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A IDEIA DA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE NACIONAL ATRAVÉS DA
CANÇÃO ÍNDIOS, DE LEGIÃO URBANA: UMA ANÁLISE
Ana Cecília Tiburtius Franco
Universidade Federal de Pernambuco
INTRODUÇÃO
Este trabalho propõe-se a realizar um exame crítico do processo de tentativa de
construção de uma identidade de caráter nacional através do Romantismo, assim como
através das várias correntes artístico-intelectuais que contribuíram por meio de
expressões culturais para o estabelecimento de um panorama político-social atual deste
país. Para tanto, como forma de auxílio ao entendimento do dito exame, ter-se-á a
análise da letra da canção Índios, da banda Legião Urbana.
1. EMBASAMENTO TEÓRICO
1.1. Colonização
O costume de sobrepujar um povo, seus valores e crenças / costumes em relação
a outro remonta aos primórdios da civilização, em que um dado grupo, por meio do
cultus, seja como forma de cultivar a terra ou ainda cultuar os mortos /
antepassados, busca estabelecer–se em novas paragens para não só usufruir do que a
terra pode oferecer através do cultivo / plantio (segundo uma perspectiva
econômica), mas também para se ter um vínculo (solo, aporte) para o
estabelecimento de uma memória coletiva que deve ser mantida / cultivada e que,
através da cultura (conjunto de prática, técnicas, símbolos e valores, a incluir a
linguagem), deve ser repassada às novas gerações com o intuito de firmar “um
estado de coexistência social”. (BOSI, 1992).
Dentro dessa perspectiva, enquadra-se a expansão colonialista europeia que, à
época do séc. XVI, fundamentava-se numa concepção europeizante de superioridade
segundo a qual haveria nações detentoras não só de uma estrutura de produção
industrial, mas também de outros fatores (com respaldo científico, inclusive:
superioridade de raça, de clima, de situação geográfica...) que deveriam se sobrepor
a outras, fornecedoras de matérias-primas e outros materiais. Daí, então, de onde
surgiria o colonialismo e, por tabela, aquilo que Nelson Werneck Sodré (1984)
cunharia de “ideologia do colonialismo”, estabelecida através da “transplantação
cultural”, ou seja, o puro decalque, nos âmbitos político e artístico, dos moldes
externos, em que se daria, consequentemente, uma desvalorização do local, nativo.
Essa desvalorização seria a própria motivação de se desconsiderar a cultura
indígena local do Novo Mundo, sendo, no caso das terras brasileiras, um retrato do
sistema colonial de produção baseado na geração de riquezas e trabalho escravo /
servil. Vale ressaltar que, durante o período inicial da colonização, o ato do escambo
realizado entre índios e europeus teria sido um modo encontrado pelo colonizador
de obter a riqueza local (o pau-brasil, de cuja madeira era extraída uma tinta muito
utilizada na época para tingir tecidos) do índio em troca de objetos de menor valor,
assim tirando dos povos indígenas o que, de fato, eles não possuíam. Para os
colonizadores, ainda que oferecesse um custo menor em relação às especiarias do
Oriente, ainda assim a extração do pau-brasil, dentro do sistema do comércio
ultramarino, contribuía para a balança comercial favorável das metrópoles, num
conjunto de ideias e práticas econômicas conhecido por Mercantilismo (ARRUDA;
PILETTI, 2003).
O caráter essencialmente extrativista dos recursos naturais (pau-brasil,
basicamente) da colônia pela metrópole portuguesa se manteve nas primeiras
décadas da colonização, período em que a terra de Vera Cruz era sistematicamente
invadida por saqueadores oriundos de outras metrópoles europeias, daí a construção
de feitorias (algumas francesas, aliás) ao longo da costa. Como forma de manter o
monopólio e garantir a hegemonia econômica sobre estas terras, o governo de
Portugal decide enviar uma expedição para uma colonização efetiva, mas apenas
algumas décadas após a primeira vinda, por volta de 1530.
