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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE
O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
A IDEOLOGIA DO ESTADO MILITAR BRASILEIRO DIFUNDIDA
PELO LIVRO DIDÁTICO DE EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA
Nonato Guimarães Costa1
INTRODUÇÃO
A história da Educação se caracterizou, ao longo de sua história, em
servir como mantenedora da dominação de classes, daí um dos principais instrumentos
utilizados para isso foi o livro didático. As disciplinas de ciências humanas foram
modificadas a partir de 1961, pela lei 4024, quando aparece nos currículos da educação
básica a disciplina de Educação Moral e Cívica como optativa. A partir de 1964, com o
golpe militar, a disciplina passa a se relacionar diretamente com o ensino de História e
Geografia, sendo obrigatória.
Esse período foi aliado a “modernização do sistema político
administrativo e a condenação da democracia clássica ou liberal”. Essa nova linha de
pensamento previa o incentivo à entrada de capital externo e tecnologia estrangeira,
fatores que contribuíram para aprofundar as condições de dependência estrutural do
Brasil, pois o modelo de desenvolvimento adotado pelo país previa a ampla cooperação
do capital externo. (FAZENDA, 1985)
Durante o período de 1968 a 1973, o Brasil viveu um contexto de
crescimento industrial que ficou conhecido como “milagre econômico”, refletido nas
1 Licenciado em História UNIT/SE com especialização em História do Brasil FIJ/RJ. Professor da
Secretaria de Estado da Educação – SEED/SE. [email protected].
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taxas de crescimento do PIB e na redução da inflação. A partir de 1973 esse “milagre se
desfaz”, a inflação cresce desenfreadamente e a dívida externa aumenta.
Quanto a investimentos em Educação, o governo estava preocupado
apenas à questão ideológica. As escolas eram o campo propício à modelagem
ideológica, segundo os princípios que regiam o governo militar. Os livros didáticos, por
sua vez, seriam os instrumentos responsáveis pela criação de normas e conceitos morais
condizentes com a representação do Brasil como um país democrático e sem conflitos, o
que não correspondia à realidade.
Encontrando o país em meio à crise de ordem econômica e social, o
governo militar, deparou-se com a oportunidade única de implantar sua ideologia em
todos os setores possíveis da sociedade através do livro didático, que constitui não só
uma fonte de consulta pessoal, como passou a ser a “autoridade”, a “verdade” do
conhecimento histórico. Portanto, na História da Educação - campo historiográfico
inserido a partir da escola dos analles – as teorias reprodutivistas colocam o livro
didático e a escola, como instrumentos de reprodução da Ideologia dominante.
Dentro deste contexto, a formulação da ideologia de segurança nacional
teve um importante papel para adequar o Brasil a tal processo. Segundo Maria Helena
Moreira Alves:
“A ideologia de segurança nacional contida na Doutrina de Segurança
Nacional e Desenvolvimento foi um instrumento importante para a
perpetuação das estruturas de Estado destinadas a facilitar o
desenvolvimento capitalista associado-dependente. (...) A doutrina (...)
tem sido utilizada para justificar a imposição de um sistema de
controles e dominação (...). (ALVES, 1984, p. 25)
A partir daí, pode-se notar as artimanhas da política educacional,
utilizando-se desta disciplina para manipular os educandos. Segundo Fenelon, 1994: “O
aluno de 1º grau é passivo, mero receptor de informações e como tal não precisa ter
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nenhuma de suas habilidades desenvolvidas. Não precisa aprender a pensar, refletir,
deve apenas apreender”. (FENELON, 1994)
A partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº
9394/96), introduziram-se os parâmetros curriculares nacionais, demonstrando o inverso
do que se pensava educação durante o regime militar, colocando o aluno como um
agente não como um paciente, devendo este “posicionar-se de maneira crítica,
responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como
forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas”. (BRASIL, PCN, 1998)
Partindo dessas diferenças ideológicas educacionais – envolvendo o
regime militar, a redemocratização e a era pós LDBEN 9394/96 – surgiu à curiosidade
de analisar a educação passiva a partir do livro didático de Educação Moral e Cívica,
uma vez que o professor graduado em uma Universidade do século XXI, destinado a
formar futuros agentes da cidadania, construtores do conhecimento, não detém o
mínimo de afinidade com a doutrina educacional a qual incorporou o Estado militar.
O LIVRO DIDÁTICO NO BRASIL
O livro didático brasileiro ocupa um lugar de destaque, sendo alvo de debates
constantes e muitas vezes de críticas por parte dos intelectuais. Responsáveis por grande
parte do lucro das editoras, os livros didáticos devem ser analisados não só por seu
conteúdo informativo, mas também pelo papel que exerceram nesse sistema.
Além de ser uma mercadoria que, como tal, está sujeita aos interesses do
mercado, o livro didático é também um instrumento ideológico.
Suas origens no Brasil estão ligadas à criação do Estado Nacional e aos ideais
liberais por ele assimilados. Inspirados nos preceitos de igualdade difundidos durante a
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Revolução Francesa, o Estado Monárquico brasileiro adotou um discurso semelhante no
que se refere à educação – lembrando que o período monárquico brasileiro foi no século
XIX -, elaborando projetos educacionais de promoção do ensino a todas as camadas da
população, embora o histórico demonstre que, na prática, o acesso à formação
educacional continuou como privilégio das elites.
Criados inicialmente para suprir as defasagens dos professores menos
preparados, os livros didáticos seriam obras cuja elaboração só seria concedida a
pessoas “ilustres”, intelectuais gabaritados para tal tarefa, uma missão verdadeiramente
patriótica. Posteriormente, é que os livros didáticos deixam de ser elaborados
exclusivamente para os professores e passam a serem produzidas versões destinadas aos
alunos.
Durante os anos iniciais de produção, os livros didáticos brasileiros foram
fortemente influenciados pelos manuais estrangeiros, sobretudo os franceses. Algumas
obras publicadas no país foram verdadeiras traduções dos similares estrangeiros. Porém,
desde o início do século XIX, o movimento nacionalista ganha força, no qual
intelectuais discutem, dentre outros temas, a necessidade de elaboração de obras
condizentes com a realidade brasileira. José Veríssimo, quanto ao livro didático, faz a
seguinte afirmação: (...) Cumpre que ele seja brasileiro, não só feito por brasileiro, que
não é o mais importante, mas brasileiro pelos assuntos, pelo espírito, pelos autores
transladados, pelos poetas reproduzidos e pelo sentimento nacional que o
anime”.(VERÍSSIMO, apud BITTENCOURT, 1993, P. 20)
Por sua vez, o controle e a vigilância sobre a produção didática no Brasil
foram fatores importantes, na qual o Estado atuou de forma constante e expressiva. Os
intelectuais envolvidos nos projetos educacionais tiveram como alvo maior de
preocupação o ensino elementar (ou primário), embora isso não signifique uma atenção
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voltada à alfabetização. A preocupação se restringia ao que era produzido como
material didático.
O governo imperial propôs a criação de Conselhos para a fiscalização das
obras produzidas. Enquanto a proposta não se efetivou, coube às Assembléias
Legislativas das províncias a triagem das obras e sua aprovação ou não. Comissões
formadas pelas escolas relacionariam os livros a serem adotados. A criação de listas de
obras “aprovadas” reforça a tese sobre a preocupação do Estado em evitar que idéias
“subversivas” fossem divulgadas. Professores que adotassem livros desaprovados
estariam sujeitos a punições. A partir do período republicano, os professores passam a
escolher diretamente os livros didáticos, o que lhes conferiu uma relativa autonomia.
Para os educadores da maior parte do período republicano, os livros didáticos
deveriam apresentar em seu conteúdo histórias de cunho moral, que despertassem “bons
sentimentos” e “atos nobres”. A vigilância sobre o saber a ser divulgado foi uma
constante. A necessidade de que a ideologia do Estado não fosse deturpada fez com que
o controle sobre o que era publicado fosse cada vez mais efetivo. Segundo Circe
Bittencourt: (...) Além de o manual escolar ser correto quanto às suas informações e
estar atualizado com as inovações científicas, com os novos padrões lingüísticos,
deveria expressar os valores e a moral de sua época, evitando assim, qualquer desvio
de natureza ‘espiritual’ em sala de aula”. (BITTENCOURT, 1993, p. 64)
Portanto, percebe-se que o livro didático assume como instrumento de
controle. Através dele, o Estado poderia controlar o saber a ser divulgado, evitando
“desvios” e distorções no seu projeto.
Com a consolidação da Monarquia, o Estado Liberal vê a necessidade de criar
uma imagem de Nação. É neste contexto que a criação dos livros didáticos de História
do Brasil contribuem para formular um ideal nacionalista, perpetuando a figura de
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homens ilustres de nossa história como exemplos “às gerações futuras”, verdadeiros
“heróis da pátria”, é a história positivista presente nos livros didáticos.
Como a História do Brasil passou a ser vista pelo Estado como elemento de
nacionalização do ensino, os livros didáticos contribuíram para divulgar a imagem de
uma nação forte, de território grandioso e de vastas riquezas.
Um dado interessante acerca das origens do livro didático de História do Brasil
refere-se aos seus primeiros autores: a elaboração de didáticos por militares. Tal atitude
estava vinculada a uma visão de História Nacional, utilizada para justificar e legitimar o
Estado recém-formado. Henrique Luís Niemayer Bellegarde, autor do “Resumo da
História do Brasil” (1855) e José Ignácio de Abreu e Lima, autor do “Compêndio de
História do Brasil” (1844) foram os pioneiros na produção didática. Na primeira obra,
produzida por um descendente de portugueses fica nítida a visão de um estrangeiro
sobre a História do Brasil. Já na segunda obra, do pernambucano Abreu e Lima, há uma
ênfase no enfoque político, colocando o Nordeste como centro da ação política do país.
A partir de 1850, ocorre um significativo aumento no número de publicações,
devido à inclusão da disciplina de História como matéria obrigatória para os exames de
seleção para o ensino superior como também nos currículos do Colégio Pedro II e nos
cursos primários. Consequentemente cresce o interesse das editoras em publicações de
cunho didático, selecionando entre os professores do Pedro II e membros do IHGB
(Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), pessoal gabaritado para tal tarefa.
Dentre os ilustres intelectuais está Joaquim Manuel de Macedo que além de
seus romances, também produziu obras sobre a História do Brasil, fruto de suas aulas no
D. Pedro II, tornando-se “o historiador” mais lido do século XIX.
Vista como “mestra da vida” e tendo um importante papel na formação do
cidadão, a História, inicialmente ligada ao relato da vida de santos e contos bíblicos,
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passa a assumir seu caráter laico, sem deixar seu conteúdo moral. Para isso, alia-se ao
civismo, fato que se intensifica durante a República.
Neste contexto, o movimento nacionalista exerceu forte influência no saber
divulgado nos livros didáticos, criando um ideal de Nação forte e próspera. O Estado,
por sua vez, aparece com sujeito da História e a Monarquia com condutora do país rumo
ao progresso. A visão nos livros didáticos era de que o Brasil: “... era o país do futuro,
predestinado a um futuro brilhante, pela grandiosidade de seu território e pelas imensas
riquezas de seu solo”. (BITTENCOURT, 1993, p. 216)
Observa-se que as origens do livro didático brasileiro sempre estiveram
atreladas aos interesses do Estado. Buscou-se moldar o cidadão de acordo o interesse do
Estado.
EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA
Copiada dos Estados Unidos na primeira metade do século XX, e com
discursos contidos em regimes totalitários da Europa, surge no Brasil a disciplina de
Educação Moral e Cívica com funções cívicas e conteúdos práticos para o preparo do
cidadão, haja vista que este devia cumprir o seu papel na sociedade e não a transformar.
Na década de 30, esta disciplina foi bastante discutida, mas o conceito moral é
considerado como algo que deveria ser transmitido em aulas de religião, bem como os
vultos cívicos nas aulas de História do Brasil. No entanto, no governo de Getúlio
Vargas estes conceitos de moral e civismo são passados também em aulas de educação
física e até em cantos. Havia a preocupação com uma transmissão dos conceitos cívicos
e patrióticos.
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Foram travados muitos debates com relação ao ensino destes conceitos, mas
todas as visões eram partidárias de que o ensino de Moral e Civismo deveria estar
diretamente ligado à religião (especialmente a Igreja Católica), como se detectou em um
livro de EMC de autoria de Elian Alabi Lucci, quando ele cita: “A lei moral tem por
base a religião, pois é esta que dita as normas e os valores que estão além do homem e
que têm como alicerce o próprio Deus”.
Tiro Prates da Fonseca afirmou que “Fora da moral católica, nenhum sistema
se apresenta coerente e completo, formando com ela um corpo de doutrina em que se
resolvem os principais problemas e são recebidos todas as novas informações sobre a
evolução da vida e os progressos da ciência”. (HORTA, 1994, p. 03)
O Conselho de Educação, diante de várias opiniões, optou por a disciplina
tratar de instruções morais e cívicas e pelo estudo da ética geral, ou seja, os fins do
homem, a vontade, os atos dos homens e as leis naturais e civis, enfim, teoricamente
vincular-se-ia pelo conceito do “bem” e para a prática do “bem”, como se observa
novamente em um dos autores de livros didáticos de Educação Moral e Cívica (EMC)
da época, Elian Alabi Lucci, quando ele enfatiza para a criança a prática da submissão:
“Para conseguirmos ser fiéis à nossa consciência e para obtermos a paz interior é
necessário que sigamos certas normas que nos orientam sobre a diferença entre o bem
e o mal”.
Em 1961, pela lei 4024, a disciplina EMC aparece no currículo como optativa,
mas após o golpe militar de 1964 seus aspectos estariam relacionados diretamente com
o ensino de História e Geografia. A partir daí, passou-se a concretizar a manipulação
dos educandos.
A partir de 1971, a ênfase foi dada a formação da cidadania, que se daria à
medida que os alunos compreendessem o fundamental para “um homem de bem”:
família, religião, amor a pátria. Mais uma vez constata-se no livro didático de EMC de
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Elian Alabi Lucci: “O sentimento que une essa família, que liga cada um dos parentes
ao outro, é o amor. Este amor que sentimos pelos nossos familiares, sentimento que
devemos ter pelos nossos semelhantes, é espiritual”.
A lei 5692/1971 direciona e impõe bases para o ensino dos Estudos Sociais e
suas emendas, Educação Moral e Cívica e Organização Social Política Brasileira, no
entanto não obtém um ensino reflexivo, e sim apontam para o ensino técnico-
profissionalizante, o qual atribui menor importância à formação geral do aluno, desejava
a manutenção de classes sociais através de cursos técnicos.
Neste sentido, existe apenas uma abertura para os grandes heróis cívicos, estes
sim fazem a História, como se observa no livro didático analisado de EMC, capítulos
que trazem como tema o Marechal Rondon, Ana Néri e Tiradentes: “Tiradentes, nosso
Mártir e os Holandeses nossos Invasores”.
De 1964 a início dos anos 90, os conteúdos dos programas não possuíam
grandes variações, abordando sempre o conceito de família, pátria e religião.
A importância desta disciplina está ligada à formação dos profissionais em
geral, os licenciados em Estudos Sociais e em áreas afins, bem como aos educandos que
nunca irão esquecer a importância de ser um “homem de bem” e principalmente o que é
ser este homem.
A partir dos anos 90 retoma-se a redefinição do ensino da História e, em 1996,
com a lei 9394/96, consolida-se a ausência desta disciplina nos currículos escolares
enfatizando o ensino de História e Geografia, uma vez que estas devem levar os alunos
a compreender e a posicionar-se de maneira crítica diante da cidadania, através da
participação social e política.
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UMA BREVE ANÁLISE DO LIVRO EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA DE
ELIAN ALABI LUCCI
Percebe-se que a criação da EMC não é algo aleatório, estava totalmente
envolvida no jogo de interesses do governo militar. Seu caráter é parcial, demonstra
claramente a quem servia esta obra, ou seja, à difusão da ideologia do Estado de
Segurança. Nele, o senso de nacionalidade é indispensável na formação de um cidadão
responsável, assemelha-se a uma espécie de “catecismo militar”, inculcando nos alunos
uma reverência aos símbolos nacionais e não um amor espontâneo pela pátria.
A imagem demonstrada é do Brasil um país democrático, sem conflitos, onde
a família é a base da sociedade. Os princípios morais e religiosos estão fortemente
interligados, como se um fosse condição imprescindível para o outro, ou seja, um
cidadão, para ser considerado moralmente correto, deve também obedecer aos preceitos
religiosos (cristãos). A sequência de deveres pessoais, sejam eles morais, religiosos,
culturais, corporais e patrióticos, constituem numa lista que dita comportamentos
adequados a um cidadão “política e socialmente correto”.
Já a família é vista como “célula-mater”. Nas ilustrações que a representam
vemos um modelo idealizado (pai-chefe, mãe-dona de casa). Essa visão revela uma
distorcida e preconceituosa concepção, ao estabelecer papéis pré-definidos, ocultando a
existência, por exemplo, de mulheres que trabalham fora, ou de famílias que não se
adequam a este “modelo perfeito”.
Do ponto de vista cívico, a inculcação da ideologia militar se torna ainda mais
nítida. A exaltação aos símbolos nacionais, na representação da bandeira e do hino
nacional reforça a idéia do patriotismo como algo imposto mecanicamente e não como
um sentimento espontâneo de amor e respeito ao país onde se nasceu.
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A ilustração das diversas bandeiras de nossa história, além das diversas
normas acerca da apresentação da bandeira nacional em desfiles e eventos, como
também as regulamentações pormenorizadas (e desnecessárias) cumprem um papel de
reforçar uma ideologia militar e um cerimonial que representa, mais do que um ato de
civismo, uma demonstração de força e legitimidade do poder instituído.
O ensino de EMC (Educação Moral e Cívica), portanto, é colocado como algo
indispensável. Todas as normas, conceitos morais, deveres e direitos do homem estão
formulados numa suposta sociedade democrática, para o desenvolvimento de um
cidadão completo e moralmente capaz de servir a sua pátria com honra e dignidade,
através do incondicional cumprimento de seus deveres. Leme afirma que “nessa
concepção de sociedade, a atuação das pessoas se restringe ao cumprimento individual
de seus direitos e deveres, abrindo exceção apenas aos heróis que individualmente
fazem a História, o que expressa uma visão ultrapassada de História”. (LEME, 1986, p.
04)
E é sobre as concepções de História presentes nos livros didáticos que Nunes
faz a seguinte constatação:
“Os Estudos Sociais no ensino de 1º grau visavam passar ao aluno
uma concepção de História neutra, objetiva e científica. Nela o
homem torna-se apenas um ser contemplativo do ato de conhecer.
Com isso tenta-se, ainda, afirmar que a teoria determina a prática. E
não se aponta para a questão da organização de vida dos homens
como determinantes de suas relações produtivas e sociais. O coletivo
perde sentido, dando lugar ao individualismo. O conceito de
humanidade é abstrato. Não considera os elementos
sociais”.(NUNES, 1996, p. 102, 103).
Os reflexos dessa concepção nos livros didáticos de Estudos Sociais são
percebidos na obra em destaque, que mantém um conteúdo positivista, de culto aos
heróis. A vasta lista de “Vultos da Pátria” biografados atesta tal concepção. Mesmo
privilegiando uma história política, baseada na narração de sucessivas guerras e
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revoluções e na qual o fator econômico e social é praticamente inexistente, não se deixa
de enfatizar que tais revoltas ora são demonstrações de defesa à pátria ou mesmo de
ataque a grupos subversivos que ameaçam a ordem estabelecida.
Com relação a tais “grupos subversivos”, Lucci coloca o brasileiro diferente
do português e do holandês, bem como haveria necessidade de tornar-se independente
dos mesmos. A inconfidência Mineira e Insurreição Pernambucana são exemplos disso,
“Tiradentes, nosso Mártir e os Holandeses nossos Invasores”.
A instrução acerca do civismo e os deveres a ela relacionados preservam o
ideal de obediência às leis e de estímulo a comportamentos condizentes com o padrão
que o Estado de Segurança impõe. O bom cidadão é aquele que procura promover o seu
bem-estar e de sua comunidade, obedecendo à soberania do Estado.
No subtítulo, origem do homem brasileiro, encontramos detalhes que devam
ser melhores observados. Principalmente quando se referem ao “elemento negro”, cuja
análise e ilustrações não faz qualquer relação com a atualidade, apresentando-o como se
o único papel que lhe coubesse na História fosse o de escravo.
Em relação à democracia, o livro aborda a questão como sendo o Brasil um
país democrático e liberal e que este não é um país de regime totalitário, um exemplo de
totalitarismo é colocado apenas uma ilustração do muro de Berlim, camuflando a
realidade brasileira que vivia em um momento de repressão e tortura, a qual também
não é tratada na obra.
O tema “As forças armadas e o Serviço militar” explicita a ideologia do Estado
de Segurança, apontando que é papel de cada cidadão contribuir para o êxito da
segurança da nação, colocando representações que nos leva a presumir inteira
dependência e respeito por estas instituições repressivas do Estado.
Vimos que a Educação Moral e Cívica foi peça fundamental do Aparelho
Ideológico Escolar para difundir e reforçar a ideologia do governo militar. Partindo da
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teoria de Louis Althusser, afirma-se que a Escola é um Aparelho Ideológico de Estado,
o qual se apresenta como um instrumento para garantir as condições de exploração das
classes dominadas pelas classes dominantes. E é através da ideologia que esses
aparelhos funcionam, de maneira predominante.
Segundo Marilena Chauí: “A ideologia é o processo pelo qual as ideias da
classe dominante se tornam ideias de todas as classes sociais, se tornam ideias
dominantes”. A autora ainda aduz: “... de modo que a classe que domina no plano
material (econômico, social e político) também domina no plano espiritual (das ideias)”.
(CHAUÍ, 1980, p. 92-93)
Para Althusser, a Escola assume o papel de Aparelho Ideológico de Estado
(AIE), papel antes reservado à Igreja. É no aparelho escolar que começam a ser
moldados os valores e implantados os preceitos ideológicos da classe dominante:
“Esta [a escola] recebe as crianças de todas as classes sociais desde o
Maternal e, a partir daí, com os novos e igualmente com os antigos
métodos, ela lhes inculca, durante anos e anos, no período em que a
criança é mais vulnerável, imprensada entre o Aparelho de Estado
Família e o Aparelho de Estado Escola, determinados savoir-faire,
revestidos pela ideologia dominante (língua materna, cálculo, história
natural, ciências, literatura), ou muito simplesmente a ideologia
dominante em estado puro (moral e cívica, filosofia)...”
(ALTHUSSER, 1999, p. 168)
Durante o contexto específico da ditadura militar, a política educacional do
regime imprimiu na escola o papel de um AIE. Através dos livros e outros materiais
didáticos, a Escola procurou ocultar a realidade e as contradições de nosso processo
histórico, inculcando a ideologia do governo militar.
Não podemos negar que, o regime militar, em meio a um processo de que a
História fosse tratada de forma superficial, era contrário a questionamentos e a análises
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aprofundadas. A obra que analisamos é um bom exemplo de como se produziu uma
História partidária, segundo os padrões da ditadura.
CONCLUSÃO
Desde a criação do Estado Monárquico no Brasil, a Educação no país foi
privilégio de uma minoria pertencente às classes financeiramente mais importantes.
Embora os ideais liberais difundidos fossem de “Liberdade, Igualdade e
Fraternidade”, vimos que na prática eles não foram alcançados. Colégios como o Pedro
II e a Escola Militar, considerados como modelos, foram criados para atenderem a um
seleto grupo de alunos, provenientes das mais importantes famílias aristocráticas do
país. O ensino no Brasil, portanto, desde sua origem, foi criado para formar as futuras
elites do país.
Se o ensino no Brasil desde o princípio teve um caráter elitista, não é de se
esperar que os livros didáticos produzidos para esse sistema educacional tivessem uma
visão alheia a seu público alvo, ou seja, os manuais produzidos serviriam justamente
como instrumento de legitimação do Estado, criando-lhes o ideal de Nação e
inculcando-lhes a ideologia da classe dominante.
Podemos ver que ao longo da História essa tendência permaneceu
praticamente inalterada. A escolarização (e, consequentemente o acesso aos livros
didáticos) era obtida por uma pequena parcela da população, enquanto a maioria
permanecia no analfabetismo, reduzindo aos mesmos as chances de uma ascensão
social.
Embora fossem escassos os investimentos financeiros a favor da expansão do
processo de escolarização, não foram poucos os projetos elaborados. Desde o início da
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Monarquia, diversos intelectuais fizeram parte de intensos debates acerca da Educação
no Brasil. Com relação à História, especificamente, diversos educadores concordavam
com a importância da disciplina como “necessidade social”, elemento importante na
formação do cidadão. Através dos conceitos de Nação, Estado, Educação, obediência às
leis e às hierarquias, a História poderia auxiliar o Estado a legitimar-se. Juntamente com
a Instrução Cívica, seriam moldados os sentimentos patrióticos e as noções de direitos e
deveres de um cidadão exemplar.
A formulação da disciplina de Estudos Sociais unida à História a partir de
1930, a regulamentação de leis como a nº 4024/61 e a 5692/71 trouxe efetivamente a
disciplina para os currículos escolares brasileiros.
Implementada, contudo, num contexto educacional que privilegiou o ensino
técnico profissional, os Estudos Sociais e o ensino de Humanidades sofreram fortes
alterações na sua carga horária, como também passaram a ser alvo de críticas de vários
educadores, pelo seu caráter superficial, ao não abordar as grandes questões sociais do
país, deixando de lado a reflexão crítica, tornando-se uma disciplina que mais se
assemelha a um catálogo de vultos nacionais e à narração de guerras e conflitos.
Em muitos aspectos é assim que se apresenta a obra que analisamos. Voltada
para um contexto de repressão como foi a ditadura militar, não é de se espantar a sua
vinculação ideológica. Tratando a História como uma sucessão de fatos políticos,
guerras, revoltas e conflitos, praticamente não há espaço para a análise dos fatores
sociais e econômicos. A ideia que se passa ao ler obras desse tipo é de um país estático,
que não sofreu alterações em suas economia e sociedade, convivendo apenas com a
alternância de uma guerra e outra, nas quais os grandes heróis – na maioria militares –
são os agentes da História.
Porém, quando se trata da História mais recente de nosso país, o partidarismo
é evidente. O golpe de 1964, que desencadeou um processo de cerceamento das
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liberdades individuais, repressão, torturas e outros abusos, é tratado no livro de Elian
Alabi Lucci como uma “Revolução”, algo necessário para impedir o avanço do
comunismo no país, inimigo mortal dos EUA, e, portanto, do Brasil.
Percebemos então, na análise do livro didático que a propaganda do governo
chega a ser tão explícita, que nos deparamos com uma questão para a qual, confessa-se,
não se tem resposta: Será que os autores da referida obra estão realmente de acordo com
o que escrevem, ou o fazem por falta de alternativas, diante da forte censura exercida
pelos militares?
Uma obra que inicialmente se propõe a contribuir para o desenvolvimento do
“senso de nacionalidade” e de uma reflexão crítica sobre as questões sociais do país e,
na verdade não cumpre nenhum dos seus propósitos. Praticamente não há análise e sim
a uma relação dos fatos evidentes, como se fossem “historinhas” para serem contadas
aos filhos e netos. Quase “500 anos” de História do Brasil são tratados de forma
totalmente descomprometida com uma formação crítico-reflexivo do aluno.
Espera-se que tal estudo possa trazer consideráveis reflexões acerca de
determinadas posturas partidárias atuais de docentes de diversas disciplinas, tendo em
vista que atualmente permeia maciçamente no meio escolar a busca pela Educação
autônoma, onde o professor deve exercer o mero papel de mediador e não manipulador
na sociedade.
REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964 – 1984). 2. Ed.
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