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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
MESTRADO
JERÔNIMO DE CAMARGO MILONE
A IMPOSSIBILIDADE DE MORRER E
A DESCONSTRUÇÃO DA MORTE:
BLANCHOT E DERRIDA
Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza
Orientador
Prof. Dr. Norman Roland Madarasz
Co-orientador
Porto Alegre, 2015
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A IMPOSSIBILIDADE DE MORRER E
A DESCONSTRUÇÃO DA MORTE:
BLANCHOT E DERRIDA
Dissertação apresentada como requisito
para obtenção de grau de Mestre pelo
programa de pós-graduação em filosofia
da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul
Jerônimo de Camargo Milone
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza
Co-orientador: Prof. Dr. Norman Roland Maradasz
Porto Alegre, 2015
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A IMPOSSIBILIDADE DE MORRER E
A DESCONSTRUÇÃO DA MORTE:
BLANCHOT E DERRIDA
Dissertação apresentada como requisito
para obtenção de grau de Mestre pelo
programa de pós-graduação em filosofia
da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul
Aprovada em: _______ de ___________________ de _______.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza (PUCRS)
____________________________________
Prof. Dr. Norman Roland Madarasz (PUCRS)
____________________________________
Prof. Dr. Piero Coletvão Eyben (UNB)
Porto Alegre, 2015.
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Aos professores
Ricardo Timm de Souza
E Norman Roland Madarasz
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Agradecimentos
Ia por vias de agradecer sem as vias em que iria onde iria pôr o que a por ia.
Como agradecer o dom se ainda recebemo-lo, ao menos, na recordação, no destino, isto é, se
ele não deixou de dar-se, se inscreveu-se? A insistência do dom.
Como dilacerar um interstício, aí onde as mãos mudas num frêmito implícito prosseguem
intuindo-se, para nele, então, agradecer? Tudo é translato!
Como agradecer se o que nos dão os outros é irredutível à concanteção própria que pretende
supor aí onde termina a dom para erigir discursos?
Através de que gratidão lata agradecer com fidelidade, com justiça, lá onde toda satisfação – o
dar por dado e consumado - é indigna e o agradecer é o reflexo da culpa que ressente a ingratidão
por já não reconhecer, por o que lhe havia sido dado, agora, ser-lhe próprio?
Como exceder quei muti atti del viso, quell’inarcare affettuoso del ciglio, che a Napoli valgono
tanto più delle parole? Como mover a pedra do meu silêncio à janela da realidade?
Como, e como finalmente, findar o que em mim está sendo grato para devir ter-sido-grato na
monumentalidade de um poder grandiloquentemente agradecer?
Porque vos juro, o prazer de agradecer, é meu, e se o digo, é para tê-lo – para ter além da
gratidão o agradecer.
Mas então o que testemunhará que vi cada um dos vossos rostos e num arrebatamento eufórico
bati na mesa de nada a alegria de tudo por serem vocês a circunstância disso que sou?
Porque aí onde se agradece com a facilidade, agradece-se não o dom, mas o ter sido implicado
em um dever. Deve-se agradecer.
Mas não, agradeço!
Com vírgulas, sempre com vírgulas.
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Esa ráfaga, el tango, esa diablura
Los atareados años desafía;
Hecho de polvo y tiempo el hombre dura
Menos que la liviana melodía
Que sólo es tiempo. El tango crea un turbio
Passado irreal que de algún modo es cierto.
El recuerdo impossible de haber muerto,
Peleando, en una esquina del suburbio.
(J.L.Borges – El Tango)
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Resumo
Esta dissertação trata de elencar subsídios para uma interpretação a respeito da morte na
obras de Maurice Blanchot e Jacques Derrida. Os pontos de pertinência em cuja tese se desdobra
são os seguintes.
Primeiramente, a pertinência da morte dentro do pensamento blanchotiano, destacando
suas relações ao pensamento de Hegel, Heidegger e Bataille, abordando, principalmente, “La
littérature et le droit à la mort”. Neste sentido, a dissertação trata de apresentar argumentos que
demonstram uma separação de Blanchot às interpretações sobre a morte nos autores citados,
inserindo sua pertinência maior na discussão com Derrida e, de certo modo, com Levinas –
perspectiva tomada, sobretudo, de L’entretien infini e L’écriture du désastre.
Em seguida apresenta-se, detidamente em Derrida, a crucialidade da morte para o
desenvolvimento em sentido lato do pensamento derridiano e da desconstrução. Assim, trata-
se de destacar os argumentos derridianos, em setores parcialmente diversos da sua obra, para
evidenciar a estreita ligação da desconstrução com uma crítica da morte e da apreensão
filosófica do pensamento da morte como atributo arquétipo de uma sensificação que legitima o
discurso conceitual. Neste ponto, a preocupação do trabalho é fazer surgir a importância, quase
que axiomática, de uma crítica do uso da morte para o movimento da desconstrução,
apresentando, portanto, a partir de Le Séminaire La peine de Mort, a desconstrução da morte
como um aspecto de extrema relevância no amplo pensamento de Derrida.
Finalmente, a dissertação trata de fazer convergir e evidenciar a intimidade da relação
entre os pensamentos de Derrida e Blanchot, na sua similar orientação aporética, que insiste na
irredutibilidade da morte ao trabalho do pensamento, como elemento essencial – além e aquém
da essência - da alteridade. Assim, a impossibilidade de morrer, como denúncia do movimento
dialético, seria análoga à desconstrução da morte enquanto crítica da legitimação da verdade a
partir de uma determinada apreensão da morte.
Diagonalmente a tais conceitos, a dissertação insiste sob os caracteres da poesia e da
alteridade, expressando a implicabilidade desta questão aos pensamentos ético e estético como
formas de um testemunho incomensurável às tentativas de circunscrição da vida.
Palavras-chave: Blanchot; Derrida; impossibilidade de morrer; desconstrução da morte;
ética.
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Résumé
Le texte suivant cherche d’offrir des moyens théoriques pour une interprétation à propos
de la mort chez Maurice Blanchot et Jacques Derrida. Les points d’importance dans lesquels le
travail s’approfondit sont les suivants.
D’abord, on présente la pertinence de la mort dans la pensée blanchotienne, soulignant
sa relation avec les pensées de Hegel, Heidegger et Bataille, entreprenant une lecture
principalement de « La littérature et le droit à la mort ». Pourtant, il s’agit ici de présenter, au
contraire, des arguments qui dévoilent une séparation de Blanchot aux interprétations de la mort
dans la pensée des auteurs susmentionnés, mettant en évidence sa plus grande importance dans
la discussion avec Derrida et, dans un certain sens, avec Levinas – cette perspective apparaît,
surtout, dans L’entretien infini et L’écriture du désastre.
Après on présente, spécifiquement chez Derrida, la portée de la mort pour le
développement de la pensée derridienne en général et de la déconstruction. Ainsi, il s’agit de
souligner les arguments derridiens, dans des partes relativement diverses de son œuvre, pour
mettre en évidence la centralité, dans la déconstruction, d’une critique de la mort et de
l’appréhension philosophique de la mort comme moyen archétype d’une sensification qui
légitime le discours conceptuel. À cet instant, on s’affaire à démontrer l’importance, presque
axiomatique, d’une critique de l’utilisation de la mort pour le mouvement de la déconstruction,
présentant donc, à partir de Le Séminaire La peine de Mort, la déconstruction de la mort comme
un’aspect particulièrement important dans l’ampleur de la pensée de Derrida
Finalement, on s’affaire à présenter la convergence et l’intimité entre les pensées de
Derrida et Blanchot, tel que ses analogues perspectives aporétiques, qui insistent sur
l’irréductibilité de la mort au travail de la pensée, comme un élément essentiel – au-delà et en-
deçà de l’essence – de l’altérité. Ainsi, l’impossibilité de mourir comme dénonciation du
mouvement dialectique, elle se rassemble à la déconstruction de la mort en tant qu’une critique
de la légitimation de la vérité à partir d’une déterminé appréhension de la mort.
Outre ces concepts, on insiste sur les caractères de la poésie et de l’altérité, exprimant
l’implication de cette question aux pensées de l’éthique et de l’esthétique en tant que formes
d’un témoignage incommensurable aux tentatives de circonscription de la vie.
Mots-clés : Blanchot ; Derrida ; impossibilité de mourir ; déconstruction de la mort ;
éthique.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10
1 DERRIDA AVANT LA LETTRE? ...................................................................................... 16
1.1 UM NEGATIVO: HEGEL, BATAILLE E DERRIDA ........................................... 16
1.2 A IMPOSSIBILIDADE DE MORRER ................................................................... 23
1.3 BLANCHOT E HEIDEGGER ................................................................................. 32
1.4 A LITERATURA COMO IMPOSSIBILIDADE DE MORRER ............................ 40
1.5 DA IMPOSSIBILIDADE DE MORRER À JUSTIÇA ............................................ 48
2 O FONOCENTRISMO ......................................................................................................... 59
2.1 PRELÚDIO À MORTALIDADE DA VOZ ............................................................ 59
2.2 A VOZ E A ESCRITURA ....................................................................................... 68
3 LA DÉCONSTRUCTION DE LA MORT ........................................................................... 74
3.1 A MORTE E A METAFÍSICA COMO MEDO ...................................................... 74
3.2 A MORTE, O TEOLÓGICO-POLÍTICO E A PENA ............................................. 78
4 A IMPOSSIBILIDADE DE MORRER E A DESCONSTRUÇÃO DA MORTE ................ 93
CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 104
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 114
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INTRODUÇÃO
O debate atrelado à mortalidade como a discussão mais indiscutível que pode-se ter é
profícuo. As afluências de tal temática são diversas e o propósito de haver aí uma topografia,
ou mesmo a descoberta de um mar onde haja qualquer encontro, resta, como todas as incógnitas
quando o são, não apenas incognoscível, mas insubsumível à própria incognoscibilidade sob a
qual nos bastaria alocar o espectro que não se reduz ao positivo do saber para finar o assunto.
