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O NAUFRÁGIO E O ESPÓLIO
A IDENTIFICAÇÃO DO SÍTIO E OS TRABALHOS ARQUEOLÓGICOS
SÓNIA BOMBICO
Trabalhos de limpeza e regis-
to arqueológico dos vestígios
da estrutura do navio.
Porto de Ponta Delgada nos finais do século XIX - Postal da Papelaria Travas-
sos, Lisboa
Localização dos vestígios na planta
da Marina.
Os vestígios arqueológicos do navio foram identificados no decurso do acompanhamento arqueológico da construção de uma Marina (Empreitada de Construção
do Novo Terminal Marítimo de Cruzeiros de Ponta Delgada – Terminal Marítimo e Reestruturação da Avenida Marginal – Portas do Mar). Cuja empreitada foi exe-
cutada pelo Consórcio constituído pelos Empreiteiros Somague Ediçor – Engenharia, S.A.; Mota-Engil-Engenharia; Irmãos Cavaco, S.A; OFM e Zagope – Constru-
ções e Engenharia, S.A., após concessão da mesma pela Administração dos Portos das Ilhas de São Miguel e Santa Maria, S.A.
A identificação dos vestígios arqueológicos ocorreu em Dezembro de 2007, momento a partir do qual o acompanhamento arqueológico se começou a desenvolver, a
cargo da empresa Archeocélis, Investigações Arqueológicas.
No decurso do mês de Janeiro de 2008 foi realizada uma missão de verificação e caracterização dos vestígios sob a direcção dos arqueólogos José António Betten-
court e Patrícia Carvalho, cuja avaliação permitiu a tomada de decisão por parte da Direcção Regional da Cultura dos Açores, relativamente ao futuro dos vestígios.
Perante a possibilidade da conservação in situ, sem qualquer tipo de intervenção no local, e a remoção total da estrutura arqueológica subaquática após registo
arqueológico, a segunda opção foi a tomada pelo empreiteiro. Iniciou-se assim o trabalho arqueológico de acompanhamento da limpeza dos vestígios e registo
arqueográfico. Do qual resultou a execução de uma planimetria, o registo fotográfico e vídeo, a recuperação de um conjunto de artefactos e o acompanhamento do
desmantelamento das estruturas da embarcação a cargo da empresa de mergulhadores profissionais Prosub.
Os trabalhos arqueológicos subaquáticos desenvolvidos sob a direcção da arqueóloga Sónia Bombico, contaram ainda com a colaboração dos arqueólogos Vítor Frazão e Ângela Ferreira, bem como
com a supervisão científica da Dr. Célia Coelho.
Os trabalhos desenvolvidos, entre os dias 27 de Fevereiro e 2 de Junho de 2008, incluíram a limpeza da estrutura, registo arqueológico e arqueográfico, recolha e conservação preventiva de artefac-
tos, desmantelamento e levantamento das estruturas e acompanhamento de depósito das secções desmanteladas em local fora do perímetro da obra, ao largo do Ilhéu de São Roque.
Infelizmente e graças à existência de um lastro de cimento no fundo do porão do navio, não foi possível o desmantelamento do mesmo de forma eficaz e em grandes secções, como seria de expectar. O
que teria permitido a deposição contextualizada no local de depósito. Realidade que não se veio a verificar. Perante a decisão prévia de não conservação in situ dos vestígios arqueológicos subaquáticos,
tornou-se impossível a preservação e salvaguarda da totalidade da estrutura. Constituindo os resultados do trabalho de arqueologia de urgência, que aqui descrevemos, as únicas fontes para o estudo
do vapor inglês naufragado no interior do Porto de Ponta Delgada. Pelo que a sua divulgação em muito contribui para o conhecimento histórico e arqueológico da navegação a vapor nos Açores,
durante o decorrer do século XIX.
Estruturas de apoio às caldeiras
Materiais identificados na
zona de materiais dispersos
a bombordo
Encaixe de tubagem em chumbo
Conjunto de tijolos refratários
(Fire-Clay)
Fragmento de saca para envase de
açúcar proveniente da Demerara Fragmento de pavimento de
madeira, existente no porão
do navio
Inscrição em tábua do piso do porão
Vestígios de tonel de Rum em madeira,
identificado na zona da proa do navio
Processo de rebitagem do
casco do navio
Ferramentas recuperadas na zona
do engenho do navio
Rebitadeira
Tijolo de fire-clay com marca de
fabricante: CUMBERNAULD
Lampião de iluminação recuperado
a bordo
Saca onde se pode ler PURECAEE ou
PUREGAEE, debaixo do qual surge
RMJ, e de lado perpendicularmente a
palavra SUGAR ou SUCAR
Objectos de bordo: Colher e Prato
Placa identificativa do construtor do
engenho e do próprio navio a vapor:
OSWALD MORDAUNT & Co
ENGINEERS & SHIPBUILDERS
SOUTHAMPTON
ENGINE Nº 120 1883
Planimetria realizada com recurso ao programa Site Recorder 4, com posterior migração dos dados para Autocad.
