fixas se tornou um fato para os químicos. Antes
disso, a afinidade, conforme derivada da filosofia mecanicista de Isaac Newton, devia
explicar ao mesmo tempo as ligações que formam um composto químico e a reação. As
duas questões são distintas agora. As reações podem ser manipuladas em função da
temperatura e das concentrações, por exemplo. Não se pode no entanto, manipular a forma
como os corpos simples interagem a fim de formar as substâncias.
4.7.4 O Unitarismo através da Hipótese de Prout
Dalton insistia que os átomos de um elemento eram diferentes dos átomos de outro
elemento. Como a quantidade de elementos crescia durante o início do século XIX, a
quantidade de átomos ia à mesma medida. Lavoisier havia listado 31 elementos
originalmente em seu Tratado elementar de Química, já em 1826 a tabela de Berzelius
continha 49 elementos. Desde os filósofos da Grécia antiga, entretanto, o pensamento
ocidental dominante apontava para a descrição do mundo material em termos da unidade e
da simplicidade, o que influenciava uma grande parte dos químicos da época e indicava
que o grande número de partículas fundamentais, formulados a partir da teoria atômica,
deveria corresponder a um passo na direção errada. Segundo esse grupo, que sob a égide
da unidade da matéria se opôs ao sistema de Dalton de diversas formas, a natureza deveria
seguir por caminhos mais simples, ou seja, por trás da multiplicidade de elementos deveria
haver algo mais fundamental, um princípio unitário.
O unitarismo orientou os trabalhos do inglês Humphry Baronet Davy (1778-1829),
que decompôs alguns dos elementos de Lavoisier na busca de um elemento fundamental,
encontrando substâncias que posteriormente seriam aceitas como novos elementos. Em
1815 foi publicado no Annals of Philosophy74 um artigo anônimo, indicando que os valores
das densidades de muitos gases podiam ser colocadas como múltiplos inteiros da densidade
do hidrogênio. William Prout (1785-1850), o autor anônimo, publica outro artigo em
seguida, sugerindo que todos os pesos atômicos poderiam ser expressos como múltiplos do
hidrogênio, que então poderia ser considerado como o protyle, a “substância primeira” a
partir da qual todos os outros elementos eram compostos.
74 Revista editada por Thomas Thomsom.
78
A Hipótese de Prout recebeu consideração por parte da comunidade científica em
geral, uma vez que o conceito de elemento que estabelecia era suficientemente operacional
e não havia ainda certeza de como definir se uma substância era um elemento ou um
composto. Alguns dos trabalhos de Davy sugeriam também que havia presença de
hidrogênio no enxofre, no fósforo, e em alguns outros elementos, de onde em alguns casos
os experimentos conduzidos demonstravam que se poderia até recuperar hidrogênio.
Thomas Thomsom foi um dos que lutou para adequar os números atômicos ao novo
conceito, seu livro Uma Tentativa de Estabelecer os Princípios Primeiros da Química por
Experimentos (1825) trazia pesos atômicos baseados na Hipótese de Prout. Para vários
elementos havia números inteiros múltiplos do peso atômico do hidrogênio. O que parecia
ser uma evidência a favor de Prout era na verdade uma negligência de Thomsom para
algumas discrepâncias, as quais ele considerava como erro experimental. Berzelius, a
maior autoridade em valores de pesos atômicos daquela ápoca, estava seguro que as
discrepâncias eram reais e que as evidências a favor da Hipótese não podiam ser
consideradas. Mesmo assim a Hipótese de Prout fazia adeptos de tempos em tempos, e
mesmo Jean Baptiste André Dumas (1800-1884) utilizou-a como referência em suas
pesquisas. O início de sua derrocada definitiva foi marcado pelo artigo publicado em 1860
por Jean Servais Stas (1813-1891).
4.7.5 O Dualismo Eletroquímico de Berzelius
Entre os defensores da teoria atômica de Dalton se encontrava o sueco Jöns Jacob
Berzelius (1779-1848), que em 1813 submeteu o ensaio “proporções químicas”, no qual
fornecia dados experimentais que suportavam a teoria atômica de Dalton e que propunha
um novo sistema de símbolos para os elementos atômicos. Berzelius indicou o uso da letra
inicial do nome em latim do elemento para designá-lo. Quando ocorresse a repetição da
primeira letra de algum elemento, dever-se-ia usar a primeira letra que os dois elementos
não possuíssem em comum em seus nomes75.
Para Berzelius, a causa das proporções múltiplas e das proporções definidas nas
reações químicas residia nos corpos que são formados por partículas indivisíveis do ponto
de vista mecânico, que podem ser chamadas de partículas, átomos, moléculas, equivalentes
75 Por exemplo: enxofre (S – sulfur); silício (Si – silicium); antimônio (Sb – stibium) e estanho (Sn – stanum).
79
químicos, etc. Seguindo o caminho trilhado por Humphry Davy (1778-1829), Berzelius
usou as recém criadas baterias para decompor substâncias salinas através da passagem de
corrente elétrica, depositando assim seus constituintes nos pólos do sistema experimental.
Desse modo, o químico sueco pretendia associar a força de afinidade química com a força
de atração elétrica. As fórmulas químicas utilizadas por Berzelius indicavam como os
grupos de átomos polarizados se mantinham coesos em uma molécula ou composto através
de forças ou cargas de natureza elétrica. As “fórmulas racionais” para o sal amoniacal76 e
para o salitre77 (cujas fórmulas empíricas são NH4Cl e KNO3, respectivamente) eram
assinaladas conforme a figura 4.5 A explicação eletroquímica da afinidade, conforme
elaborada por Berzelius, ficou conhecida como a “teoria dualística” da composição
química.
NH3 • HCl KO • NO2
sal amoniacal salitre
FIGURA 4.5 – Fórmulas racionais, segundo Berzelius, para o sal amoniacal e o salitre (Nye, 1996, p. 42)
O dualismo eletroquímico caracteriza que cada corpo simples ou composto possui
uma polaridade elétrica cuja intensidade varia segundo a natureza do corpo. Essa carga
elétrica reside em todos os corpos e seria a causa da atividade química, cuja intensidade
determina o grau de afinidade existente entre os corpos. O modelo também prevê como as
reações químicas se darão, bastando para isso classificar os corpos numa escala, em função
da quantidade de carga positiva ou negativa. O modelo dualístico de Berzelius recebeu
bastante atenção da comunidade científica, e estava afinado com as descobertas
experimentais de Michael Faraday (1791-1867) que indicavam a existência de uma
proporcionalidade entre o equivalente químico de uma substância e a quantidade de
eletricidade necessária para liberar os elementos constituintes dela78. Estas evidências
empíricas foram encaradas como uma manifestação contundente da analogia entre a força
elétrica e a afinidade química.
76 Cloreto de amônio. 77 Nitrato de potássio. 78 Os equivalentes eletroquímicos de Faraday poderiam ter auxiliado os químicos na solução do problema dos pesos atômicos dos elementos, entretanto, os químicos estavam longe de acreditar na realidade dos átomos. O própio Faraday e Davy antes dele, nunca acharam necessário acreditar em átomos, tendo utilizado em seu lugar os pesos equivalentes.
80
A teoria dualística foi utilizada como munição pesada contra a Hipótese de
Avogadro. Um dos principais questionamentos residia na impossibilidade de entender
como dois átomos de oxigênio poderiam formar uma molécula estável, uma vez que íons
oxigênio são coletados no anodo (pólo positivo) do aparato eletrolítico, indicando assim
que possuem carga negativa. Nesses termos, os átomos eram encarados como partículas
que apresentavam cargas, onde os átomos de alguns elementos eram eletronegativos e
outros eletropositivos. O oxigênio era o mais eletronegativo de todos os elementos e os
metais eram geralmente eletropositivos.
A combinação química resultava da neutralização mútua das cargas opostas,
todavia, o composto formado não era necessariamente neutro dado que as cargas que se
combinavam não eram necessariamente iguais em magnitude (figura 4.6).
+ – Cu + O → CuO (levemente positivo) + – S + 3O → SO3 (levemente negativo)
Os óxidos formados não são neutros e podem combinar-se: + – CuO + SO3 → CuO • SO3 (atualmente CuSO4)
FIGURA 4.6 – Mecanismo reacional proposto através da teoria dualista de Berzelius (Ihde, 1984, p. 132)
O dualismo descreveu com sucesso o modo de combinação dos elementos durante
algum tempo. Com o advento da Química Orgânica entre 1830 e 1840, a teoria dualística
se tornou um empecilho para o entendimento dos compostos orgânicos. Alguns cientistas
concordavam que os preceitos dualistas deviam ser excluídos da obviamente ainda confusa
química dos compostos orgânicos. Mesmo assim, o pensamento dualista continuou a ser
popular entre mineralogistas e analistas79.
79 Ainda hoje os vestígios das idéias de Berzelius são sentidas na análise quantitativa, onde a quantidade dos elementos é demonstrada em termos do óxido no lugar do próprio elemento. Os fertilizantes em geral são comprados por seu conteúdo de K2O e P2O5, no lugar de potássio ou fósforo simplesmente.
81
4.8 A AURORA DA QUÍMICA ORGÂNICA
No início do século XIX a Química orgânica procurava encontrar sua identidade no
interior de uma Química ainda bastante imatura. Lavoisier, por exemplo, já havia pensado
a Química Orgânica como parte integral da Química, e não meramente como relacionada
aos organismos vivos, uma vez que os compostos orgânicos eram produzidos por eles. Mas
essa não era a atitude prevalente no início do século XIX. Berzelius era da opinião de que
os compostos orgânicos não obedeciam a lei das proporções múltiplas, e mesmo tendo de
mudar de opinião posteriormente ele não tinha certeza de como posicionar esses compostos
na Química.
Leopold Gmelin (1788-1853) foi um dos articuladores desse separatismo através da
obra Handbuch der theoretischen Chemie em 1817. O livro era uma compilação do
conhecimento químico da época e mantinha compostos orgânicos e inorgânicos em
categorias separadas. O motivo para essa separação, segundo Gmelin, estaria associado a
quantidade de elementos constituintes dos compostos orgânicos em relação aos minerais.
Os compostos minerais seriam formados prioritariamente por dois elementos, enquanto os
orgânicos por três80. Ele acreditava que os compostos minerais poderiam ser sintetizados
diretamente a partir de seus elementos constituintes, enquanto os compostos orgânicos
requeriam uma planta ou animal para sua produção, sendo o químico capaz de apenas
executar pequenas modificações em sua natureza. Essa concepção era amplamente
difundida e conhecida como vitalismo.
A síntese da uréia por Friedrich Wöhler (1800-1882) costuma ser marcada como a
“experiência crucial” que provocou a derrocada do vitalismo81, no entanto, nem o próprio
Wöhler ou seus colaboradores reclamaram a síntese da uréia como o marco da morte do
vitalismo (Ihde, 1984). O vitalismo na verdade foi perdendo espaço gradualmente à medida
que o conhecimento sobre novos compostos foi sendo permitido pela expansão de um novo
e legítimo programa de pesquisa: a síntese orgânica.
No interior dos grupos que promoviam em ritmo cada vez mais acelerado a síntese
dos novos compostos orgânicos, a substituição de um elemento por outro era um aspecto
80 Seguindo esse noção, Gmelin colocou compostos orgânicos como metano (CH4), etileno (C2H4), cianogênio (C2N2), entre outros, na seção de seu livro que tratava de compostos minerais. 81 Tanto Ihde (1984) quanto Nye (1996) consideram que a demonstração real da possibilidade de preparação de um composto orgânico a partir de materiais completamente inorgânicos foi alcançada por Hermann Kolbe (1818-1884) em 1844 quando sintetizou o ácido acético.
82
que clamava por uma explicação. Esse foi o berço da noção de valência. Um conjunto de
teorias que surgiram a partir da explosão da Química Orgânica.
4.8.1 A Teoria dos Radicais
Durante seu estudo sobre a natureza dos ácidos, Lavoisier postulou que esses
compostos fossem espécies binárias constituídas de um radical e oxigênio. Mesmo com
essa indicação prematura, nenhuma ênfase particular foi dada a essa abordagem estrutural
até 1828, quando Jean Baptiste André Dumas (1800-1884) e Pierre Boullay (1777-1869)
sugeriram que os compostos relacionados ao álcool poderiam ser entendidos como
produtos de adição do etileno (C2H4), assim como compostos amoniacais eram entendidos
como produtos da amônia. A estruturação dos compostos a partir da teoria dos radicais
pressupõe que para qualquer substância que se deseja relacionar a um radical, deve-se
encontrar em sua composição pelo menos uma unidade da fórmula empírica dele (veja a
tabela 4.3).
TABELA 4.3 – Comparação entre compostos derivados do radical etileno e amônia (Ihde, 1984, p. 186)
R A D I C A I S E R E S P E C T I V O S C O M P O S T O S D E R I V A D O S
Derivados do etileno: C2H4 Derivados da amônia: NH3
Álcool C2H4, H2O Hidróxido de amônio NH3, H2O
Éter sulfúrico 2C2H4, H2O Óxido de amônio 2NH3, H2O
Éter clorídrico C2H4, HCl Cloreto de amônio NH3, HCl
Éter iodídrico C2H4, HI Iodeto de amônio NH3, HI
Éter nítrico C2H4, HNO2 Nitrito de amônio NH3, HNO2
Éter acético C2H4, C2H4O2 Acetato de amônio NH3, C2H4O2
Berzelius não se mostrou muito entusiasmado com a proposta do radical etileno, a
não ser pelo fato de que incorporava um certo aspecto dualista. Passado mais algum tempo,
em 1832, Justus von Liebig (1803-1873) e Whöhler publicam um artigo sobre óleo de
amêndoas amargas. Em seus estudos, encontram evidências da existência do radical
benzoil C14H10O2 (na verdade C7H5O). Este trabalho sim impressiona Berzelius, pois o
radical benzoil contém três elementos, incluindo o oxigênio e se comporta como se fosse
83
uma espécie única. Berzelius chega a propor e implementar uma nomenclatura específica
para esses radicais: Bz para o benzoil, E para o etileno.
Liebig também desenvolveu estudos sobre ácidos “polibásicos”, nos quais observou
que esses ácidos possuíam diferentes comportamentos no processo de substituição com os
metais. Assim, Liebig contornou as diferentes capacidades de combinação dos elementos
ao constatar que por exemplo um átomo de antimônio era equivalente a três átomos de
hidrogênio numa substituição, e que um átomo de potássio era equivalente a um único
átomo de hidrogênio. Segundo a definição de Liebig, um radical deveria apresentar pelo
menos duas das três características a seguir:
1. Ser um corpo de constituição fixa que participa de uma série de compostos;
2. Poder ser substituído nos compostos por um corpo simples;
3. Poder se combinar com um corpo simples ou com seus equivalentes.
Um dos pontos críticos na teoria dos radicais era decidir sobre o radical mais
adequado para responder pela formulação mais abrangente de substâncias ou grupos de
substâncias. No entanto, durante a década de 1830, novas séries de compostos sugeriram a
existência de novos radicais. Todos os radicais eram “batizados” por Berzelius.
Entre algumas crises, ajustes e a consagração de outros radicais como capazes de
orientar a formulação e a composição das substâncias orgânicas, a teoria dos radicais foi
muito eficaz para a Química Orgânica. Com ela começou-se a utilizar um radical ou grupo
de radicais para dar forma e “estrutura” a um conjunto de substâncias. Outro aspecto
importante da teoria dos radicais estava no valor particular desse modelo no que se referia
à nomenclatura. A utilização de radicais como “referenciais” para a formulação das
substâncias facilitou a nomenclatura e procurou dar certa ordem ao crescimento de
substâncias orgânicas que eram descobertas e produzidas.
Um dos graves problemas acerca dos radicais era a verossimilhança de suas
fórmulas, normalmente obtidas a partir de pesos atômicos não totalmente confiáveis.
Mesmo os cientistas mais proeminentes, não concordavam entre si e adotavam diferentes
pesos atômicos para o mesmo elemento. Como resultado disso não havia uma
possibilidade de generalização dos radicais obtidos, uma vez que as fórmulas associadas a
eles não faziam sentido fora do sistema mássico particular desse ou daquele cientista. A
tabela 4.4 exemplifica essa dificuldade demonstrando os diferentes pesos atômicos
adotados por diferentes cientistas.
84
TABELA 4.4 – Pesos atômicos dos elementos mais comuns em compostos orgânicos, segundo sua utilização pelos cientistas (Ihde, 1984, p. 191)
D I F E R E N T E S P E S O S A T Ô M I C O S U S A D O S P O R C I E N T I S T A S N O S É C . X I X
C I E N T I S T A H C O
J. J. Berzelius 1 12 16
Liebig 1 6 8
A. Dumas 1 6 16
O que parecia indicar uma solução para a formulação dos compostos orgânicos se
tornou uma grande confusão, com substâncias idênticas sendo formuladas especificamente
por diferentes cientistas, idealizadas a partir de radicais diferentes (tabela 4.5).
TABELA 4.5 – Comparação das diferentes fórmulas associadas às mesmas substâncias derivadas do álcool etílico (Ihde, 1984, p. 191)
F Ó R M U L A S D A S S U B S T Â N C I A S P A R A D I F E R E N T E S C I E N T I S T A S
RADICAL (CIENTISTA RESPONSÁVEL)
Etileno (C2H4) Etil (C2H5) Acetil (C2H3)NOME ATUAL FÓRMULA
ATUAL (Dumas) (Berzelius e Liebig) (Liebig)
Álcool etílico C2H5OH C2H4 • H2O C2H5O • H C2H3O • 3H
Éter etílico (C2H5)O 2C2H4 • H2O [C4H10O • H2O] [C4H6O • 6H]
Cloreto de etila C2H5Cl C2H4 • HCl C2H5 • Cl C2H3Cl • 2H
4.8.2 A Teoria das Substituições e dos Núcleos
O cristalógrafo Auguste Laurent (1807-1853), na sua tese de doutoramento em
Química defendida em 1837, conclui a partir de várias experiências que, em certas
situações, átomos de hidrogênio são eliminados, sendo substituídos por átomos de oxigênio
ou halogênio. Este resultado obtido por Laurent, estava em acordo com a teoria ou lei
empírica das substituições formulada por Dumas em 1834, a qual estabelecia que quando
uma substância contendo hidrogênio é submetida a desidrogenação pela ação do cloro, do
bromo, do iodo, ou do oxigênio, para cada átomo de hidrogênio perdido, ganha-se um
85
átomo de cloro, de bromo, de iodo ou metade de um átomo de oxigênio. Assim, Dumas
supunha que hidrogênio, cloro, bromo e iodo eram equivalentes, e que o oxigênio tinha o
dobro do valor desses elementos em capacidade de substituição. Dumas introduziu assim o
nome metalepsia para as reações de substituição.
Laurent não se conforma com os argumentos meramente descritivos da metalepsia
e durante seu trabalho de doutoramento com Dumas, critica abertamente a teoria dualista
de Berzelius82. Na explicação eletroquímica da combinação, a substituição de um elemento
eletropositivo como o hidrogênio, por um eletronegativo como o cloro, deveria mudar a
natureza da substância formada. Tal fato não ocorria com os corpos estudados por Laurent,
já que o composto de partida e o resultante da substituição possuíam propriedades
semelhantes.
Para Laurent existia uma forma própria de arrumação para os átomos nas
moléculas83, o composto não era somente uma composição. Deveria haver uma
organização preferencial na estrutura elementar desse corpo químico que orientaria as
substituições. Em 1836, ele defende o que viria a ser conhecido como a teoria dos núcleos,
onde advoga que os compostos químicos contêm núcleos ou radicais onde ocorreriam as
substituições. De acordo com Laurent, existiriam núcleos originais (radicaux
fundamentaux) e núcleos derivados (radicaux derivés). Os núcleos originais produziriam
os derivados pela substituição de átomos de hidrogênio por cloro, bromo ou oxigênio ou
ainda por radicais compostos como os grupos amida e nitro. A teoria dos núcleos deveria
corresponder a um abandono da teoria dos radicais, já que os radicais (agora núcleos) não
possuiriam necessariamente uma composição fixa.
Os núcleos originais são apresentados como formas geométricas. Um exemplo de
núcleo original (C8H12) é mostrado na figura 4.7 e corresponde a um prisma quadrilátero
com oito vértices ocupados por átomos de carbono e doze átomos de hidrogênio no centro
dos doze lados. Note-se na mesma figura que os pontos de substituição estão localizados
em faces opostas, assinalados com um X. A substituição nessas posições é possível sem
destruição do núcleo fundamental.
82 Laurent, A. Théorie des combinaisons organiques. Annales de Chimie, n. 61, p. 125-146, 1836. 83 Bensaude-Vincent e Stengers (1992) indicam que Laurent possuía uma distinção evidente entre molécula e átomo: “o átomo representa a menor quantidade de um corpo simples que pode existir em combinação; e a molécula representa a menor quantidade de um corpo simples que pode ser usada para efetuar uma reação química” (p. 187).
86
FIGURA 4.7 – Núcleo fundamental C8H12 (para C=6), segundo a Teoria do Núcleo de Laurent (Ihde, 1984, p.195).
A interpretação geométrica que era decorrente da teoria dos núcleos foi recebida de
modo bastante desfavorável. O modelo pretendido por Laurent abandonava o dualismo de
Berzelius e permitia que o núcleo fosse utilizado sem sofrer modificação, sendo esse
aspecto semelhante ao conceito tradicional de radical. O próprio Dumas recusou suas
especulações.
De maneira muito interessante, um dos papéis cruciais das teorias da substituição e
do núcleo foi exatamente de, através de seu material empírico, iniciar um processo de crise
no modelo dualista de Berzelius. Mais interessante ainda é o fato de que seria o mesmo
Dumas, fiel escudeiro dualismo, que em 1838 ao preparar o ácido tricloroacético e estudar
suas reações e derivados, começaria a aceitar que, nesses casos, o cloro estaria tomando o
papel do hidrogênio. Segundo o modelo dualista, nenhum elemento altamente
eletronegativo como cloro, poderia substituir um hidrogênio eletropositivo, sem alterar
drasticamente o caráter da substância.
Outros adendos empíricos foram conquistados para as fileiras da substituição com
os trabalhos de Thomas Graham (1805-1869), que estudou as diferentes formas de ácido
fosfórico e que acabou por influenciar as pesquisas de Liebig sobre os ácidos
dicarboxílicos. Nesse trabalho, Liebig ressuscita uma tese adormecida de Davy e Dulong
sobre o papel dos hidrogênios nos ácidos, indicando ainda capacidades de saturação
variáveis para o cloro: “o ácido clorídrico é um composto de cloro e hidrogênio, (...) o
radical do ácido clorídrico pode tomar vários átomos de oxigênio sem modificar sua
capacidade de saturação (...).” (Ihde, 1984, p. 201).
87
TABELA 4.6 – Representações dos ácidos minerais do elemento cloro proposta por Liebig (Ihde, 1984, p. 201)
Ácido Representação por Liebig84 Àcido clorídrico Cl2 + H2
Ácido hipocloroso Cl2O2 + H2
Ácido cloroso Cl2O4 + H2
Ácido clórico Cl2O6 + H2
Ácido perclórico Cl2O8 + H2
Ainda segundo esse ponto de vista os ácidos são composto nos quais o hidrogênio
possui a capacidade de ser substituído por metais.
TABELA 4.7 – Representações de Liebig para o ácido fosfórico e para um sal derivado por substituição do hidrogênio
Espécie Representação por Liebig85 Àcido fosfórico P2O8 + H6
Pirofosfato de potássio P2O8 + 3K
Mesmo diante de todas essas evidências, Berzelius se manteve com o dualismo e
em 1841 formulou uma hipótese ad hoc, a teoria da cópula, que tentou, sem sucesso,
salvar o dualismo eletroquímico. Em 1842, a verificação da possibilidade do ácido tricloro-
acético ser reconvertido em ácido acético pelo tratamento com potássio, conduziu
Berzelius à mudança definitiva de posição, aceitando finalmente a possibilidade da
substituição.
4.8.3 O Tamanho da Confusão em Meados do Século XIX
Ao final da década de 1840, a visão dualista nos compostos orgânicos teve de ceder
lugar a uma visão unitária. Um composto não podia mais ser considerado como uma
combinação de duas unidades independentes. Entretanto, muitos cientistas se encontravam
totalmente perdidos quanto a que modelo seguir, ou qual caminho tomar em suas
pesquisas. A despeito dos fatos a favor da substituição, a teoria dos radicais se mantinha 84 Observe-se que as fórmulas propostas estão todas com as quantidades de elementos dobradas em relação à proporção correta, por exemplo o ácido cloroso possui fórmula HClO2. 85 Observe-se que as fórmulas propostas estão todas com as quantidades de elementos dobradas em relação à proporção correta, por exemplo o ácido cloroso possui fórmula HClO2.
88
em muitos laboratórios e muitos pesquisadores tinham absoluta certeza de que os radicais
poderiam existir em um estado livre.
A maior das confusões continuava acerca da composição das substâncias, implicada
pela falta de clareza na distinção entre equivalentes, átomos e moléculas. Em muitos casos
os equivalentes de Wollaston e Gmelin eram preferidos em relação aos pesos atômicos de
Berzelius. Os seguidores de Berzelius, no entanto, mantinham-se fiéis à utilização de
fórmulas dobradas para gases simples, como o cloreto de hidrogênio86. As notações
utilizadas eram da mesma forma confusas e com pouco sentido87.
A falta de um fio condutor mais eficaz para as especulações sobre os mecanismos
das reações químicas fazia com que celebridades científicas da época tivessem de apelar
para critérios “pouco científicos” a fim de contornar situações problemáticas a medida que
iam sendo reveladas limitações para os modelos vigentes.
A queda de um esquema interpretativo respeitado da química numa aventura mais ou menos especulativa, pela aliança entre um fenômeno curioso e um jovem doutor inexperiente [referindo-se a ousadia de Laurent], constituiu um acontecimento pleno de significado para a disciplina. Pelo contrário, a proposta mais modesta de Dumas, a morte de Berzelius e a discreta mudança de atitude de Liebig, Transformam o fim do dualismo eletroquímico num “não-acontecimento”, no apagar de um programa de investigação em degenerescência, no sentido de Lakatos. (Bensaude-Vincent e Stengers, 1992, p. 189)
Durante o trabalho com o ácido tricloroacético e ao comparar as características do
cloral, acetaldeído, metano e clorofórmio, dumas aceitou definitivamente que o cloro podia
tomar o papel do hidrogênio em diferentes compostos. Dois anos depois, em 1840, Dumas
preparou um artigo introduzindo a idéia de tipo mecânico. Dumas entendia o tipo como
uma estrutura na qual um átomo ou um grupo de átomos mantém unidos outros átomos ou
grupos de átomos. Para ele havia um tipo químico, o qual não era necessariamente alterado
pela substituição, e um tipo mecânico que podia ser criado pela adição ou eliminação de
átomos. Dumas atribuía essa idéia a Henri-Victor Regnault (1810–1878) e se referia a
Laurent de passagem como alguém que sustentava que o papel do cloro era igual ao do
hidrogênio em compostos substituídos antes de haverem evidências empíricas para
sustentar essa idéia. Dumas ignorou o trabalho desenvolvido por Laurent sobre a
substituição de halogênios no benzeno, naftaleno e fenol e ao mesmo tempo sugeriu que
86 A fórmula do cloreto de hidrogênio para Berzelius era H2Cl2, no lugar de HCl. 87 A fórmula da água podia ser escrita como HO, H2O, HO, ou HO. Kekulé assinala que em 1861 existem 19 representações diferentes para o ácido acético (Kekulé, p. 58, 1867b).
89
somente seu próprio trabalho sobre o ácido tricloroacético deveria ser tomado como
evidência significativa contra a teoria dualística e a favor da idéia de substituição.
Obviamente, Laurent reivindicou a primazia sobre a idéia dos tipos mecânicos e acusava
Dumas de copiar suas idéias.
As idéias de Laurent e Dumas são significativamente distintas, particularmente em
relação às suas origens conceituais. O núcleo de Laurent deriva de seu conhecimento sobre
cristalografia mineral e isomorfismo88 químico, ou seja, segue a classificação de cristais.
De modo diferente, a teoria mecânica dos tipos de Dumas é baseada na tradição da história
natural que ele aprendera como estudante do botânico Augustin-Pyrame de Candolle
(1778-1841) em Geneva. Candolle foi o autor de uma classificação botânica baseada no
conceito de “tipo”, influenciando Dumas para uma aproximação a partir da classificação de
organismos. O interesse de Dumas por esse assunto não foi casual, uma vez que durante a
década de 1830 esse assunto tomava a cena principal da Academia de Ciências de Paris,
numa disputa acadêmica entre o paleontólogo Georges Cuvier (1769-1832) e o zoólogo
Étienne Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844), os quais discutiam as bases para um sistema
natural de classificação em zoologia.
Muitos contornos e debates se seguiram, com disputas mediadas tanto por cartas
anônimas desdenhando da teoria de uns, quanto interpelações pessoais acusando a teoria de
outros. Mesmo assim a partir de 1840 os químicos começam a aceitar a idéia de
substituição de elementos ou radicais em tipos químicos. Na verdade os tipos se tornarão
uma ampla teoria, a primeira grande teoria estrutural da química.
4.8.4 A Teoria dos Tipos: Um Berço para a Noção Clássica de Valência
Naqueles tempos favoráveis a turbulências, quem estava no interior do programa de
pesquisa da Química Orgânica tinha certeza de que o crescimento quantitativo dos
compostos orgânicos era assustador e superava em larga escala os compostos minerais. O
empenho e a dedicação na organização e sistematização do conhecimento acumulado nesse
domínio da química foi uma marca de Charles Frédéric Gerhardt (1816-1856),
principalmente através de sua obra Traité de Chimie Organique (quatro volumes 88 O isomorfismo foi formulado por Eilhardt Mitscherlich (1794-1863) em 1819 e corresponde a um fenômeno onde substâncias diferentes cristalizam com a mesma orientação e disposição dos átomos, das moléculas ou dos íons.
90
publicados entre 1853 e 1856). A contrariedade em relação às idéias de Dumas fez com
que Gerhardt fosse perseguido em muitos centros de pesquisa da França, obrigando-o a
subsistir com tutorias de alunos particulares e da rentabilidade de seus livros. Gerhardt só
conseguiu um posto na Universidade de Estrasburgo um ano antes de sua morte aos
quarenta anos.
Em 1839, Gerhardt propôs um argumento a favor da substituição chamado Teoria
dos Resíduos que para muitos era considerada como uma segunda teoria dos radicais.
Gerhardt não aceitava essa comparação pois seus resíduos não possuíam nenhuma natureza
elétrica. Na proposição dos resíduos, certos compostos inorgânicos são tão estáveis que
podem ser formados a partir de compostos orgânicos com grande facilidade. Esse fato
promove a formação de resíduos orgânicos que se combinam e formam novos compostos.
Por exemplo, supondo compostos orgânicos que originalmente contenham hidrogênio e
oxigênio, tem-se que o hidrogênio se separa rapidamente de um composto, o oxigênio de
outro, e ocorre a produção de água, uma molécula estável. Os resíduos orgânicos então se
combinam a fim de formar uma molécula estável de um novo composto orgânico.
As reações químicas, conforme entendidas a partir dos resíduos, se tornam
decomposições que são seguidas por trocas entre resíduos, seguidas de suas combinações.
Esses resíduos são na verdade radicais capazes de estabelecer rearranjos. Com essa
asserção, Gerhardt pretendia tornar claro que os radicais deviam ser entendidos como
espécies que podiam se combinar com outros radicais a fim de formar novas substâncias,
ou seja, não possuiriam existência independente mas poderiam ser isolados. A síntese do
nitrobenzeno, que havia sido isolado por Eilhard Mitscherlich (1794–1863), era entendida
conforme a equação da figura 4.8.
C6H5•H + HONO2 = H2O + C6H5•NO2
FIGURA 4.8 – Equação representando a síntese do nitrobenzeno
Estimulado por Laurent, Gerhardt também atacou o problema dos pesos atômicos e
verificou que as fórmulas dos compostos orgânicos podiam ser divididas por dois89. Essa
89 Gerhardt havia estudado com Liebig até 1841 e sob sua influência adotava o uso de fórmulas que representavam o volume de vapor que era ocupado pelo mesmo espaço ocupado por quatro volumes de hidrogênio. No caso do etanol: C4H12O2 = H4.
91
divisão resultava em pesos que eram compatíveis com a hipótese de Ampére90. O efeito
dessa inovação proposta por Gerhardt foi a substituição de equivalentes como C=6 e O=8
nas fórmulas dos compostos orgânicos por valores dobrados que na verdade correspondiam
a seus pesos atômicos verdadeiros, isto é, C=12 e O=16. Mesmo assim, nos primeiros três
volumes de seu tratado ele ainda publicou os pesos antigos, entendendo que era necessário
atrair mais adeptos para suas correções, apenas no quarto volume, que foi publicado após
sua morte, foram editadas as novas fórmulas empíricas91.
Na obra Précis de chimie Organique (1844), Gerhardt advoga contra o
estabelecimento de estruturas para os compostos orgânicos, defendendo o uso exclusivo de
fórmulas empíricas para a descrição dessa classe de substâncias. Qualquer arranjo
estrutural assinalado para átomos numa fórmula, era considerado uma conveniência
particular para a descrição de uma reação ou conceito específico, não possuindo nenhum
sentido real92. É também no Précis que Gerhardt amplia e sistematiza as diversas
substâncias até então conhecidas em três séries de classificação. A série homóloga,
proposta primeiramente por J. Schiel, reunia compostos que eram semelhantes do ponto de
vista das características de combinação, mas que diferiam por um ou mais grupos CH2 na
fórmula, por exemplo: álcool metílico e etílico. A série isóloga, que incluía compostos
também semelhantes do ponto de vista das características de combinação, mas que não
apresentavam nenhuma evidência de homologia, por exemplo: ácido acético e benzóico. A
série heteróloga, que indicava compostos com uma “relação genética”, ou seja, podiam ser
interconvertidos por reações, esses compostos possuíam normalmente a mesma quantidade
de carbonos, por exemplo: álcool etílico e ácido acético.
A disposição das substâncias nessas três séries abriu o caminho para que Gerhardt e
Laurent trabalhassem na definição de uma nova espécie de tipo que deveria se comportar
como mecanismo principal das reações de substituição. Ao mesmo tempo, em diferentes
centros de pesquisa, estão sendo identificados outros tipos.
O extenso trabalho de classificação de compostos e o respectivo posicionamento
nas diferentes séries existentes na época, conduzem Gerhardt e Laurent na direção do
trabalho de Charles Adolf Wurtz (1817-1884) e August Hofmann (1818-1892) sobre a
90 Gerhardt se referia à Hipótese de Avogadro e Ampére somente como Hipótese de Ampére, esquecendo propositalmente Avogadro. 91 O sistema de Gerhardt só foi foi amplamente utilizado a partir do Congresso de Karlsruhe em 1860. 92 Essa atitude arbitrária contra as noções estruturais era lamentada por Laurent, que enquanto cristalógrafo considerava que alguns arranjos especiais podiam ser derivados das características das substâncias.
92
determinação do tipo amônia e no de Alexander Williamson (1824-1904) sobre a
explicação do tipo água.
4.8.4.1 O tipo amônia
A determinação do tipo amônia foi desenvolvida a partir dos estudos das aminas,
uma classe de compostos que não havia sido estudada de forma sistemática até 1840. A
anilina (fenilamina), por exemplo, que havia sido preparada em 1826 pela decomposição
do índigo, foi explicada por Berzelius como uma cópula estabelecida entre a amônia e um
hidrocarboneto (NH3•C12H8, conforme descrito originalmente). August Wilhelm von
Hoffman (1818-1892), concordou com esse conceito por algum tempo. Enquanto
trabalhava em sua tese de doutoramento com Liebig, Hoffman estudou os derivados da
hulha, entre eles anilina. Em 1845, ele preparou a anilina pela redução do nitrobenzeno93
com zinco e ácido clorídrico.
Nesse mesmo tempo, um outro aluno de Liebig, Charles Adolphe Wurtz (1817-
1884), reconheceu as aminas como bases comparáveis à amônia através da substituição de
um equivalente de hidrogênio do NH3 por radicais metil e etil. As reações conduzidas por
Wurtz levaram-no, em 1849, a obter os compostos metilamina (CH3NH2) e etilamina
(CH3CH2NH2), através do tratamento de ciano-ésteres com o hidróxido de potássio. Esses
resultados forneceram evidências conclusivas para a participação da amônia como um
“composto tipo”. Após algum tempo trabalhando com Liebig, Wurtz se tornou assistente
de Dumas na École de Médecine e seu sucessor na direção dela a partir de 1853. Apesar de
sua amizade por Dumas, Wurtz admirava as idéias de Laurent e Gerhardt, exercendo
também muita influência para o reconhecimento de seus trabalhos.
De posse dos resultados de Wurtz, Hoffman também produziu etilamina, agora pela
reação de amônia com iodeto de etila. O resultado positivo na substituição de um
hidrogênio por um radical orgânico alertou Hoffman para a possibilidade dessa ser uma
característica regular. Assim, Hoffman prosseguiu, sistematicamente, obtendo análogos
secundários e terciários por substituição dos equivalentes de hidrogênio da amônia,
percebendo que podiam ser diversamente substituídos por compostos orgânicos. Na figura
93 O nitrobenzeno foi preparado por Eilhardt Mitscherlich (1794-1863) em 1832.
93
4.9 tem-se a representação utilizada para as “fórmulas tipo” de algumas substâncias
derivadas do tipo amônia.
FIGURA 4.9 – Representações estruturais dos compostos originados do tipo amônia, respectivamente: amônia, etilamina, dimetilamina e trietilamina.
Hoffman ampliou os estudos do tipo amônia, identificando também que a
trietilamina quando tratada com iodeto de etila formava um produto de adição cristalino,
identificado na época como iodeto de trietilamônio. Hoffman interpretou esse produto de
adição como um sal, análogo ao obtido pela ação de sódio e potássio sobre iodetos
metálicos. Os estudos seguintes de Hoffman indicaram também que o tipo amônia possuía
análogos fosfínicos94, que foram estudados por Auguste Cahours (1813-1891), também
treinado por Dumas, professor da École Centrale.
4.8.4.2 O tipo água
O tipo água foi proposto por Alexander William Williamson (1824-1904), a partir
de experiências conduzidas na preparação de éteres pela reação de alcooxilatos com
derivados halogenados Williamson começou a trabalhar com álcoois em 1850, com a
intenção de preparar produtos substituídos, da mesma forma que Hofmann havia preparado
“amônias substituídas”. Ao tratar o iodeto de etila com etóxido de potássio, foi
surpreendido com a obtenção do éter etílico95, conforme a figura 4.10.
+ C2H5I KI +C2H5
KO
C2H5
C2H5
O
FIGURA 4.10 – Reação de substituição conduzida por Williamsom para obtenção de éteres. 94 A fosfina (PH3) seria o análogo do fósforo para a amônia (NH3). 95 Williamson não utilizou chaves em suas fórmulas; Gerardt foi o primeiro a utilzá-las (Ihde, p. 212)
94
Williamson foi capaz de reconhecer a relação entre os éteres e os álcoois e indicou
pelo menos duas outras rotas sintéticas alternativas para obtê-los. A utilização do tipo água
incluía os éteres e as cetonas como composto desse tipo e também propunha soluções para
controvérsias a respeito da estrutura de ácidos e sais desses ácidos. Na figura 4.11
verificam-se alguns derivados do tipo água. Apesar dos exemplos apresentados serem de
natureza orgânica, o próprio Williamson, em 1851, procurou demonstrar que muitos sais
do ácido sulfúrico podiam ser estruturados a partir do tipo água.
FIGURA 4.11 – O tipo água e os derivados etanol, dietil éter e ácido etanóico.
O tipo água possuía uma versatilidade maior do que o tipo amônia, isso permitiu
que outros compostos passassem a ser descritos a partir dele. William Odling (1829–1921),
por exemplo, estendeu a idéia do tipo água para um tipo chamado múltiplo, nesse caso era
admitida uma proporção diferente entre os radicais que compunham o tipo (figura 4.12).
FIGURA 4.12 – Exemplos de aplicação do tipo múltiplo de Odling: tipo multiplo água, ácido fosfórico, fosfato ácido de potássio e nitrato de bismuto (Ihde, 1984, p. 214)
O tipo água incluía, por um lado, compostos de caráter neutro como os álcoois e
éteres, e por outro, os compostos ácidos, como os ácidos carboxílicos e os anidridos. Os
ésteres também eram escritos a partir do tipo água, ocupando uma posição intermediária
entre os ácidos e os neutros.
Gerhardt entendia que o esforço para adequação dos compostos a um único tipo
seria pouco proveitoso. Sua ambição era estabelecer através dos tipos já estabelecidos e de
outros, um sistema de classificação dos compostos orgânicos que pudesse servir de
orientação para a prática nesse campo de conhecimento. Assim ele amplia o sistema dos
95
tipos para além da amônia e água, a fim de conseguir incluir a maior parte de substâncias
que se encontravam em evidência na pesquisa em compostos orgânicos.
4.8.4.3 Os tipos hidrogênio e cloreto de hidrogênio
Já muito próximo de sua morte, Gerhardt coloca a teoria dos tipos num alto grau de
desenvolvimento ao ampliar para um total de quatro as possibilidades de arranjo dos
átomos numa fórmula empírica. Nesse sentido, ele adiciona o tipo hidrogênio e o tipo
cloreto de hidrogênio. O primeiro descrevia compostos como hidrocarbonetos, cetonas e
aldeídos, e o segundo incluía cloretos de alquila e ácidos organo-clorados, bromados ou
iodados. Em verdade os tipos hidrogênio e cloreto de hidrogênio são muito semelhantes,
conforme figura 4.13.
FIGURA 4.13 – Substâncias segundo os tipos hidrogênio (acima): hidrogênio, etano, acetona e acetaldeído; e cloreto de hidrogênio (abaixo): cloreto de hidrogênio, cloreto de etila, cloreto de metila e cloreto de etanoíla
Agora com quatro tipos, Gerhardt consegue dar conta de um grande número de
reações e prever novos produtos, pela substituição do hidrogênio por radicais em cada um
dos tipos. Na visão do historiador Aaron Ihde (1984), o germe da idéia foi claramente de
Laurent, o estimulo experimental veio do trabalho de Wurtz, Hoffman e Williamsom, mas
a sistematização foi trabalho exclusivo de Gerhardt. Ele não acreditava em nenhuma
fórmula que pretendesse revelar o arranjo dos átomos, seus tipos revelavam uma proporção
empírica entre os elementos na substância. O radical é para ele uma forma de transporte de
elementos ou grupos de elementos de um corpo para o outro.
Existia ainda nos tipos de Gerhardt a possibilidade de um mesmo composto possuir
diferentes formas de representação, mesmo assim o sistema constituía uma ampla forma de
96
classificação e organização que retirava o melhor de idéias anteriores como tipos e radicais
para fornecer uma forma de tratamento das reações de substituição.
4.9 ENFIM A NOÇÃO CLÁSSICA DE VALÊNCIA
Costuma ser um empreendimento proveitoso e acalorado o debate acerca da
primazia de uma idéia ou noção científica. É bem verdade que para muitos casos a
ponderação é de que tenha havido uma aproximação simultânea de diferentes correntes, a
partir de diferentes direções. Além do mais, a primazia não é o critério exclusivo para a
indicação de um “mérito científico”. No caso da noção clássica de valência a disputa desse
mérito acabou sendo tão acirrada entre os historiadores quanto entre os protagonistas.
Questões políticas colocaram muitas vezes a disputa dessa historiografia entre um bloco
oriental e outro ocidental. Mesmo assim, na criação da noção clássica de valência não se
pode imputar a um único personagem essa responsabilidade. Houve influências de vários
tipos e formas contribuindo para seu nascimento e desenrolar na segunda metade século
XIX. Se não podemos escolher um, devemos pelo menos indicar quantos foram esses
personagens e como foram suas contribuições para o desenvolvimento desse argumento
que se constituiu a chave para o início da química estrutural.
Um estudo da bibliografia que trata da história da noção clássica de valência, revela
em alguns momentos relatos implicados por concepções polarizadas em torno de dois eixos
políticos distintos. Num extremo estaria por exemplo o nobre inglês Sir Edward Frankland
(1825-1899), que foi responsável pela identificação prioritária das regularidades existentes
nas capacidades de combinação dos metais com radicais orgânicos. No entanto Frankland
não fez nenhum uso dela. Talvez impregnado pelo preconceito sobre a afinidade química
dos antepassados, ele não quisesse investir em uma teoria nesse sentido.
No outro extremo, costuma-se posicionar a lenda alemã Fiedrich August Kekulé
(1829-1896), que de tão impregnado pela vontade de responder às demandas de sua recém
inventada palavra: valência, criava “salsichas carbônicas” e até sonhava com ouroboros
alquímicos que lhe iluminavam na solução de problemas a respeito da estrutura de
compostos desafiadores. Entre Frankland e Kekulé estão também outros atores e fatores,
não coadjuvantes mas tão importantes quanto os primeiros, algumas vezes minimizados em
seus papéis e influências.
97
4.9.1 A Capacidade de Combinação
O período entre 1830 e 1860 foi caracterizado por tensões metodológicas e
epistemológicas entre os que cultuaram a nova disciplina da química orgânica, o
conhecimento desses aspectos são importantes pois é no interior da química orgânica que a
noção de valência vai surgir, crescer e se consolidar. Dentre outros fatores epistemológicos
cruciais, começava-se a destacar quais seriam as verdadeiras implicações da busca de
teorias que evidenciassem a realidade microscópica do mundo químico.
Os tipos de Gerhardt não foram bem recebidos por Adolf Wilhelm Hermann Kolbe
(1818-1884) e Edward Frankland, ambos ainda discípulos do dualismo de Berzelius. Os
dois cientistas preferiam rejeitar o conceito unitário de compostos químicos e considerar os
radicais como grupos estáveis de elementos, do que considerar arranjos arbitrários criados
somente para fins de classificação. Tanto Kolbe quanto Frankland receberam influências
acadêmicas de Lyon Playfair (1818-1898) da Universidade de Edinburg, onde permanecia
a convicção sobre a Teoria da Cópula de Berzelius. Kolbe queria perseguir um novo corpo
de conceitos que pudesse conciliar as novas evidências empíricas da substituição em
compostos orgânicos com o velho dualismo eletroquímico de Berzelius, trazendo ainda a
reboque a teoria dos radicais
Em 1847 Kolbe e Frankland se encontravam como assistentes de Playfair e
envolvidos em sínteses de derivados de ácidos carboxílicos96. Nesse mesmo ano
conseguiram produzir ácido acético pela reação de uma base com o cianeto de metila. Essa
reação deu origem a uma série de experimentos de obtenção de ácidos carboxílicos a partir
de cianetos de alquila que convenceram Kolbe da presença de uma cópula nesses ácidos.
Frankland, por sua vez, conduzia experimentos a fim de confirmar a estabilidade do
radical etil durante algumas transformações químicas. Quando o iodeto de etila era tratado
com zinco, formava-se iodeto de zinco e butano97, conforme a figura 4.14.
2Butano
104Etila de Iodeto52 ZnI HC Zn IHC 2 +→+
FIGURA 4.14 – Equação representando a obtenção do butano a partir do iodeto de etila e zinco 96 O trabalho com ácidos carboxílicos viria a ser a tônica da pesquisa acadêmica de Kolbe. Ele foi o responsável pela preparação do primeiro composto orgânico (ácido acético) a partir de substâncias completamente inorgânicas em 1844. 97 Na época chamado de “etil livre”.
98
Na reação acima, como subproduto, um pouco de etil zinco sempre era produzido,
conforme a figura 4.15.
2 ZincoEtil
252Etila de Iodeto52 ZnI Zn)HC( Zn 2 IHC 2 +→+
FIGURA 4.15 – Equação representando a produção de etil zinco
O produto inesperado da figura 4.15 foi o precursor da classe dos compostos
organo-metálicos e a primeira pista para Frankland passar a confiar numa regularidade de
capacidade de combinação de alguns elementos. Frankland expandiu suas sínteses para
outros metais, confirmando que um metal apresentava sempre a mesma capacidade de
saturação em relação a um tipo de radical, mesmo quando os radicais eram modificados
essa regularidade se mantinha. A conclusão que havia chegado indicava que os compostos
organometálicos eram derivados por substituição de tipos inorgânicos. Assim, apesar de
apoiado em idéias de um programa de pesquisa concorrente, Frankland se sentiu mais
seguro para expandir as regularidades para os compostos inorgânicos, pedindo permissão
para introduzir o termo força de combinação em um artigo de 1852 para a Royal Society98.
Quando as fórmulas de compostos químicos inorgânicos são consideradas, até um observador superficial é impressionado pela simetria geral de sua construção. Os compostos de nitrogênio, fósforo, antimônio e arsênio, especialmente, exibem a tendência de formar compostos contendo 3 ou 5 átomos de outros elementos, sendo nessas proporções que suas afinidades são mais bem satisfeitas. Assim, no grupo ternário temos: NO3, NH3, NI3, NS3, PO3, PH3, PCl3, SbO3, SbH3, SbCl3, AsO3, AsH3, AsCl3, etc. Ao passo que no grupo de cinco átomos temos: NO5, NH4O, NH4I, PO5, PH4I, etc. Sem oferecer nenhuma hipótese com respeito a causa desse agrupamento simétrico de átomos, é suficientemente evidente a partir dos exemplos fornecidos anteriormente, que tal tendência ou lei prevalece, e que, não importando o caráter dos átomos que estabelece a união, a força de combinação do elemento que atrai, se for permitida a utilização do termo, é sempre satisfeita pelo mesmo número desses átomos. (Frankland, 1852)
A força de combinação, que também ficou conhecida como capacidade de
saturação era uma nova expressão da antiga afinidade química dos elementos. A favor de
Frankland estavam as leis das proporções múltiplas e das proporções constantes, que 98 Apesar de efetivamente explicitadas por Frankland, as regularidades na capacidade de combinação dos elementos já estavam sugeridas em muitas pesquisas conduzidas anteriormente. Em 1834, Dumas havia percebido que um átomo de cloro era substituído por um único átomo de hidrogênio e “meio átomo” de oxigênio. Os estudos de Liebig sobre poliácidos revelavam também diferentes capacidades de substituição dos metais, onde fora observado que um átomo de antimônio era equivalente a três átomos de hidrogênio e um átomo de potássio era equivalente a um único átomo de hidrogênio.
99
carregavam a implicação de que a capacidade dos átomos se combinarem deveria ser exata
e limitada. Os argumentos de Frankland se baseavam em um conjunto restrito de
regularidades e ele se recusava a constituir uma teoria a respeito, isso favoreceu a
apresentação de diversos contra-exemplos que decorriam da confusão que atormentava as
fórmulas empíricas, em função da ausência de uma demarcação clara entre os átomos e os
equivalentes químicos. Esses exemplos e o fato de que a capacidade de combinação de um
elemento podia variar, minaram a ampla aceitação das idéias de Frankland.
A capacidade de combinação de Frankland foi entendida muito mais como uma
confirmação das idéias de Gerhardt, Laurent e Williamsom em torno da teoria dos tipos do
que como uma explicação independente. Uma noção funcional de valência só poderia
emergir após a solução dos problemas na determinação de fórmulas empíricas de
compostos orgânicos e inorgânicos, ou seja, após os conceitos de átomo, molécula e
equivalente terem sido diferenciados.
4.9.2 O Arquiteto e seus Sonhos
Friedrich Kekulé iniciou sua vida acadêmica como aluno de arquitetura na
Universidade de Giessen, onde sob a influência de Liebig, foi convertido para o estudo da
química, graduando-se em 1851. Seguiu então para Paris, onde desenvolveu seu trabalho
de doutoramento sob a orientação de Charles Gerhardt, mantendo contatos com os
trabalhos de Dumas. Em 1853, por meio de uma recomendação do próprio Liebig, mudou-
se para Londres a fim de trabalhar como assistente de John Stenhouse no St
Bartholomew’s Hospital, o que lhe valeu contatos preciosos com Williamsom, Frankland e
William Odling (1829-1921). É na Inglaterra que Kekulé vai amadurecer a arquitetura de
suas estruturas químicas revolucionárias, que segundo suas próprias palavras, teriam sido
reveladas a partir de sonhos.
Em 1854, enquanto desenvolvia um método de preparação para o ácido tioacético,
Kekulé chegou a algumas conclusões que validavam o sistema de pesos atômicos de
Gerhardt e rejeitavam as conclusões de Frankland sobre a equivalência de combinação
entre o cloro e o oxigênio.
Ao representar a reação conforme descrito na figura 4.16, Kekulé atentou para a
diferença na capacidade de combinação entre cloro e enxofre. O produto clorado era
100
resultado da destruição do tipo original, enquanto com o enxofre isso não acontecia. A
afirmação para a tal efeito era que “a quantidade de enxofre que é equivalente a dois
átomos de cloro não é divisível” (Ihde, 1984). Com essa interpretação, Kekulé passou a
fornecer um sentido teórico para os tipos de Gerhardt, indicando que “o número de átomos
de um elemento que combinam com um outro elemento dependem de sua basicidade ou
relação de tamanho de suas partes componentes” (Kuznetsov, 1980, sem grifo no
original). A esse respeito os elementos podiam recair em três grupos principais:
monobásicos, e.g. H e Cl; dibásicos, e.g. O e S e tribásicos, e.g. N e P.
C2H30
H5 O + P2S5
C2H30
H5
C2H30
HS P2O5+
ácido tioacéticoácido acético
C2H30
H5 O + 2PCl5
5C2H3OCl5HCl
P2O5+
FIGURA 4.16 – Reações conduzidas por Kekulé que implicaram na diferenciação entre a capacidade de combinação do cloro e do enxofre (Ihde, p. 222, 1984)
Em 1857, enquanto professor na Universidade de Heidelberg, Kekulé introduz o
tipo gás do pântano99, aplicando-o a um número limitado de compostos e utilizando
inconvenientes representações com dois carbonos100, que no entanto eram extremamente
populares entre os químicos alemães.
pântano do gás2HHHHC
metila de cloreto2HHHClC
oclorofórmi2HClClClC
FIGURA 4.17 – Representações de Kekulé para compostos tipo gás do pântano, utilizando fórmulas empíricas com dois carbonos
No ano de 1858, Kekulé muda para a Bélgica e assume uma cátedra na
Universidade de Ghent. Lá ele volta a usar os pesos atômicos de Gerhardt, o que reconduz
seu tipo gás do pântano a forma CH4. Foi durante sua estada em Ghent que Kekulé 99 O gás do pântano corresponde ao gás metano. 100 A fórmula empírica do gás metano é CH4.
101
formulou a tetra-atomicidade do carbono além de sua capacidade de estabelecer esqueletos
pela utilização de duas das quatro atomicidades entre átomos de carbono: “o carbono é
tetratômico, (...) e entra em combinação com ele mesmo, possuindo capacidade de
saturação mútua” (Nye, 1996, p. 130). Em sistemas com dois carbonos os esqueletos eram
entendidos como arranjos onde a atomicidade do sistema era 6 e não 8101, porquê cada
carbono era satisfeito parcialmente por uma combinação entre carbonos. Assim, em
compostos como o etano (C2H6), cloreto de etila (C2H5Cl) e acetaldeído (C2H4O2), existem
seis elementos em combinação com o esqueleto de dois carbonos. Com essa inferência,
Kekulê propunha também que no mecanismo das reações desses compostos o esqueleto
permanecia inalterado.
As formulações de Kekulê receberam muitas influências dos tipos de Dumas e
Gerhardt no período que ele esteve na França, onde realizou os estudo dos derivados do
gás do pântano. Pode-se entender que essas questões estavam latentes em muitos trabalhos
da época. Na verdade, Kekulé disputava constantemente a primazia das questões que
apresentava, as quais singularmente eram favorecidas pela burocracia dos protocolos de
publicação da época.
O escocês Archibald Scott Couper (1831-1892), que trabalhava com Wurtz,
publicou as mesmas idéias de Kekulé, semanas depois102. Mesmo sendo derrotado no que
se refere à primazia, as representações utilizadas por Couper em seu artigo eram muito
mais eficientes do que aquelas utilizadas por Kekulé. O alemão utilizava uma forma de
representação que ficou conhecida como a forma salsicha devido a sua característica
arredondada nas extremidades, enquanto Couper explicitava a combinação dos elementos
por linhas retas. Couper não pode desenvolver seus trabalhos devido a graves problemas de
saúde que lhe obrigaram a afastar-se da pesquisa.
101 Uma vez que cada carbono era tetra-atômico, em um sistema com dois carbonos a atomicidade deveria dobrar também. 102 O artigo de Couper foi publicado em Junho de 1958 no Annales de chemie et de physique. Série 3, 53 (1858).
102
FIGURA 4.18 – Representações de: (A) Kekulé para o gás metano na forma salsisha e (B) Couper para o ácido tartárico
Kekulé entendia que a afinidade de um átomo pode ser usada completa ou
parcialmente. No caso do SO2, por exemplo, a substância seria composta de três átomos,
cada um dos quais dibásico. Das seis afinidades possíveis para o enxofre, quatro são
usadas para conectar os átomos de oxigênio, de modo que duas afinidades permaneceriam
sem uso. Apesar de seu sentido estar praticamente completo no entorno de 1960, a palavra
valência só será usada a partir do final dessa década.
A noção de valência não poderia estar completamente formulada antes da solução
do problema das massas atômicas, mesmo assim, o italiano Stanislao Canizzaro (1826-
1910), seguindo o caminho da hipótese de Ampére e Avogadro, fazia uso de massas
atômicas corretas e conseguiu contestar alguns postulados de Kekulé que indicavam a
mono-atomicidade para a maioria dos metais. Canizzaro demonstrou experimentalmente
que vários metais podiam assumir múltiplas atomicidades, em diferentes compostos.
O cálculo dos pesos moleculares ainda era uma questão incerta. Conjecturas
descabidas e regras arbitrárias eram lugar comum em 1958. O desacordo com respeito aos
pesos moleculares precisava ser resolvido rapidamente.
4.9.3 O Congresso de Karsruhe
No dia 3 de setembro de 1960, cerca de 140 químicos se reuniram na cidade alemã
de Karlsruhe, convidados por Kekulé e Wurtz. O objetivo principal era dissolver as
103
diferenças em torno da determinação dos pesos moleculares, no entanto, iniciado o evento
esse passou a ser o único objetivo103.
O comitê dirigente formado com a participação de Kekulê, Canizzaro e Wurtz
encaminhou uma série de questões sobre átomos, moléculas, radicais e equivalentes. O
plenário discutiu ativamente todas as questões, mas não houve nenhum acordo. No
segundo dia, Canizzaro abriu os trabalhos descrevendo suas idéias sobre a determinação
dos pesos e de como conduzia seus alunos sobre o tema, mas não conseguiu conquistar a
platéia. No terceiro dia retomou a palavra discursando sobre o significado do trabalho de
Gerhardt, que baseou seus pesos moleculares nas hipóteses de Avogadro e Ampére e em
seguida apresentou extensamente como a Hipótese de Avogadro e Ampére poderia ser
usada no cálculo de pesos atômicos e moleculares. As discussões que se seguiram
começaram a indicar alguns adeptos, ainda assim a mesa diretora encaminhou que
nenhuma votação poderia ser tomada em questões científicas e que cada presente estaria
livre para decidir sobre que caminho tomar104. Embora o congresso tenha terminado sem
uma unanimidade, as argumentações de Canizzaro convenceram muitos participantes
(Nye, 1996).
A questões relativas à valência ou atomicidade ocuparam minimamente os
participantes do congresso. A recomendação encaminhada pelo comitê responsável
considerava o equivalente químico como um conceito empírico, independente do conceito
de átomo e molécula, indicando que este poderia ser determinado tanto teórica como
empiricamente.
4.9.4 As Raízes Etimológicas da Valência
O primeiro termo que os químicos utilizaram para descrever as características
quantitativas de afinidade dos elementos e radicais foi basicidade. Esse termo foi
introduzido por Williamsom em 1852 para caracterizar radicais em função da quantidade
de ligantes em seu entorno como monobásicos, dibásicos, tribásicos, etc. Entre 1854 e
103 Estiveram presentes em Karlsruhe tanto cientistas consagrados como Bunsen, Canizzaro, Dumas e Hoffman, quanto aqueles que seriam futuros promissores como Baeyer, Beilstein, Erlenmeyer, Friedel, Mendeleev e Lothar Meyer. No entanto, foram sentidas as ausências de Liebig, Wöhler, Hofmann e Frankland. 104 Ao final do congresso, Angelo Pavesi, professor de química da Universidade de Pavia e seguidor de Canizzaro panfletou cópias do artigo de Canizzaro.
104
1856 Kekulé também utilizou esse termo em suas descrições, oferecendo em seguida o
termo atomicidade para situações análogas. Couper utilizava o termo grau de afinidade
para descrever a habilidade de um elemento em formar compostos, nem esse termo nem a
capacidade de combinação de Frankland foram amplamente adotados.
Em 1864, Odling utilizou os termos mônade, díade e tríade, os mesmos utilizados
por Laurent em 1846 com outros propósitos. Em 1858 surge o temo equivalente, no qual o
elemento hidrogênio é considerado como a unidade de equivalência.
Em seu manual didático publicado em 1865, Hofmann sugere que o termo
atomicidade deveria ser substituído pelo termo quantivalência e que os elementos
deveriam ser descritos como univalentes, bivalentes, trivalentes e tetravalentes em função
de sua capacidade de fixar átomos. O termo quantivalência foi adotado na Inglaterra tanto
em livros texto quanto em periódicos até 1885. Frankland, entretanto, mantinha a sua
própria capacidade de combinação, tendo utilizado também atomicidade e posteriormente
equivalência até 1877.
O termo valência entra no vernáculo científico no final dos anos 1860. Sua primeira
aparição foi num artigo de Kekulé, em 1867.
Quando experimentei o problema de explicar minhas opiniões sobre a constituição atômica dos compostos químicos, utilizei por alguns anos um método pelo qual átomos de diferentes valências (valenz) eram representados por tamanhos diferentes. (Kekulé apud Kuznetov, 1980, p. 45)
O termo valência para Kekulé é concebido como uma derivação de quantivalência
de Hofmann, passando a ser incorporado a partir de 1969 e entrando para a enciclopédia
britânica em 1876.
Os termos apontados por Russel (1971) como raízes para a formação da palavra
valência são:
1. valens: significando forte, poderoso, enérgico, capaz.
2. valere: ordinariamente significando ser forte ou bondoso e posteriormente
no sentido de possuir valor.
3. valentia: termo do latim medieval significando valor.
A literatura científica russa não absorveu o termo valência de pronto, continuando a
utilizar os termos atomicidade e equivalência até o início do século XX. Mendeleev, por
exemplo utilizou em seus manuais didáticos tanto equivalência como atomicidade. Outros
105
autores, de origem russa como Menshutkin e Chugaev utilizaram unidades de afinidade
(Kuznetsov, 1980).
4.9.5 A Ligação Química como Causa da Valência de um Elemento
O termo ligação química foi utilizado primeiramente por Alexander Mikhailovich
Butlerov (1828-1886) em um artigo de 1863 sobre a isomeria nos compostos orgânicos.
Desde a primeira vez que os termos valência e ligação química começaram a se encontrar
observou-se uma ampla confusão para o sentido de ambos. Essa dificuldade foi marcada
pela ausência de uma tentativa inicial de demarcar os limites de abrangência dos dois
termos. Como apontamos anteriormente, a existência de certas causas responsáveis pela
combinação dos átomos em um composto estava presente antes mesmo da teoria atômica
de Dalton ou do modelo eletroquímico de Berzelius. Mesmo assim, a primeira tentativa
oferecida para a distinção entre os dois termos colocava a valência como uma força inata
ao elemento, utilizada para atacar outros elementos e expressa numericamente pelo número
de elementos monovalentes capazes de serem atacados por ele, e a ligação química como
sendo o efeito resultante da ação dessa força.
Kekulé, pó exemplo, não indicava nenhum termo específico para ligação química e
denotava através de unidades de afinidade tanto a quantificação da valência, quanto as
quantidades de ligação química de um elemento em um composto. O alemão contornava a
discussão admitindo que o termo ligação química não possuía um sentido exato, nem
“princípios científicos” (Kuznetsov, 1980, p. 49). A valência se consagrou mesmo como
uma característica do corpo químico, sendo a ligação química uma conseqüência, ainda
incompreendida, externa a ele. Kekulé apostava na valência para formular suas explicações
sobre as características estruturais das substâncias.
Couper também abraçou a utilização da noção de valência como argumento central
em suas explicações, indicando que o caráter dos compostos podia ser deduzido a partir
das propriedades dos átomos livres105.
105 Cabe ressaltar que Couper foi um atomista muito mais convicto do que Kekulé. Kekuké não conseguia conceber a existência de uma espécie atômica fora do corpo químico (molécula). Ou seja para Kekulé o átomo não era uma entidade independente, mas sim uma entidade operacional dentro do corpo químico.
106
Quando todas as propriedades e faculdades dos elementos forem conhecidas individualmente, deveremos ser capazes de entender a constituição dos compostos que são sintetizados a partir deles, (...) [a] afinidade quantitativa dos elementos é uma propriedade fundamental, inerente a todos elementos, sem a qual o elemento é destituído de seu caráter, e que devido a ela este passa a ocupar um lugar especial no composto químico. (Couper apud Kuznetzov, 1980, p.51)
Para Butlerov, o criador do termo, havia uma relação diferente entre a valência e a
ligação química. O elemento possuía uma quantidade de força que produzia o fenômeno
químico, parte dessa força ou sua quantidade total era convertida em outra forma e
transformada na ligação ao se formar um composto. A força era sempre expressa através
de números inteiros e o valor relativo ao hidrogênio constituía o valor mínimo que podia
ser assumido por qualquer elemento. Nessa descrição de Butlerov está implícita a aceitação
de uma valência variável, a partir da utilização completa ou incompleta da afinidade do
elemento. Ao contrário de Butlerov, Kekulé não aceitava a idéia de que unidades de
afinidade podiam ser usadas parcialmente, sustentando sempre o conceito de uma valência
fixa para cada elemento. Tanto para Butlerov, quanto para Kekulé a valência era uma
propriedade inerente ao elemento e suas ligações químicas uma manifestação dessa
propriedade.
Butlerov dividia todos os elementos em dois grupos, um com valências pares e
outro com valências impares. De acordo com essa divisão, os elementos com valências
pares poderiam existir como espécies isoladas fora de um composto106 químico.
“A quantidade de afinidade livre é sempre um número par (0, 2, 4, etc.); conseqüentemente um átomo que possui duas unidades de afinidade livre pode existir independentemente, ou seja ser uma partícula.” (Butlerov107, apud Kuznetzov, 1980, p. 53)
Butlerov também utilizou as unidades de valência para explicar o mecanismo de
algumas reações.
Pode-se assumir que uma partícula sem afinidade livre, mas certamente possuindo pelo menos duas unidades de afinidade latente [valências em uso], se decompõe no momento da reação e então as duas unidades que estavam anteriormente conectadas uma a outra na partícula, agora combinam com duas afinidades que pertencem a uma partícula diatômica. (Butlerov apud Kuznetzov, 1980, p. 53)
106 Nesse ponto Butlerov não se refere essa espécie química isolada como uma molécula, no entanto parece demonstrar sua aceitação em relação à hipótese de que espécies diatômicas podem formar agregados estáveis. 107 Butlerov, Alexander M. Collectec Works. V. 1. Moscou: Academy of Science Press, 1953.
107
Na proposta mecanística apresentada por Butlerov, existe como pressuposto a
conservação das unidades de valência, de um mesmo elemento, durante a combinação. A
explicação para essa combinação é conduzida a partir da noção de valência: o elemento
possui unidades de valência que são usadas no momento da combinação química, ele
desfaz as valências em uso com um elemento para poder utilizá-las com outro,
conservando essas quantidades, ou seja, durante o processo não são criadas nem destruídas
unidades de valência em um elemento. Enfim, para Butlerov a valência é uma força de
afinidade responsável pelo fenômeno químico.
4.9.6 Valência e as Fórmulas Racionais como Palavras na Química.
No panorama do início dos anos 1860 a Química Orgânica impressiona como um
programa de pesquisa consolidado, um segmento que arrebanha cada vez mais seguidores
e que começa a saltar aos olhos daqueles que percebem a rentabilidade de um excelente
domínio científico para investimentos em pesquisa108.
A explosão da quantidade de substâncias orgânicas que se começava a conhecer só
era comparável ao crescimento da complexidade delas. As nomenclaturas que eram
propostas, na maioria das vezes não conseguiam dar conta das relações de funcionalidade
específicas que havia entre os diferentes grupos de compostos. Em contrapartida, cresciam
as correntes que apostavam na necessidade de uma representação simbólica como solução
108 A partir da década de 1860 pode-se começar a compor as origens de uma “química orgânica industrial”, interassada inicialmente em corantes. Em 1845 August Hoffman foi para Londres a convite do Príncipe Albert para assumir o cargo de primeiro superintendente do Royal College of Chemistry. Hoffman foi um dos primeiros a verificar que o alcatrão da hulha, que era fartamente disponível a baixo custo a partir das indústrias de gás em franca expansão na Europa, podia dar origem a muitos compostos de interesse comercial. Entre essas substâncias estava o benzeno. A essa altura já era de domínio acadêmico que o benzeno, quando tratado com ácido nítrico, transformava-se num óleo amarelo chamado nitrobenzeno. Esse óleo amarelo quando tratado com agentes redutores formava a anilina, assim chamada pois havia sido isolada primeiramente a partir do índigo, nome adotado na França, o qual em Portugal era anil. Entre um dos muitos alunos de Hoffman no Royal College, estava William Henry Perkin que, em seus dezoito anos, encontrou uma semelhança grande entre a fórmula racional da alil-toluidina, um derivado da anilina, e uma droga muito eficaz contra a malária, a quinina. Perkin concebeu que poderia oxidar a alil-toluidina convertendo-a em quinina, mas não obteve nenhum resultado. Diante de sua decepção, partiu para experimentar o mesmo processo a partir da anilina, conseguindo uma lama negra donde se obtinha curiosamente alguns cristais púrpuros. A cor intensa do cristal obtido sugeriu a Perkin que poderia se tratar de um potencial corante, ao passo que ele experimentou colorir amostras de seda e algodão, obtendo uma cor azul uniforme e totalmente resistente à lavagem. A patente britânica número 1984 do ano de 1856 pertence a esse corante de Perkin, que montou uma fábrica, enriqueceu e continuou procurando caminhos para a síntese de outros corantes, como a alizarina, derivado de outro produto abundante no alcatrão da hulha, o antraceno.
108
para essa limitação. O sucesso de uma teoria estrutural “dependia tanto da normalização
dos pesos atômicos quanto da noção de valência” (Weininger, 1998). Essa proposta
confiava na hipótese de que o arranjo e a posição dos elementos era tão ou mais importante
quanto sua quantidade, para a caracterização das propriedades de uma substância.
Naturalmente, havia uma disputa entre aqueles que confiavam nas possibilidades de uma
representação estrutural – conhecida à época como fórmula racional – e os que entendiam
que esse seria um esforço improdutivo. Essa disputa era colocada, algumas vezes de forma
implícita, nos livros didáticos desse período: “Deve ser marcado firmemente que tal
fórmula [racional] não pretende expressar como os átomos estão arranjados no espaço,
porque a respeito disso somos totalmente ignorantes” (Schorlemmer, 1874, p. 72).
A primeira representação química isenta de caracteres alfabéticos foi o hexágono de
Kekulé associado ao benzeno, em 1865. Essa trajetória não foi direta nem livre de uma
especulação inicial marcada por arbitrariedades e influências pouco científicas, como
denotam as propostas estruturais feitas à época para explicar as características pouco
comuns dessa substância que precisava justificar principalmente como seis átomos de
carbono podiam estar associados à somente seis átomos de hidrogênio – fórmula empírica
C6H6 –, numa substância altamente estável e resistente a muitos ataques por combinação
química.
Kekulé não apostava desde o início nas possibilidades de descrição das fórmulas
racionais, preferindo as fórmulas de constituição, que apontavam os grupos dos átomos
envolvidos nas substâncias. As propostas estruturais feitas por Kekulé para o benzeno
ofereceram bastante dificuldade devido à baixa relação carbono:hidrogênio (1:1). Essa
relação sugeria que o composto deveria possuir um alto grau de insaturação (ligações
duplas e/ou triplas), mas o benzeno não sofria processos de adição, assim como outros
compostos insaturados. Sua saída para o dilema foi a proposição de um estrutura cíclica,
que lhe teria ocorrido em um sonho109.
109 A citação seguinte é um trecho do discurso de Kekulé nos 25 anos de aniversário da teoria estrutural do benzeno no ano de 1890: “Vocês estão celebrando o jubileu da teoria do benzeno. Eu devo, antes de tudo, falar-lhes que, para mim, a teoria do benzeno foi somente uma conseqüência muito óbvia das idéias que eu formara sobre as valências dos átomos e da natureza de suas ligações, as idéias, portanto, as quais nós hoje chamamos de teoria da valência e estrutural. O que mais eu poderia ter feito com as valências não utilizadas? Durante minha estada em Londres, eu residi em Chapman Road (...). Em um agradável anoitecer de verão, estava retornando no último ônibus, sentado do lado de fora, como de costume, trafegando pelas ruas desertas da cidade (...). Eu caí em devaneio, e vejam só, os átomos estavam saltando diante dos meus olhos! Até agora, sempre que esses seres diminutos haviam aparecido para mim, estavam sempre em movimento, mas até aquele momento eu não fora capaz de perceber a natureza dos seus movimentos. Agora, entretanto, eu via como, freqüentemente, dois átomos menores uniam-se para formar um par; como um maior abraçava os
109
Mesmo com as dificuldades do benzeno, Kekulé insistiu e manteve a tetravalência
do carbono como o “núcleo duro” de sua proposta. A estrutura cíclica sonhada por Kekulé
era a base para uma série de compostos que ele designava como compostos aromáticos. Os
compostos aromáticos possuíam um núcleo comum C6A6, onde A denotava
necessariamente uma unidade de afinidade (valência) não utilizada. Essas seis afinidades
dos núcleos aromáticos poderiam ser satisfeitas por seis elementos monoatômicos, ou em
parte por elementos poliatômicos trazendo necessariamente com eles outros elementos,
produzindo assim uma ou mais cadeias laterais. Segundo essa mesma teoria, duas
afinidades de um núcleo não poderiam ser satisfeitas por um elemento diatômico ou
mesmo três afinidades por um elemento triatômico, desse modo, compostos com fórmulas
C6H4O, C6H4S ou C6H3N seriam impossíveis.
Em suas primeiras publicações acerca dos compostos aromáticos, Kekulé preferia
as “formas salsisha” (figura 4.19A), sendo essa a forma utilizada no primeiro volume do
seu Lerbuch der organischen chemie (1865). No ano seguinte, Kekulé adota o hexágono
(figura 4.19C). O problema da tetravalência do carbono foi resolvido com a suposição da
existência de valências duplas alternadas entre os carbonos do anel aromático do benzeno
(figura 4.19B). Entretanto muitos químicos não estavam dispostos a aceitar a forma do
benzeno como um ciclohexatrieno, uma vez que não havia reação de adição para ele nos
mesmos moldes de outros compostos insaturados. A presença das valências duplas
continuou em aberto.
outros dois menores; como outros ainda maiores retinham três ou mesmo quatro dos menores; enquanto o conjunto mantinha-se girando em uma dança vertiginosa. Vi como os maiores formavam uma cadeia arrastando os menores atrás de si, mas somente nos finais da cadeia (...). O grito do motorista : “Chapman Road” acordou-me do sonho; mas passei uma boa parte da noite colocando no papel pelo menos o esboço dessas formas de sonho. Essa foi a origem da “teoria estrutural”. Algo semelhante aconteceu com a teoria do benzeno. Durante minha estada em Ghent, morava em elegantes aposentos de solteiro na via principal. Meu escritório, no entanto, tinha frente para um beco estrito e nenhuma luz do dia penetrava nele (...). Estava sentado escrevendo meu livro didático, mas o trabalho não progredia; meus pensamentos estavam em outro lugar. Virei minha cadeira para o fogo e cochilei. Novamente os átomos estavam saltando diante dos meus olhos. Nessa hora, os grupos menores mantinham-se modestamente no fundo. Meu olho mental, que se tornara mais aguçado pelas visões repetidas do mesmo tipo, podia agora distinguir estruturas maiores de conformações múltiplas: fileiras longas, às vezes mais apertadas, todas juntas, emparelhadas e entrelaçadas em movimento como o de uma cobra. Mas veja! O que era aquilo? Uma das cobras havia agarrado sua própria cauda, e essa forma girava desdenhosamente diante de meus olhos. Acordei como se por um raio de luz; e então, também passei o resto da noite desenvolvendo as conseqüências da hipótese.” (Roberts, 1995, p. 102)
110
(A) (B)
(C)
FIGURA 4.19 – Representações de Kekulé para a molécula de benzeno: (A) fórma "salsicha", do primeiro volume do
livro de Kekulé: Lehrbuch der organischen chemie (1865); (B) e (C) representações esquemáticas cíclicas para a substância, que constavam do segundo volume da mesma obra
Sem se preocupar diretamente com as questões relativas ao benzeno, mas assistindo
de perto esses debates que possuíam amplas implicações estruturais, estava Butlerov. Em
1861 o russo havia publicado um artigo onde já colocava explicitamente o papel e o lugar
da representação estrutural. O ponto central do artigo de Butlerov foi o de firmar a opinião
de que o conceito de atomicidade poderia conduzir seguramente a uma teoria da
constituição dos compostos químicos, ampla e consistente.
No mesmo sentido que Gerhardt, negamos a possibilidade de conhecer a posição exata dos átomos no interior de uma molécula. Parece óbvio que a química, que lida somente com corpos em estado de transformação, é incapaz de julgar a estrutura matemática, conquanto investigações físicas não afetem a questão. Por outro lado, entretanto, estou certo de que ninguém poderá dizer que esse fato permanecerá inacessível para nós no futuro. Para ser exato, não conhecemos a conexão existente entre o efeito químico relativos dos átomos em uma molécula composta e a posição mecânica desses átomos. Não sabemos também se, em tal molécula, dois átomos que afetam um ao outro diretamente, estão de fato situados próximos um do outro, mas não podemos negar, colocando o conceito de átomos físicos inteiramente de lado, que as propriedades químicas de um corpo são determinadas em particular pela coesão entre os elementos que o formam. Prosseguindo com a suposição de que existe em cada átomo químico apenas uma” quantidade limitada de força química [afinidade], com a qual ele participa da formação dos corpos, eu designaria a essa coesão química, ou a maneira de ligação mútua entre os átomos em um corpo composto, pelo nome de estrutura química. (Butlerov apud Rocke, 1981)
111
A distinção ontológica entre o mundo físico e o mundo químico isenta Butlerov de
problemas acerca da realidade positiva da matéria. O arranjo aparente da matéria
(químico) poderia ser revelado pelas reações químicas, sem se fazer nenhum julgamento de
sua identidade com o arranjo verdadeiro (físico). As proposições de Butlerov sugerem que
seria possível investigar a estrutura química dos corpos sem se preocupar com questões até
então sem resposta.
Os principais historiadores que tiveram como objeto de pesquisa a teoria da
estrutura química concordam que “qualquer discussão sobre as origens da teoria estrutural
deve envolver concepções claras sobre o que se queria dizer com essa frase” (Russel apud
Rocke, 1981, p. 36). Butlerov definiu o termo estrutura química de diferentes maneiras
desde 1861 até 1864: (1) coesão mútua ou maneira de ligação mútua entre os átomos em
um composto, (2) a forma como os elementos químicos estão conectados, (3) distribuição
da ação de afinidade, (4) ordem da ação química mútua dos vários átomos elementares,
resultando na existência de partículas definidas, (5) seqüência de ação mútua – a forma da
ligação química mútua dos átomos em uma molécula. Rocke indica que Butlerov inventou
o termo estrutura química significando “a aplicação consistente das regras de valência na
construção sistemática de moléculas” (Rocke, 1981, p. 37).
O próprio Butlerov entendia que suas formulações sobre a estrutura química eram
pouco mais do que a idéia de atomicidade de Kekulé, ou seja, a idéia de estrutura química
surgiria diretamente a partir da noção de valência. Mesmo assim Butlerov colocou sua
estrutura química de maneira forte e convincente, reconduzindo o trabalho de muitos que já
haviam tomado outros rumos. Foram algumas críticas de Butlerov ao primeiro volume do
Lehrbuch que influenciaram Kekulé a redesenhar a estrutura do Benzeno.
Kekulé e Butlerov nunca disputaram pessoalmente a primazia da teoria estrutural;
esse foi um serviço abraçado com fervor por partidários de ambos. Do lado russo o
defensor mais contundente era um aluno de Butlerov, Vladimir Vasilyevich Markovnikov
(1838-1904). Pelo lado alemão o representante mais gabaritado na defesa da primazia de
Kekulé foi ninguém menos do que seu amigo pessoal, Julius Lothar Meyer (1830-1895).
Ao final das controvérsias, Butlerov admitia que Kekulé poderia ter tido as idéias de
ligação química antes de 1857 e que Couper havia planificado inicialmente as idéias de
uma fórmula química estrutural, mas reclamava que em suas formulações iniciais, Kekulé
não apresentou de forma consistente os princípios de uma teoria estrutural porque ainda
não tinha abandonado algumas doutrinas anteriores, como por exemplo o uso de tipos
112
múltiplos e mistos, que facilmente conduzia a fórmulas diferentes para o mesmo composto.
Depois de 1868 o debate entre os dois se apagou, parecendo que ambos reconheciam sua
importância no cenário da teoria estrutural. Kekulé, entretanto, ainda teve de reunir forças
para debater novamente questões de primazia com Frankland e Kolbe.
O sonho de Kekulé iluminou o caminho da teoria estrutural, mas quando a chama
apagou ainda faltava uma boa parte até o fim da trilha. A plenitude do sonho estava na
metáfora colocada por ele: a cobra que persegue a própria cauda, o uroboro110 (figura
4.20).
FIGURA 4.20 – Uroboros conforme ilustração do livro The Psicology of C. G. Jung (Jacobi, 1973, p. 96)
Mesmo assim, com ou sem apelo ao imaginário, para descobrir mais precisamente
como seis átomos de carbono podem se manter numa cadeia fechada com valências duplas
alternadas e ainda sem se submeter a reações de adição, os químicos ainda iriam dar
algumas voltas.
110 Serpente que morde a própria cauda e simboliza um ciclo de evolução encerrado nela mesma. Esse símbolo contém ao mesmo tempo as idéias de movimento, de continuidade, de fecundidade e, em conseqüência, de eterno retorno. O uroboro (também chamado de oroboro ou ouroboro) foi utilizado na simbólica alquímica como emblema de traição da morte. A serpente que morde a própria cauda, que não para de girar sobre si mesma, que se encerra no seu próprio ciclo, evoca a roda da existência, como que condenada a jamais escapar de seu ciclo para se elevar a um nível superior: simboliza então o eterno retorno, o círculo indefinido dos renascimentos, a repetição contínua, que trai a predominância de um impulso fundamental de morte. (Chevalier e Gheerbrant, 1999).
113
4.9.7 O Sonho Foi Somente o Começo
Em 1861, mesmo ano em que Butlerov iniciou a descrição das possibilidades de
uma ligação química, o químico escocês Alexander Crum Brown (1838-1922) começou a
usar fórmulas com linhas conectando símbolos dos elementos, assim como Couper havia
feito anteriormente. Crum Brown foi paulatinamente sofisticando tanto a forma de
descrição através dos desenhos, quanto corrigindo seus pesos atômicos, até uma
configuração bastante precisa e simplificada para diferentes compostos. Na notação de
Crum Brown, os símbolos dos elementos estão inscritos em círculos de onde partem tantas
linhas quantas forem os equivalentes desse elemento. Quando os equivalentes dos dois
elementos que pretendem a ligação são mutuamente satisfeitos, as linhas são unidas.
Conforme descritas pelo próprio, as fórmulas de Crum Brown procuravam descrever a
localização química dos átomos em lugar da localização física.
FIGURA 4.21 – Reação de nitrilação de um ácido carboxílico, conforme representada por Crum Brown (1867)
Outra tentativa de estabelecer fundamentos gráficos para a teoria estrutural foi feita
pelo professor do ensino secundário de Viena Josef Loschmidt (1821-1895), que divulgou
em um livro texto tais representações designadas como “fórmulas de constituição da
química orgânica em representação gráfica”. Inspirado primariamente nas representações
de Dalton, Loschmidt apresentava os átomos de carbono como círculos, os átomos de
hidrogênio como círculos menores, os átomos de oxigênio como dois círculos inscritos e o
nitrogênio como três círculos inscritos111. As representações de Loschmidt receberam
pouca atenção, inicialmente112 devido à circulação restrita da obra que fora editada pelo
111 A indicação da quantidade de círculos inscritos para cada elemento estava amparada na valência (oxigênio como bivalente e nitrogênio como trivalente). 112 Tomando o ano de 1861, a proposta de Loschmidt é praticamente tão eficiente quanto as salsichas de Kekulé. Loschmidt foi o primeiro a calcular a quantidade de partículas de uma determinada massa de
114
próprio autor, e posteriormente porque não conseguia dar conta regularmente da
representação de todas as valências do carbono, principalmente para a molécula de
benzeno (figura 4.22).
FIGURA 4.22 – Representações de Loschmidt para diferentes compostos orgânicos: (A) (B) e (C) tentativas de representar o núcleo aromático, (D) Benzeno, (E) fenol, (F) metoxi benzeno, (G) anilina), (H) diaminobenzeno, (I) uma imida. (Ihde, 1980, p. 308)
Também conduzido pela vontade de formar representações estruturais e convencido
de que seria um caminho frutífero na solução dos problemas com as séries de compostos
homólogos113, August Wilhelm Hofmann (1818-1892) apresentou em 7 de abril de 1865,
durante a leitura de seu artigo sobre a força de combinação dos átomos na Royal College of
Chemistry, alguns modelos de bolas e varetas. Nesses modelos os átomos eram
representados pelas bolas e suas diferentes capacidades de combinação pelo número de
varetas que saíam das bolas.
(A) (B) (C)
FIGURA 4.23 – Modelo de bolas e bastões de Hoffman para descrever a estrutura do: (A) gás metano, (b) acetileno e (C) dicloro etano
matéria, utilizando preceitos da termodinâmica. O número de moléculas contidas em um centímetro cúbico de gás a determinada temperatura e pressão é conhecido como a constante de Loschmidt e vale 2,6 x 1019. 113 Como visto anteriormente, substâncias homólogas são aquelas que possuem a mesma função química, mas diferem pelo número de átomos de carbono da cadeia principal.
115
Hofmann não utilizou seus modelos de bolas e bastões para tentar representar
estruturas fechadas; continuava em aberto a situação das valências no núcleo aromático do
Benzeno.
Mesmo com a difícil aceitação da proposta das duplas valências alternadas pela
comunidade científica, a forma cíclica hexagonal do benzeno estava amplamente
confirmada. A elucidação de como era o interior desse anel aromático, guiada sempre pela
determinação empírica de ausência de reações típicas de adição para esse composto, se
tornou um sub-programa de pesquisa provisório, no interior da química orgânica.
O alemão Adolf Claus (1840-1900), que havia sido aluno de Wöhler e Kolbe, era
um dos interessados em elucidar essa questão. Para ele cada átomo de carbono deveria
possuir três valências satisfeitas por três outros átomos de carbono. Uma outra alternativa
foi proposta pelo aluno de Kekulé, James Dewar (1842-1923), indicando que a situação
conforme a figura 4.24.
(A) (B) (C)
FIGURA 4.24 – Propostas de Claus (A e B) e Dewar (C) para saturação das valências do anel do benzeno (Ihde, 1984, p. 313)
Albert Ladenburg (1842-1911) verificou que a proposta de Kekulé indicaria a
existência de dois isômeros de substituição para a posição 1,2 do anel aromático,
dependendo de onde estivessem esses susbtituintes em relação à posição das três duplas
alternadas (figura 4.25). X
XX
X
FIGURA 4.25 – Fórmula estrutural plana dos isômeros aromáticos obtidos por substituição do benzeno nas posições 1,2, que foi refutada por Ladenburg
Uma vez que tais isômeros não eram conhecidos para nenhum composto aromático
di-substituído nas posições 1,2, Landenburg argumentou que cada átomo de carbono
deveria estar ligado a três outros e sugeriu três formas alternativas para as distribuições de
valência (Figura 4.26). A primeira proposta de Landenburg (4.26A) foi idêntica a uma das
propostas de Claus (4.26B). O prisma e a estrela são originais, sendo que o autor preferia o
116
prisma, pois conseguia explicar em boa medida os isômeros di e tri-substituídos, mas era
ineficiente para o entendimento das valências para outras situações.
(A) (B) (C)
FIGURA 4.26 – Possibilidades de distribuição das valências dos carbonos na molécula do benzeno, segundo Landenburg (Ihde, 1984, p. 314)
O grande mérito do trabalho de Landenburg não está associado às suas estruturas,
particularmente simpáticas e parcialmente eficazes, mas sim ao interessante contra-
exemplo que fora revelado em relação à inexistência de isômeros 1,2 di-substituídos no
anel aromático. Esse mérito fez reavivar o Kekulé arquiteto que a partir de todas as
propostas de saturação de valência feitas até então delineou, em 1872, uma
complementação à sua proposição original, indicando um mecanismo oscilatório entre as
duplas valências do anel que fazia com que todas as posições dos seis átomos de carbono
fossem equivalentes, o que particularmente resolvia o problema da inexistência dos
isômeros. Segundo as proposições de Kekulé, os átomos na molécula oscilavam em torno
de uma situação de equilíbrio, colidindo constantemente com os átomos vizinhos. O
número dessas colisões por unidade de tempo era capaz de gerar uma força que, tanto
mantinha a molécula coesa, quanto era transformada numa valência uniforme para cada
átomo de carbono na estrutura.
As questões postas por Kekulé indicavam que as duas estruturas da figura 4.27
eram a situação inicial e final em cada intervalo de tempo proposto para a então chamada
situação de equilíbrio. A comunidade científica em geral não conseguiu entender o
significado estrutural das representações de Kekulé, até mesmo porquê ela tinha problemas
de consistência quando procurava se referir à dinâmica das colisões e do equilíbrio
conseqüente delas. Contudo, o saldo final é bastante positivo: as valências dos seis átomos
de carbono no anel benzênico são equivalentes. Mesmo assim, não há concordância quanto
à localização das valências duplas ou triplas nesse anel.
117
FIGURA 4.27 – Reprodução de uma página do periódico alemão Annalen der Chemie und Pharmacie (n. 162, v. 88, 1872), onde Kekulé publicou as formas equivalentes do benzeno. (Ihde, 1984, p. 315)
Lothar Meyer também discute essas questões no mesmo ano e sugere algumas
soluções para o problema do lugar da quarta valência do carbono no benzeno. Ele
introduziu a idéia de que cada carbono nesse caso possui uma afinidade livre. Assim, a
estrutura do benzeno poderia ser representada conforme a figura 4.28A. Havia
concordância sobre a existência de somente 3 produtos di-substituídos. As representações
de Meyer ficaram conhecidas como fórmulas cêntricas e apesar de adormecidas logo após
sua divulgação, foram retomadas nove anos depois por Johann Friedrich Adolf von Baeyer
(1835-1917) e Henry Armstrong (1848-1937).
(A) (B) (C)
FIGURA 4.28 – Formas cêntricas para o Benzeno segundo Meyer (A), Baeyer (B) e Armstrong (C) (Ihde, 1984, p. 316)
A pesquisa sobre a natureza das ligações no benzeno chegou ao final da década de
1880 com a intenção de convergência. A maior vontade dos praticantes da recém nata
teoria estrutural era de buscar reconciliação entre as hipóteses existentes, a fim de obter
uma conjectura o mais abrangente possível. Alguns axiomas podem ser enunciados como a
base dessa busca final: (i) a estrutura é cíclica com cada carbono utilizando duas valências
118
com outros dois carbonos contíguos, perfazendo um total de seis carbonos; (ii) a terceira
valência de cada carbono é utilizada com um elemento externo a esse anel; (iii) todas as
valências dos carbonos nessa estrutura são equivalentes. A questão ainda em aberto é:
como está situada a quarta valência de cada carbono desse ciclo? Duas respostas competem
lado a lado, de um lado as duplas alternadas de Kekulé, do outro as fórmulas cêntricas de
Meyer e seguidores. Em verdade, essa disputa não ficará totalmente esgotada até que a
físico-química ilumine o caminho da química orgânica já no século XX, contudo, uma
proposta mecanística interessante e a dilatação da noção de valência irão deixar o time de
Kekulé em boa vantagem.
O fato de os compostos aromáticos não sofrerem adição foi investigado por
Johannes Thiele (1865-1918) com uma estratégia bastante peculiar. Thiele conduziu uma
série de experimentos de adição em compostos de cadeia aberta com as características de
duplas alternadas dos anéis aromáticos. Thiele verificou que, em compostos como o
butadieno, a adição é feita nas posições 1,4, com a transposição da dupla ligação para os
carbonos 2,3 (figura 4.29).
FIGURA 4.29 – Equação da reação de adição 1,4 do bromo ao butabieno, indicando a transposição da dupla ligação para a posição 2,3
Para explicar esse efeito, Thiele sugeriu em 1899 que algumas ligações duplas
possuem valências não satisfeitas, ou uma ligação química potencial. Quando ligações
duplas estão em átomos de carbono adjacentes, as valências centrais parciais se tornam
ineficazes, e as posições mais externas (1,4) são as mais reativas (figura 4.30).
FIGURA 4.30 – Representação das valências parciais existentes na estrutura de dienos em carbonos adjacentes (Ihde, 1984, p. 317)
119
Todas as valências parciais são adjacentes no anel do benzeno e por isso são
ineficazes. A molécula só participa de processos de adição sob condições extremas (figura
4.31).
FIGURA 4.31 – Noção de valências parciais aplicada à estrutura do benzeno. Na figura a representação a partir da fórmula cêntrica é interconvertida numa que considera as valências parciais do benzeno. (adaptado de Ihde, 1984, p. 317)
De acordo com Thiele, as valências parciais dos átomos adjacentes saturavam uns
aos outros nas moléculas dos dienos; isso explicava a atividade dos átomos nas posições 1
e 4. Esse conceito de valência parcial, introduzido por Thiele, conduziu a uma explicação
interessante do mecanismo da adição de dienos. Hoje se tem uma explicação bastante mais
elaborada, que só foi possível pela justaposição da físico-química com a química orgânica,
dois domínios ainda bastante independentes até o final do século XIX. A responsável pela
celebração dessa comunhão seria a energia: a energia de uma ligação química possui
relação direta com a afinidade química dos elementos e com suas interações. No entanto,
os conceitos decorrentes dessa relação foram constantemente colocados e modificados ao
longo do século XIX. Durante vários períodos dessa época, conceitos de afinidade foram
desenvolvidos no programa de pesquisa da termodinâmica e da termoquímica, indicando
diferentes modos de energia de formação e decomposição de compostos114.