Ainda em relação ao mencionado anteriormente, segundo percebe-se a
sobreposição de uma cultura perante a outra, tem-se o que afirma Bosi (1992):
“cultura supõe uma consciência grupal operosa e operante que desentranha da vida
presente os planos para o futuro”, ao que acrescenta:
O presente se torna mola, instrumento, potencialidade de futuro. Acentua-se a
função da produtividade que requer um domínio sistemático do homem sobre a
matéria e sobre outros homens. Aculturar um povo se traduziria, afinal, em
sujeita-lo ou, no melhor dos casos, adaptá-lo tecnologicamente a um certo
padrão tido como superior. (BOSI, 1992, p. 17)
Tem-se, assim, a sujeição da cultura indígena (tida como inferior) a uma outra,
europeia (dita superior), cabendo a esta ser preservada e perpetuada, a ser mantida
num “estado de coexistência social” através da educação. Num primeiro momento
da colonização lusitana nas Américas, a educação se dá por meio dos membros da
Companhia de Jesus que, se de início direcionavam o saber que detinham à
catequização dos nativos, posteriormente seriam subjugados à pressão dos
bandeirantes e à força do Exército colonial, restando apenas a opção de prover
educação humanística a jovens de famílias abastadas. (BOSI, 1992, p. 25).
Vale destacar que o caráter cristianizador da expansão portuguesa encontraria
nos bandeirantes, isto é, nos próprios portugueses, um ponto de embate frontal e
cruel, tendo estes e os jesuítas travado grandes disputas pelo índio, fosse para
exterminá-lo ou convertê-lo ao Cristianismo. Sobre isso, afirma Anchieta serem os
portugueses os maiores inimigos da catequese, tendo ocorrido incidentes já no
primeiro século de catequização, como no relato da fuga dos índios de São Tomé:
Subitamente se alvoroçou toda aquela gente de São Tomé, e andava tão revolta
que parecia andar o Demônio entre eles. Pregavam pelas ruas: “Vamo-nos,
vamo-nos antes que venham estes Portugueses”. Vendo o Padre Gaspar
Lourenço tal alvoroço, fê-los ajuntar, falando a eles, dando-lhes a entender
quão mal faziam em deixar a igreja por mentiras que lhes diziam, e eles
chorando respondiam: “Não fugimos da igreja nem da tua companhia, porque,
se tu quiseres, ir conosco, viveremos contigo no meio desses matos ou sertão,
que bem vemos que a lei de Deus é boa, mas estes Portugueses não nos deixam
estar quietos, e se tu vês que tão poucos que aqui andam entre nós tomam
nossos irmãos, que podemos esperar, quando os mais vierem se não que a nós
mulheres e filhos farão escravos?”, mostrando alguns deles os perigos e açoites
que em casa de Portugueses tinham recebido, e isto diziam com muitas
lágrimas e sentimento. (BOSI, 1992, p. 32)
À revelia de embates sociais e agitações como descrito acima, ainda por muito
tempo por boa parte da História do país haveria a tentativa de afirmação de uma
identidade de caráter nacional, em especial através de manifestações artístico-
intelectuais, persistindo até os dias atuais.
1.2. Romantismo
Amplo e diverso, o Romantismo é levado em consideração a extremos opostos, pois
se por um lado ele é confundido com meras manifestações literárias, por outro são vistas
características românticas na totalidade da História da Civilização. Considerado como a
busca de novos valores por meio da quebra de um padrão estático vigente e resultado de
rebelião e inconformismo, o Romantismo seria, na realidade, um movimento cultural
situado historicamente e só como tal pode ser entendido. (BORNHEIM, 2005).
Assim, conforme afirma Coutinho (1978) e para fins de elucidação neste
trabalho, tem-se o Romantismo como um movimento estético-poético peculiar de um
estilo de vida e de arte dominante da cultura ocidental, tendo prevalecido entre a metade
do século XVIII e a metade do século XIX. Inspirado num retorno ao passado medieval
e nos moldes vigentes então, realizou-se em contraposição a um modelo neoclássico
setecentista.
Em oposição ao racionalismo do período anterior, neoclassicista, o Romantismo
vai passar a exaltar a imaginação e o sentimento, a individualidade subjetiva, em que o
sujeito romântico busca o relativismo em vez do absolutismo, tendendo a idealizar a
realidade, e não reproduzi-la.