(Desenho de Vítor Frazão)
Lastro de cimento
Pormenor de barra de assemblagem
O sítio arqueológico denominado MPDI era composto pelas estruturas do casco de um navio de ferro a vapor oitocentista, localizado a
uma profundidade média de 5m. A estrutura principal do navio rondava os 11m de largura por 35m de comprimento, estando a embarcação
orientada Nordeste-Sudoeste, com a proa virada a mar (Sudoeste). A popa não foi identificada, uma vez que a zona do navio acostada a terra
constitui a área de meio navio, desaparecendo a restante massa estrutural da embarcação por debaixo do talude da Avenida Marginal da
cidade. A embarcação encontrava-se depositada sobre o fundo rochoso, cujo relevo provoca uma inclinação no navio de 15º para bombordo
(Este) e 5º em direcção à proa (Sudoeste).
A sobrevivência da embarcação apenas ao nível do convés dever-se-á à prática de salvados imediatamente após o naufrágio, ou seja con-
temporâneos do mesmo, para além da natural exposição da estrutura à dinâmica marinha ao longo dos últimos dois séculos. Previamente à
sua identificação o navio achava-se protegido e selado por uma camada de areia de cerca de 3m.
O forro externo do casco é constituído por chapas de ferro, de dimensões variáveis, justapostas e pregadas longitudinalmente e transver-
salmente entre si por rebites de ferro de 2,5cm de espessura de corpo e 4,5cm de diâmetro de cabeça.
Em termos técnicos podemos dizer que o esqueleto e restante estrutura interna do navio é constituída por dois tipos de peças diferentes, são elas: chapas planas, colocadas
verticalmente ou horizontalmente, conjugadas com barras em ângulo que funcionam como peças de assemblagem, criando assim as formas e estruturas desejadas, nomeada-
mente as cavernas. Peças, nas quais pudemos identificar as inscrições STOCKTON MI Co. e MIDDLESBRO o que nos permite uma possível associação à zona do Nordeste
de Inglaterra, mais especificamente às cidades de Middlesbrough e Stocktom-on-Tees, área com grande tradição na construção naval.
Durante o seculo XIX, o porto de Ponta Delgada era paragem frequente para os vapores transatlânticos ingleses, de viagem entre o Novo Mundo e a Velha Europa. Para-
vam ali para se reabastecerem de carvão e víveres e carregar laranja e ananás. A Carta Arqueológica Subaquática dos Açores tem documentados 7 naufrágios de vapores
ingleses, no interior do porto, entre os anos de 1869 e 1898 de entre os quais se destacam o Benalla, Robinia e Stag, naufragados no mesmo dia durante uma tempestade ocor-
rida a 2 de Outubro de 1880. Em 1895 naufraga o Ituni, em 1897 o Oakfield e em 1898 o Cromarty.
O nosso sítio arqueológico poderia, assim, corresponder a qualquer um destes navios naufragados durante a segunda metade do século XIX. No entanto a sua relação com
o vapor Oakfield, naufragdo a 21 de Janeiro de 1897, foi possível graças à identificação de uma placa com referencia ao fabricante do engenho (maquinaria do navio) e da
própria embarcação. A completar essa identificação surgem os vestígios da carga, sacas de açúcar provenientes da Demerara (Guiana Britânica) e tonéis de rum.
O navio foi construído em 1883 para Burrell & Son de Glasgow, por Oswald Mordaunt & Co. Engineers & Shipbuilders, Southampton. Com 1,748 toneladas e as seguintes
dimensões 259,5x36x18 pés, que correspondem a 79,0956m de comprimento; 10,9728m de largura e 5,48640m de altura; possuindo um motor composto.
Para além da recolha de um conjunto de elementos constituintes da carga do navio, foram identificados, na zona correspondente à casa das máquinas, um conjunto de tijo-
los refratários e inúmeras ferramentas relacionados com o funcionamento do engenho do navio.
“Naufragio
Hontem pelas 6 horas e meia da tarde chegando ao nosso porto o vapor inglez“Oakfield”, em via-
gem de Demerara para Londres, para aqui carregar laranja e ananazes, entrou sem piloto e foi dar
fundo próximo da baixa de S. Pedro, um pouco a leste, de sorte que quando rodou, virando a proa ao
mar e ao vento, para sueste, bateu com a pôpa, abrindo agua.
Chegando então o piloto de serviço, mandou suspender, ignorando que elle tivesse batido nas
pedras, e fê-lo conduzir para junto da barca hollandesa a meio da doca, amarrando ahi às bóias.
Pouco depois começou a entrar agua na casa da machina, e foi dada d’isso parte ao piloto-mór,
que indo a bordo, ordenou immediatamente o encalhe no calhau do Laguim, onde ficou em sêcco.
A tripulação e passageiros, ficaram toda a noute a bordo. O Snr, guarda-mór de Saúde, avisado
áquella hora (8 da noite), foi fazer-lhe a competente visita, começando logo de manhã as operações
de descarga do assucar, para os armazens do Corpo Santo, estando ainda muita carga perfeitamente
enxuta.
O vapor conduzia 12 mil saccas com assucar e 1:000 cascos com rhum.
Foi construido em 1883 e pertencia ao porto de Glasgow. O capitão era a primeira vez que aqui
vinha e assim se explica a errada manobra que elle fez, apezar de que não devia ter entrado áquella
hora sem que o piloto tivesse ido ao seu encontro.
H á dois annos, n’este mez, teve egual sorte o “Ituni”; felizmente agora o sr. Souza, piloto-mór,
pôde obstar a que este ficasse a meio da doca, como ficou aquelle, que tantos prejuízos causou ao por-
to e ao governo para depois o destruir.”
A imprensa local dá conta do naufrágio, como podemos ler no Commercio Michaelense de Sexta-Feira, dia 22 de
Janeiro de 1897: