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Jober Rocha A História de Renato Memórias de um Integralista Rio de Janeiro 1ª Edição - 2013

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Jober Rocha

A História de RenatoMemórias de um Integralista

Rio de Janeiro

1ª Edição - 2013

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A História de Renato

Advertência e Agradecimentos

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida, sob quaisquer meios existentes, sem o prévio consentimento do autor.

Os personagens e episódios citados neste livro são reais e verídicos; entretanto, qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.

Agradeço as seguintes pessoas que colaboraram para a elaboração desta obra, fornecendo fotos, dando conselhos ou sugestões pertinentes e efetuando pacientemente a leitura dos originais; bem como, solucionando eventuais problemas de informática: Maria L. Rosati, Luis Rocha, Renno Rosati, José Luis R. Rosati.

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Dedicatória

Este livro é dedicado aos filhos, netos, bisnetos e demais sucessores de Renato Rosati. Os primeiros e os segundos, que tiveram a felicidade de conhecê-lo em vida, certamente, ao longo de suas existências ouviram muitas das histórias aqui mencionadas; bem com outras tantas, contadas por ele mesmo e que não fazem parte desta obra por desconhecimento do autor. Faço votos para que os bisnetos, e os demais que se seguirem na cronologia familiar, que não o conheceram pessoalmente, possam, através destas poucas páginas, obter uma imagem, ainda que pálida e imprecisa, da figura humana impar que foi Renato Rosati, com seu bom senso, comedimento, tranqüilidade, jovialidade e sua inseparável piteira.

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Prólogo

Caros leitores, estas páginas que verão a seguir tratam da história de vida de meu sogro, já falecido. Homem íntegro e de boa índole, médico de profissão, teve, da mesma forma que meu próprio pai, a vida regida pelas Moiras ou pelas Parcas, as fiandeiras que tecem a trama do destino segundo gregos ou romanos, respectivamente. Durante sua juventude, ainda como estudante de Medicina em Niterói, foi envolvido no episódio da nossa História conhecido como Integralismo e, preso, passou alguns anos na Ilha presídio de Fernando de Noronha. Ali, no meio de companheiros de infortúnio, ajudava a todos com seus conhecimentos da ciência médica, o que lhe granjeou a amizade dos que lá residiam, inclusive dos ilhéus e dos carcereiros, posto que ali, naquele rincão isolado do território nacional, não havia médicos. Já no próprio dia de sua chegada àquela ilha, atendeu alguns moradores que se haviam ferido na capotagem de um veículo, fazendo curativos e procedendo a amputações. Mesmo sendo apenas um estudante de Medicina do quinto ano, era constantemente chamado pela administração do presídio para atender pacientes enfermos, tanto moradores da ilha, quanto companheiros de infortúnio e membros da guarda prisional.

Graças ao esforço e a tenacidade de seu pai Luiz Rosati, descrita, inclusive, no livro de John W.F.Dulles “Sobral Pinto A Consciência do Brasil” (livro este que trata da biografia do ilustre advogado Sobral Pinto em sua cruzada contra o regime Vargas, de 1935 a 1945), através do seguinte texto de Dulles, constata-se que,

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em razão da atuação de Sobral Pinto, Renato foi libertado mais cedo do que o previsto em sua condenação: “Noticias melhores chegaram do Tribunal de Segurança Nacional – TSN, graças a Luiz Rosati, pai de Renato Rosati, um dos estudantes de Niterói condenado a três anos e quatro meses de prisão. Luiz procurou homens de influência que pudessem exercer pressão sobre os juízes. Sobral, concordando com o método do Sr. Rosati, observou que, ‘em vista do caráter meramente político do TSN’, era importante que pessoas influentes no governo fizessem saber ao tribunal que eram favoráveis a uma sentença menor para Renato. E revisou os argumentos legais com Luiz Rosati. A pena de Renato foi reduzida a um ano, e ele foi libertado, já que o tempo que cumprira na prisão ultrapassava este período. Sobral, decidindo voltar aos casos do TSN, obteve a revisão das penas de casos similares ao de Renato, e esses clientes foram libertados em janeiro de 1940”(Dulles,J.W.F. Op.Cit. pag.143).

Voltando a residir em Niterói, onde terminou o curso de Medicina, por vários anos seguidos sempre que conseguia um emprego como médico, em algum hospital público, pouco tempo depois era sumariamente demitido, fruto das perseguições que ainda eram movidas pelo governo de Getúlio, tanto contra Integralistas quanto contra Comunistas.

Em que pesem todas essas vicissitudes, conseguiu formar uma clínica particular naquela cidade, onde casou, teve três filhos e construiu sua vida. Ao longo da carreira médica, nas várias especialidades em que atuava (Ortopedia, Ginecologia e Urologia), teve a oportunidade de salvar muitas vidas e de propiciar o nascimento de outras tantas, das quais acabava, quase sempre, sendo o padrinho, a pedido dos pais.

Um de seus filhos (e vários de seus netos) seguiu-lhe o exemplo, trabalhando na área da Saúde (três como médicos e dois como cirurgiões-dentistas).

O presente relato é fruto de longas conversas que com ele mantive, bem como de material por ele mesmo coletado durante

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sua vida, além de pesquisas históricas por mim realizadas. Tendo se passado sete anos da data de seu falecimento, e cem anos do seu nascimento, resolvi colocar no papel aquelas histórias que ele costumava contar, por vezes emocionado, aos filhos e netos.

Objetivando um tom mais coloquial, resolvi que o próprio Renato contaria a história da sua vida para o público leitor. Ao final, no Epílogo, volto a tomar a pena em seu lugar, para fazer algumas considerações finais sobre a narrativa por ele feita e sobre o período da sua vida a partir de quando eu o conheci.

Espero que a leitura seja do agrado dos leitores e que esta obra consiga transmitir um pouco do ambiente e da época, em que os principais acontecimentos aqui relatados ocorreram.

O Autor

Índice6

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I.Introdução 08

II. A Minha Infância e Adolescência 12

III. A Vinda para o Rio de Janeiro 22

IV. O Curso de Medicina 24

V. A Entrada para o Movimento Integralista 27

VI. A Prisão no Rio de Janeiro 31

VI. 1. A Vida de um Prisioneiro em Fernando de

Noronha 36

VI. 2. Enfim a Liberdade 52

VI. 3. O Retorno à Niterói 56

VII. A Minha Vida, como Médico, em Niterói 64

VIII. Epílogo 73

I.Introdução

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Meu nome é Renato Rosati e nasci na cidade de São Paulo, no dia 28 de junho de 1913, filho dos imigrantes de origem italiana Luigi Rosati e Cristina Nicolla. Meu pai havia nascido em 17 de fevereiro de 1881, na Piazza nº4, de Fontecchio, na região montanhosa de Abruzzi, na Provincia de L’Aquila (filho de Vincenzo Rosati e de Maria Presuti) e minha mãe da cidade de Turin, em 28 de novembro de 1888 (filha de Constantino Nicolla e de Catharina Dolci).

Meu avô, por parte de mãe, chamado Constantino Nicolla, veio sozinho para o Brasil em 12 de dezembro de 1890, com 32 anos, a convite de D. Pedro II, pois era marceneiro entalhador conhecido na Itália. Quando aqui chegou, foi surpreendido pelo fato de o país já ser uma república desde o ano anterior e o imperador, que o convidara anos antes, já haver sido deposto e exilado. Ao invés de ir, então, para o Rio de Janeiro, sede do império para onde fora contratado, resolveu permanecer em São Paulo. As portas, janelas e escadas do Teatro Municipal de São Paulo e da Escola de Artes e Ofícios (na Avenida Independência) foram feitas por ele. Da mesma forma, muitas portas, janelas e moveis de fazendas de café no interior do Estado, também foram por ele construídas. Tendo, inicialmente, passado aqui alguns anos e se aclimatado, mandou vir da Itália toda a família (mulher e filha). Na viagem destas de navio, conheceram meu pai, que também vinha como imigrante para o Brasil. Em 29 de setembro de 1906, Luiz Rosati e Cristina Nicolla se casaram em São Paulo. Com alguns recursos financeiros que trouxe da Itália, e após trabalhar algum tempo na casa dos Almeida Prado, meu pai conseguiu a concessão da Prefeitura de São Paulo para explorar um restaurante chamado Trianon, que se localizava no Parque Trianon, na cidade de São Paulo, mais tarde conhecido

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sob o nome de Parque Tenente Siqueira Campos. O parque era uma área de 48 mil metros quadrados, com árvores gigantescas, como a Sapopemba, o Jatobá e o Jequitibá. Havia inúmeros pássaros e mamíferos de pequeno porte, como a preá, o caxinguelê (esquilo), a paca, o mico e outros tipos de macacos. Havia sido inaugurado em abril de 1892, com a abertura da Avenida Paulista. Foi projetado pelo paisagista francês Paul Villon. Naquele local existia um clube com o nome de Trianon. O Belvedere do Trianon (mirante) foi construído em 1916 e demolido em 1957, para dar lugar ao Museu de Arte de São Paulo. Do Trianon era possível assistir às corridas de automóvel, como a de 1924, bem como contemplar o centro histórico sobre o Vale Saracura, onde hoje se situa a Avenida Nove de Julho. O restaurante era composto por dois enormes salões e era o único em São Paulo, na época, apto a realizar banquetes para um número elevado de pessoas (trezentas ou mais). Realizava, em média, três grandes banquetes por semana, possuindo cerca de trinta empregados fixos e dezenas de outros servidores variáveis, segundo a magnitude dos eventos. A comida que sobrava dos banquetes, em razão de na época ainda não existir geladeiras, era dada para a população da Saracura Pequena (região onde habitavam muitas pessoas pobres), que, em razão disto, gostava muito do meu pai.

Em outubro do ano de 1920, o rei da Bélgica em visita ao Brasil a convite do Presidente da República Epitácio Pessoa, passando por São Paulo, jantou no restaurante Trianon. A comitiva real era composta das seguintes pessoas:

“O rei Alberto; a rainha Elisabeth; o príncipe Leopoldo; o coronel Tilkens, ajudante de campo do rei; o conde D'Oultremont; o major Dujardin; o professor dr. Adolpho Lutz; o dr. Norif; o conde Goffinner; o dr. Léo Gerard, secretário do rei; a condessa Caraman Chimay; a sra. Jeanne Oghein; o dr. Theophil Wandyck; o Sr. Alexandre Anaer; o sr. Joseph Vandare Ecks; o dr. Barros Moreira, nosso ministro da Bélgica; o general Tasso Fragoso, chefe

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do estado maior de s. m.; o dr. Washington Luís, Presidente do Estado de São Paulo; a sra. Washington Luís; o tenente-coronel Eduardo Lejeune, oficial às ordens de s. m.; o comandante Plee; o professor Saloré; o Sr. Roberto Schoiedener, ministro da Bélgica no Rio e o Sr. Charles Le Viennois, cônsul geral da Bélgica em S. Paulo, dentre outras personalidade”s. (A Tribuna de 12.10.1920).

O rei gostava de comer ‘frango ao primo canto’ e, por sugestão do cerimonial, um dos pratos deveria ser frango bem torrado. Foi preparado, então, como um dos pratos, galetos bem torradinhos e, quando servidos, todos os presentes ficaram aguardando que o rei iniciasse, em primeiro lugar, o destrinchar do frango com o auxílio do garfo e da faca. O rei, com toda a calma, pegou o galeto com as duas mãos e começou a saboreá-lo tranquilamente; sendo ele, imediatamente, imitado pelos demais comensais, que também usaram as mãos para desincumbir-se daquela tarefa.

Em pouco tempo o restaurante fez sucesso, devido ao seu elevado padrão para a época, e meu pai passou a categoria de um dos homens ricos da cidade de São Paulo. Ele possuía, também, a concessão para explorar o bar do Teatro Municipal de São Paulo. Neste contexto, nada mais natural do que os filhos trilharem o caminho do pai; isto é, dedicarem-se ao comércio e aos negócios. Não foi o meu caso. Desde bem pequeno a vocação para a Medicina despontou com toda força em mim. Sempre me interessei pela Biologia, possuindo pequenos animais e plantas dos quais eu mesmo cuidava. Sempre procurava ver pessoas machucadas sendo tratadas por algum médico, e buscava eu mesmo fazer curativos em parentes e amigos que se acidentavam. Em uma ocasião, tendo apenas quatorze anos, fiz um curativo na mão de um dos empregados do Trianon, que se havia cortado com uma faca, curativo este elogiado pelo médico que posteriormente o atendeu. Assim, minha vida de criança e de adolescente foi toda me

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preparando para cursar a Faculdade de Medicina, objetivando seguir a carreira de médico.