Por razões de natureza didática, tendo-se em vista o foco deste trabalho ser a
ulterior análise da letra da canção Índios, seguem, abaixo, apenas algumas das
características elencadas por Coutinho (1978) como traços peculiares do Romantismo:
Escapismo. Desejo de fuga para um mundo ideal(izado), feito à imagem e
semelhança das emoções e dos desejos do indivíduo, conforme a própria
imaginação deste;
Fé. Para o indivíduo romântico, seria a fé, e não a razão, que comandaria o
espírito;
Retorno ao passado. Voltando-se para a natureza e volvendo ao passado, o
romântico idealiza uma civilização diferente da atual;
Exagero. Em busca de uma realidade utópica, busca fugir para um mundo de
perfeição e sonho em um lugar longínquo, no passado ou o futuro;
Culto da natureza. Exaltada no Romantismo, a Natureza torna-se paisagem
preponderante, exótica (exotismo), um lugar de refúgio, resguardado da
civilização, puro porque intocado pela sociedade. Vale frisar, neste tópico, a
ideia do “bom selvagem” de Rousseau, cuja concepção merece um tratamento a
parte:
Em oposição ao pensamento cartesiano que encerra a interioridade do indivíduo no
cogito, Rousseau defende a natureza, isto é, o sentimento interior, como fator básico da
vida individual. Para Rousseau, a razão estaria subjugada ao sentimento, sendo inferior
a este, e não mais pautaria a natureza como algo externo, objetivo e matematizado tal
como preconizado pelos enciclopedistas. A natureza, então, deveria ser compreendida a
partir da interioridade e seria isenta à mácula humana, estranha e anterior à cultura,
divinamente pura, podendo daí revelar o Absoluto. Amalgamado a essa natureza interior
e sem contato com a civilização externa, o indivíduo primitivo de Rousseau não
prescindiria da cultura (BORNHEIM, 2005).
No Brasil, o Romantismo assumiu um caráter peculiar nacionalista sob forma de
Indianismo, sendo mesmo uma tendência universal daquele. O índio, que remonta à
concepção de indivíduo à imagem e semelhança do europeu segundo os enciclopedistas,
é também retratado de forma idealizada tanto na literatura quanto na política jesuítas
(SODRÉ, 1984), daí tendo o nativismo brasileiro estabelecido o índio como símbolo de
independência espiritual, política, social e literária.
Em se tratando do âmbito literário, com respeito à questão política de uma nação
que visava firmar a sua autonomia, pode-se dizer que se encontram traços de crítica
social atrelada à questão indígena já no Quinhentismo com os registros jesuítas de Pe.
Anchieta. No Romantismo como movimento literário propriamente dito no Brasil,
destacam-se Gonçalves Dias na poesia e José de Alencar na prosa, cabendo ao segundo
maior prevalência em termos de tentativa de formação de uma identidade nacional.
Defensor de uma linguagem tipicamente romântica no sentido de estar desatrelada
de amarras formais, em que prevalece o uso de uma linguagem libertada, simples, sem
ênfase, ainda que rica, Alencar desvincula da língua nacional a ideia de reprodução de
uma outra, europeia, lusitana, sendo o seu romantismo “pelo menos lógico, ao tentar ao
mesmo tempo uma nova linguagem de um novo ideal de criação literária” (SODRÉ,
1984, p. 33).
Para Helena (2006), a busca pela construção de um ideal nacional em Alencar ganha
maior relevância:
Tematizar a articulação da vida selvagem, a individualidade pretérita e, a partir dela,
representar o Brasil, como eu social, foi o desafio que José Alencar tomou a seu cargo.
Suas obras, que por vezes surpreendem pela perspicácia disfarçada de histórias
palatáveis, dão forma e conteúdo à representação do país nascente, buscando construir a
“memória” do cidadão que ocuparia o lugar das mitologias da origem, na construção da
história pátria. Preside esta empresa a intenção de dizer o que era ser brasileiro no
século XIX. (HELENA, 2006, p. 91).
Essas mesmas características românticas de desapego às formas estruturais e busca
de uma identidade própria nacional seriam posteriormente resgatadas no movimento
modernista cujo expoente máximo foi a Semana de Arte Moderna de 22. Nessa época,
de acordo com Nicola (2003), o nacionalismo adquire diversos aspectos, os quais que
melhor se alinham com a proposta de outrora do Romantismo são: volta às origens;
pesquisas de fontes quinhentistas; busca de uma língua tipicamente nacional,
“brasileira”; valorização do índio verdadeiramente brasileiro. Tem-se, ainda, o
nacionalismo crítico, consciente, alinhado com as esquerdas da época, que procurava
denunciar a realidade brasileira de então. Mário de Andrade chegaria a se referir a José
de Alencar “como um irmão de cruzada” (SODRÉ, 1984, p. 32).
1.3. Identidade
O conceito básico que se tem de memória é a de experiências particulares,
individuais, íntimas, adquiridas por meio da experiência de cada indivíduo. Contudo,
conforme já atestava Halbwachs nos idos dos anos 20/30, a memória “deve ser
entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como
um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações,
mudanças constantes.” (POLLAK, 1992).
Se situarmos a afirmação acima dentro do que fora mencionado anteriormente na
referência ao cultus, temos que cada há memórias que são mantidas em detrimento de
outras, pois se há colonização e sobreposição de um povo perante o outro, que dizer da
memória do povo subjugado, a ser mantida em um momento de alterações tão drásticas
de valores e parâmetros como os vividos atualmente?
Em relação a isso, afirma Hall (1992):
“[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social,
estão em declino, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo
moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada "crise de
identidade" é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está
deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os
quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo
social.”
Dentro dessa perspectiva, há que se considerar o caso dos indígenas no século
XX, em pleno fenômeno de globalização, que vêm a própria memória coletiva, que se já
não era enaltecida (muito pelo contrário, era marginalizada, não fossem as diversas
manifestações artístico-intelectuais e político-sociais - como o caso dos irmãos Villas-
Boas - que buscassem preservá-la), esmiuçada por valores que, se já não são
reconhecidos pelos próprios colonizadores como própria deles, que dirá de suas
próprias?
As supostas “crises de identidade”, então, seriam um fator a mais a contribuir
para desestruturação de um ideário de afirmação perante a sociedade, o que pode ter
levado à grande onda de suicídios ocorrida por volta dos anos 80 na região de Dourados
(MS), pois já que não se reconhecem mais como índios, os descendentes dos povos
nativos se deparam com uma sociedade marcadamente europeizante, fundada sob os
moldes de uma perspectiva histórica eurocentrista, que, por questões etnológicas,
dificilmente jamais os aceitará como indivíduos brancos.
De sua parte, a sociedade dos “brancos” no mais das vezes só vai tomar
conhecimento da existência das verdadeiras condições de vida dos povos indígenas na
(pós-) modernidade quando há relatos de eventos que denotam algum grau de
psicopatologia social (no caso, o suicídio). É o que ocorre, por exemplo, no relado
presente no artigo Suicídio entre povos indígenas: um panorama estatístico Brasileiro
(Oliveira; Neto, 2002) do caso do grupo dos Sorowahá, visto como “a situação mais
crítica já descrita”.
Esse grupo étnico, afastado das vias de navegação, ainda vivia da agricultura de
subsistência, caça, pesca e coleta (Kroemer, 1985 apud Oliveira; Neto, 2002) por volta
dos anos 70, tendo permanecido isolado até o fim desta década, quando, enfim, foram
"foram localizados pelas notícias de conflitos com sorveiros [...] que haviam invadido
seu território". (Oliveira; Neto, 2002).
Recentemente, a questão da carta de ameaça de suicídio coletivo dos Guarani-
Kaiowá que ganhou notoriedade ao ser noticiada nas redes sociais mais populares do
país (Twitter e Facebook) levou uma gama de usuários de diversas contas (como são
chamados os espaços que cada pessoa possui em tais redes cibernéticas) passar a se
designar, nominalmente, “Guarani-Kaiowás”, ao que alude a jornalista Eliane Brum em
seu artigo “Sobrenome: “Guarani Kaiowa” (27/11/2012), no qual questiona a verdadeira
motivação por trás dessa iniciativa: “A questão é mais complexa do que pode parecer a princípio:
afinal, o que é ser ou o que torna alguém um alguém? O que seria, por exemplo, ser brasileiro e o
que torna alguém brasileiro? No caso das redes sociais, o que significaria este “Sou Guarani
Kaiowa”?”.
Se analisada sob a óptica da teoria do ‘Uncanny’ (também conhecido pelo termo em alemão
Unheimlich,), a questão suscitada pelo “evento Guarani-Kaiowá” poderia ser analisada conforme
um novo prisma - já que se por uncanny entende-se aquilo que seria “o oposto do que é familiar”, a
suscitar uma sensação de desconforto ao se sentir ao mesmo tempo atração e repulsa por um ‘objeto’
a um mesmo tempo familiar e estranho – segundo o qual “brancos” e índios representariam os dois
lados de uma mesma sociedade, na qual, se por um lado há uma classe muito bem estabelecida,
firmada em moldes europeus que para estas terras foram transplantados, que, ainda assim, busca
uma conexão maior com o próprio solo que habita, de outro há uma verdadeira nação nativa à
procura de afirmação dos próprios valores, em que a memória e cultura de seus povos sejam
preservadas para gerações vindouras ou o que vier a existir delas.
2. ANÁLISE DA CANÇÃO
Escrita por Renato Russo, vocalista da banda Legião Urbana, a canção ‘Índios’
foi lançada em 1986, no disco de nome Legião Urbana – Dois. Seguindo a tendência
romântica do grupo, a canção, como o próprio título já sugere, se volta para a questão
indígena segundo uma perspectiva em conformidade com o Indianismo, tema recorrente
no Romantismo brasileiro.
De modo a melhor servir ao propósito deste trabalho de análise crítica de
questão social tendo-se por base o aporte teórico apresentado acima, a interpretação da
canção se dará por vezes através de determinado número de versos e, por outras, até
mesmo por meio de estrofes. Assim, de forma didática, facilitando a compreensão da
interpretação, por parte do leitor.
“Quem me dera, ao menos uma vez”:
Frase imprecativa, denota o desejo do eu-lírico em idealizar a realidade que vive.
Presente em boa parte da canção como o início das estrofes desta, a repetição deste
verso serve para acentuar a ideia da vontade de se querer ver realizado o desejo do eu-
lírico;
“Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem/
Conseguiu me convencer que era prova de amizade/
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha.
[...]
Esquecer que acreditei que era por brincadeira/
Que se cortava sempre um pano-de-chão/
De linho nobre e pura seda.”
Neste trecho, percebe-se uma clara referência à prática de escambo realizada
entre nativos e colonizadores, em que o eu-lírico, apresentando-se na posição do
indígena, deixa a entender, como muitos historiadores chegam a sugerir, que o ato de
troca de objetos, entre os nativos, pressupunha o estabelecimento de uma relação de
amizade.
Há que destacar o ressentimento de se descobrir não só a diferença de valores
entre os objetos permutados como também os valores que são conferidos a eles (do
indígena é retirado o que ele suponha não possuir de fato, os bens naturais ou, ainda: é
retirado absolutamente tudo do indígena, deixando-o mais desfalcado do que de fato ele
jamais poderia estar, pois de si foi tirado aquilo que ele sequer detinha / possuía), a
indicar a falta de consideração e atenção por parte do colonizador ao tratar com o
indígena;
“Explicar o que ninguém consegue entender
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente”
De início, o índio se vê atônito diante da chegada de gente com vestes, costumes
e falar diferentes dos seus a desembarcar de construções (naus) jamais vistas por ele
antes (não consegue explicar aquilo que ninguém entende).
Mais tarde, dá-se o início da colonização e o nativo vê, num primeiro momento,
a dizimação de seus próprios povos para, em seguida, ver extinguir-se a própria cultura,
sobrepujada por uma outra, dita superior, a qual deverá ser repassada de maneira
dominante às futuras gerações. Se a cultura tira das entranhas do presente o futuro, tal
como afirma Bosi, o indígena, então, já não vê, desde o primeiro instante da
colonização, o seu futuro, pois a cultura europeia estabelece o seu “presente” naquele
dado momento;
“Provar que quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante”
O Mercantilismo era um protótipo do sistema econômico capitalista, em que a
balança comercial das então metrópoles europeias deveria estar sempre favorável para
si. Era o acúmulo primitivo de capital, na realidade feito através do acúmulo dos
recursos naturais extraídos das colônias. Como deteria maior poder econômico a
metrópole que detivesse o maior número de recursos acumulados, quanto mais um país
europeu pudesse deter recursos para si, melhor;
“Fala demais por não ter nada a dizer”
O colonizador, ao querer conferir legitimidade à colonização, ao utilizar como
desculpa a expansão marítima e o dever de expansão da fé cristã do império português,
na verdade estaria se favorecendo de argumentos vazios para justificar os atos vis que
então realizaria para acumular riquezas para a metrópole;
“Que o mais simples fosse visto
Como o mais importante”
Valorização do ideal romântico de vida simples, também caro aos árcades.