Entretanto, não discute-se o que se desconhece, discute-se, sim, o que nem desconhecer
podemos – para além do saber. E é talvez a crucialidade desta aporia, o não poder chamar em
causa tal objeto acoplado à sua essencial causalidade, que nos acompanhará nas paginas
seguintes ao redor do que há de incircunscrevível no pensamento de Derrida e Blanchot.
Tal debate reflete-se contemporaneamente de modo seminal nas interpretações a
respeito do pensamento derridiano. Testemunho disso são os livros: de Marc Crépon, Le
consentement meurtrier1, 2012, bem como o de Jacob Rogozinski, Les cryptes de Derrida2,
2005 e 2014, livros que apenas tardiamente tivemos acesso, mas que abordaremos brevemente,
referenciando, para o segundo, sua recente palestra, em outubro de 2014, no colóquio “Derrida
à venir: Questions ouvertes”3, cujo tema é exatamente a pergunta pela morte em Derrida e sua
influência blanchotiana.
Para o presente trabalho, a exposição dos argumentos, que reaproxima Blanchot e
Derrida, organiza-se em três, ou quatro, partes, sendo a primeira a explicitação da adverisdade
blanchotiana e batailleana – menos evidente neste último – a Hegel, tomando como mote os
ensaios seminais “De l’économie restreinte à l’économie générale” e “La littérature et le droit
à la mort”. A primera parte, portanto, foca-se nas obras críticas de Blanchot, demonstrando,
através de todas as suas ambiguidades, de que modo podemos pensar um pensamento da morte
em Blanchot, e, por outro lado, esboça-se uma cisão dentro do pensamento do autor a partir de
L’entretien infini e L’écriture du désastre, cisão que será discutida com Derrida na última parte.
No segundo momento a dissertação trata de compilar subsídios à interpretação da morte na obra
1 CRÉPON, Marc. Le consentement meurtrier, Paris : CERF, 2012. 2 ROGOZINSKI, Jacob. Les cryptes de Derrida, France: Léo Scheer, 2014. Edição aumentada da original de 2005. 3 O colóquio “Derrida à venir: Questions ouvertes” foi organizado pela ENS e pelo IMEC, por François Bordes,
Marc Crépon, Albert Dichy, Elise Lamy-Rested, Frédéric Worms, e teve lugar na ENS nos dias 1,2,3 e 4 de
Outubro, 2014.
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de Derrida, evidenciando a crucialidade deste pensamento da mortalidade na ampla obra do
autor a partir de seus primeiros trabalhos. Principalmente La voix et le phénomène, mas também
De la grammatologie e “La pharmacie de Platon”. Organiza-se nesta segunda parte uma
argumentação que visa a esclarecer de que modo a morte não é apenas um tema subsidiário no
pensamento derridiano mas é fundamental e atravessa-o insistentemente, pelo que, como
exposto, faz desta crítica da morte por parte de Derrida um argumento possibilitador da crítica
à metafísica, à voz, à presentidade e, portanto, da desconstrução. Na terceira parte, tendo sido
abordados paralelamente – não exclusivamente – os pensamentos de Blanchot e Derrida,
enseja-se com a introdução de uma discussão sobre Séminaire La peine de mort, fazer convergir
ambos os autores na sua afinidade, para, num quarto momento, em que são retomadas as
principais asserções e posições expostas até aí, demonstrar o rompimento blanchotiano à
dialética. Também são apresentadas neste capítulo as críticas de Derrida feitas no Séminaire La
peine de Mort a Blanchot. A conclusão, de modo análogo a este quarto capítulo, foca-se sobre
Derrida, apresentando sua particular relação à dialética a partir de Glas¸ irrupcionando o dom.
Permeia toda a discussão apresentada a centralidade de Heidegger para os autores, de
modo que são apresentadas, tanto por parte de Blanchot, como por parte de Derrida, as críticas
ao ser-para-a-morte heideggeriano, o que faz evidenciar a relação e a importância de Levinas
para ambos e para o presente trabalho. Em relação a Bataille, Hegel será tomado também como
um importante argumento a ser adversado, de modo que é possível ler uma confrontação entre,
por um lado, Heidegger e Hegel, e por outro, Blanchot e Derrida. A quantidade bibliográfica
acerca de tal temática, evidentemente, não é levada à exaustão, nem minimamente, de modo
que pode-se notar a ausência fundamental de Freud, com quem Derrida alimentará importantes
discussões acerca do luto. O deuil, aliás, é um tema essencial no pensamento da morte em
Derrida, na medida em que aparenta ser o passo avante, assim como a survie, feito por Derrida
nesta discussão. O presente trabalho, no entanto, trata de apresentar detidamente este ponto de
partida, a tensão partilhada onde situam-se os pensamentos de Hegel, Heidegger, Derrida,
Blanchot e Bataille, sem avançar exaustivamente, embora não deixem de ser mencionadas, nas
asserções mais posteriores de Derrida, as quais, justamente, apresentarão o deuil e a survie,
como formas irredutíveis às perspectivas em relação a morte encontradas em Hegel, Heidegger,
Freud e até mesmo Levinas.
Deste modo, o presente trabalho tem um ensejo preambular para tal discussão,
procurando ressaltar as principais posições defendidas, sem exaurir e compilar a inifidade de
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seus desdobramentos. Assim, o deuil e a survie como os principais desdobramentos do
pensamento da morte em Derrida, são reservados para em outra circunstância serem abordados
mais detidamente.
Não será menos elementar na dissertação a questão que pergunta pela literatura.
Notadamente a função da literatura para Derrida relaciona-se com a possibilidade de deslocar
a conceitualidade filosófica para a irretratabilidade do objeto, o que, entre outras coisas,
demonstra uma posição defendida aqui, que é a impossibilidade de pensar a morte, sendo,
portanto, inescapável a contaminação entre literatura e filosofia4. Desde seus primeiros
trabalhos Derrida não deixará de demonstrar como o recalcamento da morte e da escritura são
afins, assim como Blanchot não deixará de pensar a condicionalidade do que extravasa o
pensamento para auferir o testemunho inatestável de, por exemplo, L’instant de ma mort. Deste
modo são referenciados Kafka, Cioran e implicitamente Fernando Pessoa. A qualidade
repreensível do poeta pela filosofia, desde sempre, será a irredutibilidade deste à preleção da
ideia em relação à corporeidade que é também a escritura. Assim, Blanchot é trazido na
ambiguidade da sua posição a partir da influência notável sobre o pensamento de Derrida, mas
destaque-se também sua não menor influência em Foucault. O pensamento blanchotiano resta,
4 Gostaria de citar aqui, embora longo, o argumento de Marc Crépon a respeito desta contaminação em seu livro
Le consentement meurtrier, em razão de sua abordagem dos testemunhos literários a respeito de Hiroshima e
Nagasaki: Em nossa tradução : “E é também para paliar esta falta que um recurso à literatura se impôs ao longo
de todo este livro. Como constatou-se nos capítulos que precedem, não foi, em efeito, a filosofia que veio comentar
o texto literário, foi, ao contrário, a literatura que lhe trouxe seu suporte, aí onde ela o necessitava, aí onde a análise
conceitual solicitava, se não exigia, um outro modo de representação. E se esta assistência impôs-se, neste livro
precisamente, se ela surgiu (e resta) necessária, é porque as múltiplas formas do consentimento assassino, que lhe
são objeto, deixam a filosofia desarmada. O privilégio que deve-se reconhecer à literatura é que ela trabalha nos
limites da representação. Ela desloca-lhe as fronteiras; ela dá a ver, ela permite imaginar aquilo que excede nossas
capacidades de representar o que está em questão, ela inquieta e perturba, como o cinema, as barreiras às quais
isto que excede se confronta cabalmente, de onde quer que provenham estes obstáculos (a educação, os
preconceitos, a ideologia). Ver diferentemente, ver mais longe, rememorar, tanto quanto antecipar, tais são os
recursos que ela oferece àquele que capta esta vergonha de que nos falam tão bem Kenzaburô Ôé, como o autor
[Gunhter Anders] de L’Homme sur le pont”, grifamos. No original: “Et c’est aussi pour pallier ce manque qu’un
recours à la littérature s’est imposé tout au long de ce livre. Comme on l’a constaté dans les chapitres qui précèdent,
ce n’est pas, en effet, la philosophie qui est venue commenter le texte littéraire, c’est, au contraire, la littérature
qui lui a apporté son soutien, là où celle-ci le nécessitait, là où l’analyse conceptuelle appelait, sinon exigeait un
autre mode de représentation. Et si cette rescousse s’et imposée, dans ce livre précisément, si elle s’est averée (et
si elle reste) nécessaire, c’est que les multiples formes du consentement meurtrier qui en font l’objet laissent la
philosophie démunie. Le privilège qu’il faut reconnaître à la littérature est qu’elle travaille aux limites de la
représentation. Elle en déplace les frontières ; elle fait voir, elle laisse imaginer ce qui excède de fait nos capacités
à nous représenter ce qui est en question, elle inquiète et perturbe, comme le cinema, les barrières auxquelles
celles-ci se heurtent immanquablement, de quelque source que proviennent ces obstacles (l’éducation, les préjugés,
l’ideologie). Voir autrement, voir plus loin, se remémorer aussi bien qu’anticiper, telles sont les ressources qu’elle
offre à celui que saisit cette honte, dont parlent aussi bien Kenzaburô Ôé que l’auteur [Gunhter Anders] de
L’Homme sur le pont” in : CRÉPON, Marc. Le consentement meurtrier, 2012, p. 232, grifo nosso.