O início da minha ida para a cidade do Rio de Janeiro, onde pretendia iniciar o curso de Medicina, coincidiu com o cancelamento da concessão da prefeitura de São Paulo sobre o terreno e as instalações do Restaurante Trianon; pois, além da recessão econômica iniciada em 1929 e da Revolução Constitucionalista de 1932, que empobreceram São Paulo, a abertura de uma avenida fazia parte do planejamento urbano daquela área, com a necessidade da construção de dois túneis, bem como a construção de um museu no local do restaurante (museu que só foi construído em 1957). Estes fatos fizeram com que meu pai se desinteressasse do comércio e se retirasse, e também com que eu sentisse com menor intensidade a dor de deixar de seguir a profissão de meu pai e de ter de abandonar o convívio da família, me mudando para o Rio de Janeiro.

Meus irmãos continuaram, ainda durante algum tempo, realizando bailes nos salões do Trianon, porém, com o início das obras dos túneis, as atividades foram definitivamente encerradas. Com a recessão econômica, os governos iniciaram diversas obras de infra-estrutura, de modo a gerar empregos, e São Paulo passou por um surto de grandes obras na ocasião. A cidade toda parecia um grande canteiro de obras.

II. A Minha Infância e Adolescência

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Nasci na Rua Santana, no número 7, e, logo depois, nos mudamos para uma nova casa, onde passamos alguns anos residindo. Esta segunda casa ficava na Rua Capitão - Mor Jerônimo Leitão, que era uma passagem particular (travessa) da Rua Anhangabaú (hoje Avenida Anhangabaú). Era uma rua plana, no início, que subia uma longa ladeira e que possuía várias casas iguais. Ali residiam meus pais, minha tia Lizeta e meu tio Biagio, além de minhas primas Maria, Carmela e Pina. As casas pertenciam à Santa Casa da Misericórdia. Minha prima Carmela era casada com um espanhol chamado Antônio Meireles (conhecido como Paco), que trabalhava na fabrica de sapatos Clark como ‘designer’ de sapatos e que também era artista de cinema, nas horas vagas, tendo realizado alguns filmes em São Paulo. Tempos depois, nos mudamos para a Rua Anhangabaú 65. Esta outra era uma casa assobradada, que ficava em frente ao Cassino Antártica e nos fundos do Colégio São Bento.

Com cinco anos (1918), peguei a Gripe Espanhola e, da janela do meu quarto, que dava para a rua, via passar carroças puxadas por burros carregando corpos de pessoas vitimadas pela gripe.

Durante a minha infância costumava passar muito tempo no restaurante do meu pai e brincava muito no Vale do Anhangabaú que, naquela época, não possuía trânsito e tinha uma agência dos Correios e um cinema chamado Central, com duas salas de projeção, uma vermelha e uma azul. Ali, em um local onde havia um lago, certa ocasião, vi Rui Barbosa plantando uma muda de Pau Brasil. De tanto brincar por lá, descobri uma entrada de esgoto com grade de barras de ferro, que eu, como era muito magro, conseguia passar entre elas. Explorando as galerias, consegui chegar embaixo do Teatro Municipal e, dali, subir até o bar do teatro, que também

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era explorado pelo meu pai. Foi uma surpresa geral quando meu tio Vicente e alguns empregados me viram, de repente e sem ser esperado, dentro do bar. Ao saberem do caminho que eu havia percorrido, me proibiram de fazer aquele percurso novamente, pois podia ficar preso em alguma galeria. Durante o trajeto que fiz, ao passar embaixo do local do bar, vi uma máquina de fazer gelo enorme, toda de cobre.

Da Rua Anhangabaú, nós nos mudamos para a Rua Leôncio de Carvalho. Depois para a Rua Manoel da Nóbrega 61. Esta última casa era enorme, possuindo três andares e 33 cômodos. Tinha um vitrô que havia sido construído para a casa do cantor Vicente Celestino e que representava a Baia de Guanabara. Meu pai a vendeu em 1942 e foi residir, então, na Rua Maria Figueiredo.

Meu primeiro colégio ficava na Rua Conselheiro Crispiniano. Depois, estudei na escola pública Rodrigues Alves, na Avenida Paulista. Logo a seguir no colégio Dante Alighieri (que ficava atrás do Trianon) e, posteriormente, no colégio São Luís, também na Avenida Paulista. Lembro-me que, ao entrar para este último colégio, levei para a aula de biologia diversas caixas de charuto, obtidas no Trianon, contendo inúmeros exemplares de borboletas, besouros, grilos e insetos de um modo geral, que deixaram o professor maravilhado. Tudo aquilo eu havia obtido em incursões de caça pelo sitio de meu pai, em Mogi das Cruzes.

Em 1924 minha mãe foi operada do fígado e demorou a se recuperar, pois ainda não existiam os antibióticos. Com a sua melhora, a família toda foi de férias para Alassio, na Riviera Italiana, menos eu e meu pai. Após um ano, meu pai foi encontrar com eles e eu, o mais velho e o único que estava no colégio, fiquei. Fui, então, matriculado no Liceu Franco Brasileiro, na Vila Mariana, em

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regime de internato, pois meu pai pretendia passar seis meses na Itália.

Meu pai, quando partiu para a Itália, deixou um gerente alemão tomando conta do restaurante, Um dia, o cozinheiro chamado Baldomero, que era meu amigo, pediu-me que avisasse meu pai de que o gerente o estava roubando. Enviei uma carta e um telegrama para a Itália, explicando a situação. Meu pai, quando recebeu ambos, decidiu antecipar a volta da família, que já estava marcada para o mês de outubro de 1927, no navio italiano Principessa Mafalda, da Navigazione Generale Italiana, que sairia de Nápoles com 971 passageiros. Na empresa de navegação trocou as passagens para o vapor Taormina, que sairia da Itália alguns dias antes. Após chegarem ao Brasil, pouco depois, souberam do afundamento do Mafalda, em 25 de outubro de 1927, próximo do Arquipélago de Abrolhos, na Bahia, quando morreram 107 tripulantes e 338 passageiros. A quebra do eixo propulsor e o choque das pás do hélice com o casco abriu um rombo que danificou a estrutura da popa, por onde a água entrou nos porões e na casa de máquinas. O roubo praticado pelo gerente alemão acabou salvando a vida de toda a minha família.

Após alguns anos do regresso de meu pai da Itália, ocorreu a recessão mundial de 1929/30. Pouco tempo depois eclodiu a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo. Com isto, o ritmo da atividade econômica declinou tanto em São Paulo quanto em todo o Brasil, coincidindo com a expiração do prazo da concessão do restaurante, que foi fechado pelo meu pai. Nesta ocasião, fui estudar no Liceu Osvaldo Cruz, perto da Praça da República.

Durante os banquetes e bailes (inclusive de carnaval), realizados no Trianon, inúmeros fotógrafos, a serviço do meu pai,

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construíram um acervo de fotografias daqueles eventos ali realizados. Estas fotos foram cedidas à um senhor, chamado Paulo Duarte, que pertencia ao Jornal ‘O Estado de São Paulo’. Na atualidade, se não foram destruídas, devem ainda fazer parte do acervo fotográfico do jornal.

O carnaval em São Paulo, naquela época, resumia-se as elites, com os desfiles de automóveis (corso) na Avenida Paulista, pela manhã, com carros abertos e cheios de jovens que jogavam serpentinas e confetes nos outros carros. Ao final da tarde e durante a noite, o corso mudava de lugar, passando a ser feito na Avenida Celso Garcia, no Brás. Aos poucos, foram sendo realizados bailes de carnaval no salão de baixo do Trianon. Lembro-me dos bailes da Harmonia, baile Sírio e baile Libanês. Com o advento do carro sedan (fechado) e a participação do povo nos festejos, o corso acabou por terminar, transformando-se em carnaval de rua, a pé.

Recordo-me que quando criança não conseguia jogar futebol direito, pois não via com nitidez a bola. Um dia, durante um jogo em que eu estava no banco dos reservas, um colega que ia jogar e usava óculos, pediu-me para que segurasse o seu, para não quebrar. Coloquei os óculos dele no meu rosto, por brincadeira, e um novo mundo se abriu para mim, a partir de então. Ao final da partida, pedi para que ele esperasse o meu pai, que vinha me buscar, pois queria mostrar-lhe que, com um daqueles, eu via tudo perfeitamente. No dia seguinte, meu pai me levou a um oculista e, desde que passei a usar óculos, meu desempenho nos estudos e nos esportes melhorou sensivelmente.

Meu pai possuía um automóvel Gardner. Com cerca de nove anos aprendi a dirigir com o motorista do meu pai, que me levava e trazia do colégio, passando sempre pela casa da namorada dele,

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onde parava alguns minutos para me ensinar a dirigir. Lembro-me também que a Madame Poças Leitão, em certa ocasião, chegou a dar aulas de dança de salão nas instalações do Trianon. Madame Poças Leitão era casada com o português Luiz Poças Leitão e seu verdadeiro nome era Louise Frida Reynold. Era professora de dança e introduziu a dança de salão em nosso país. Nos saraus do Trianon ela concedia, de graça, dois convites para cada centro acadêmico existentes na cidade de São Paulo (XI de Agosto, Grêmio Politécnico, Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, Álvares Penteado, Mackenzie e Odontologia). Dava aulas particulares de dança no Trianon e uma geração de bailarinas paulistas aprendeu e praticou nos salões do restaurante. Posteriormente criou a Escola de Danças e Boas Maneiras Madame Poças Leitão.

Quando tinha doze anos, um ladrão entrou em nossa casa durante o dia. Eu encontrava-me no meu quarto quando a porta se abriu e um indivíduo, que eu não conhecia, perguntou-me aonde era a saída. Sai para o corredor, fora do quarto, indiquei-lhe como fazer para chegar à porta da rua e voltei para dentro do quarto, para terminar meus deveres escolares. Pouco depois ouvindo um alvoroço geral, sai do quarto e fiquei sabendo que um ladrão havia roubado algumas coisas e fugido (com a minha ajuda, o que não contei para ninguém).

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Foto 01 - Luiz Rosati e filhos no Guarujá. Renato é o primeiro da direita para a esquerda

Como qualquer família italiana, nós éramos muito unidos e vivíamos todos juntos; senão na mesma casa, em casas vizinhas ou no mesmo bairro. Os almoços de fim de semana reuniam os familiares e parentes na casa do meu pai, onde todos falavam ao mesmo tempo, gritavam e gesticulavam. As crianças, como eu, corriam pelos cômodos derrubando vasos e quebrando utensílios e enfeites. Um dos meus irmãos, em certa ocasião, colocou fogo em uma cortina. Felizmente, algum adulto chegou naquela ocasião e apagou o incêndio, que poderia ter destruído a casa toda.

Era costume dos adultos esbarrarem em copos, garrafas e travessas e derrubarem o conteúdo sobre as toalhas, sem que nada de excepcional acontecesse, a não ser todos darem risadas. Quando era uma das crianças que o fazia, além de tomar umas palmadas, ia direto para o castigo.

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Foto 02 - Luiz Rosati e Cristina Nicolla – Pais de Renato Rosati.

Foto 03 - Interior do Restaurante Trianon em dia de banquete.

O Trianon, como já dito, era uma concessão da Prefeitura de São Paulo e, com a expiração desta concessão, a prefeitura retomou o imóvel, pois tinha planos de construção da Avenida Anhangabaú, logo depois chamada Avenida Nove de Julho, em homenagem a Revolução Constitucionalista de 1932.

Durante o funcionamento do Trianon, as tardes, um de seus salões funcionava como casa de chá. Era comum o Presidente do Estado (governador) aparecer com comitiva para falar de política e

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bebericar um chá. Meu pai era amigo, pessoal, de Washington Luís e de muitos políticos paulistas, o que me ajudou bastante quando estive preso na Ilha de Fernando de Noronha.

Meu pai gostava muito de caçar. Em uma caçada no Guarujá, cujas matas possuíam bastantes animais de pequeno porte, matou um porco do mato. Este estava com um filhote pequeno, que meu pai trouxe com ele. Meu tio Vicente, que trabalhava no bar do Teatro Municipal, resolveu criar o porquinho nas instalações do teatro. Assim, o bicho foi crescendo, andava por todo o teatro e saia com meu tio para um passeio pelas ruas próximas (Rua Direita, Barão de Itapetininga, XV de Novembro, São Bento, etc.). Depois de algum tempo, como o porco crescesse muito, meu pai levou-o para o sitio em Mogi das Cruzes. Infelizmente, pouco depois, o porco mordeu gravemente o caseiro e meu pai teve que doá-lo ao Jardim Zoológico do Guarujá. Quando íamos ao Guarujá, sempre visitávamos o zoológico para ver o porco. Ele nos reconhecia de longe e vinha correndo em nossa direção, para que passássemos a mão em sua cabeça. Ficava ali, conosco até que fossemos embora.

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Foto 04 - Restaurante Trianon em 1930 – Vista externa – Note, em primeiro plano, os locais em declive onde, em 1933, seriam perfurados os túneis da

Avenida Nove de Julho.

Foto 05 – Vista do Trianon e dos túneis da Av. Nove de Julho.

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Foto 06 - Local do antigo Trianon – Vista atual - Note os túneis perfurados em 1933 e, ao alto, o MASP- Museu de Arte de São Paulo, construído no local do Trianon.

Com o fim das atividades do restaurante, minha ida para o Rio de Janeiro, as viagens da família e o descaso de todos, os empregados, amigos, conhecidos e ex-freqüentadores, foram, aos poucos, dilapidando todo um patrimônio de baixelas, talheres, jarras, bules, bandejas, etc., de prata, além de milhares de toalhas e guardanapos de linho, bem como copos e taças de cristal, vinhos e champanhes da adega (que continha milhares de garrafas de vinhos champanhes e licores europeus), caixas de charutos, objetos de decoração, quadros e obras de arte que pertenciam ao restaurante.

Felizmente, meu pai não havia acumulado dívidas e possuía um patrimônio razoável, permitindo que vivesse com tranqüilidade pelo resto de seus dias.

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III. A Vinda para o Rio de Janeiro

No ano de 1934, decidido a seguir a carreira médica, vim para a cidade do Rio de Janeiro tentar cursar a Faculdade de Medicina, cujo número de vagas era bem maior do que o disponível na Faculdade de Medicina do Estado de São Paulo.

Chegando ao Rio de Janeiro, hospedei-me em uma pensão no bairro do Flamengo e iniciei um curso preparatório para Medicina.

Em um domingo ensolarado, resolvi conhecer o outro lado da Baia de Guanabara. Tomei uma barca da Cantareira, na Praça XV de Novembro, e dirigi-me à cidade de Niterói. Desembarcando no centro, fui caminhando até o Forte do Gragoatá, passando pelo bairro de São Domingos. Dali, caminhei até o bairro do Ingá, onde, por uma dessas enormes coincidências, encontrei um amigo e vizinho paulista. Meu amigo, ao saber que me encontrava no Rio de Janeiro estudando para Medicina, perguntou-me porque eu não estudava Medicina em Niterói, como ele? Conforme relatou, já estava no segundo ano da faculdade e a prova de seleção, para a turma daquele ano, seria na segunda-feira; isto é, no dia seguinte. Disse que eu poderia ficar na pensão em que ele residia na Praia da Itapuca (pensão da Miss Guiven, uma inglesa). Fiquei ali naquela noite e, no dia seguinte, fui com ele à faculdade me inscrever. A prova consistia em uma redação e em uma entrevista com um dos professores da faculdade. O professor que me entrevistou chamava-se Francisco de Almeida Pimentel, era cirurgião e filho de Antônio Pedro Pimentel (fundador e primeiro diretor da Faculdade Fluminense de Medicina). A pergunta que me fez foi sobre Biologia, matéria sobre a qual eu tinha um amplo

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conhecimento. Ficamos conversando durante muito tempo acerca do assunto e, ao final da entrevista, ele me disse que eu havia sido aprovado. Durante o curso, que a seguir realizei, nos tornamos grandes amigos.

Saindo dali fui para o Rio de Janeiro, onde apanhei minhas coisas na pensão em que estava, e retornei à Niterói, direto para a pensão da Praia da Itapuca. Eu havia trazido, de São Paulo, treze ternos e dez pares de sapatos e minha maior dificuldade foi acomodar meus pertences em um pequeno armário que havia no quarto da pensão. Felizmente, consegui espaço em armários de outros companheiros, sob a promessa de emprestar-lhes alguma peça de roupa quando solicitado.

Meses depois, já cursando a faculdade, recebi a visita de meus pais, que vinham saber como e onde eu estava instalado. Passeando com eles pela Praia de Icaraí, em continuação a Praia das Flechas, vimos uma casa de frente para o mar a venda. A casa era enorme e ocupava quase todo o quarteirão. Perguntei a meu pai se ele não queria comprar aquela casa, para que ali eu instalasse o meu futuro consultório; pois ela não custava muito e eu sabia que ele tinha dinheiro para tal. Meu pai me respondeu: - Filho, este lugar aqui não tem futuro! Quando terminar seu curso, vá clinicar em São Paulo, que eu monto o seu consultório lá.

IV. O Curso de Medicina

A Faculdade de Medicina Fluminense havia sido criada em 25 de julho de 1925, como uma faculdade particular, e seu primeiro

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diretor foi Antônio Pedro Pimentel. Seu vice-diretor era o Dr. Sena Campos, o secretário era o Dr. Arthur Victor e o tesoureiro o Dr. Hernani Pires de Mello. Foram professores na faculdade os Drs. Parreiras Horta, Leonídio Ribeiro, Mauricio de Medeiros, Antônio de Barros Terra, Amauri de Medeiros, Alfredo Rangel, Manoel Ferreira, Artidônio Pamplona, Hernani Pires de Mello, Tyco Otílio Machado e Ernani Alves.

Tendo em consideração o desenvolvimento científico da época, as principais ênfases eram para as cátedras de: Propedêutica Médica, Medicina Preventiva, Higiene, Medicina Social, Eugenia e Hominicultura. Em 1929 foram introduzidas as cátedras de Tisiologia, Urologia, Anatomia Médico - Cirúrgica, Puericultura, Patologia Nervosa e Endocrinologia.

O Curso de Medicina da Faculdade Fluminense era considerado de excelente nível, digno de uma cidade como Niterói, que era a capital do Estado do Rio de Janeiro.

Antônio Pedro, de quem não cheguei a ser aluno, era diplomado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi médico do Serviço Nacional de Saúde Pública (sob a direção de Oswaldo Cruz), clínico do Hospital Paula Cândido, diretor do Hospital São João Baptista e da Casa de Saúde Icaraí. Era um clínico dotado de grande poder de percepção e, em 1923, descreveu, pela primeira vez no Brasil, as características clinicas do DENGUE: 'Grassa actualmente em Nictheroy uma molestia interessante. O seu inicio é brusco; raramente ha calefrio; violenta dor de cabeça, forte rachialgia, dores nas pernas e articulações, febre alta, eis as primeiras manifestações’.

A primeira turma da Faculdade Fluminense de Medicina ingressou mediante rigoroso vestibular, que inabilitou 34% dos candidatos e foi composta por 40 alunos. Este foi o embrião

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daquele que veio a ser, anos mais tarde, o Hospital Universitário Antônio Pedro, localizado no centro de Niterói.

A grande preocupação da época era com a higienização e com a eugenização da nossa população, objetivando combater as doenças endemico-epidêmicas que grassavam no país.

Os professores da faculdade, em sua maior parte, eram pertencentes a Universidade do Rio de Janeiro e possuiam todos grande capacidade profíssional e científica. A sede da faculdade estava localizada no ‘Morro do Brum’, onde atualmente se localiza o Instituto Anatômico. Entretanto, a faculdade também utilizava algumas instalações do Hospital São João Batista, laboratórios do Instituto Vital Brasil, o necrotério da Polícia Técnica, gabinetes da escola Normal de Niterói e instalações do Horto do Bairro do Fonseca.

Em outubro de 1931, o Governo da República concedeu à Faculdade Fluminense de Medicina, as prerrogativas da sua equiparação às faculdades federais e o reconhecimento oficial dos diplomas por ela expedidos. A primeira turma, logo após a sua equiparação às federais, formou-se em 24 de outubro de 1931 e era composta por 37 alunos, sendo paraninfo o Dr. Manuel Ferreira.

Ainda no ano de 1931, o Dr. Plinio Casado cedeu à Faculdade um prédio na Rua Visconde de Moraes 101, prédio este que, após reformas que lhe acresceram dois novos anfiteatros, seis laboratórios e cinco ambulatórios, foi onde passou a funcionar a Faculdade Fluminense de Medicina. O antigo prédio, no ‘Morro do Brum’, ficou apenas funcionando como o Instituto Anatômico Antônio Pedro.

Foi neste novo endereço, na Rua Visconde de Moraes, que cursei a Faculdade Fluminense de Medicina.

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Foto 07 – Antiga sede da Faculdade Fluminense de Medicina.

O prédio tinha uma arquitetura bonita para a época e era bem dividido. Possuía boas instalações e era bem próximo da estação das barcas da Cantareira, facilitando, sobremaneira, os deslocamentos de alunos e professores para a cidade do Rio de Janeiro. Ali fiz grandes amizades e conheci professores de alto gabarito, que muito me ensinaram sobre as Ciências Médicas e sobre a Arte de Curar.

V. A Entrada para o Movimento Integralista

O Integralismo brasileiro, ao contrário do francês e do português que o inspiraram, era republicano e inspirado na Doutrina Social da Igreja Católica. Defendia que o Brasil necessitava de um

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Sistema Político adequado a sua história, cultura, religião e pensamento, priorizando a cultura local, as tradições, os costumes e o desenvolvimento rural, como forma de vencer o cosmopolitismo e reduzir a monocultura. Defendia, também, uma forma de governo baseada na ligação do Estado com a família, defendendo princípios éticos, religiosos e morais. Consistia de uma Frente Ampla, reunindo forças contrárias a Getúlio Vargas. Em 1936 existiam mais de meio milhão de brasileiros nas fileiras da Ação Integralista Brasileira.

Em 03 de dezembro de 1937, Getúlio dissolveu o Movimento Integralista e colocou fora da lei a Ação Integralista Brasileira, que passou a viver, desde então, na clandestinidade.

Em Niterói, os integralistas reuniam-se em uma casa no Bairro do Ingá, na esquina da Rua Pereira Nunes. Na faculdade, muitos colegas e professores pertenciam ao Movimento Integralista. Passando, também, a freqüentar estas reuniões, em uma delas fiquei conhecendo uma linda moça chamada Lucia, que residia na Rua Pereira Nunes 120 e era, também, do Movimento Integralista. Quase sempre, após as reuniões, costumávamos passear pela Praia das Flechas e iniciamos um ligeiro namoro, interrompido pelo desenrolar dos acontecimentos que se seguiram, que fizeram com que ficássemos cerca de dois anos sem nos comunicar.

Na madrugada de 11 de maio de 1938, o Movimento Integralista deflagrou um golpe (putch), cujo comandante geral seria o general João Candido Pereira de Castro Junior, tendo como segundo o médico Belmiro Valverde (meu professor de Urologia). O plano previa a invasão e tomada do Palácio Guanabara, residência do Presidente da República Getúlio Vargas, porém, por razões várias, foi mal sucedido.

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O médico Belmiro Valverde, assessor de João Candido, ao ser preso, assumiu, sozinho, a responsabilidade pelo golpe. Foi julgado e condenado, tendo fugido da prisão, no Rio de Janeiro, alguns meses depois. Posteriormente, foi recapturado e enviado para a ilha presídio de Fernando de Noronha.

Plínio Salgado, presidente da Ação Integralista Brasileira, foi preso e enviado ao exílio em Portugal, tendo retornado ao Brasil em 1945 e fundado o partido da Representação Popular – PRP.

Foto 08 - Reunião de Integralistas no Bairro do Ingá, em Niterói. Renato está no centro da foto, em pé, de óculos, com camisa verde e gravata preta.

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Foto 09 - Reunião de Integralistas em Niterói. Renato é o segundo, da esquerda para a direita. Note-se, na parede, ao centro, o retrato de Plínio Salgado.

Como estudante do quinto ano de medicina, eu estagiava na Policlínica Geral do Rio de Janeiro, com o Dr. Belmiro Valverde. Daí a passar a fazer parte do Movimento Integralista foi apenas um passo. Morando em Niterói, eu era usado, muitas vezes, como correio, para trazer documentos do Belmiro e de outros dirigentes do movimento no Rio de Janeiro, para os dirigentes de Niterói.

Na noite de 11 de maio de 1938, com outros companheiros de Niterói, tomei a última barca da Cantareira para o Rio de Janeiro. Íamos participar da invasão do Palácio Guanabara. Na carroceria de caminhões, que estavam estacionados próximos da Praça XV, para lá nos dirigimos. Um tenente da Marinha, integralista, abriria o portão do palácio ao ver os caminhões chegarem e, lá dentro, tomaríamos de assalto o mesmo. Ao passarmos pelo Bairro da Glória, uma patrulha policial tentou fazer parar os nossos caminhões, que saíram em desabalada corrida pelas ruas do bairro, em direção ao objetivo (Palácio Guanabara). Dado o alarme geral, porém, o caminhão em que eu me encontrava foi detido próximo do Largo do Machado. Pouco depois de sermos presos, soubemos, por

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conversas que ouvimos de nossos captores, que um dos caminhões havia conseguido entrar pelo portão do palácio e violento tiroteio ocorria naquele momento.

Como carregássemos armas no caminhão, fomos imediatamente conduzidos a sede da Polícia Central, onde teve, então, início um período de medo, apreensão, sofrimentos e privações, para todos nós.

Muitos dos companheiros de infortúnio eram de Niterói, mas havia gente de todos os estados da Federação. Todos possuíam um razoável nível sócio-cultural e estavam muito preocupados com o desenrolar dos acontecimentos políticos e com o futuro do Movimento Integralista. Mal sabiam que, no lugar para onde iríamos e no qual permaneceríamos por vários anos, as considerações de ordem político-ideológicas nem passariam mais pelas nossas mentes, e que nos tornaríamos grandes amigos de alguns ex-militantes comunistas, nossos tradicionais inimigos.

As instalações da Polícia Central onde ficamos, na Rua da Relação, eram soturnas e, mesmo vazias de gente, inspiravam um mal estar nos prisioneiros. Era como se estivéssemos sendo observados por seres malignos ou por espectros de detentos que nos antecederam, e que ali haviam encontrado seu fim ou sofrido muito nas mãos de seus algozes.

VI. A Prisão no Rio de Janeiro

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Com a malograda invasão do Palácio Guanabara, fomos todos presos e levados para a sede da Polícia Central, na Rua da Relação nº 40.

Os presos, ao chegarem, tinham suas impressões digitais coletadas e eram deixados nus. Isto, com toda certeza, objetivava deixá-los moralmente fragilizados perante as autoridades policiais.

Um a um éramos chamados para prestar depoimento sobre nossas atividades dentro do Integralismo e, não raro, sofríamos algum tipo de violência física por parte do interrogador.

Tendo todos prestado depoimento, nossas roupas foram devolvidas e teve início, então, a tortura pela fome. Não comemos nada durante toda aquela noite e na manhã e tarde do dia seguinte. Na noite deste dia serviram-nos uns pães, umas salsichas e água. Passamos cerca de trinta dias recebendo muito pouca alimentação e incomunicáveis.

Condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional a pena de três anos e meio de prisão, fui conduzido, junto com mais alguns companheiros, para o presídio da Ilha Grande, no litoral do Estado do Rio de janeiro. Chegamos a Ilha Grande durante a noite e, em fila indiana custodiada por apenas dois guardas armados, fomos conduzidos para o local do presídio. Durante a caminhada, eu, que era um dos últimos da fila, ao passar por um casebre abandonado, ouvi alguém lá de dentro chamar baixo: - Renato! Renato!

Parei, achando que algum conhecido tentava me ajudar a escapar. Pensei logo na ajuda de meu pai, que, por aquelas alturas, já devia saber da minha prisão; pois meu nome saíra na imprensa. Entretanto, a dúvida se instalou em minha mente: poderia ser

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também uma armadilha, para me matar como fugitivo. Na dúvida segui em frente, em direção ao presídio. Somente depois que fui solto é que obtive de meu pai a confirmação de que ele havia dado uma boa soma para um morador da ilha, cujo irmão era guarda penitenciário, para organizar a minha fuga. Já dispunham até de uma embarcação que me levaria diretamente ao Porto de Santos.

Outro fato interessante, que soube após minha libertação e meu retorno a Niterói, é que, logo após minha prisão, a polícia esteve na pensão onde eu residia em Niterói, para vasculhar as minhas coisas. Na pensão moravam estudantes de diversas faculdades. Um deles estudava Matemática e, em seu quarto, possuía um livro de Cálculo Integral e Diferencial. Foi preso com adepto do Integralismo e passou alguns dias na cadeia, até que um delegado mais esclarecido, com formação matemática, o soltou.

Após alguns meses na Ilha Grande, um dia nos colocaram em uma corveta da Marinha que rumaria para a Ilha de Fernando de Noronha, segundo disseram. Muitos ficaram temerosos, achando que pretendiam atirar-nos ao mar, logo que a embarcação se encontrasse longe da costa. Outros, diziam que um submarino alemão pretendia torpedear a corveta e resgatar os prisioneiros. Nada disto aconteceu, felizmente.

Durante a viagem, foi-nos dada muito pouca comida, Chegamos à ilha durante a noite e todos nós estávamos muito esfomeados. Fomos colocados em uma grande cela, trancada com um enorme cadeado, e ninguém veio nos oferecer comida. Pensamos logo em como fugir daquele local para obter comida. A cela só tinha uma porta com grades de ferro, trancada por um grande cadeado. Um preso, magrinho, veio lá de trás da cela e disse que trabalhava com cofres e cadeados. Deu uma olhada no cadeado e voltou lá para trás, de onde tinha vindo. Voltou de lá,

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pouco depois, trazendo uma pedra que havia guardado entre suas coisas e, com ela, deu um forte golpe no cadeado, que se abriu para surpresa nossa. Saímos dali e fomos procurar alguma coisa para comer. Achamos alguns legumes, uns restos de pescado e um caldeirão, onde fizemos uma sopa. Alertei a todos para que tomassem pouca sopa, mas alguns não aceitaram o meu conselho. Pouco depois, aqueles que exageraram vomitaram tudo o que haviam comido.

Os prisioneiros normalmente ficavam soltos pela ilha, pois a fuga era quase impossível. Só havia um caso relatado de fuga bem sucedida. Tratava-se de um prisioneiro que, no início do século, em razão da escassez de alimentos na ilha, ofereceu-se para solicitar auxílio no continente. Em um barco a vela, sozinho, foi enviado na missão suicida de chegar ao território continental brasileiro. Vencendo a enorme distância que separava a ilha do continente, o prisioneiro, faminto e sedento, conseguiu atingir seu objetivo; porém, identificou-se ao chegar como guarda prisional e, logo que pode, evadiu-se para nunca mais ser visto.

Naquela primeira noite, como a maioria dos responsáveis pela guarda do presídio já estava dormindo, resolveram colocar-nos em uma cela trancada, para, no dia seguinte, ver o que fariam conosco. Após abrirmos o cadeado e comermos da sopa, retornamos para a cela. Os poucos guardas de serviço, ao verem que desejávamos apenas comida, nada fizeram e deixaram-nos em paz.

Durante a madrugada, entretanto, uma dupla de guardas chegou ao local onde estávamos procurando por Renato Rosati. Mais uma vez, pensei que poderia ser meu pai tentando me ajudar ou que alguém, por uma razão desconhecida por mim, poderia estar tentando me eliminar. Seguindo com os guardas, logo após me

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identificar, soube por eles que um caminhão carregado com algumas pessoas na carroceria havia acabado de capotar e existiam feridos. Como a ilha não tinha médico, viram na relação dos prisioneiros que acabavam de chegar que constava um estudante de Medicina e resolveram convocá-lo.

Fui levado a uma enfermaria onde umas sete ou oito pessoas estavam deitadas em camas, todas sujas de sangue. De inicio vi um braço, uma perna e um pé esmagados. Um traumatismo craniano, costelas quebradas e muitos cortes e arranhões. A enfermaria era bem montada, possuindo tudo aquilo necessário para os primeiros socorros, bem como medicamentos e anestésicos. Mandei que chamassem também dois enfermeiros da Marinha, que estavam entre os prisioneiros e que eu havia conhecido na viagem para a ilha. Com a chegada destes passamos a trabalhar, amputando o braço, a perna e o pé esmagados e fazendo curativo nos demais. Cortei a pele e o músculo uns cinco centímetros acima dos locais a serem amputados e cauterizei para estancar o sangramento. Em seguida serrei os ossos três centímetros acima do local da amputação, puxando a pele, de ambos os lados, para cobrir o músculo, fechando o local do corte com pontos. O Individuo com o traumatismo veio a falecer durante a manhã. Trabalhamos até por volta das dezesseis horas daquele dia, quando vieram trazer minhas coisas e disseram-me que, como médico, poderia ficar alojado na própria enfermaria. A partir daquele episódio, passaram a me tratar com certa deferência. Embora eu tivesse apenas o quinto ano de Medicina, tinha vocação para a profissão e já possuía boa experiência, pois estagiara na emergência e nas clínicas de alguns hospitais de Niterói e do Rio de Janeiro. Passei a ser um misto de prisioneiro e de liberto. Usava roupas listradas indicativas de um detento e, por vezes, jaleco branco indicativo de médico. Freqüentava locais não acessíveis aos

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demais detentos e tinha algumas regalias extras. Como precisavam dos meus serviços, tratavam-me bem.

Meses depois chegaram os Drs. Samuel Magalhães (Otorrino, de Niterói), João Pinto (estudante de Medicina) e o Urologista Belmiro Valverde, que, como um dos chefes do Movimento Integralista, foi residir em uma casinhola de sapê, ao lado do antigo matadouro de bois da ilha. Como me conhecia, pois eu já havia trabalhado com ele e sido seu aluno, chamou-me para morar na mesma casinhola, que possuía alguns confortos extras, tais como cortinados contra os milhares de pernilongos noturnos. Uma noite, acordei com um ruído estranho e, ao abrir os olhos, deparei com um grande caranguejo (Guaiamum), preso no cortinado, parecendo uma enorme aranha caranguejeira. Dei-lhe um murro e, com o barulho, o Belmiro acordou. Sem conseguir conciliar novamente o sono, ficamos conversando sobre o destino do Movimento Integralista, sobre a Medicina no Brasil e sobre o nosso próprio destino.

Com o transcorrer do tempo, nossas atividades foram ficando mais livres, embora todos nós tivéssemos nossas tarefas diárias. Com isto, podíamos percorrer as praias da ilha pescando, tomando banho de mar ou apenas caminhando.

Quando a maré vazava, formavam-se muitas pequenas lagoas onde, normalmente, encontrávamos diversos peixes que apanhávamos, para o almoço e a janta. Pescávamos, também, lulas e lagostas nas tocas das pedras, bem como moréias, que cortávamos em toletes redondos e que eram fritados e distribuídos para os que gostavam daquele peixe.