Poderia ser também interpretado como uma valorização do culto à natureza, pois se a
natureza seria um local puro, intocado pelas máculas da sociedade, emblema da vida
simples, em harmonia com a natureza, que o índio levava antes da chegada dos
colonizadores, o trecho então denotaria o desejo do indígena em querer retornar ao
estilo de vida levado antes da chegada do colonizador, num desejo de retorno ao
passado. Desejo este porque mesmo da vontade pelo eu-lírico da existência de uma
civilização diferente daquela atual;
“Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente”
Um dos tipos de objeto mais utilizado pelos colonizadores para realizar trocas
com os nativos quando da prática do escambo, o espelho, neste caso, serviria como um
meio de veicular a ideia do uncanny (unheimelich), pois ao posicionar o espelho com o
intuito de querer ver a própria imagem refletida (e, metaforicamente, a imagem da
realidade “ideal” na qual estaria inserido), o nativo apenas conseguiria visualizar a
imagem de um outro, com quem compartilharia primordialmente a condição humana,
mas do qual se distinguiria fundamentalmente em razão dos anseios que procurasse ver
realizados, os quais, para o indígena, seria a destruição de um sonho de projeção da
própria cultura no futuro, a submissão do próprio povo perante um outro, destrutivo,
doentio em sua ganância por terras e acúmulo de riquezas.
“Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
Sua maldade, então, deixa Deus tão triste.”
Numa clara referência à catequização jesuíta do início da colonização para a
conversão do gentio ao Cristianismo, à qual se seguiu o horror da perseguição dos
portugueses bandeirantes (vide o relato da fuga de São Tomé, anteriormente),
responsáveis por resgatar os índios para que estes voltassem a realizar o trabalho
escravo / servil a que eram subjugados pelos colonizadores mais abastados, o trecho
também remete à grande culpa judaico-cristã de ter libertado Barrabás em vez de Jesus,
ao lavar as mãos como assim o fizera Pôncio Pilatos (“E esse mesmo Deus foi morto por
vocês”).
“Eu quis o perigo e até sangrei sozinho
Entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim.”
Numa livre interpretação, pode-se considerar o trecho acima uma menção ao
espaço de tempo inicial em que a colônia esteve sem uma ocupação efetiva dos
colonizadores (de 1500 a 1530) até quando se dá um retorno definitivo, motivado muito
mais por questões econômicas, políticas e sociais eurocentristas que mesmo pela
vontade de desenvolvimento das terras e do povo colonizados.
É importante destacar os dois últimos versos do trecho (“Quando é sempre só
você / Que me entende do início ao fim”), nos quais o eu-lírico se vale de ironia para
ressaltar como é, sobretudo, a perspectiva europeizante que prevalece, pois a narrativa
de descoberta de novas terras e a descrição dos povos indígenas que nelas habitavam se
dá por meio de registros feitos pelos colonizadores segundo um ponto de vista próprio
deles.
“E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.”
Em consonância com o trecho anterior, este ainda mantém o tom de ironia em
que se tem subentendida a motivação da afirmação da superioridade europeia pela
submissão de povos nativos a suas metrópoles.
Ressalte-se, também, a desilusão do eu-lírico no papel do indígena em perceber
que a memória a ser cultivada para as gerações vindouras não seria a de seu povo, daí a
sensação de ter perdido algo que estaria por vir, pois o seu presente não permite uma
projeção para o futuro.
“Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes.”
Num misto de exagero utópico e escapismo, o eu-lírico busca tentar acreditar em
um mundo à imagem e semelhança de suas emoções.
“Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado.”
Pode-se interpretar o pronome demonstrativo masculino “seu” como uma alusão
ao Deus cristão, assim permitindo entender que o trecho se trata de uma referência ao
poder de onipresença que é atribuído a esse Deus e a revelação, pelo eu-lírico, do desejo
de querer fazer a sociedade tomar ciência (ou, ao menos, ratificar a crença) desse poder.
Realizando um contraste com a primeira parte do trecho, o eu-lírico demonstra
descontentamento e ressentimento com a realidade que vive, ao levar à compreensão de
que falta à sociedade valores como cordialidade. Vale lembrar que a cordialidade seria
uma característica típica do homem medieval, modelo para os românticos.
“Como a mais bela tribo
Dos mais belos índios
Não ser atacado por ser inocente.”
Tem-se, aqui, a concepção do bom selvagem de Rousseau, inerente à ideia de
realidade idealizada do eu-lírico.
“Tentei chorar e não consegui.”
Ainda representando a figura do indígena, o eu-lírico deixa subentendida a ideia
de que estaria num estado emocional de completo desespero, daí a vontade de verter
lágrimas e não realizá-la.
Numa livre interpretação, seria aceitável dizer que esse estado emocional seria
decorrente de uma “crise de identidade”, situação que remete aos tempos atuais, pois se,
no desenrolar de toda a História deste país, o nativo não viu a valorização, de fato, de
sua cultura, muito menos se dará agora, já que mesmo os colonizadores não têm certeza
da sua própria, dada a globalização. Importante frisar que uma “crise de identidade”
poderia ser tida como um dos fatores para levar ao suicídio, infelizmente, uma prática
comum entre os indígenas brasileiros.
CONCLUSÃO
Diante de tudo quanto fora exposto até aqui, somos levados a crer que a
construção de uma identidade nacional perpassa todo o imaginário daqueles que buscam
refletir quanto à validade da legitimação cultural de um povo, em especial o seu.
Assim, portanto, tem-se que, ainda que o Brasil careça de iniciativas que
procurem valorizar de fato o local, ainda que de algum modo transplantado para estas
terras e daquele modo classificado, as manifestações artístico-intelectuais bem como as
político-sociais mostram-se alinhadas com a aspiração da construção de um futuro
sedimentado em realizações presentes.
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SODRÉ, Nelson Werneck. A ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensamento
brasileiro. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1984.
______. História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos. 6. ed. Rio de
Janeiro: civilização brasileira, 1976.
Uncanny. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Unheimlich>. Acesso em: 18 abr.
2013, 19:32:48
ANEXO
Índios
(Renato Russo)
Disco: Legião Urbana - Dois
Gravadora: EMI Music (Brasil)
Nº catálogo: 31C 064 422961
Formato: Vinil, LP, 33 RPM
País: Brasil
Lançamento: 1986
Gênero: Rock
Estilo: Rock; pós-punk
Créditos: Produtor - Mayrton Bahia
Quem me dera, ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro que entreguei a
quem
Conseguiu me convencer que era prova de
amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não
tinha.
Quem me dera, ao menos uma vez
Esquecer que acreditei que era por
brincadeira
Que se cortava sempre um pano-de-chão
De linho nobre e pura seda.
Quem me dera, ao menos uma vez
Explicar o que ninguém consegue entender
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era
antigamente.
Quem me dera, ao menos uma vez
Provar que quem tem mais do que precisa
ter
Quase sempre se convence que não tem o
bastante
Fala demais por não ter nada a dizer.
Quem me dera, ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto
Como o mais importante
Mas nos deram espelhos e vimos um
mundo doente.
Quem me dera, ao menos uma vez
Entender como um só Deus ao mesmo
tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
Sua maldade, então, deixa Deus tão triste.
Eu quis o perigo e até sangrei sozinho
Entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim.
E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.
Quem me dera, ao menos uma vez
Acreditar por um instante em tudo que
existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes.
Quem me dera, ao menos uma vez
Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado.
Quem me dera, ao menos uma vez
Como a mais bela tribo
Dos mais belos índios
Não ser atacado por ser inocente.
Eu quis o perigo e até sangrei sozinho
Entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim.
E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.
Nos deram espelhos e vimos um mundo
doente
Tentei chorar e não consegui.