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portanto, essencial para compreender-se, ao lado de Levinas, a influência de uma crítica do
heideggerianismo que abrange diversos níveis filosóficos, desde a política até a própria poesia.
Assim, como citará Rogozinski, Derrida é particularmente alguém que não reduz-se nem
a Hegel nem a Heidegger acerca do pensamento da morte, o que torna-o num sentido muito
específico uma resistência contra uma determinada forma de filosofia onde a vida e a morte
cravam determinidades e terminâncias no lastro do pensamento. “Nem Hegel, nem Heidegger,
como escapar à dupla aporia de que são índices estes dois nomes? Como esquivar à aporia da
finitude sem recair na aporia da síntese?”5. Tal característica do pensamento derridiano não é
menos desenvolvida por Blanchot pois, segundo Rogozinski, é em Blanchot que Derrida já
encontra esta resistência:
Blanchot no lugar de Hegel: o morrer sem morte de uma sobrevida sem vida em vez
da síntese da morte na auto-afirmação da Vida absoluta. Mas também Blanchot no
lugar de Heidegger, visto que a prova de morte de que ele se fez testemunha dissolve
a singularidade e a identidade de Si na experiência de uma morte anônima6
É neste sentido que a dissertação apresenta detidamente a construção desta ambiguidade
aporética no pensamento derridiano e blanchotiano, buscando evidenciar os pontos de interesse
e de convergência, para que se possa entender a influência profunda de Blanchot em tantos
aspectos da desconstrução. Acerca de Blanchot, justamente, demonstramos como
especificamente sua influência batailleana ligava-o à visão hegeliana da morte e como a
refutação desta mesma vertente consuma-se de maneira posterior na sua obra. Em certo sentido,
Hegel terá sido a grande influência de Blanchot com a qual este terá insistentemente se debatido
ao longo de quase toda sua obra. O que não deixa de ser análogo à forma com que Derrida
discutirá com Heidegger. Fato é que ambos exercem uma crítica desconstrutiva e a pergunta
implícita de Rogozinski torna-se extremamente pertinente, se nem Hegel nem Heidegger, o
quê? Como explícito em “Violence et metaphysque”, a importância de Levinas é notória, porém
fica evidente a adversidade derridiana para com alguns termos levinasianos7. Neste sentido é
5 Tradução nossa. No original: “Ni Hegel, ni Heidegger : comment échapper à la double aporie dont ces deux noms
sont les indices? Comment déjouer l'aporie de la finitude sans verser dans l'aporie de la relève?” in :
ROGOZINSKI, Jacob. “Feu la mort : Deuil, Survie, Résurrection”. O link para consulta está mencionado na
bibliografia. 6 Tradução nossa. No original: “Blanchot au lieu de Hegel : le mourir sans mort d'une survie sans vie plutôt que la
relève de la mort dans l'auto-affirmation de la Vie absolue. Mais aussi Blanchot au lieu de Heidegger, car l'épreuve
de la mort dont il s'est fait le témoin dissout la singularité et l'identité du Soi dans l'expérience d'une mort anonyme”
in : ROGOZINSKI, Jacob.“Feu la mort : Deuil, Survie, Résurrection ” 7 Acerca da importância de Levinas para Derrida, convém ter em mente - no livro Derrida, la tradition de la
philosophie, que recolhe as palestras do colóquio de mesmo nome, na ENS em 2005 – o artigo de Stéphane Mosès,
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interessante notar a asserção de Derrida sobre a inconciliabilidade entre Levinas e Blanchot,
visto que tratamos da conciliação derridiano-blanchotiana:
Seja lá o que Levinas e Blanchot tenham dito ou feito parecer sobre seu acordo, sua
aliança, um abismo os separa, e que poderia, se quiséssemos nos por a este exercício,
dar lugar a irreconciliáveis diferenças, às vezes a oposições frontais ou explosivas:
sobre o ‘neutro’, por exemplo, sobre um certo ‘anonimato’, e mesmo na forma que
tomam suas respectivas distâncias do pensamento heideggeriano8
Com Freud, por outro lado, a discordância será principalmente acerca da possibilidade
do luto. E Derrida inúmeras vezes repreenderá a consumação do luto tal como estipulada por
Freud9. Assim, Derrida, sobretudo, representa uma irredutibilidade do pensamento da
desconstrução, da desconstrução da morte, seja a Levinas, Freud, Heidegger ou Hegel. A
pertinência de Blanchot, portanto, é tida, inclusive por via negativa e esta afinidade faz o objeto
principal desta dissertação. Urge ver na impossibilidade de morrer uma temática de importância
extrema para a discussão ética, no que tange sua centralidade na crítica de Blanchot contra a
especulação filosófica de viés reducionista, que estabelece na morte um diferendo propulsor da
sua fundamentalidade. Assim, explicitamente em Le Séminaire La peine de mort, encontramos
uma associação de Derrida a um viés muito similar ao blanchotiano ao perceber na relação com
a morte a forma de introjeção e racionalização de sua acontecimentalidade tornando a
radicalidade da morte algo nulo, em que, na consciência com sua bipolaridade ao inconsciente
é impossível morrer – a morte, isto é, o sumamente incogitável. É por isso que, parafraseando
Blanchot, é precisamente por ser impossível pensar a morte, por ser impossível morrer, que
tornar a morte possível10 torna-se uma tarefa, pensar a morte torna-se necessário. A impossível
necessária, para retomar o sintagma notório. Se podemos avançar sintenticamente aquilo em
que Blanchot e Derrida convergem a respeito da morte, trata-se justamente da relação
onde aponta para a comunhão entre ambos acerca da crítica da presença, e do qual retemos a seguinte citação
indireta: “Chaque fois que je lis ou relis Levinas, je suis ébloui de gratitude e d’admiration” in: DERRIDA,
Jacques. Adieu à Emmanuel Levinas, p. 14. in: DERRIDA, Jacques apud MOSÈS, Stéphane. “Au coeur d’un
chiasme”, p. 111. in: Derrida, la tradition de la philosophie. Paris: Galilée, 2008. 8 Tradução nossa. No original : “Quoi que Levinas et Blanchot aient dit ou laissé paraître de leur accord, de leur alliance, un abîme les sépare qui pourrait, si on voulait se livrer à cet exercice, donner lieu à d’irréconciliables
différends, parfois à des oppositions frontales ou explosives : sur le « neutre », par exemple, sur un certain
« anonymat », et même dans la forme que prend leur distance respective à la pensée heideggerienne” in :
DERRIDA, Jacques apud LISSE, Michel. Viens – “Me voici. Derrida entre Blanchot et Levinas” in : HOPPENOT,
Éric et al. Emmanuel Levinas-Maurice Blanchot, Penser la différence. Paris : Presses universitaires de Paris Ouest,
2008. 9 Entre outros exemplos, cito o pequeno trecho do livro DERRIDA, Jacques. Béliers, 2003, p. 73 em diante.
10 A expressão tornar a morte possível, certamente está permeada de ambiguidades, mesmo em alguns contextos
da obra de Blanchot, mas a utilizamos aqui com o subsídio dos argumentos e dos esclarecimentos contidos na
dissertação.
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impossível que a morte dispõe e de como as tentativas de pensar a morte, todas elas, não logram
pensá-la senão no momento em que a morte já se tornou nula, em que a morte de que se fala foi
reduzida ao pretexto de um conceito, em que morrer finalmente perdeu a acontecimentalidade
da experiência para tornar-se um momento da consciência na sua especularidade.
Insistir, portanto, na contramão de tal resignação é imprescindível. São muitas as
singulares e únicas caracterizações da desconstrução: propomos aqui a insistência. Por
impossível que pensar a morte apresente-se, igualmente impossível é ignorá-la. É preciso, no
entanto, melhor pensá-la ou melhor ignorá-la? Blanchot e Derrida parecem reclamar, no
entanto, a irresolubilidade da aporia. Pensar é já ignorá-la e ignorá-la, por surpreendente que
seja, no silêncio da consciência já é uma forma de pensá-la. Seja como for, a sublimação da
temporalidade é o ensejo ao qual insiste-se a objeção. A morte reivindica os dois tempos em
que se dá a pensar e a ignorar. Impossível qualquer estratificação do tempo no propósito de
tornar a morte nula ou total. A morte é irredutível a qualquer ontologia, a morte não é, a morte
apenas, sem ser, acontece. Da indecidibilidade, portanto, reclama-se a paciência, da paciência
a passividade e da passividade a paixão, porque a paixão é a única forma da insistência.
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1 DERRIDA AVANT LA LETTRE?
1.1 UM NEGATIVO: HEGEL, BATAILLE E DERRIDA
On jeu avec le feu
(Jacques Derrida – Feu la cendre)
O presente trabalho está inscrito naquilo que, seguindo um tencionamento hegeliano-
nietzscheano, passando por Bataille e Blanchot, ambiciona irromper a circularidade dialética,
encontrando na esfera econômica do pensamento aquilo que Derrida ensaia descrever como o
dom em Donner la mort - ou em outras circunstâncias, a acontencimentalidade. Haveria, deste
modo, como reação à promulgação da totalidade hegeliana, um questionamento incessante a
respeito do negativo enquanto tal. Daquilo que, no mecanismo dialético, é estabelecido como a
sua propulsão elementar, o poder do negativo, o poder da morte, a reimanentização da morte,
tornando-a subserviente ao pensamento, tal como um objeto, um pretexto soberano que é a
própria soberania. Queremos insistir, com Blanchot, naquilo que, contrariamente à
conceitualidade, havendo em consideração a alteridade, faz com que percebamos o quão é
imprescindível “não ignorar a morte sem frases, a morte sem nome, fora do conceito, a
impossibilidade mesma”11. Neste sentido, reconhecemos que o pensamento de Derrida e a
desconstrução tencionam de maneira surpreendente as possibilidades de uma tal problemática,
minando os subterfúgios possíveis aos quais os saltos, na história metafísica, são recorrentes –
leia-se fundamentais, ontologicamente fundamentais.
Importante texto a este respeito é “De l’économie restreinte à l’économie générale”,
na recolha L’écriture et la différence, dirigido especificamente, no interno do pensamento
dialético, à questão da morte e da soberania em Bataille. Assim, para Derrida, há uma
descendência direta entre a souveraineté batailleana e o que em Hegel é a Herrschaft [maîtrise].
Já em Hegel, a Herrschaft consiste em “mostrar que não somos apegados [attaché] à vida”12.
Tal questão, como explica Derrida decorre de que:
Uma tal operação [...] volta, portanto, a pôr em jogo [...] a totalidade de sua própria
vida. O servo é aquele que não põe sua vida em jogo, que quer conservá-la, ser
11 Tradução nossa. No original: “ne pas passer outre à la mort sans phrases, la mort sans nom, hors concept,
l’impossibilité même.” in: BLANCHOT, Maurice. L’écriture du désastre, 1980, p. 112. 12 HEGEL, Friedrich apud DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 371. No
original: “montrer qu’on n’est pas attaché à la vie” in: HEGEL, Friedrich apud DERRIDA, Jacques. “De
l’économie restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 373.
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conservado (servus). Ao nos elevarmos acima da vida, ao encararmos a morte,
alcançamos o senhorio [maîtrise]: o para-si, a liberdade, o reconhecimento. A
liberdade passa, portanto pela colocação em jogo da vida (Daransetzen des Lebens).
O senhor é aquele que teve a força de suportar a angústia da morte e de manter-lhe a
obra. Tal seria, segundo Bataille, o centro do hegelianismo13
Há, portanto, na recepção do pensamento hegeliano na França, tanto por parte de
Bataille, como por parte de Blanchot, esta reação que vai diretamente à negatividade encontrar
o fundamento da soberania para, no entanto, tentar opor-se à perspectiva hegeliana,
ambicionando que a sua circularidade mecânica, a imanência absoluta da dialética, seja,
finalmente, rompida, passando por esta Herrschaft à souveraineté e minando, desta maneira, a
imanência do sistema pelo êxtase sacrificial. Pelo próprio punho de Bataille: “A soberania
existe a esse preço, ela não pode se dar senão o direito de morrer [...] o emblema do ser
soberano, tem por sanção a morte, que lhe é também o meio”14. É Derrida, no entanto, que nos
faz recordar o caráter inescapável do círculo. E assim, em certo sentido, opõe-se ao negativismo
batailleano, por demais ingênuo na sua pretensão de desativar a máquina dialética. Pois, “Hegel
é, aqui, incontornável”15. Porém, Derrida também opõe-se a Hegel. E aqui nosso problema
começa.
Se, como expõe Derrida, há neste enfrentamento dialético à morte, sobretudo, a
necessidade da economia da vida, visto que, de outra maneira, ocorre que essa “suprema prova
13 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 371-372. No original: “Une telle
‘opération’ [...] revient à mettre en jeu [...] le tout de sa propre vie. Le serf est celui qui ne met pas sa vie en jeu,
qui veut la conserver, être conservé (servus). En s’élevant au-dessus de la vie, en regardant la mort en face, on
accède à la maîtrise: au pour-soi, à la liberté, à la reconnaissance. La liberté passe donc par la mise en jeu de la vie
(Daransetzen des Lebens). Le maître est celui qui a eu la force d’endurer l’angoisse de la mort et d’en maintenir
l’oeuvre. Tel serait selon Bataille le centre du hegelianisme” in: DERRIDA, Jacques. “De l’économie restreinte à
l’économie générale”, 1967, p. 373 – 374. 14 BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. 1989, p. 142-143. No original: “La souveraineté est à ce prix, elle
ne peut se donner que le droit de mourir [...] L’emblème de l’être souverain, a pour sanction la mort, qui en est
aussi le moyen” in: BATAILLE, Georges. La littérature et le mal, 1969, p. 190-191. E ainda, p. 139 : “Sem dúvida
é a fatalidade de tudo o que é humanamente soberano, o que é soberano não pode durar senão na negação de si
mesmo (o menor cálculo e tudo cai por terra, há apenas servidão, primado sobre o tempo presente do objeto do
cálculo, ou no instante durável da morte. A morte é o único meio de evitar a abdicação da soberania. Não há
servidão apenas na morte, não há mais nada.” No original, p. 185-186: “Sans doute est-ce la fatalité de tout ce qui
est humainement souverain, ce qui est souverain ne peut durer, sinon dans la négation de soi-même (le plus petit
calcul et tout est par terre, il n’y a plus que servitude, primat sur le temps présent de l’objet du calcul), ou dans
l’instant durable de la mort. La mort est le seul moyen d’éviter à la souveraineté l’abdication. Il n’y a pas de
servitude dans la mort; dans la mort, il n’ya plus rien.” E a respeito do famoso título de Blake, p. 80: “enfim, o
acordo do homem com seu próprio dilaceramento, finalmente, seu acordo com a morte, com o movimento que aí
o precipita”. No original, p. 105: “enfin l’accord de l’homme avec son propre déchirement, à la fin son accord avec
la mort, avec le mouvement qui l’y precipite”. 15 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 381. No original: “Hegel est ici
incontournable” in: DERRIDA, Jacques. “De l’économie restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 383.
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por intermédio da morte suprime concomitantemente a certeza de si mesmo em geral”16, trata-
se de que já em Hegel há este movimento, sob o qual não deixarão de debater-se Blanchot e
Bataille, da bifurcação da morte, da duplicação da morte. Oposta a esta “morte pura e simples,
essa morte muda e sem rendimento [que Hegel chama de] negatividade abstrata”17, a morte
sem frases que Blanchot mencionava acima, existiria, por outro lado, a morte como experiência
da inescapabilidade de si, da consciência de si, da imanência pura, diríamos. “Nesta experiência,
a consciência de si ensina que a Vida lhe é tão essencial quanto a pura consciência de si”18. É
nesta operação, nesta Aufhebung que, como veremos Derrida descrevê-la, ocorre a inserção da
vida nos limites da razão, uma redução da consciência de si à vida e, o que é mais importante,
vice-versa:
Explosão de riso de Bataille. Por um ardil da vida, isto é, da razão, a vida, portanto,
permaneceu viva. Outro conceito de vida fora sub-repticiamente introduzido no lugar,
para aí ficar, para aí, tanto quanto a razão, jamais ser excedido (pois, dirá O Erotismo,
‘por definição o excesso está do lado de fora da razão’) Esta vida não é a vida natural,
a existência biológica posta em jogo no senhorio [maîtrise], mas uma vida essencial
que se solda à primeira, que a retém e faz com que ela trabalhe na constituição da
consciência de si, da verdade e do sentido. Tal é a verdade da vida.19
16 HEGEL, Friedrich apud DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 375. No
original: “suprême preuve par le moyen de la mort supprime en même temps la certitude de soi-même en général”
in: HEGEL, Friedrich apud DERRIDA, Jacques. “De l’économie restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 375. 17 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 375. No original: “mort pure et simple,
cette mort muette et sans rendement [que Hegel chama de] négativité abstraite” in: DERRIDA, Jacques. “De
l’économie restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 375. 18 HEGEL, Friedrich apud DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 376. No
original: “Dans cette expérience, la conscience de soi apprend que la Vie lui est aussi essentielle que la pure
conscience de soi” in: HEGEL, Friedrich apud DERRIDA, Jacques. “De l’économie restreinte à l’économie
générale”, 1967, p. 374. 19 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 374, grifamos. No original: “Éclat de
rire de Bataille. Par une ruse de la vie, c’est-à-dire de la raison, la vie est donc restée en vie. Un autre concept de
vie avait été subrepticement introduit dans la place, pour y rester, pour ne jamais y être, non plus que la raison,
excedé (car, dira l’Érotisme, ‘par définition l’excès est en dehors de la raison’). Cette vie n’est pas la vie naturelle,
l’existence biologique mise en jeu dans la maîtrise, mais une vie essentielle qui se soude à la première, la retient,
la fit oeuvrer à la constitution de la conscience de soi, de la vérité du sens. Telle est la vérité de la vie.” in:
DERRIDA, Jacques. “De l’économie restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 376.
Embora não constitua um assunto intrínseco ao trabalho proposto, gostaríamos apenas de avançar uma objeção,
que aqui nos aparece explícita, às disparatadas alusões ao “ethical turn” da desconstrução. Já em L’écriture et la
différence, 1967, evidencia-se aquilo que será fundamental ao Séminaire La peine de mort, 1999-2001. A saber, a
declarada denúncia de Derrida àquilo que, também pela Aufhebung, subrepticiamente faz implicar, na
essencialização da vida, a pena de morte como meio desta essencialização. Daí que Derrida, contra tal verité de la
vie anunciada em 1967, em 2000, ainda afirme: “Não basta desconstruir a morte mesma, o que é necessário, para
sobreviver ou adquirir uma segurança sobre a vida. Pois a vida não sai, da mesma forma, indene desta
desconstrução” (tradução nossa). No original: “Il ne suffit pas de déconstruire la mort même, comme il le faut,
pour survivre ou contracter une assurance sur la vie. Car la vie non plus ne sort pas indemne de cette
déconstruction.”in: DERRIDA, Jacques. Séminaire La peine de mort, 2012, p. 327-328.
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É a uma tal prerrogativa da verdadeira vida, como vida do espírito, que uma duplicação
da morte seria inerente. Isto é, uma diversão, uma dupla versão da morte é requerida para que
se estabeleça esta vida verdadeira. É neste contexto do recalcamento, do sub-reptício, que
Derrida comenta esta virada cômica da essência trágica da dialética. Este momento soberano
do tornar-se escravo para conservar-se, este excesso exterior à razão em que a essência do
trágico é o cômico e a essência do senhor é o escravo, onde a reversibilidade impera. “A verdade
do senhor está no escravo; e, transformado em senhor, o escravo permanece um escravo
‘recalcado’”20. O riso [rire], na acepção batailleana seria, análogo ao fora em Blanchot, a própria
experiência exterior desta reversibilidade ínsita ao movimento dialético, no qual resta, no
âmago da tragédia, a comicidade. Tal coincidentia opositorum, extrapolando-se, culminaria
nesta exceção à dialética, defrontando-se à irredutibilidade do negativo, a passividade servil da
soberania:
Só o riso excede a dialética e o dialetista: só explode após a renúncia absoluta ao
sentido; após o risco absoluto da morte, após aquilo que Hegel chama de negatividade
abstrata. Negatividade que jamais acontece, que jamais se apresenta, visto que, ao
fazê-lo, recomeçaria o trabalho. Riso que, literalmente, não aparece nunca, visto que
ele excede a fenomenalidade em geral, a possibilidade absoluta do sentido21
Tal ensejo batailleano - embora, como dissemos, Derrida não amplamente aquiesça -
está orientado sob a perspectiva de exceder o sistema hegeliano e atingir a pedra de toque da
soberania, “Assim se desenha uma figura de experiência [...] irredutível a toda fenomenologia
do espírito”22. Derrida, no entanto, antes de divergir sobre as ponderações batailleanas, é
enfático ao subscrever a interpretação de Bataille acerca da morte dentro da dialética hegeliana
e, assim, aponta na mesa direção que o riso batailleano, pois:
O que é risível é a submissão à evidência do sentido, à força deste imperativo: que
haja sentido, que nada esteja perdido definitivamente pela morte, que esta receba
ainda a significação de ‘negatividade abstrata’ [...] Essa submissão é a essência e o
elemento da filosofia, da ontológica hegeliana [...] A noção de Aufhebung [...] é risível
20 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 373. No original: “La verité du maître
est dans l’esclave; et l’esclave devenu maître reste un esclave ‘refoulé’” in: DERRIDA, Jacques. “De l’économie
restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 375. 21 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 374, grifamos. No original: “Le rire seul
excède la dialectique et le dialecticien: il n’éclate que depuis le renoncement absolu au sens, depuis le risque absolu
de la mort, depuis ce que Hegel appelle négativité abstraite. Négativité qui n’a jamais lieu, qui ne se présente
jamais puisqu’à le faire elle réamorcerait le travail. Rire qui à la lettre n’apparait jamais puisqu’il excède la
phénoménalité en général, la possibilité absolue du sens” in: DERRIDA, Jacques. “De l’économie restreinte à
l’économie générale”, 1967, p. 376. 22 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 376. No original: “Ainsi se dessine une
figure d’expérience [...] irréductible à toute phénoménologie de l’esprit” in : DERRIDA, Jacques. “De l’économie
restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 378.
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20
na medida em que significa o afã de um discurso que se esfalfa em reapropriar-se de
toda negatividade, em elaborar a colocação em jogo como investimento, em amortizar
o dispêndio absoluto, em dar um sentido à morte23
Se adiante encontraremos em Blanchot a asserção de o homem dever tornar a morte
possível, em grande parte cremos estar nas linhas acima sua justificação. O que há, sobretudo,
de intolerável na dialética, é o movimento de dar sentido à morte. Para Blanchot trata-se,
exatamente, desta derrisão inexorável que a evidência do sentido enseja, pois que nada é
definido, nada tem fim, a morte não faz perder nada, ela não existe, é impossível. Daí Blanchot
ler Kafka como esta impossibilidade de morrer que redunda-se na circularidade eterna da
burocracia processual-operacional, sem o termo soberano, sem a porta24. Em certo sentido, a
irrepresentabilidade da morte ou, mais especificamente, a incogitabilidade do apagamento
absoluto.
Como Derrida claramente demonstra - e é também o meio pelo qual veremos muitas de
suas críticas - o que há de necessariamente equívoco no movimento de apreensão da morte, é
que:
A mancha cega [tache aveugle] do hegelianismo, em torno da qual se pode organizar
a representação do sentido, é esse ponto em que a destruição, a supressão, a morte, o
sacrifício, constituem um dispêndio tão irreversível, uma negatividade tão radical –
cumpre dizermos aqui sem reserva – que nem mesmo podemos determiná-lo em
negatividade em um processo ou num sistema: o ponto em que não há mais nem
processo nem sistema25
Assim, o que resta em jogo para o pensamento de Derrida, onde procede-se à acusação
deste recalcamento pelo deslumbre da evidência do trabalho da morte, da possibilidade de
23 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 375-376, grifamos. No original: “Ce qui
est risible, c’est la soumission à l’évidence du sens, à la force de cet impératif: qu’il y ait du sens, que rien ne soit
définitivement perdu par la mort, que celle-ci reçoive la signification encore de ‘négativité abstraite’ [...] cette
soumission est l’essence et l’élément de la philosophie, de l’onto-logique hegelienne. La notion d’Aufhebung [...]
est risible en ce qu’elle signifie l’affairement d’un discours s’essoufflant à se réapproprier toute negativité, à
élaborer la mise en jeu en investissement, à amortir la dépense absolue, à donner un sens à la mort” in: DERRIDA,
Jacques. “De l’économie restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 377-378. 24 Veja-se, por exemplo, “La lecture de Kafka” e, sobre o caçador Graco: “Kafka et la littérature”, ambos em La
part du feu. Também remeto ao livro de Ricardo Timm de Souza, Metamorfose e extinção, em que a circunstância
particular do caçador Graco é descrita como esta estagnação do tempo, onde nem a morte é possível: “A solidão
extrema deste limbo não pode ser atingida nem pela vida nem pela morte” in: SOUZA, R. Timm. Metamorfose e
extinção, 2000, p. 67. 25 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 378, grifamos. No original: “La tache
aveugle de l’hegelianisme, autour de laquelle peut s’organiser la représentation du sens, c’est ce point où la
destruction, la suppression, la mort, le sacrifice constituent une dépense si irréversible, une négativité si radicale –
il faut dire ici sans réserve – qu’on ne peut même plus le déterminer en négativité dans un procès ou dans un
système: le point où il n’y a ni procès ni système” in: DERRIDA, Jacques .“De l’économie restreinte à l’économie
générale”, 1967, p. 380.
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21
empregar até mesmo a morte no trabalho do sentido, é esta desidolatrização26 das figurações e
sensificações da morte como artefato arquetípico do pensamento filosófico. “A imensa
revolução [Kant e Hegel] consistiu – estaríamos quase tentados a dizer muito simplesmente –
em levar a sério o negativo. Em dar sentido a seu labor. [...] Pois a negatividade é um
recurso”27. E, muito embora, seja este, certamente, o propósito, Derrida, como veremos adiante,
a Kant, e como vemos agora a Hegel, e também a Bataille, opõe-se amplamente no que tange
ao processo de recalcamento do “negativo abstrato”, isto é, o recalcamento do negativo
enquanto o nem negativo nem positivo, ou seja, o fora do sistema. Derrida, em outras palavras,
desvela este morrer sub-repticiamente driblado pela apreensão dialética no sistema. Daí o
recurso ao negativo do pensamento. Bataille, para Derrida, ao entrever tal problemática como
o cerne do pensamento hegeliano, terá - num sentido talvez parcialmente análogo ao de Derrida
com a différance – ensejado desvelar, através da soberania do negativo, este ponto em que algo
restaria inapropriável ao sentido dialético, à sublimação, como Derrida nos propõem traduzir
Aufhebung28. Assim, a respeito do negativo hegeliano, Bataille descreve:
A manifestação privilegiada da negatividade é a morte, mas a morte, na verdade, nada
revela. É, em princípio, seu ser natural, animal, cuja morte revela o Homem a ele
mesmo, mas a revelação jamais ocorre. Pois, uma vez morto, o ser animal que o
suporta, o ser humano, esse cessou de ser. Para que o homem, no final, se revele a si
mesmo, ele deveria morrer, mas ser-lhe-ia necessário fazê-lo como vivente – olhando-
se cessar de ser. Em outras palavras, a morte, essa deveria tornar-se consciência (de
si) no momento mesmo em que aniquila o ser consciente. Em certo sentido, foi o que
ocorreu (o que está, pelo menos, a ponto de ocorrer ou que ocorre de maneira fugitiva,
incapturável) por meio de um subterfúgio. [...] Assim, seria preciso, a todo custo, que
o homem viva no momento em que morre verdadeiramente, ou que viva com a
impressão de morrer verdadeiramente. Essa dificuldade anuncia a necessidade do
espetáculo ou geralmente da representação, sem a repetição dos quais poderíamos,
em face da morte, permanecer estranhos, ignorantes, como, aparentemente, o são os
bichos. Nada é menos animal, com efeito, do que a ficção, mais ou menos distanciada
do real, da morte.29
26 “É preciso pensar uma ficção iconoclasta”, tradução nossa. No original: “Il faut penser à une fiction iconoclaste”
in: DERRIDA, Jacques. Sauf le nom. Paris: Galilée, 1993, p. 54. 27 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 379. No original:“L’immense révolution
[Kant e Hegel] a consisté – on serait presque tenté de dire tout simplemente – à prendre au sérieux le négatif. À
donner sens à son labeur. [...] Car la negativité est une ressource.” in: DERRIDA, Jacques .“De l’économie
restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 380-381. 28 Cf. DERRIDA, Jacques. De la grammatologie, 1967, p. 104. 29 BATAILLE, Geroges apud DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 376-377.
No original: “La manifestation privilégiée de la Negativité est la mort, mais la mort en vérité ne révèle rien. C’est
en principe son être naturel, animal, dont la mort révèle l’Homme à lui-même, mais la révélation n’a jamais lieu.
Car une fois mort, l’être animal qui le supporte, l’être humain lui-même a cessé d’être. Pour que l’homme à la fin
se révèle à lui-même il devrait mourir, mais il lui faudrait le faire en vivant – en se regardant cesser d’être. En
d’autres termes, la mort elle-même devrait devenir conscience (de soi), au moment même où elle anéantit l’être
conscient. C’est en un sens ce qui a lieu (qui est du moins sur le point d’avoir lieu, ou qui a lieu d’une manirère
fugitive, insaisissable), au moyen d’un subterfuge. [...] Ainsi faudrait-il à tout prix, que l’homme vive au moment
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22
São vários os pontos de importância a respeito deste trecho. Destaque-se que, ao citá-
lo, Derrida contrapõe: “Só a ênfase posta sobre o simulacro e o subterfúgio interrompe a
continuidade hegeliana”30. É imprescindível notar que, ao fim da citação, acerca da necessidade
da representação, encontramos algo que parece ser subscrito por Blanchot irrestritamente. Se
Blanchot especula o tornar a morte possível, em outras palavras, trata-se de tornar a literatura
possível, a própria possibilidade de representação como maneira de “conhecer o morrer”,
distanciando o homem da, sempre recorrente e bestializada, besta. O que, por outro lado, não é
jamais possível ler em Derrida.
A morte, que aqui oscila entre possível e impossível, é de elementar importância ao
pensamento de Derrida, pois como víamos acima - a ressalva a respeito da não presentidade do
negativo abstrato - é justamente neste âmbito de inexperenciabilidade da morte que o trabalho
da Aufhebung torna-se indetenível e, além disso, é, a seu modo, pela impossibilidade de
experenciar a morte da consciência de si, na descrição de Bataille, que Husserl poderá afirmar
a presentidade como o tempo transtemporal aos tempos e, deste modo, reivindicar a
prerrogativa da derivação das demais modalidades temporais31. Em outras palavras, é por este
caráter cômico da imanência, da submissão à evidência do sentido, a qual Derrida diz ser, em
uma palavra, a essência da dialética, que a morte torna-se essencialmente um poder implícito
ao trabalho dialético. Visto que não há, como veremos também em Blanchot, um morrer da
consciência, tal morrer é o propriamente impossível do morrer, dado que, como expõe Bataille,
para tanto, seria necessário viver a morte. Em suma, é nesta circunscrição da morte como
atividade modal, como um meio da consciência de si experenciar seu ser absoluto, que a
imanentidade torna-se o não-superável (superação é a tradução que Ricardo Timm de Souza
propõe a Aufhebung), na realização do absoluto, numa síntese final. Daí, Derrida notar que o
único rompimento do argumento batailleano ao hegeliano é a menção ao subterfúgio. Aliás, o
propósito do pensamento de Derrida, em grande medida, é a denúncia deste subterfúgio, isto é,
deste recurso ao negativo, deste poder lançar mão à morte.
où il meurt vraiment, ou qu’il vive avec l’impression de mourir vraiment. Cette difficulté annonce la nécessité du
spectacle ou gèneralement de la représentation, sans la répétition desquels nous pourrions vis-à-vis de la mort,
demeurer étrangers, ignorants comme apparemment le sont les bêtes. Rien n’est moins animal en effet que la
fiction, plus ou moins eloignée du réel, de la mort.” in: BATAILLE, Geroges apud DERRIDA, Jacques. “De
l’économie restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 378-379 30 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 377. No original: “Seul l’accent sur le
simulacre et sur le subterfuge interrompt la continuité hegelienne” in: DERRIDA, Jacques. “De l’économie
restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 379 31 Abordamos esta questão adiante, em 2.1.
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23
Ademais, cumpre ver como o pensamento de Bataille incorre naquilo que será
exaustivamente adversado por Derrida, a saber, a bestialização da morte como consequência da
necessária separação entre o morrer físico e banal e o morrer inexperenciável da consciência,
sendo este o morrer propriamente humano que, justamente por ser inevidente, assume o poder
da transcendência e de todas as afirmações metafísicas daí subsequentes. No sentido em que
Bataille afirma: “é a Negatividade da morte, na medida em que o homem a assume, que faz do
animal humano um homem”32.
Desta maneira, teremos com Derrida uma latente desconstrução da morte que passa,
além da questão animal, por uma crítica essencial da dialética enquanto movimento que insere
a negatividade no trabalho da positivação. Isto é, a apreensibilidade da morte na sensificação
do trabalho e delimitação das fronteiras entre a humanidade e a animalidade. Ou seja, para uma
desconstrução da morte: “Arriscar-se a morrer não basta se a colocação em jogo não se lança,
como sorte ou acaso, mas se investe como trabalho do negativo. A soberania ainda deve,
portanto, sacrificar o senhorio [maîtrise], a apresentação do sentido da morte”33. É, portanto,
sob uma perspectiva mais íntima àquela de Blanchot – justamente naquilo em que Blanchot
pode separar-se de Bataille – que Derrida pensará a impossibilidade de morrer como
impossibilidade do uso dialético do negativo e, desta maneira, desconstruir a morte enquanto
significado articulador do discurso.
1.2 A IMPOSSIBILIDADE DE MORRER
Não temo a morte como qualquer cousa
Que eu veja ou ouça, mas como quem teme
Quando não sabe o que é que teme, e teme.
(Fernando Pessoa – Não é o horror à morte porque raie)
32 BATAILLE, Geroges apud DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 380. No
original: “c’est la Négativité de la mort, en tant que l’homme l’assume, qui fait un homme de l’animal humain.”
in: BATAILLE, Geroges apud DERRIDA, Jacques. “De l’économie restreinte à l’économie générale”, 1967, p.
382 33 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 381. No original: “Risquer la mort ne
suffit pas si la mise en jeu ne se lance pas, comme chance ou hasard, mais s’investit comme travail du négatif. La
souveraineté doit donc sacrifier encore la maîtrise, la présentation du sens de la mort” in: DERRIDA, Jacques.
“De l’économie restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 383.
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24
A posição de Blanchot a respeito da morte é sobremaneira ambígua, e poderíamos
dizer, inconstante. Derrida, nos seminários sobre a pena de morte, releva, diversas vezes, esta
dificuldade de apreender o pensamento blanchotiano. Se pudéssemos, sem ônus, apelar à
cronologia, poder-se-ia descrever uma complexificação do pensamento a respeito da morte a
partir de 1969, em L’entretien infini. Como exporemos aqui, tanto em La part du feu, como em
L’espace littéraire, as asserções blanchotianas a respeito da morte apresentam ambiguidades a
respeito do seu posicionamento. Entre outras coisas, é por isto que o presente trabalho dirige-
se a Derrida, onde a crítica da morte possui um rigor deveras conciso, isto é, rejeita
explicitamente, tanto a tradição metafísica, como a tradição humanista, ao travar, com a morte,
suas interrogações. Blanchot, notoriamente em “La littérature et le droit à la mort”,
aparentemente, permanece refém, tanto de um pensamento hegeliano sublimatório (tomando a
tradução de Derrida para Aufhebung34), como da soberania negativa que Bataille quer ver na
morte. Tais gestos precipitados do pensamento de Blanchot são, implicitamente, rearticulados
em L’écriture du desastre, onde a dissociação ao hegelianismo, e à perspectiva absolutizante
da morte, desdobra-se.
No anseio de pensar a diferença, como aquilo que não se reduz à economia hegeliana
da dialética, que escapa à ambição de totalidade, de sistematicidade, e mesmo de
conceitualidade, vemo-nos levados, tanto por Derrida como por Blanchot, a encarar na literatura
e na poesia aquilo que resta intotalizável perante a especulação e rebaixamento filosófico da
escritura. Que Derrida tenha visto, desde o início, o quão implicante fora uma determinada
relação com a morte para que a filosofia atingisse a supressão da escritura, como aquilo que é
mortal e que, portanto, desobedece à perspectiva fonocêntrica da imortalidade, é o que nos leva
a relacionar a morte enquanto o espaço literário para Blanchot com a crítica de Derrida à
filosofia enquanto recalcamento dos caracteres mortais da escritura. Que, para Blanchot, não
haja literatura sem uma desarticulação do tempo, de modo análogo à crítica da presentidade por
Derrida, é o que pretendemos apresentar para, em seguida, debater sob que aspectos este tempo-
outro deixa-se pe(n)sar.
Embora sejam ambíguas as colocações de Blanchot, podemos entrever, desde seus
primeiros trabalhos, uma preocupação a respeito da morte que o levará, concomitantemente, a
distanciar-se dos motivos heideggerianos e hegelianos, até, como demonstraremos, adquirir
intimidades notáveis às ponderações derridianas. Muito embora um pensamento da morte
34 Cf. infra, nota 28.
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atravesse a amplitude da obra blanchotiana, suas considerações não permanecem imunes à
própria temporalidade que, temporalmente, Blanchot parece descobrir – isto é, sua mudança.
Já em L’espace littéraire, encontramos a asserção: “Quem sonda o verso escapa ao ser
como certeza”35, tal afirmativa vai de par à seguinte: “Quem sonda o verso morre, reencontra a
sua morte como abismo”36. A questão da morte dentro do pensamento de Blanchot, deve-se ter
em mente, é infinita, e não pode ser encerrada pela resposta. O presente texto, portanto, fica
como insistência: em que sentido escrever é reencontrar a morte? Segundo os textos do autor,
pode-se inferir que a morte é a própria condição de possibilidade da irrealidade. A morte para
Blanchot parece ter o propósito de situar a literatura como réplica à totalidade e à imanência;
fazer a literatura possível, na medida mesma da sua impossibilidade e da impossibilidade da
morte ser, sendo enfim, a latência de algo que não é, no seio imperturbável do ser. Se Blanchot
diz, “A literatura tem por lei esse movimento na direção de outra coisa, na direção de um para-
além que, no entanto, nos escapa, já que não pode ser, e do qual só retemos ‘para nós’ que ‘o
consciente escapa’”37, é porque a literatura, como veremos, mantém relações de promiscuidade
com a morte, porque pensa a morte, e é impossível pensá-la.
No ensaio, “Le langage de la fiction”, Blanchot dirá: “Daí a literatura poder constituir
uma experiência que, ilusória ou não, aparece como um meio de descoberta e de um esforço,
não para expressar o que sabemos, mas para sentir o que não sabemos”38. É legível aí a maneira
com que Blanchot refere a literatura como experiência do negativo hegeliano. No entanto,
veremos como o negativo torna-se cada vez menos experenciável, e torna-se, em Blanchot,
concomitantemente outro e neutro. Trata-se, neste caso, de entrever a capacidade da literatura
de expor através do texto e da ficcionalização a temporalidade que pela palavra expressa-se, ao
contrário da reflexão que “retendo dela [da vida] apenas o aspecto intemporal, não nos permite
sentir [o sentido]”39. E cabe acrescentar, acerca dessa negatividade, que ela é, eminentemente,
35 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, 2011, p. 31. No original: “Qui creuse le vers, échappe à l’être comme
certitude” in : BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire, 1955, p. 37. 36 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, 2011, p. 31. No original: “Qui creuse le vers meurt, rencontre as
mort comme abîme” in: BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire, 1955, p. 38. 37 BLANCHOT, Maurice. “O mito de Mallarmé”, 2011, p. 47. No original: “La littérature a pour loi ce mouvement
vers autre chose, vers un au-delà qui pourtant nous échappe, puisqu'il ne peut être, et dont nous ne saisissons «
chez nous » que « le conscient manque »” in: BLANCHOT, Maurice. “Le mythe de Mallarmé”, 1948, p. 46. 38 BLANCHOT, Maurice. “A linguagem da ficção”. 2011, p. 87. No original: “De là vient que la littérature puisse
constituer une expérience qui, illusoire ou non, apparaît comme un moyen de découverte et un effort, non pour
exprimer ce que l'on sait, mais pour éprouver ce que l'on ne sait pas.” in: BLANCHOT, Maurice. “Le langage de
la fiction”, 1949, p. 83. 39 BLANCHOT, Maurice. “A linguagem da ficção”. 2011, p. 87. No original: “qui n'en retient que l'aspect
intemporel, ne nous permet pas d'éprouver” in: BLANCHOT, Maurice. “Le langage de la fiction”, 1949, p. 84.
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a impossibilidade de saber, mas um não saber cujos contornos imensuráveis são a latência
mesma da temporalidade – e é nestes rasgos de palavras e ficções que a poesia aludirá a presença
desta ausência que é, também, ela mesma.
Existe, pois, uma identidade secreta entre morrer e cantar, entre a transmutação do
invisível pelo invisível que é a morte e o canto em cujo seio essa transmutação se
realiza. Revertemos aqui ao que Kafka, pelo menos nas frases que reproduzimos dele,
parecia procurar exprimir: Escrevo para morrer, para dar à morte sua possibilidade
essencial, por onde ela seja essencialmente morte, fonte de invisibilidade mas, ao
mesmo tempo, não posso escrever se a morte não escrever em mim, não fizer de mim
o ponto vazio onde o impessoal se afirma40
O vínculo estreito que liga a morte e a poesia dá-se, também, por esta invisibilidade e
invisibilização, esse gesto de subtração de amplitude negativa. Escrever é aqui, portanto, dar
espaço à morte, enquanto inespacialidade cabal, ao ponto em que a morte passa a ser o lugar da
escrita – lugar nenhum -, mas também o escrever impessoal que no escritor escreve. A transição,
tantas vezes aludida por Blanchot, desta passagem ao neutro. Deleuze corrobora da seguinte
maneira: “la literatura no empieza hasta el momento en que nace en nosotros una tercera persona
que nos despoja del poder de decir Yo (el “neutro” de Blanchot)“41. E pode-se pensar que,
inclusive, não trata-se especificamente de uma terceira pessoa, mas antes disso, da
impessoalidade, da despessoalização da letra. O terceiro como instância do ninguém – ou nem
tanto. Da inexistência mesma, que insuspeitadamente escreve.
Deste mesmo modo, a respeito de Kafka, Marc Crépon traz especificamente uma
citação que convém ao sentido proposto por Blanchot na leitura de Kafka. Importa ver,
especialmente, o quão relevante este sentido a respeito da extenuação da voz e da vida
convergem na interpretação que exporemos de Derrida. Na citação de Crépon, Kafka escreve
ao seu pai:
A impossibilidade de ter relações pacíficas contigo teve ainda uma outra
consequência, muito natural na verdade: eu perdi o uso da palavra (ich verlernte das
Reden). Sem dúvida não haveria sido um grande falador, mesmo em outras
40 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, 2011, p. 161. No original: “Ainsi, il y a une secrète identité entre
mourir et chanter, entre la transmutation de l’invisible par l’invisible qu’est la mort et le chant au sein duquel cette
transmutation s’accomplit. Nous en revenons ici à ce que Kafka, du moins dans le phrases que nous lui prêtions,
semblait chercher à exprimer : J’écris pour mourir, pour donner à la mort sa possibilité essentielle, par où elle est
essentiellement mort, source d’invisibilité, mais, en même temps, je ne puis écrire que si la mort écrit en moi, fait
de moi le point vide où l’impersonnel s’affirme.” in: BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire, 1955, p. 193 41 DELEUZE, Gilles. La literatura y la vida. Córdoba: Alción Editora, 2006. p. 16.
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circunstâncias, mas eu teria, de qualquer modo, podido falar a linguagem humana
ordinária.42
Tomemos uma segunda menção que nos esclarece a constituição do que seja a morte
para Blanchot: “O recuo diante do que morre é recuo diante da realidade”43. A morte, portanto,
uma realidade. O recuo, abordado por Blanchot, seria aquele que, enquanto retorno à pretensa
origem que legitima-se pela ontologia da totalidade, constitui-se pelo ato de repugnar uma certa
intersecção entre morte e realidade. Intersecção em que, justamente, o aspecto da temporalidade
toma a realidade e leva-a avante, para a mudança. É neste sentido que Derrida, acerca de
Bataille, dirá: “O filósofo [...] não é filósofo senão por este desejo indestrutível de sustentar, de
manter contra o deslizamento a certeza de si e a segurança do conceito”44. Assim temos, com
Blanchot, a respeito da literatura e da morte, em contrapartida à perspectiva da totalidade, a
seguinte colocação:
No entanto, nesta vitória existe uma derrota, nesta verdade, a das formas, das noções
e dos nomes, há uma mentira e, nessa esperança que nos concede um além ilusório ou
um futuro sem morte ou uma lógica sem acaso, existe talvez a traição de uma
esperança mais profunda, que a poesia (a escrita) deve nos ensinar a reafirmar45
A esperança traída de que fala Blanchot, que com a poesia devemos aprender a
reafirmar, está relacionada com a morte. Mas o que se pode esperar da morte? O que Blanchot
aponta a respeito desta “economia geral do ser”46, é que “a recusa da morte, a tentação do eterno,
42 Tradução nossa. No original: “L’impossibilité d’avoir des relations pacifiques avec toi eût encore une autre
conséquence, bien naturelle en vérité : je perdis l’usage de la parole (ich verlernte das Reden). Sans doute n’aurais-
je jamais été un grand parleur, même dans d’autres circonstances, mais j’aurais tout de même pu parler le langage
humain ordinaire” in: KAFKA, Franz apud CRÉPON, Marc. Langues sans demeure. 2005, p. 25. 43 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita I, 2010, p. 74. No original: “Le recul devant ce qui meurt est recul
devant la réalité” in : BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini, 1969, p. 48. 44 DERRIDA, Jacques. “Da economia restrita à economia geral”, 2009, p. 391. No original: “Le philosophe [...]