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VI. 1. A Vida de um Presidiário em Fernando de Noronha

O Arquipélago de Fernando de Noronha foi descoberto em 1503, por Américo Vespúcio e consiste em um conjunto de 21 ilhas e ilhotas. A ilha principal dista 545 quilômetros da cidade de Recife. O presídio havia sido fundado em 1737. Ali podíamos caminhar livremente, segundo algumas regras, pois o mar era considerado os muros daquela prisão. Na ilha podíamos tomar sol e a alimentação era boa, basicamente a base de peixes e crustáceos. A água da chuva acumulada em cisternas e a dos tonéis que vinham do continente, entretanto, era poluída causando freqüentes disenterias aos habitantes, em geral. Havia muitos ratos, lagartos e sapos, além de muitos pernilongos e percevejos, que atrapalhavam o sono durante as noites. Eventuais correspondências que recebíamos demoravam a chegar e eram censuradas. Não podíamos receber visitas vindas do continente, nem enviar cartas.

A instituição prisional era, eufemisticamente, chamada de Presídio e Colônia Agrícola de Fernando de Noronha; talvez para que os brasileiros do continente não se apiedassem da situação dos reclusos, achando que estavam bem instalados em uma colônia agrícola, onde a alimentação de frutas e legumes fosse farta. Eu fui o responsável pela montagem e manutenção de uma horta, onde cultivava alguns legumes e hortaliças. Frutas, a exceção de cocos nativos, não havia. Vivíamos, basicamente, do pescado que conseguíamos extrair do mar e dos siris, polvos, lulas, caranguejos e mariscos que apanhávamos nas pedras.

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A ilha possuía inúmeras praias que podíamos freqüentar. Eram divididas em: praias do mar de dentro e praias do mar de fora. As do mar de dentro eram denominadas: Biboca, Cachorro, Meio, Boldró, Conceição, Bode, Quixabinha, Cacimba do Padre, Baia dos Porcos, Baia do Sancho, Baia dos Golfinhos e Ponta da Sapata. As do mar de fora eram conhecidas como: Leão, Caracas, Baia Sudeste, Atalaia, Enseada da Caieira e Buraco da Raquel. As águas do mar eram transparentes e muito piscosas. O Morro do Pico era o ponto mais alto da ilha, com 321 metros de altura.

Quando cheguei à ilha, já encontrei dois presos comuns José Miguel de Oliveira e Manuel José de Oliveira, assassinos, que, por mau comportamento na ilha (José havia vendido cachaça roubada e Manuel havia roubado galinhas), haviam recebido o castigo de usar o “ganso” (bola de ferro acorrentada ao tornozelo). Da mesma forma, viviam confinados na ilha, diversos membros do bando de cangaceiros de Lampião. Presos, após o desmantelamento do bando, alguns haviam sido condenados à prisão naquela ilha. Era o caso de Corisco, Mata Velha e Nuvem Branca (este último sendo o barbeiro da ilha e conhecido pelo nome de Neco Grande, pois possuía uma mão enorme, além de ser bem grande em tamanho).

Eram raros os casos de tentativa de fuga. O fugitivo capturado era transferido para a Ilha Rata (ilhota do arquipélago), que funcionava como uma cela solitária. Ali o fugitivo ficava, por quinze dias, completamente isolado; retornando alguns de lá totalmente loucos ou paranóicos.

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Foto 10 - Renato próximo a cozinha no presídio – 1938

A ilha possuía um forte, onde ficamos alojados, denominado Nossa Senhora dos Remédios, um fortim (Praia da Atalaia) e várias defesas (pontos fortificados): Santo Antônio, São Joaquim, São José do Morro, Bom Jesus, São Pedro da Praia do Boldró, Santana, Santa Cruz do morro do Pico e Nossa Senhora da Conceição.

O Forte de Nossa Senhora dos remédios, localizado ao norte da ilha, datava de 1737 e havia sido edificado em um terreno alto, sob as ruínas de um antigo reduto holandês. Tinha a forma de um polígono irregular, com 14 ângulos e quatro edificações no centro. No centro da praça de armas do Forte ficava a casa do diretor do presídio. Era um casarão colonial com uma grande escadaria.

Para passar o tempo, além de jogos de futebol, voleibol, basquetebol e lutas de boxe que praticávamos, alguns detentos,

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mais preparados culturalmente, passaram a ministrar aos demais e à população da ilha, de um modo geral, cursos de alfabetização, de línguas estrangeiras, etc. Eu iniciei um curso de primeiros socorros, muito procurado por todos, que acabou por me proporcionar um relacionamento cordial com os habitantes da ilha, inclusive guardas penitenciários e demais detentos.

Alguns presos, como eu, escreviam diários onde relatavam suas experiências naquele cárcere isolado do resto de país, sem notícias dos familiares e do que se passava no Brasil, pois as correspondências eram proibidas.

Quando um fato importante acontecia na ilha, todo mundo ficava logo sabendo, já que as notícias se espalhavam “da Rata à Sapata”, como diziam; isto é, de uma extremidade a outra da ilha.

Na ponta extrema da ilha, existia uma região conhecida como Air France. Aquela área havia sido ocupada, em 1927, pela companhia francesa Aeropostale, que necessitava de um local, em meio ao Oceano Atlântico, para o pouso, reabastecimento e reparação de seus hidroaviões. Em 1934 esta companhia uniu-se a outras três para formar a empresa aérea Air France. Desde então, o local tomou o nome da empresa recém-criada.

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Foto 11 - Renato em sua cama no presídio - 1938

A praia conhecida como Cacimba do Padre era o local onde o padre Francisco Adelino, em 1888, descobriu uma fonte de água doce. A gruta conhecida como o Buraco da Raquel era o local onde a filha excepcional de um antigo comandante militar da ilha costumava se esconder, quando entrava em crise.

É difícil imaginar como em uma ilha, localizada tão distante do continente, possa existir água doce. Era desta fonte que nós nos abastecíamos e cuidávamos muito bem dela, para que a água nunca faltasse ou fosse contaminada. Entretanto, muitos habitantes da ilha, por comodidade, costumavam se abastecer da água oriunda de cisternas que coletavam chuva e da água que vinha, de tempos em tempos, em navios vindos do continente. Estas, muitas vezes se contaminavam e produziam episódios de disenteria. Mandei que fervessem a água de beber e de cozinhar, mas muitos, por total ignorância, não acreditavam na existência de micróbios e de bactérias.

Estávamos no ano de 1938 e o Brasil era, ainda, uma economia atrasada exportadora de produtos agrícolas. Existiam muito poucas indústrias. O tráfego marítimo era lento e escasso.

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Não existiam meios rápidos de comunicação. Ficávamos meses sem nenhuma notícia do continente e sem receber qualquer tipo de ajuda. Estávamos totalmente abandonados naquela ilha perdida no meio do Oceano Atlântico. Muitos achavam que jamais retornariam aos seus lares. Neste contexto, ali não existia, entre os prisioneiros, nenhuma ideologia política. Muitos daqueles homens haviam arriscado a vida em lados diferentes, seja durante a Intentona Comunista, seja durante o Golpe Integralista, e não tinham medo uns dos outros. Todavia, naquela situação, acabamos por nos unir como verdadeiros irmãos na adversidade. Ali, a Natureza era a nossa grande amiga e a nossa terrível inimiga. Estávamos confinados e condenados a permanecer naquela ilha esquecida, até quando se compadecessem de nós no continente. Os antigos sabiam que a pena de degredo era uma punição muito pior que o encarceramento ou a morte. Com o degredo, os algozes jogam com a psique do prisioneiro. Ao afastá-lo do convívio de seus familiares e amigos, retirando-o do seu ambiente e dando-lhe certa liberdade de movimentos e de locomoção em meio a uma Natureza luxuriante, mantém sempre viva em sua mente a esperança de voltar, esperança esta que acaba se convertendo em um diabólico tormento, pois ele está de mãos e pés livres, mas não pode fazer nada para vencer a distância que o separa dos seus entes queridos. O encarcerado em uma cela conforma-se, pois não participa da comunhão com a Natureza e aceita aquela morte em vida como uma pena a pagar. O degredado não. Por viver em liberdade, comungando a vida com a Natureza, sente uma incontida ânsia de voltar a todo instante. O desejo de fuga estava presente na mente de todos nós. Muitos praticavam a natação diariamente, pensando em obter resistência física para um dia (quem sabe?) tentar a grande empreitada de se aventurar pelo oceano, em busca das terras do continente. Os carcereiros riam daquelas iniciativas, pois sabiam que eram impossíveis de serem concretizadas.

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Foto 12 - Renato e companheiros de prisão em Fernando de Noronha. Renato é o segundo, em pé, da direita para a esquerda.

Foto 13 - Envelope de correspondência do presídio.

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No morro onde estava localizado o Forte dos remédios, ouvia-se, por vezes, um ronco enorme, apavorante. Apurando os ouvidos, percebia-se que ele vinha de uma fenda junto ao mar, que, com a violência das águas penetrando naquela caverna, produzia um ruído semelhante ao ronco de um leão enjaulado. Durante algumas noites de mar agitado, com as luzes apagadas, deitados em nossas camas, ouvíamos aqueles urros apavorantes. Naquela ocasião, eu já havia lido o livro de Alexandre Dumas, “O Conde de Monte-Cristo”, e comparava a situação de Edmond Dantès com a minha. Evidentemente que ambas as estórias nada tinham em comum, a não ser o fato de convivermos em uma ilha como prisioneiros. Ademais, a prisão onde Dantès estava era próxima da terra e ele pode fugir a nado, o que aqui era impossível.

Alguns habitantes da ilha narravam uma antiga estória, segundo a qual uma loura alemã, por vezes, havia sido avistada caminhando próximo ao Morro do Pico. Ao se sentir observada, e ao lhe dirigirem a palavra, respondia em alemão e sumia por entre as pedras do local.

Eu presenciei um único fato insólito, enquanto ali estive. A enfermaria da ilha não possuía portas, mas arcos abertos em lugar destas. Em uma noite, sentado a mesa escrevendo meu diário, comecei por ouvir um ruído estranho, como se uma sola de sapato estivesse sendo arrastada em um piso cimentado. Quando levantei os olhos na direção do ruído, avistei um gato preto, com os pelos todos eriçados, pulando de costas, de um lado ao outro de um dos arcos da enfermaria. Ficou fazendo aquilo por muito tempo, sem nenhuma razão aparente para tal. Era como se estivesse desafiando um inimigo oculto, com seus pelos eriçados e seus

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dentes a mostra. O mais estranho era o modo pelo qual saltava. Dava saltos de costas, como eu nunca vira antes animal nenhum fazer. Levantei-me, devagar, e fui procurar alguém para que confirmasse aquele fato inusitado. Quando retornei, sem haver encontrado ninguém ainda acordado, o gato já havia desaparecido.

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Foto 14 - Renato trabalhando na Horta do presídio – 1938

Desde que cheguei à ilha, como profissional da saúde que era, procurei incutir noções de higiene, tanto pessoal quanto alimentar, aos companheiros de cárcere. Da mesma forma, procurei ensinar-lhes noções de primeiros socorros e explicar-lhes os sintomas e sinais de algumas doenças mais comuns. Também iniciei a plantação de uma horta, onde cultivava legumes e hortaliças, como forma de obtenção de vitaminas, principalmente a vitamina C. Com um dos companheiros aprendi a comunicar-me com facilidade através do código Morse e com outro tive aulas de francês. Ensinei italiano, que eu falava bem, para alguns companheiros. A troca de conhecimentos, entre nós, deixava evidente que todos eram pessoas importantes e que tinham muito a ensinar e a aprender, uns com os outros. Os presos comuns, embora vivessem em liberdade, como os presos políticos, raramente se misturavam conosco. Talvez se considerassem veteranos no presídio e nos vissem como calouros. Como se tratavam, em sua totalidade, de pessoas vindas do interior do país e praticamente incultas e nós tivéssemos vindo de capitais e possuíssemos um melhor nível sócio-cultural, acredito que eles se sentiam inferiores e, por esta razão, mantinham pouco contato cm os presos políticos. Outro fato que talvez nos mantivesse separados, é que eles, pela natureza dos crimes que cometeram, seriam considerados criminosos em qualquer regime político, e nós

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nos considerávamos criminosos políticos; isto é, só éramos criminosos perante aquele regime que combatíamos; ou seja, para nós, eles continuavam sendo criminosos comuns.

Conversando, ocasionalmente, com alguns desses prisioneiros condenados por crimes comuns, pude constatar um fato interessante: a maioria havia sido sentenciada por crime de morte e não por roubo. Os crimes de morte de que eram acusados deviam-se, em sua maioria, a problemas de honra, isto é, traições conjugais, ofensas, injúrias, etc. Pude, assim, constatar que, quanto mais inculto e primitivo o ser humano, mais acendrado era o sentimento de honra em sua mente. Uma ofensa pessoal, que qualquer um de nós levaria na brincadeira (ou não daria muita importância), para eles era um problema de vida ou de morte. Corisco me contou que, durante invasão do bando de Lampião a uma fazenda, da qual participou, o fazendeiro foi surpreendido em sua rede, na varanda da propriedade. Ao se defrontar com o bando todo, se levantou da rede e disse a Lampião: - Você é muito covarde. Só ataca as fazendas com todo o seu bando para lhe proteger. Se você quiser mostrar que é homem, eu lhe desafio para um duelo, só eu e você!

Segundo Corisco, Lampião disse aos seus homens: - Vamos embora, pessoal, esse fazendeiro está maluco e dá azar atacar propriedade de maluco!

Embora todos obedecessem à ordem do Rei do Cangaço, muitos acharam que Lampião havia se acovardado, inclusive este era o pensamento de Corisco. Alguns, a partir deste episódio, passaram a contestar a liderança de Lampião e uns poucos deixaram o bando. A covardia, ou a perda da honra, não era admitida nem em pensamento por aqueles homens simples.

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Como todos ali naquela ilha padeciam do isolamento e da falta de recursos, acabava se formando, naturalmente, uma comunidade unida e regida por laços de fraternidade. Estávamos todos por nossa conta e risco e, por este motivo, nos ajudávamos e vivíamos em paz uns com os outros. Nossos inimigos comuns eram a distância, o abandono, a falta de notícias e a própria Natureza, que, como já havia feito no passado, poderia tornar escassa a água e a comida que extraíamos do mar. Os guardas presidiários, e o próprio administrador do presídio, se consideravam tão prisioneiros quanto nós, pois dali também não podiam sair. Por este motivo, faziam o seu trabalho e não nos incomodavam. Como os presos políticos possuíam um bom nível cultural, também não incomodavam a guarda prisional.

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Foto 15 - Requerimento de Renato ao Diretor do Presídio e a resposta deste.

Alguns naufrágios ocorreram nas águas próximas da ilha. Em 1926, o vapor Aylestone afundou na praia do Leão. Em 1929, o navio grego Eleani Stathatos afundou com toda a carga (material ferroviário e máquinas de escrever) na baia de Santo Antônio, impedindo a chegada de navios maiores àquele local. Dizem que possuía um elevado valor de seguro. Alguns anos depois (1937), outro navio grego da mesma empresa, chamado Maria Stathatos, afundou no mesmo local, também com carga e elevado seguro, segundo comentavam na ocasião.

Cerca de umas dez fortificações foram construídas na ilha, desde a sua descoberta, todas estrategicamente situadas e acima das praias onde seriam possíveis eventuais desembarques de piratas. Dizem que em 1892, quando o Brasil se tornou independente de Portugal, por dois anos ainda a bandeira portuguesa tremulou no mastro da Fortaleza dos Remédios, pois este foi o tempo que a notícia demorou a chegar até ali.

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No presídio conheci um oficial do Exército Brasileiro chamado Agildo da Gama Barata Ribeiro. Ele havia sido preso durante a Intentona Comunista de 1935, pois fora um dos responsáveis pela revolta do Quartel do Terceiro Regimento de Infantaria, da Praia Vermelha. Agildo possuía experiência em artes cênicas e montou um teatro chamado Teatro da Aranha, em um velho casarão na Rua do Sol, na Vila dos Remédios. Seu nome foi dado em razão de possuir uma aranha pintada na cortina da frente do palco. Ali eram feitos shows de música e encenada algumas peças feitas pelos próprios detentos.

Embora no continente houvéssemos sido inimigos ferrenhos (Integralistas versus comunistas), naquela ilha, onde sofríamos as mesmas privações e vicissitudes, acabamos por nos unir, tentando fazer com que o tempo da pena passasse mais rapidamente para todos nós.

Em determinada ocasião, eu e Agildo resolvemos explorar uma caverna, que diziam ser o local onde um pirata, chamado Capitão Kid, havia escondido seu tesouro. Munimo-nos de velas, cordas e fósforos e partimos, de manhã, para o local da exploração.

Penetramos no interior da caverna e, depois de longa caminhada, pois ela adentrava no subsolo da ilha, encontramos, realmente, alguns vestígios da passagem de antigos corsários pelo local: uma espada enferrujada, um crânio humano e um Florim de ouro, que datava de 1347. A espada e o crânio, nós deixamos no mesmo local onde os encontramos e o Florim, que foi achado pelo Agildo, ficou com ele mesmo, como um amuleto do qual jamais pensaria em se desfazer conforme disse.

De volta daquela excursão, fui chamado para atender a um ferido por golpe de faca em uma briga. Tratava-se de um habitante

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da ilha que havia tido uma discussão com Nuvem Branca, por causa de uma mulher. Nuvem Branca o havia esfaqueado com uma peça de aço da suspensão de um veículo, que havia sido habilmente limada, lixada e afiada, transformando-se em um facão. A arma havia sido apreendida, o cangaceiro Nuvem Branca estava preso em uma cela e o ferido se encontrava na enfermaria.

Lá chegando, me informei do que havia ocorrido e iniciei uma exploração digital da ferida, no abdome do paciente. Como tocasse em vísceras, iniciei uma Laparotomia exploradora. Constatando uma lesão do estomago por ferida cortante, procedi à ráfia simples da fenda e a lavagem da cavidade abdominal. Em seguida fiz o fechamento da cavidade com pontos de sutura por planos. Mantive o paciente em jejum até o funcionamento do aparelho gastrointestinal e, nos dias que se seguiram, iniciei uma alimentação líquida.

Como a evolução do paciente foi boa, em cerca de dez dias ele teve alta, com a recomendação de fazer repouso e ingerir uma alimentação leve.

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Foto 16 – Renato na enfermaria em Fernando de Noronha. Note-se a piteira que sempre o acompanhou, na mão direita.

Brigas eram raras e sempre punidas com rigor. Não sei qual o destino de Nuvem Branca, pois não o vi mais até o dia em que deixei a ilha. As poucas mulheres que viviam na ilha eram filhas ou esposas de antigos moradores, ou mesmo de presos comuns, que haviam sido autorizadas a ali residirem. Eram disputadas, entre os habitantes, como diamantes em garimpos.

VI. 2. Enfim a Liberdade

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Durante o tempo em que estive preso, meu pai, incansavelmente, tentou tirar-me daquela ilha. Contratou um advogado famoso, chamado Sobral Pinto, para tentar livrar-me ou reduzir a minha pena. Paralelamente, recorreu a todos os amigos e ex-clientes do Trianon, em busca de ajuda. O próprio Getúlio Vargas já havia freqüentado o Trianon e, certamente, soube da minha prisão.

Finalmente, minha pena foi reduzida em um ano e pude ser imediatamente solto. Ao deixar a ilha, a bordo de uma embarcação da Marinha que ia para Recife, contemplei, pela última vez, aqueles rochedos e aquelas praias onde vivera nos últimos anos. Cada um deles que avistava evocava uma lembrança de algo que ali vivenciara. Embora aquele tempo na prisão tivesse sido constituído de muita privação e sofrimento, por outro lado, tinha sido de uma grande evolução espiritual para mim. Não que eu houvesse me tornado mais religioso do que, eventualmente, fora no passado, mas sentia que havia me modificado internamente. Passei a dar valor a coisas que nunca antes me ocorreram valorizar. Falava menos e observava mais, passei a ser mais ponderado e comedido em tudo aquilo que fazia. Comia menos e bebia apenas água.

Embora sentisse uma alegria imensa em deixar aquele local, partia dali triste por deixar tantos amigos verdadeiros entregues a sua própria sorte. Da mesma forma que eu havia sido solto pela intervenção do meu pai, gostaria de poder ajudar aqueles que ali ficavam; só não sabia é como fazê-lo.

Chegando ao porto de Recife, telefonei para meu pai que me enviou dinheiro através de um banco. Fiquei uns dias em um hotel e, logo a seguir, tomei um vapor com destino ao Rio de Janeiro.

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Neste navio, por uma incrível coincidência, encontrei um antigo colega de internato no Liceu Franco-Brasileiro. Não acreditou, quando lhe contei de onde estava vindo e o que havia ocorrido comigo. Havia se formado em Direito e prontificou-se a entrar com um pedido de indenização em meu nome, junto ao Estado, gratuitamente. Imaginei que ele, como recém-formado, apenas desejasse obter prática jurídica e se tornar conhecido no meio forense. Declinei da oferta e passamos o resto do tempo conversando sobre o nosso período de internato. Chegando ao Rio de Janeiro, despedimo-nos e nunca mais o vi.

Antes mesmo de ir a São Paulo, dirigi-me a Niterói, pois pretendia matricular-me no sexto e último ano da Faculdade de Medicina e ficar noivo de Lucia, para depois ir abraçar e agradecer meus pais e meus irmãos, por todo o auxílio que me prestaram durante aqueles longos anos.

Tomei a barca da Cantareira que, com sua enorme roda de pás de madeira, na popa, deslocava-se vagarosamente para Niterói. Ao avistar o Forte de Gragoatá, com seus canhões apontados para o Rio de Janeiro e a Fortaleza de Santa Cruz, ao longe, algumas lágrimas me vieram aos olhos. Fazia tão pouco tempo que eu deixara minha vida de estudante universitário em Niterói, mas era como se eu estivesse retornando após uma longa existência no exílio. Os passageiros da barca com os quais cruzava, jamais poderiam imaginar de onde eu estava vindo e pelo que havia passado naqueles últimos anos. Ao descer da barca, minha vontade foi ajoelhar-me e beijar aquele chão que tão bem me recebera desde o início. Só não o fiz por vergonha de ser mal interpretado pelos passantes.

Da estação das barcas fui andando até um hotel próximo, na Rua da Conceição. Tomei um banho e comprei algumas roupas

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novas, para poder me apresentar na Faculdade e solicitar a re-matricula, bem como ir à casa de Lúcia e, finalmente, propor-lhe o noivado.

Andando pelo centro da cidade, percorri ruas pelas quais havia transitado inúmeras vezes e jamais havia prestado atenção aos seus pequenos detalhes. As pessoas que encontrava me pareciam alegres e cheias de vida. Sentia cheiros diferentes e aromas de comida, que me fizeram lembrar que nada havia ingerido, desde o café da manhã. Entrei no Restaurante Monteiro, na Rua da Conceição, e, sem nenhuma pressa, saboreei um talharim à bolonhesa. Como era maravilhoso poder andar pelas ruas cheias de gente, ver as vitrines e fazer planos para o futuro.

Contemplando as vitrines das lojas do centro, me dei conta de quantas coisas supérfluas eram colocadas para a venda no comércio. A maior parte daquilo que eu via, não teria a menor utilidade na ilha de onde vinha; no entanto, aqui, eram disputadas por homens e mulheres, apenas como uma forma de demonstrar riqueza ou poder.

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Foto 17 – Telegrama passado por Luiz Rosati, informando sobre a redução da pena e a breve liberdade para Renato. 1939.

VI. 3. O Retorno à Niterói

Saindo do Hotel, fui conversar com o diretor da Faculdade de Medicina, Dr. Barros Terra, que disse, logo de início, não haver nenhuma vaga disponível. Perguntei-lhe, então, se, no caso de conseguir algum colega que fosse se transferir para outra faculdade, eu poderia matricular-me na vaga dele? Barros Terra respondeu que sim, na certeza de que eu não conseguiria encontrar ninguém naquelas condições (que quisesse se transferir para outra Universidade, cedendo-me a sua vaga). Comentando isto com meus antigos colegas de curso, cinco deles foram imediatamente, comigo, ao diretor e disseram que pediriam suas transferências

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para outras faculdades. Barros Terra, por fim, me admitiu como acadêmico, pois seus argumentos haviam verdadeiramente caído por terra.

Ao chegar à casa de Lucia, no Bairro do Ingá, e tocar a campainha, ela veio ao portão atender e não me reconheceu. Precisei dizer quem eu era e, só então, fui reconhecido. Segundo ela, ao ver aquele mulato, magro, de barba, bigode e cabelo grande, tocando a campainha, pensou que fosse algum vendedor. Os anos de sol em Fernando de Noronha haviam deixado minha pele totalmente escura. No mesmo dia ficamos noivos e, na manhã seguinte, após jogar uma partida de xadrez com seu pai, partida esta que acabei ganhando, segui para São Paulo de trem. O trem saia da estação D. Pedro II, no Rio e passava pelas estações do Engenho Novo, Cascadura, Nova Iguaçu, Queimados, Japeri, Barra do Pirai, Volta Redonda, Barra Mansa, Cachoeira Paulista, até chegar à estação da Luz, em São Paulo.

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Foto 18 – Renato Rosati e seu pai Luiz Rosati

Chegando a São Paulo, dirigi-me, de bonde (puxado por burros), para a casa de meu pai. Ao nos encontrarmos, abraçamo-nos e ficamos chorando, um nos braços do outro, durante incontáveis minutos. Nenhum de nós queria se separar, tanta era a falta que sentíamos um do outro. Finalmente, minha mãe e meus irmãos Vicente, Luiz, Catarina e Iolanda nos separaram; pois, também, queriam dividir comigo aquele momento mágico do reencontro. Após tantos anos separados, todos desejavam saber o que me havia ocorrido, naquele período em que o tempo havia parado para todos nós. As perguntas se sucediam umas as outras e as respostas não tinham prazo para terminar.

Após o almoço meu pai me conduziu para o seu escritório e, abrindo uma gaveta, mostrou-me um pacote de dinheiro que disse haver guardado para mim, de modo a que eu, quando estivesse livre, pudesse recomeçar a minha vida. Naquela ocasião, comuniquei-lhe que havia ficado noivo de Lucia e pretendia casar-me o mais breve possível. Aquele dinheiro vinha em boa hora; pois, foi com ele que custeei as despesas do casamento, realizado no ano seguinte em Niterói, e a nossa instalação em São Paulo, aonde vim trabalhar logo depois de haver concluído a residência médica.

Na oportunidade pedi ao meu pai que conversasse com o advogado Sobral Pinto sobre a situação dos meus demais companheiros, que haviam permanecido na ilha. Meu pai manteve

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uma conversa com ele, que se interessou pelo assunto e conseguiu que, no ano seguinte, em 1940, diversos companheiros fossem também libertados. Creio que meu pai pagou por esse serviço adicional do advogado, embora não tivesse me dito nada na ocasião. Com o início da Segunda Guerra Mundial, em 1942 a ilha deixou de ser presídio e transformou-se em uma base norte-americana.

Depois de formado, já casado, trabalhei em vários hospitais na capital paulista. Porém, em todos eles, alguns meses depois de haver ingressado, era sumariamente demitido. Atribuindo isto ao meu passado de Integralista e ao fato de haver sido condenado e preso como tal, resolvi exercer a profissão em Niterói, montando uma clinica particular e deixando de lado os empregos em hospitais públicos.

Preparamos, então, a nossa mudança para Niterói. Nessas alturas, nós já possuíamos três filhos: Renato, Letícia e José Luis.

Meu pai, mais uma vez, nos ajudou financeiramente e pudemos nos instalar em uma casa na Rua Paulo Alves 78, no Bairro do Ingá, em Niterói. Daquele local, pouco tempo depois, nos mudamos para o número 121 da mesma rua.

Em Niterói eu possuía vários colegas de faculdade e alguns professores meus amigos. Contava com a ajuda deles para enviarem-me alguns pacientes, o que de fato ocorreu. Naquela época era costume os médicos possuírem várias especialidades. Em meu consultório eu atendia pacientes de ortopedia, urologia e obstetrícia e, em breve, o consultório vivia cheio de pacientes, embora nem todos pagassem pela consulta.

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Pouco tempo depois meu irmão Vicente, que residia em São Paulo, se mudou para Niterói com a família. Aquela transferência me deixou muito contente, pois, com meu irmão ao lado, era mais um apoio que eu dispunha estando longe da família.

Vicente, que tinha algum capital, iniciou-se no negócio de construção de imóveis, tendo construído alguns edifícios em bairros de Niterói. Todavia, a partir de certa época, como os contratos que fazia eram a preço fixo e parcelas irreajustáveis, o advento da inflação fez com que amargasse enormes prejuízos; já que manteve fixos os preços contratuais, enquanto os custos da construção se multiplicavam. Com o surgimento da correção monetária e sua normatização, os novos contratos puderam ser reajustados; porém, muitas empresas amargaram enormes prejuízos, como a dele, antes disso.

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Foto 19 – Encerramento do curso de Dermatologia em 1937, antes da prisão. Renato está ao centro, em pé, na segunda fila, de terno escuro.

O ‘uniforme’ dos estudantes universitários, na época, era o passeio completo, isto é, terno com gravata. Muitos usavam chapéu, que retiravam na sala de aula. Não era incomum ver um ou outro professor trajando fraque, que era composto por: sobrecasaca, colete, calça cinzenta, cinto preto, camisa branca, gravata, lenço branco, sapatos pretos, chapéu alto, luvas de camurça, bengala, flor na lapela e relógio de bolso preso em uma corrente de ouro.

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Foto 20 – Formatura da Faculdade de Medicina, após a prisão. Renato é o segundo, da esquerda para a direita, na primeira fila em pé (com gravata borboleta).

A turma em que me formei possuía, apenas, três mulheres estudantes de Medicina. Na ocasião, aquela não era uma profissão muito procurada pelas mulheres, talvez em razão dos plantões e do próprio ambiente de trabalho em que a atividade médica se realizava. O país, todavia, tinha uma enorme carência de médicos.

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Foto 21 – Foto oficial de formatura de Renato.

Tendo montado um consultório particular, passei a não mais sofrer o dissabor de ser demitido de empregos públicos. Com a prosperidade da clinica, pude criar meus filhos e proporcionar a minha família um padrão de vida razoável para a época.

Mudamo-nos, pouco depois, para a Avenida Maracanã, no Rio de Janeiro, próximo ao quartel da Polícia do Exército e, no ano seguinte, para a Rua Casimiro de Abreu, número 1, no Bairro do Ingá, em Niterói.

No Rio de Janeiro, durante nove anos e meio, trabalhei como médico da Companhia Cervejaria Antarctica, mantendo, neste período, o consultório em Niterói. Perto de completar dez anos, fui demitido da Antarctica; pois, os empregados com dez anos de serviços adquiriam estabilidade no emprego, não podendo mais ser demitidos. Assim, eles estavam se antecipando a minha estabilidade que se aproximava. Entretanto, como eu era jovem, possuía uma família que amava e já havia passado por situações piores, encarava tudo aquilo com tranqüilidade e bom humor.

Possuía uma bicicleta motorizada com a qual me deslocava do Bairro do Ingá, onde morava, para a Avenida Amaral Peixoto, no centro de Niterói, onde ficava meu consultório. Ia com ela para o plantão das quintas-feiras, no Hospital Santa Branca, perto da

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Praça do Rink, também no centro de Niterói. Neste hospital dava plantão na Obstetrícia e fui padrinho de centenas de crianças, muitos deles batizados com o nome de Renato.

Meus plantões eram as quintas-feiras e de um colega meu chamado Esteves era nas sextas-feiras. Como nos plantões dele, quase sempre, ocorressem casos complicados, ele me telefonava para ajudá-lo, a maioria das vezes no meio da noite, quando já estava dormindo. Eu pegava, então, a minha bicicleta motorizada e ia de madrugada para o hospital, passando por ruas totalmente desertas e mal iluminadas. Às vezes, nem voltava para casa; pois, dali, já seguia direto para a policlínica no Rio de Janeiro.

VII. A Minha Vida, como Médico, em Niterói

Tendo me adiantado um pouco no capítulo anterior, cabe agora relatar com maiores detalhes a minha formatura e os antecedentes do meu casamento religioso com Lúcia, na igreja de Nossa Senhora das Dores do Ingá, em 17 de dezembro do ano de 1942. Na véspera havíamos nos casado no cartório civil.

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Foto 22 – Renato e Lucia, sentados em antigo banco de pedra, na Praia Das Flechas, em Niterói.

Meses antes de ser preso, morando na pensão de Miss Guiven, na Praia da Itapuca, conheci uma senhora, vizinha de Lucia (que naquela ocasião morava na Rua Pereira Nunes, 120, no Bairro do Ingá) chamada Olivia. Era paulista e morava com os netos, um dos quais era meu colega na faculdade. Um dia, estando eu conversando na calçada com dona Olivia, aproximou-se um casal, voltando de uma caminhada ao por do sol pela praia, que a cumprimentou. Olivia me apresentou como estudante de Medicina colega do seu neto e o senhor me perguntou se eu jogava Xadrez. Tendo respondido que sim, fui convidado, naquela mesma tarde, para ir a sua casa jogar uma partida. Eles eram os pais de Lucia, Alfredo Reis e Maria Coeli Rangel, e aquela foi a primeira vez que entrei na casa dela. Jogamos a primeira partida e eu ganhei. Jogamos a segunda e ganhei novamente. Alfredo, muito impressionado porque jogava xadrez bem e há muito tempo, declarou: - Eu não sou páreo para o senhor, mas venha jogar comigo sempre que quiser! Pronto, para alegria minha e de Lucia, a porta da casa, a partir daquele dia, estaria sempre aberta para mim. Mal sabíamos, porém, que, pouco depois daquele jogo,

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passaríamos dois anos sem nenhuma comunicação entre nós. Durante o cativeiro em Fernando de Noronha, não pude lhe escrever nenhuma carta. Ela soube da minha prisão através de alguns integralistas, que não tinham sido presos e de notícias da imprensa sobre a tentativa de invasão do Palácio Guanabara.

Com o meu regresso e a re-matrícula na Faculdade, passamos a nos encontrar diariamente. Lucia tinha duas irmãs, Stela e Cecília, que passeavam muito conosco, pois naquela época não ficava bem uma moça, mesmo noiva, sair sozinha com o namorado (ou noivo). Continuei jogando partidas de xadrez com o pai de Lúcia, partidas estas que quase sempre ganhava. Eu só perdia para o irmão dela, chamado Maurício Reis, que chegou a ser, posteriormente, além de Ministro do Interior, campeão estadual de xadrez.

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Foto 23- Lucia no Jardim do Bairro do Ingá, em Niterói.

Aquele último ano da faculdade passou muito rápido. Eu, mais do que qualquer outro colega, tinha uma ânsia enorme para aprender tudo sobre Medicina. Talvez, porque já tivesse me encontrado em uma situação na qual muitos dependiam de meus conhecimentos para se curar, ou até mesmo para sobreviver, e eu não podia deixar de fazer alguma coisa por eles embora meus conhecimentos na ocasião fossem escassos. Em razão disso, fazia todos os cursos possíveis, freqüentava todos os estágios, palestras

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e conferências disponíveis. Em minha mente, eu tinha que obter o máximo possível de conhecimentos médicos, pois poderia me ver, novamente, em uma situação parecida com aquela que havia vivenciado e teria de dar conta do recado.

Finalmente, o grande dia da formatura chegou. Lúcia foi a minha madrinha e, à noite, dançávamos no Clube Fluminense, onde foi o baile de conclusão de curso.

Durante o ano seguinte, fiz minha residência médica e preparamos o nosso enxoval de casamento, comprando o mínimo necessário.

No dia 17 de dezembro de 1942, conforme já mencionado, casamo-nos na igreja do Ingá. Após a cerimônia, recepcionamos os parentes na casa de Lucia, na Rua Pereira Nunes 120. De São Paulo vieram, além de meu pai e minha mãe, meus irmãos e alguns tios. Meu irmão Vicente, nesta ocasião, conheceu uma das irmãs de Lucia, chamada Stela, com a qual acabou se casando pouco tempo depois. Lucia possuía além das irmãs Stela e Cecília, três irmãos: Maurício, Roberto e André. O pai de Lúcia, seu Alfredo, era um intelectual (falava grego), escritor (escrevia sobre Economia) e alto funcionário do Ministério da Fazenda (Secretário-Geral).