As relações entre afinidade, valência, ligação química e energia só ficaram um
pouco mais claras quando a mecânica quântica estabeleceu qual seria a melhor forma para
se entender a essência do quimismo, estabelecendo relações quantitativas entre energia de
114 Na época em que a valência foi considerada como o número de unidades de afinidade de um átomo, o termo afinidade era entendido como a força presente em um átomo que mantinha o sistema químico agregado em uma molécula. Mesmo depois da apropriação dos conceitos termodinâmicos pela química orgânica, a afinidade permaneceu presente, disfarçada como o calor de formação dos compostos ou como o potencial de Gibbs. Desse modo, no contexto das modernas descrições de energia, a valência perde seu lugar para “novas categorias de afinidade” melhor quantificadas, como por exemplo a energia de formação, que pode medir a “afinidade” do oxigênio pelo hidrogênio na molécula da água. Mesmo assim, a noção de valência propiciou um caminho extremamente proveitoso.
120
formação de uma substância e suas características estruturais. Para chegar nesse estágio, a
química precisou passar pelo caminho sinuoso das teorias fenomenológicas consideradas
anteriormente.
4.9.8 Valência Constante versus Valência Variável
Todos que assumiam a valência como sendo uma propriedade inerente a um
elemento e que consideravam-na como uma medida da habilidade de um elemento
combinar-se com outros, queriam determinar se todas as unidades de afinidade eram ou
não utilizadas totalmente durante uma combinação química. No início do desenvolvimento
da noção de valência, Frankland e Couper advogavam que poderia haver variações na
capacidade de combinação dos elementos, enquanto Kekulé e seus seguidores defenderam
a idéia de unidades de valência fixa.
Tendo chegado à descrição das características da valência através da teoria dos
tipos e posteriormente pelo estudo da combinação de não-metais com o hidrogênio, Kekulé
entendia que a valência deveria ser fixa e que possuía valor máximo quatro no caso dos
elementos carbono e o silício. Nesse caso a valência era uma qualidade intrínseca do
elemento que expressava quantitativamente a afinidade química e devia ser constante como
a massa atômica115. Durante a formação de qualquer composto, todas as unidades de
afinidade eram completamente utilizadas para formar ligações químicas; não havia
unidades de afinidades livres. No caso de alguns compostos, para os quais havia
discordância dos dados empíricos com suas assertivas, Kekulé engendrava um conjunto de
múltiplas ligações que acomodasse novamente suas hipóteses116. Ele assumia o mercúrio
como divalente, mas diante da produção de compostos nos quais o mercúrio se mostrava
monovalente, acomodava a valência fixa indicando que nesses casos o metal tinha uma de
suas valências saturadas por outro mercúrio (figura 4.32).
115 O que Kekulé assinalava para todos os elementos era o que se entende hoje como o menor estado de valência possível do elemento, e.g. 1 para os halogênios, 2 para os calcogênios e 3 para o nitrogênio e fósforo. 116 Esse tipo de argumentação ad hoc foi responsável pela antecipação de algumas soluções para questões estruturais muito particulares como o caso dos peróxidos (R–O–O–R) e das pontes de enxofre (R–S–S–R).
121
Hg
Hg
Cl
Cl
FIGURA 4.32 – Formula racional do cloreto de mercúrio I, conforme assinalado por Kekulé, onde o mercúrio possui valência 1
Quando se verificava que em algumas substâncias o valor da valência era muito
maior do que o previsto anteriormente, Kekulé admitia que ocorria a formação de
compostos moleculares117.
TABELA 4.8 – Demonstração das acomodações conceituais feitas por Kekulé, a fim de contornar crises impostas por contra-exemplos à noção de valência fixa
Elemento Valência Prevista Originalmente
Substância encontrada como “contra-exemplo”
Composto molecular proposto por Kekulé para acomodar a valência original118
Fósforo (P) 3 PCl5 PCl3•Cl2
Nitrogênio (N) 3 NH4Cl NH3•HCl
Selênio (Se) 2 SeCl4 SeCl2•Cl2
Mesmo diante de soluções de contorno bastante perspicazes, a valência fixa foi
caindo em uma situação de “insolvência”, uma vez que o aumento dos contra-exemplos
obrigava exercícios mentais cada vez maiores. O caso do elemento ferro é um bom
exemplo para entender como estava cada vez mais perto a necessidade de se admitir
plenamente a variabilidade da valência.
Acreditava-se que o ferro era uma espécie tetravalente119, o que conduzia a
fórmulas de seus haletos como na figura 4.33.
117 Os compostos moleculares aqui querem denotar compostos complexos. 118 Observe-se que essa forma de representação é uma reaplicação da noção de radicais, agora com uma intenção favorável a Kekulé. Essa especulação também se demonstrou profícua nos dias de hoje, e.g. o entendimento do hidróxido de amônio, NH4OH, como NH3.H2O. 119 Essa crença estava relacionada a interpretação da fórmula empírica da pirita – FeS2.
122
Fe Fe Cl
ClCl
Cl Fe Fe Cl
ClCl
Cl
Cl Cl
Cloreto férricoCloreto ferroso
FIGURA 4.33 – Representação das valências do ferro em haletos
Uma outra vertente de químicos, como Frankland e Wurtz, acreditava que a
valência do mesmo metal era 6. Esses químicos estenderam o conceito de ligações
múltiplas dos compostos orgânicos para os compostos inorgânicos, retomando, no entanto,
a idéia de mútua saturação de afinidades. O resultado dessa interpretação pode ser
observado na figura 4.34.
Fe Fe Cl
ClCl
Cl
Cl Cl
Cloreto férrico
FIGURA 4.34 – Representações da distribuição de valência em haletos do ferro
Os advogados da valência variável defendiam o consumo passo a passo do valor
máximo de valência que existia previamente em um elemento. O grau de consumo ou
saturação de afinidades de um elemento dependia da reação a qual estava submetido e da
natureza dos outros elementos que tomavam parte dela. O tempo e os contra-exemplos
oferecidos pelo aumento da atividade experimental em torno da química orgânica
demonstraram que a valência variável era o caminho mais legítimo a ser seguido. Ela
ofereceu a seus seguidores amplas possibilidades no estudo das manifestações de
reatividade dos elementos.
Ainda assim, questionamentos foram feitos quanto à validade de se admitir que a
valência seria uma qualidade preexistente de um elemento. Esses questionadores estavam
caminhando na direção de admitir que a valência podia expressar somente o número de
ligações químicas do elemento. As vozes dessa tendência foram acolhidas no campo da
teoria estrutural, uma vez que aí era interessante o exame das propriedades dos elementos
no interior do corpo químico, ou seja, do átomo ligado.
123
A pesquisa em torno das propriedades químicas dos elementos não foi de forma
nenhuma colocada de lado pelo avanço da teoria estrutural, pelo contrário, o final do
século XIX seria cúmplice de mais um empreendimento com a orientação da noção de
valência, uma organização revolucionária dessas propriedades.
4.9.9 Valência e Periodicidade Química
Mendeleev trabalhou na obtenção de uma regularidade na periodicidade química
dos elementos durante aproximadamente quinze anos. Durante esse período ele estudou
sistematicamente todas as propriedades químicas mensuráveis e disponíveis na época:
isomorfismo, volume atômico, composição dos compostos e massa atômica. Quando
começou com seus estudos foi bastante influenciado pela Teoria dos Tipos de Gerhardt e
como essa teoria estava diretamente conectada com a noção de valência, essa também
passou a influenciar Mendeleev na escrita de seu livro Primcipios de Química (1868).
Antes da publicação da lei periódica, Meyer elaborou uma tabela em 1864 onde os
elementos eram arranjados em seis colunas de acordo com suas valências (tabela 4.9).
TABELA 4.9 – Parte da tabela elaborada por Meyer com os elementos organizados a partir de suas valências (Kuznetzov, 1970, p. 75)
v 4 3 2 1 1 2
Li Be
C N O F Na Mg
Si P S Cl K Ca
Quando iniciou sua classificação dos elementos químicos, Mendeleev também
elaborou tabelas organizando os elementos em relação a suas valências em óxidos e
haletos. No primeiro estágio de seu trabalho, o objetivo era comparar as características de
variação da massa atômica e do volume atômico com a valência; em seguida Mendeleev
passou a considerar o isomorfismo como uma propriedade central e começou a compará-la
também com a valência.
Mendeleev formulou três regras, sendo que as duas primeiras correlacionavam
diferentes formas dos compostos com suas valências. A primeira regra indicava que havia
uma relação entre os compostos nos quais os elementos apresentavam sua valência máxima
124
e o hidrogênio ou o oxigênio, fazendo a representação EHn para o hidreto, onde n é a
valência máxima do elemento E com o hidrogênio, e EOm a representação do óxido, onde
m é a valência máxima do elemento E com o oxigênio. Pode-se escrever:
82 =+ mn
Exemplos que atendem a expressão acima são encontrados nos pares: CH4 e CO2;
SH2 e SO3. Outra forma utilizada por Mendeleev para revelar a regularidade a respeito do
número 8 na conjugação da valência dos elementos é mostrada na tabela 4.10.
TABELA 4.10 – Indicação de Mendeleev para a o fato significante da soma das valências dos elementos dos grupos superiores ser igual a 8 (Palmer, 1948, p. 29)
Grupo120 Valência no hidreto
Valência no óxido
Total numérico das duas valências
0 (18) O 0 ––
I (1) 1 1 ––
II (2) 2 2 ––
III (13) ? 3 ––
IV (14) 4 4 8
V (15) 3 5 8
VI (16) 2 6 8
VII (17) 1 7 8
A segunda regra trata de uma relação entre os hidretos de alguns compostos e os
oxiácidos de maior valência existentes na mesma série. Essa regra não vale para elementos
com valores extremos de valência (1 ou 7, por exemplo). A terceira regra expressa uma
relação entre a representação de compostos binários e moleculares (tabela 4.11).
TABELA 4.11 – Representação da regularidade observada por Mendeleev (segunda regra) entre o hidreto e o oxiácido de valência mais elevada, para elementos da mesma série
EH HEO4 NaH HClO4 EH2 H2EO4 MgH2 H2SO4 EH3 H2EO4 AlH3 H3PO4 EH4 H4EO4 SiH4 H4SiO4
120 Entre parênteses está a codificação atual do grupo segundo a IUPAC.
125
Mesmo estando primeiramente sob a orientação da noção de valência fixa,
Mendeleev se voltou contra ela após os dilemas e controvérsias apresentados acerca da
identificação de sua natureza, se fixa ou variável. Mas por que essa ingratidão? As
investigações de Mendeleev estavam inicialmente concentradas tanto na determinação da
composição das substâncias, levando em consideração os limites técnicos e conceituais
existentes, quanto na determinação das relações entre essa composição e suas propriedades
a partir das reações características de uma série de compostos. Nesse contexto, ele se
tornou um opositor à teoria estrutural por considerá-la uma construção estática, que não
considerava a dinâmica do sistema químico. Essa mesma teoria estrutural que Mendeleev
recusava, possibilitou a reinterpretação da noção de valência, que passava a oscilar entre
uma medida invariável da quantidade de afinidades que um elemento possuía e uma
qualidade do elemento no seu estado combinado. Mendeleev não reconhecia e rejeitava
essa interpretação estrutural da valência. Ele preferia entendê-la como uma característica
inerente ao elemento que poderia ser aferida a partir da fórmula empírica de uma
substância.
Mendeleev trabalhava geralmente com compostos inorgânicos, e a partir deles
pretendia obter sempre um valor para a valência de um elemento, verificando a relação
entre sua massa atômica e o equivalente químico da substância na qual estava contido. Na
seqüência de seu trabalho, ele ficou convencido de que a valência variava e nenhuma
teoria, seja de composição ou estrutural, conseguia explicar essas variações.
Mendeleev subestimou as possibilidades de organização que a noção de valência,
mesmo oscilando em torno de questões ainda pouco claras, poderia fornecer à sua
classificação periódica. Então como ele administrou essa situação? Mesmo ciente da perda
que havia conferido ao seu trabalho, Mendeleev foi capaz de sintetizar os conceitos
estequiométricos de Proust e Dalton com as idéias de Bertholet e obter uma forma de
verificar as relações entre a capacidade de combinação de diversos elementos, a partir de
várias reações conhecidas.
Foi somente em novembro de 1870 que [Mendeleev] finalmente resolveu o problema da unificação, formulando o princípio básico de seu sistema: a distribuição natural dos elementos em grupos de acordo com seus pesos atômicos, corresponde à quantidade máxima de oxigênio que o elemento pode incorporar na forma de um óxido salino. (Dimitriev, 2001)
126
Foi a partir das diferentes possibilidades reacionais dos elementos, expressa através
de relações estequiométricas, que ele coordenou a distribuição dos elementos em grupos
que expressavam características químicas similares.
No final do século XIX ficou claro que a posição de um elemento no sistema
periódico é determinada, não somente por sua massa atômica121, mas também pelo
conjunto de suas propriedades químicas, que por sua vez demonstram as potencialidades
de valência de um elemento.
4.10 A URGÊNCIA DA DILATAÇÃO DA NOÇÃO DE VALÊNCIA
A determinação em se manter a valência como uma propriedade constante e
característica de cada elemento, à semelhança da massa atômica, permitiu algumas
conjecturas bastante interessantes, conforme visto anteriormente. A noção de valência
promoveu o trabalho da química orgânica a um legítimo programa de pesquisa, que se
expandia com a ajuda da teoria estrutural. A fertilidade proporcionada pela noção de
valência fixa no canteiro da química orgânica não se repetiu do lado daqueles que
cultivavam a química inorgânica.
O defensor mais ilustre – e também o mais inflexível – da valência fixa era Kekulé.
Sua insistência já não mais podia ser suportada pela quantidade de evidências empíricas
contrárias. Mesmo assim ele procurava “soluções de contorno” que se traduzissem na
possibilidade de exprimir a estrutura de uma substância considerando-se valores de
valência fixa para os elementos. Talvez influenciado pela possibilidade observada a partir
do átomo de carbono, Kekulé admitia nas estruturas do ácido nítrico e do ácido sulfúrico
que os átomos de oxigênio também podiam se combinar formando cadeias (figura 4.35).
O N O O H
O S O O O HH
FIGURA 4.35 – Fórmulas racionais (estruturais) para o ácido nítrico e ácido sulfúrico, conforme proposta por Kekulé, assumindo-se a possibilidade do oxigênio formar cadeias (Kuznetzov, 1980, p. 86)
121 A ordenação da classificação periódica hoje obedece ao número de prótons (número atômico) que o elemento possui. Mesmo assim observa-se que, em relação a essa organização atual, a ordem originalmente proposta a partir das massas atômicas só é quebrada em três pares de elementos, a saber: Ar (39,9)/K (39,1); Co (58,9)/Ni (58,7); Te (127,6); I (126,9).
127
Para Kekulé a valência era uma propriedade fundamental de um átomo, assim como
sua massa atômica, constante e invariável. Para garantir sua prevalência, Kekulé formulou
uma teoria explicitamente ad hoc para tentar salvar a noção de valência fixa, a
diferenciação entre compostos atômicos e compostos moleculares (Kuznetsov, 1980, p.
86). Nessa proposta apenas os compostos atômicos poderiam ser considerados como
moléculas verdadeiras, nas quais todos os elementos estão associados por saturação de suas
afinidades. O composto atômico é aquele em que o elemento se manifesta com sua
valência mais comum, por exemplo: amônia NH3 e tricloreto de fósforo PCl3. Já nos
compostos moleculares, a ligação não era estabelecida entre átomos separados, mas entre
moléculas. Essas moléculas agregadas seriam formadas como resultado da conservação da
força de atração de um átomo em relação ao outro durante a formação de compostos
atômicos. A formação dos compostos moleculares correspondia a uma interrupção no
mecanismo natural de formação de compostos atômicos, que proporcionaria a formação de
grupos de átomos com alguma estabilidade. Entretanto, a estrutura dos compostos
moleculares não podia ser determinada por fórmulas e esses compostos possuíam
estabilidade menor do que os compostos atômicos122. Na sua proposta de compostos
atômicos e moleculares, Kekulé parecia retomar questões já há muito adormecidas, como a
questão dos radicais, uma vez que para ele o PCl5 seria uma associação entre o tricloreto e
o cloro (PCl5 = PCl3 • Cl2).
Na defesa da valência variável encontrava-se Wurtz, que em 1864 já considerava
que, a partir da lei das proporções múltiplas, devia-se considerar que a capacidade de
combinação dos elementos era consumida gradualmente até atingir um valor limite que não
poderia ser ultrapassado (Kuznetsov, 1980, p. 87). Para Wurtz, o que deveria ser
perseguido era a característica de valência de um elemento num determinado composto,
essa característica desse elemento não poderia ser transportada para outros compostos que
o contivesse. A esse tipo de característica, Wurtz denomina “capacidade de combinação
factual” (ibidem, p. 88). Desse modo, a valência de um elemento é algo relativo à
substância na qual o elemento toma parte. Wurtz indicou a necessidade de se distinguir
entre afinidade, a força que se manifesta na interação entre átomos, e valência de um
122 Note-se que Kekulé começa a vincular as características estruturais de um composto à sua estabilidade. Sabia-se que PCl5 – composto molecular, segundo Kekulé – não era encontrado no estado gasoso. Desse modo o PCl3 – composto atômico, ou seja, mais estável – prevalecia no estado gasoso. Em verdade, atualmente se considera que existe o equilíbrio PCl5 ⇔ PCl3 + Cl2. Entretanto, havia anomalias que permaneciam sem solução a partir do modelo proposto por Kekulé, pois, por exemplo, sabia-se também que o PF5, composto análogo ao PCl5, podia ser encontrado no estado gasoso.
128
elemento, a força de um átomo para se combinar ou substituir um certo número de átomos
de um outro elemento. A eloqüência de Wurtz e seus exemplos de variabilidade na
valência de muitos elementos (eg. ICl e ICl3) mantinham aceso o debate. Mesmo assim, ele
considerava que o cloro possuía valência fixa e admitia, à semelhança de Kekulé, a
possibilidade de cadeias de átomos de oxigênio para elaborar as fórmulas racionais dos
anidridos do cloro (figura 4.36).
O O O O O ClCl
FIGURA 4.36 – Fórmula racional para o Cl2O5, conforme proposta por Wurtz (Kuznetsov, 1980, p. 90)
Para alguns adeptos da valência variável, como o sueco Christian Wilhelm
Blomstrand (1826-1897), uma questão importante era entender quais seriam os limites de
variabilidade da valência para os diferentes elementos. Ao procurar estabelecer esses
limites, Blomstrand propõe de forma bastante correta a estrutura dos oxiácidos, entendendo
que o não metal característico de cada um deveria ocupar o lugar central nessa estrutura.
N O HO
OS
O
O
H
H
O
O
FIGURA 4.37 – Estruturas propostas por W. Blomstrand para o ácido nítrico e para o ácido sulfúrico (Kuznetsov, 1980, p. 91)
Blomstrand justifica o arranjo das estruturas da figura 4.37 a partir do “caráter
eletroquímico” (Kuznetsov, 1980, p. 91) que os elementos apresentam. Nesse caso, um
elemento frente a elementos positivos apresentaria uma valência e frente a elementos
negativos apresentaria outra.
As propostas estruturais de Blomstrand levam Wurtz a reconsiderar suas
formulações iniciais com cadeias de átomos de oxigênio e procurar francamente nas
fórmulas estruturais o caminho para solucionar as questões que definitivamente poderiam
enterrar a valência fixa.
Apesar de sua eficiente descrição acerca dos oxiácidos, o campo de trabalho
principal de Blomstrand tratava dos sais de cobalto, mais especificamente o lúteo (cloreto
de hexaminocobalto (III)). Na tentativa de explicar a estrutura desse sal, tanto Blomstrand
129
na Suécia, quanto Sophus Mads Jörgensen (1837-1914) na Dinamarca procuraram
descrever a estrutura dos sais de cobalto em forma de cadeia.
Co NH3 NH3 NH3 NH3 Cl
NH3
NH3
Cl
Cl
FIGURA 4.38 – Representação estrutural em "cadeia" para o cloreto de hexamin-cobalto III, conforme proposta pela teoria de Blomstrand-Jörgensen (Ihde, 1984, p. 382)
Apesar de terem sido conduzidas em anos diferentes123, as propostas de notação dos
sais de cobalto ficaram conhecidas como a teoria de Blomstrand-Jörgensen. Nessa teoria o
nitrogênio atuaria, assim como o átomo de carbono, com possibilidade de formar cadeias,
onde o NH3 se comportava como o radical metileno (CH2) dos compostos orgânicos.
A teoria das cadeias foi duramente criticada por Medeleev. Ele considerava que
uma estrutura em cadeias proporcionaria compostos bastante instáveis, característica não
observada nesses sais. Para Mendeleev o metal deveria ocupar a posição central do arranjo
estrutural. A possibilidade de o metal continuar formando ligações com outros elementos
era explicada pela possibilidade de existir uma quantidade de “afinidade residual”, que
continuaria dando ao elemento essa possibilidade.
O arranjo teórico mais completo a respeito da estrutura dos compostos inorgânicos
foi trazido à tona pelo alemão Alfred Werner (1866-1919). A proposta de Werner colocava
no centro do arranjo espacial o metal, funcionando como o coordenador das ligações a
serem estabelecidas com os grupos – chamados de ligantes – que estariam dispostos ao
redor desse átomo central. Para Werner, o arranjo no espaço se dava considerando duas
esferas, a primeira contendo o átomo central e os ligantes, a segunda contendo os
elementos mais distantes, ligados à primeira esfera. No lúteo, por exemplo, a configuração
das duas esferas estaria colocada, conforme a figura 4.39.
123 Blomstrand formulou pela primeira vez uma estrutura em cadeia em 1869. Jörgensen, em 1884, ampliou a noção de Blomstrand para outros sais.
130
[ ]EsferaSegunda
3
EsferaPrimeira
63 Cl)Co(NH
FIGURA 4.39 – Designação da primeira e segunda esfera no cloreto de hexaminocobalto (III), conforme definido por Werner (Kuznetsov, 1980, p. 103)
Tão importante quanto a definição da posição central do elemento responsável pela
coordenação do conjunto estrutural – denominado complexo – foi a criação de um novo
conceito, o de número de coordenação, que afastava em grande parte as dificuldades
implicadas pela noção de valência. Num radical complexo, o número de coordenação é o
número de grupos que são coordenados pelo elemento central, de tal modo que, se o
número de coordenação de um átomo é seis, esse átomo pode coordenar seis grupos.
Alguns elementos possuem número de coordenação fixos, outros possuem número de
coordenação variável.
Para Werner, cada átomo podia ser considerado como um ponto material que ocupa
um determinado volume no espaço. O número de grupos que um átomo pode coordenar
depende desse volume, de tal forma que átomos menos volumosos coordenam menos
grupos do que átomos maiores. Na verdade, o número de relações entre o átomo central e
os grupos ligantes depende do volume do átomo central e dos ligantes. Werner sabia que
para o mesmo elemento, o volume do átomo central dependia de sua valência124. Não havia
como se libertar totalmente dela.
Com isso Werner procurou estabelecer o mais claramente possível a diferença entre
o número de coordenação e a valência.
A valência expressa o número máximo de átomos monovalentes que podem se unir diretamente a um dado átomo, sem a participação de outros átomos elementares. O número de coordenação indica o número máximo de átomos ou grupos que podem ser ligados diretamente com um dado átomo. (Kuznetsov, 1980, p. 105)
Com o número de coordenação, Werner procurou delinear um conceito tão
abrangente e importante para a química inorgânica, quanto a valência havia sido para a
química inorgânica.
124 O número de coordenação da platina tetravalente é 6, enquanto da platina divalente é 4. Quando se indicava o número de coordenação de um metal, era necessário especificar também sua valência. Um dado interessante, conforme apresentado pelo próprio Werner, é que todos os elementos possuem números de coordenação diferentes de suas valências, exceto o carbono, que possui valência e número de coordenação igual a 4.
131
O número de coordenação, na teoria estrutural dos compostos complexos, que são formados pela combinação de várias moléculas simples, é tão importante quanto a valência na teoria estrutural dos compostos simples, e dos compostos de carbono em particular. (Kuznetsov, 1980, p. 105)
A teoria de valência existente era considerada por Werner como insuficiente e
inaplicável aos compostos complexos. Na verdade essa inadequação da valência aos
complexos já havia sido apontada anteriormente, uma vez que Mendeleev já havia
constatado que mesmo saturada a capacidade máxima de combinação de um elemento,
ainda assim ele seria capaz de participar da construção de moléculas complexas. A
próxima etapa de Werner deveria ser a de refinar a noção de valência a fim de melhor
acomodá-la ao mundo dos complexos.
A possibilidade de formação dos complexos deixava claro que de alguma forma os
compostos chamados de primeira ordem125 – por exemplo: SO3, H2O, AuCl3, KCl, PtCl4 –
não estão completamente saturados, uma vez que ainda possuem afinidades livres para
formar compostos de ordem maior, como por exemplo os complexos. Werner conduziu a
idéia de que essas afinidades, ainda livres nos compostos de primeira ordem, podiam ser
entendidas como forças oriundas de valências auxiliares – para diferenciar das forças
decorrentes da valência principal –, as quais eram utilizadas para formar os compostos de
primeira ordem. As tentativas para encontrar diferenças na natureza das forças das
valências auxiliares e principais foram em vão. No ano em que Werner publicou sua teoria
da valência principal e auxiliar, o elétron foi descoberto (1897). Werner foi um dos
primeiros a tentar utilizar elétrons na descrição dos problemas relacionados à valência dos
elementos.
4.11 VALÊNCIA – UMA IDÉIA NÃO CONCLUÍDA
Ao final dessa história falta perguntar: o que é valência? Reunindo afinidade
química e valência no mesmo escopo, uma resposta possível é que a valência se constitui
na permanente, tumultuada, desordenada, controversa e não completada tentativa de
entender como a natureza organiza e transforma seus constituintes. Mesmo entre
acadêmicos ou especialistas, a utilização do termo valência se refere ao íntimo da atividade
125 O composto era dito de primeira ordem se possuía estabilidade e se nele podia ser encontrado o elemento em sua condição máxima de valência.
132
química. No imaginário daqueles que atravessaram uma graduação em química ou áreas
afins, falar de valência é particularmente falar do poder – que pode ser traduzido
cientificamente das mais variadas formas – que faz com que um átomo assuma
determinada “atitude química” frente a outro.
A busca pelas origens da valência na afinidade química revela que esse
empreendimento sempre foi o pano de fundo das atividades da química, mesmo antes de
ela se constituir como um domínio científico ou disciplinar de estudo. A afinidade emerge
dos frascos e cadinhos alquímicos para procurar seu lugar nas prateleiras dos laboratórios
das universidades.
Nas origens, essa força, essa afinidade, essa capacidade de combinação, nos foi
permitida por um físico. Talvez, sem a questão 31 de Newton, ainda estivéssemos
procurando descrever a natureza dessa ação singular entre os corpos químicos por meio de
uma força que age inversamente ao quadrado da distância. É bem verdade que essa
afinidade se manteve, quase sempre, cautelosamente assombrada pelas descrições físicas,
como era de se esperar da criatura que se afasta do criador.
A afinidade, ambiciosa, preteriu os átomos de Dalton e preferiu o caminho dos
equivalentes químicos. A disputa entre atomistas e equivalentistas não enfraqueceu a
afinidade, mas colocou-a em um estado latente. Seja qual fosse a opinião a respeito do
modo de constituição do corpo químico, haveria de existir uma afinidade química nele,
responsável por seu comportamento químico.
As diferentes invenções realizadas para dar conta de como esse corpo químico
existia – radicais, núcleos e tipos –, precipitavam a existência de uma certa ordem nesse
corpo químico. A forma como esse corpo químico se organiza depende, obviamente, da
afinidade que seus componentes possuem, os componentes, por sua vez, se valem de tipos
de afinidade diferentes para se combinarem e para se manterem combinados. A valência é
resultado disso, não somente da percepção de uma regularidade na combinação dos
elementos, mas principalmente na determinação de transpor essa regularidade para outros
elementos, tornando-a uma propriedade geral dos corpos elementares e um conceito chave
para a criação da teoria estrutural.
Valência e afinidade não são a mesma coisa. A valência é um produto da afinidade
de um elemento126. As descrições da valência como, por exemplo, poder, capacidade e
126 A afinidade química derivou outros conceitos e idéias como os relativos à termodinâmica/termoquímica e ao equilíbrio químico.
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força refletem características ontológicas que foram herdadas da afinidade química. No
entanto, o caráter abrangente tomado pela noção de valência imprimia o traço de uma
personalidade múltipla, ao que sua própria utilização e prática orientou-a para uma nova
marca ontológica, caracterizada, principalmente, por sua distinção como grau. Essa
graduação exigiu que números fossem utilizados como descritores de uma quantidade de
valência. Essa atribuição foi herdada da teoria dos tipos, outro argumento fundador da
noção clássica de valência.
Apesar de, a partir dos tipos, se poder perceber uma certa ordem intrínseca do
arranjo do corpo químico, essa característica não foi explorada naquele momento, ela só
foi explorada a partir da valência. Graduar a valência permitia antes de tudo classificar os
elementos em termos de suas potencialidades de combinação, mas também permitia
distinguir características diferentes dos componentes do corpo químico. A unidade de
valência não pode ser medida de forma independente, mas somente em relação a uma outra
unidade, ela é uma grandeza relacional. A expectativa inicial era a de que a valência fosse
uma propriedade invariante e regular como cada tipo, a fim de se tornar mais uma marca
especial e única de cada constituinte da natureza, mas não foi bem assim, pois um mesmo
elemento apresentava diferentes graus de valência.
A controvérsia acerca da valência fixa e da valência variável é uma mostra de como
proposições ad hoc são usadas para tentar salvar modelos explicativos que são contrariados
por novas evidências empíricas, e de como esse tipo de disputa pode ser particularmente
fecunda para o progresso de um determinado domínio do conhecimento.
A instabilidade da idéia de valência fixa e a sua disputa com a valência variável
proporcionaram a criação da ligação química, propriedade versátil, variável, conseqüência
da ação química e concebida como uma causa da valência. A ligação química podia ser
formada durante a combinação, ela pertencia ao corpo químico mas era externa ao
elemento que participava dele. A parceria entre ligação química e valência foi irreversível,
marca do final do século XIX e da criação da teoria estrutural. Passa-se a ter possibilidade
de representar, simbolizar a valência, no entanto, isso tudo só é conseguido através do uso
de fórmulas empíricas corretas, isto é, precisamos saber quantas e quais são as espécies que
participam dessa representação.
Outro esquema conceitual extremamente valioso para a consolidação e para a
crítica da noção clássica de valência foi o sistema de classificação periódica. A valência foi
– e talvez continue sendo ainda que nem todos percebam – a propriedade periódica
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essencial, além de um método conveniente de classificação, que poderia ser assinalada
como uma característica natural dos elementos.
Na conclusão desse discurso histórico, a noção de valência emerge como uma idéia
controversa e disputada, responsável pela organização de conceitos fundamentais a partir
do século XIX. Num mundo ainda sem elétrons, ela reforçou a busca por fórmulas
empíricas corretas e, quando estas ficaram prontas, permitiu o salto para um olhar no
interior do que elas representavam. O horizonte de pesquisa daqueles que fizeram uso dela
foi ampliado, não porque a valência tivesse trazido uma resposta direta para suas
perguntas, mas porque havia criado dúvidas necessárias.
As formas de representação e de classificação que foram herdadas da utilização da
noção clássica de valência permanecem vivas na atividade do químico e no ensino de
química. Quando o mundo dos elétrons cobriu o corpo químico com equações e
indeterminações, a valência quase ficou reduzida ao lugar onde esses elétrons, os novos
protagonistas da ação química, realizam as modificações da matéria. Mesmo assim, a
valente valência não perde a pose, seja na Teoria Eletrônica da Valência, na Teoria da
Ligação de Valência, na eletrovalência ou na covalência. A despeito de seu caráter
controverso e profundamente atraente, permanece no âmago da Química.