Naquela noite o mar estava de ressaca e as ondas chegavam até o calçadão, fazendo com que muitos convidados fossem observar as ondas quebrando e molhar os pés nas águas geladas do mar.

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Foto 24 – Casamento de Renato e Lúcia, em Niterói.

Durante minha vida em Niterói fui sócio-fundador da Sociedade de Medicina e Cirurgia que, mais tarde, por volta de 1951, se transformou na Associação Médica Fluminense. Trabalhei, posteriormente, no Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Empregados em Transportes e Cargas – IAPETEC. Na década de 1960, com a fusão dos Institutos de previdência, passei a fazer parte dos quadros do então criado Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, que era responsável pela saúde, arrecadação e pagamento dos aposentados. Mantinha, também, um vínculo com a

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Policlínica Geral do Rio de Janeiro e, por essa época, fechei o consultório na Avenida Amaral Peixoto, em Niterói.

No dia 17 de dezembro de 1961, um episódio dantesco ocorreu em Niterói, mobilizando toda a classe médica local e das cidades vizinhas. Um empregado do Gran Circus Norte Americano, instalado na Praça do Expedicionário, no centro da cidade, em razão de problemas mentais e do fato de haver sido demitido (segundo foi divulgado pela imprensa na época) ateou fogo a lona de náilon do circo, pesando seis toneladas. O público na hora do incêndio foi estimado em cerca de três mil pessoas, entre adultos e crianças. Em pouco mais de cinco minutos 372 pessoas estavam mortas, sendo que mais 200 faleceram nos dias que se seguiram. Centenas de feridos, em sua maioria crianças, estavam nos hospitais locais e de cidades vizinhas, carecendo de cuidados médicos. Permaneci, com diversos colegas, por vários dias trabalhando ininterruptamente no Hospital Antônio Pedro, em Niterói, tratando de queimados e feridos. A observação de dezenas de crianças queimadas, pela ação insana de uma criatura humana, me fez duvidar da afirmação de que somos feitos a imagem e semelhança do Criador. Os revolucionários, de qualquer ideologia, por vezes são levados a participar de ações de violência contra outros seres humanos. É o que ocorre em todas as guerras, revoltas, golpes de estado, revoluções e contra-revoluções. Nestas ações, por vezes, ocorre um número elevado de baixas. Tais baixas, entretanto, possuem uma característica distinta das provocadas por uma ação de pura maldade e vingança, como a que presenciei naquela ocasião. Em que pese a existência do interesse econômico por detrás de todas as ações políticas, em muitas ocasiões, os revolucionários estão do lado da justiça e os seus procedimentos, embora causem vítimas e, por isto, sejam sempre condenáveis, buscam, todavia, evitar mais mortes e maiores sofrimentos. De qualquer forma, nestes casos, os

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combatentes de ambos os lados, salvo exceções patológicas, matam-se pela convicção de que estão do lado certo e não por maldade ou sentimentos de vingança, como o que motivou aquele empregado.

Meu pai faleceu em 24 de setembro de 1958. Na ocasião ele e minha mãe residiam na Av. Brigadeiro Luiz Antônio 2453. Minha mãe morreu alguns anos depois, em 04 de setembro de 1965 e, nesta época, já morava na Rua Maestro Chiaparelli 31.

No ano de 1980 faleceu meu filho mais velho, também chamado Renato, vitima de uma enfermidade grave, pouco conhecida na época, chamada Púrpura Trombocitopênica. Embora fosse médico não pude fazer nada para salvá-lo, o que me deixou profundamente entristecido e desanimado. Já havia sentido este desânimo antes, quando do falecimento de minha mãe, ocasião em que, estando ao seu lado, nada podia fazer, a não ser segurar em sua mão, conforme fiz com meu filho.

Foto 25 – Cristina Nicolla e Luiz Rosati

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Em dezembro de 2002, cheguei aos sessenta anos de casado com Lucia, e fizemos nossas Bodas de Brilhante, cercados pelo carinho dos filhos, netos e demais parentes. Lucia, vitimada pelo Alzheimer, não se deu conta do que ocorria.

Desde então, espero pacientemente a chegada da hora de encontrar-me com todos aqueles que me antecederam. Nada lamento da vida que me foi oferecida e que vivi intensamente. Não faria novamente tudo o que fiz da forma como o fiz; já que isto seria passar um atestado de que nada aprendi nesta existência. Entretanto, muito do que fiz faria de novo, com maior empenho e de uma forma mais elaborada. No que respeita a minha mulher e aos meus filhos, entretanto, estou convencido de que eu e o Criador acertamos plenamente. A mulher que escolhi (e que me escolheu) não poderia ter sido nenhuma outra. Jamais minha afeição voltou-se para qualquer outra que não ela. Os filhos que tivemos foram, com certeza, acertos do Criador que, conhecedor das adversidades pelas quais passamos, resolveu nos presentear com três maravilhosas criaturas suas.

Tive a felicidade suprema, concedida por este mesmo Criador, de chegar a conhecer meus netos, dádiva que a muitos pais não é dado alcançar.

Sou grato aos mestres que tive durante a vida e que me ensinaram um pouco de Ciência Médica e muito sobre a Arte de Curar, que é, muitas vezes, mais psicológica do que física. Finalmente, estou agradecido por poder ter conseguido retribuir, algum mal que eventualmente tenha recebido, com algum bem que eventualmente tenha podido fazer pelos meus semelhantes.

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Foto 26 – Bodas de ouro de Luiz Rosati e Cristina Nicolla. Lucia e Renato estão na segunda fila em pé, da direita para a esquerda, ao lado de Luiz Rosati. Ao centro estão os três filhos de Renato e Lúcia.

VIII. Epílogo

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No ano de 1968, por haver casado com sua filha, tornei-me um membro da família e genro de Renato. Desde quando fomos apresentados, reconheci nele uma pessoa modesta, comedida, sensata, calma e de bem com a vida. Quando soube de todas as vicissitudes pelas quais passara, no início de sua carreira como médico, ocorreu-me que jamais havia vislumbrado, da parte dele, um único sentimento de revolta ou de crítica, com respeito a tudo aquilo que lhe havia sucedido.

Filho de família rica, de origem européia, tendo estudado em bons colégios e universitário do quinto ano de Medicina, com amigos na elite cultural e econômica de nosso país, era natural que se considerasse um privilegiado e acima da média, naquele Brasil de 1938. Por esta razão, deve ter representado para ele um impacto muito grande o fato da sua prisão e a posterior convivência com gente de todas as classes sociais, inclusive criminosos comuns, na ilha presídio de Fernando de Noronha.

Pelos seus relatos, entretanto, vê-se que o convívio com os companheiros de cárcere foi tranqüilo; tendo chegado, até mesmo, a exercer certa liderança em razão do seu caráter e do conhecimento, demonstrados perante aqueles parceiros de infortúnio.

Após seu retorno de Fernando de Noronha, nunca mais se envolveu com movimentos político-ideológicos. Com toda a certeza, naquele longínquo rincão do território brasileiro aprendeu que, antes de pretender mudar o mundo e as suas instituições, deveria começar por mudar a si mesmo. Embora tivesse esquecido o

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A História de Renato

Estado e suas ideologias políticas, tal fato, no entanto, não significava que houvesse sido esquecido pelo Estado totalitário de Getúlio Vargas. Enquanto Vargas esteve no poder, sempre que Renato obtinha um emprego em hospital público, alguns meses depois, era sumariamente demitido sem maiores explicações. Acho que este período era, justamente, o tempo que as autoridades públicas, de então, levavam para levantar a vida pregressa dos seus empregados.

Mesmo passando por estas dificuldades, conseguiu refazer sua vida e chegar a ter uma boa clínica em Niterói. Por vezes era procurado em seu consultório por algum companheiro Integralista, que com ele havia convivido no presídio. Estas visitas, contudo, eram mais profissionais que político-ideológicas. Seus companheiros também haviam largado a militância e se dedicavam, apenas, as suas próprias vidas. Da mesma maneira que Renato, haviam se esquecido das torturas, das dificuldades e das privações pelas quais haviam passado e pensavam, tão somente, no futuro que vislumbravam. Esquecer sempre foi o grande segredo das existências fortes e criadoras. Conforme disse Honoré de Balzac, as existências frágeis vivem na dor, ao invés de transformá-la em um aspecto da sua experiência de vida; saturam-se na dor e se consomem, voltando, cada dia, as desgraças ocorridas no passado. Se em algumas ocasiões Renato mencionava episódios de sua vida na prisão ou sobre as dificuldades encontradas em sua carreira profissional, o fazia sempre com resignação e bom humor, procurando extrair lições de vida para aqueles que o ouviam.

Ao retornar da ilha presídio, com toda a certeza, procurou Lucia em primeiro lugar para dizer-lhe:- “Lucia, seu afeto é o único bem que me resta. Perdi tudo aquilo com que um jovem como eu sempre sonhou um dia: sucesso, riqueza e poder. No entanto, no

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período em que eu estive recluso, meu modo de compreender o mundo, as pessoas e as instituições, se modificou completamente. Passei a valorizar pequenas coisas, a que antes não dava a menor importância. Banquetes, jantares, bailes e acontecimentos sociais, que povoaram minha infância e fizeram parte de minha juventude, traduziam, tão somente, um mundo de futilidades e de aparências, que jamais farão parte, novamente, da minha vida. As amizades e amores surgidos nestes ambientes são, quase sempre, apenas conveniências da ocasião ou interesses dissimulados. Amizades e amores verdadeiros são aqueles que surgem na adversidade, quando um, realmente, vê no outro apenas um amigo ou um amor e não um interesse ou uma conveniência. Eu, que nunca passara fome, frio ou sede, passei por tudo isso nos últimos anos. Dividi o que tinha, privando-me, com amigos que tinham menos do que eu. Por vezes, ao medicar um companheiro enfermo ou ferido, sentia nele um olhar agradecido, a única coisa que aquele pobre ser humano, como eu, dispunha para dar. Sem a minha intervenção, naquela ocasião, talvez ele tivesse sucumbido. A alegria de poder ter sido útil a um ser humano, curando-o de alguma enfermidade, passou a se constituir em uma necessidade constante da minha existência. Creio, enfim, que agora estou pronto para as responsabilidades de um casamento e para a constituição de uma família. Quer se casar comigo?”

No ano de 1974, já casado com sua filha Letícia, eu residia em Paris, onde estudava, quando recebemos a visita de Renato e Lúcia. Fizemos, com eles, uma excursão de carro até Alassio, na Riviera Italiana, onde a família dele havia passado quase um ano, após a operação de sua mãe. Em uma rua da pequena cidade, paramos o carro e Renato desceu para comprar alguns postais em uma loja. Pouco tempo depois, retornou tremulo e emocionado, relatando o seguinte fato: Na loja havia duas senhoras

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conversando, de costas para ele. Procurou o local dos cartões postais, onde começou escolhendo alguns. Enquanto assim fazia, ele prestou atenção na conversa das duas idosas. As vozes e as entonações eram idênticas as de sua mãe e de sua tia Lizeta. Ao ouvi-las era como se retornasse ao velho Trianon, em 1928. Tendo escolhido dez cartões postais, dirigiu-se a elas, que ainda conversavam de costas para ele, e falou em italiano: - Senhoras, quanto pago por estes cartões! As duas senhoras se viraram e ele, estupefato, reconheceu sua mãe e a sua tia Lizeta. Sua mãe, olhando-o nos olhos, respondeu: - Meu querido filho leve todos os cartões, não lhe custam nada!

Renato saiu correndo em direção ao carro e, após contar o ocorrido, voltamos juntos até a pequena loja. Ali só encontramos um senhor, que informou estar no local desde a sua abertura pela manhã e que não havia visto as duas senhoras mencionadas. Renato falou dos cartões que havia escolhido, mas o homem disse que aqueles cartões, que ele mostrou, já não eram mais vendidos naquela loja há muito tempo...

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