n’est philosophe que par ce désir indesructible de tenir, de maintenir contre le glissement la certitude de soi et la
sécurité du concept” in: DERRIDA, Jacques. “De l’économie restreinte à l’économie générale”, 1967, p. 393 Não
deixa de ser curioso notar a convergência desta sentença com a de Adorno, embora por vias contrárias: “Nada é
mais constragedor para o intelectual [...] do que procurar estar com a razão na discussão [...] A própria busca de
manter-se certo exprime até nas suas formas de reflexão lógicas mais sutis, aquele espírito de autopreservação que
precisamente à filosofia cabe dissolver” in: ADORNO, Theodor. Mínima morália, 2008, p. 66. 45 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita I, 2010, p. 74. No original: “Cependant, dans cette victoire, il y a
une défaite, dans cette vérité, celle des formes, des notions et des noms, il y a un mensonge et, dans cet espoir,
celui qui nous confie à un au-delà d’illusion ou à un avenir sans mort ou à une logique sans hasard, il y a peut-être
la trahison d’un plus profond espoir que la poésie (l’écriture) doit nous apprendre à reaffirmer” in : BLANCHOT,
Maurice. L’entretien infini, 1969, p. 47. 46 Levinas trará uma interessante colocação a respeito desta expressão que Blanchot toma de Bonnefoy: “Blanchot
determina deste modo a escritura como uma estrutura quase louca, na economia geral do ser e pela qual o ser não
é mais uma economia, visto que ele não mais comporta, abordado através da escritura – nenhuma habitação, não
comporta nenhuma interioridade”, tradução nossa. No original: “Blanchot détermine ainsi l’écriture comme une
structure quasi folle, dans l’économie générale de l’être et par laquelle l’être n’est plus une économie, car il ne
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tudo que conduz os homens a preparar um espaço de permanência onde possa ressuscitar a
verdade”47, acaba - na superlativação da vida, como paradigma de permanência, onde a verdade
ressuscita incessantemente – aniquilando esta intersecção, esta curvatura da realidade, em que
o tempo se inscreve. Em outras palavras, como diz Octavio Paz, “la religión al matar la muerte,
desvive la vida”48.
Atitude religiosa, entretanto, impossível de ser pensada em Blanchot, visto que a
morte, porque não é, não pode morrer. A esperança mais profunda de que fala Blanchot é que,
os conceitos - outrora os deuses - as verdades, as formas, são decorrentes da nossa vontade de
viver, no entanto, se a vida é vivida como imortalidade, a esperança mais profunda, que é a da
vida, frustra-se, pois vive-se uma vida desvivida, uma totalidade sem tempo, e sem tempo, não
há viver. Em Blanchot há como que uma linha tênue que separa a esperança de viver e o tornar
a vida possível, pois o tornar a vida possível, digamos, plausível, acaba por torná-la poderosa,
e aí, no momento em que a morte se torna o poder de uma verdade, deixa de ser morte, pois
“como não pressentir que nesta morte verdadeira furtou-se efetivamente a morte sem verdade,
o que nela é irredutível ao verdadeiro, a todo desvelamento, aquilo que nunca deixa de se
mostrar nem de se esconder nem de aparecer?”49. Tal expressão da irredutibilidade da morte ao
trabalho do conceito, bem como à linguagem de modo geral, é um princípio da expressão que
lentamente se afirmará em Blanchot em oposição ao hegelianismo.
A esperança de que fala Blanchot, justamente, “revela a possibilidade daquilo que
escapa ao possível: ela é no limite, a relação estabelecida, lá onde está rompida”50, trata-se, não
de uma esperança que espera com o intuito de que chegue sua finalidade, mas uma esperança
contente na sua própria espera, que não pretende resolver a espera, e sim agravá-la: “a poesia
seria o meio desta nova esperança”51. E acrescentemos a citação que Blanchot faz de René Char:
porte plus, abordé à travers l’écriture – aucune habitation, ne comport aucune intériorité” in : LEVINAS,
Emmanuel. Sur Maurice Blanchot, 1975, p. 17. 47 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita I, 2010, p.73. No original: “le refus de la mort, la tentation de
l’éternel, tout ce qui conduit les hommes à ménager un espace de permanence où puisse ressuciter la vérité, même
si elle périt.” in: BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini, 1969, p. 46. 48 PAZ, Octavio. El arco y la lira, 1972, p. 147. 49 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita I, 2010, p. 77. No original: “mais comment ne pas pressentir qu’em
cette mort véritable s’est bel et bien dérobée la mort sans vérité, ce qui en elle est irréductible au vrai, à tout
dévoilement, ce qui jamais ne se révèle ni ne se cache ni n’apparait ?” in: BLANCHOT, Maurice. L’entretien
infini, 1969, p. 50. 50 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita I. São Paulo: Escuta, 2010, p. 84. Grifo nosso. No original: “dit la
possibilité de ce qui échappe au possible ; il est, à la limite, le rapport ressaisi, là où le rapport est perdu” in:
BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini, 1969, p. 58. 51 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita I. São Paulo: Escuta, 2010, p. 83. No original: “La poésie serait le
moyen de ce nouvel espoir” in: BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini, 1969, p. 57.
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“Eu gostaria de reunir, gostaria de quase identificar poesia e esperança”52. É contra aquela
esperança finalista, má esperança, nas palavras de Blanchot, que a poesia, num imanentismo
desde sempre fissurado, cultiva a esperança da alteridade, não como advento, mas como o
instante implicado na própria temporalidade.
A poesia busca o presente, o agora, no sentido em que não busca o presente como
presença, mas aquilo que nele é ausente. “Em outras palavras, por existir o poema o futuro é
possível. O poema é esse movimento em direção ao que não é”53. O que a literatura compartilha
com a morte, portanto, é o tempo, na desconstrução de sua presentidade, tal como veremos em
Derrida. Trata-se da responsabilização da literatura e da poesia em sua relação com a não-
presença, com a temporalidade, na possibilidade de futuro; em outras palavras, o futuro está
sendo a origem da poesia. Acerca do futuro dentro da poesia remetemos ao livro Terreur et
poésie, de Marc Crépon, onde distinguem-se as questões de predestinação e futuro entre as
concepções de poesia de Heidegger e Celan: “A atualidade de um poema é necessariamente
uma atualidade que se projeta no porvir”54.
A respeito de Blanchot, no entanto, há diversas ressalvas a serem feitas, por exemplo,
quando, notoriamente, diz: “a preocupação do homem passa a ser a de tornar a morte
possível”55. Sem dúvida, tornar a morte possível ainda refere-se à própria economia dialética,
como necessidade motora diferencial – e de fato Blanchot, em seguida, refere os pensamentos
de Heidegger, Hegel e Nietzsche. Há vários momentos em que o pensamento de Blanchot, cuja
reformulação encontraremos apenas posteriormente, avança certas interpretações positivas da
morte, da morte como positivável, ou da morte como um meio, tal como nas previsões de
Bataille. Há momentos em que Blanchot apela ao trabalho humano como positivação do
negativo, porém, acreditamos tratar-se de sua ínsita ambiguidade, cuja finalidade é mostrar a
superlatividade de sua negatividade – tendências expressivas que dificultam em diversos
momentos a compreensão de Blanchot. Como adverte de modo oportuno Derrida, Blanchot não
escreve tais afirmações da morte (ao menos o querer torná-la possível), senão no momento em
52 CHAR, René apud BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita I, 2010, p. 83. No original: “Je voudrais reunir,
je voudrais identifier presque la poésie et l’espoir” in: CHAR, René apud BLANCHOT, Maurice. L’entretien
infini, 1969, p. 57. 53 BLANCHOT, Maurice. “René Char”, 2011, p. 112. No original: “C'est, en quelque sorte, parce qu'il y a le poème
que le futur est possible. Le poème est ce mouvement vers ce qui n'est pas” in: BLANCHOT, Maurice. “René
Char”, 1948, p. 108. 54 Tradução nossa. No original: “L’actualité d’un poème est nécessairement une actualité qui se projette dans
l’avenir” in: CRÉPON, Marc. Terreur et poésie, 2004, p. 117. 55 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, p. 100. No original: “Le souci de l’homme est de rendre la mort
possible” in : BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire, 1955, p. 118.
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que morrer já é impossível, em que a morte é sua própria impossibilidade, em que não há relação
possível de uma verdade com a morte, de um conceito. Daí que, em Blanchot, a morte seja
sempre símbolo de um paradoxo, mais do que positiva ou negativa – neutra, no sentido do
“nem, nem”, que Derrida aborda de modo exaustivo em Demeure e Parages. No entanto, não
é por acaso que, em L’espace littéraire e La part du feu, Levinas seja tão raramente citado –
inclusive, é nestes livros onde encontramos uma margem demasiado extensa para interpretações
tendenciosas. E é surpreendente notar que a única participação de Levinas em La part du feu,
ocorra justamente no ensaio “La littérature et le droit à la mort”, mais ainda, exatamente depois
de repetir que tornar a morte possível é a preocupação56. Dentro deste debate, cumpre ver que
desde 1948, em La part du feu, Blanchot rompe expressamente com o heideggerianismo a
respeito da morte, no entanto, determinar em que ponto Blanchot rompe com a esfera dialético-
hegeliana, e sua superlativação batailleana, resta um ponto de difícil conclusão, que
pretendemos, no entanto, encontrar com as críticas de Derrida.
Assim, é esta paradoxalidade, sobretudo, que referimos acerca da promiscuidade que
há, em Blanchot, no pensamento da literatura em relação à morte; a asserção de a literatura ter
um determinado “direito” à morte. A problematização que há, poderíamos dizer, está neste
limiar em que a literatura evoca a realidade da morte, jamais, entretanto, realiza a morte, pois a
literatura é o avesso da realização da morte; a realização da morte, Blanchot inúmeras vezes
alude, é sempre tomar uma morte pela outra, tomar a palavra pelo que não tem nome e resta
inominável, aquilo que na morte é irredutível à verdade. Neste ponto é que a poesia adquire
uma certa prerrogativa, muito ao estilo batailleano, pois se perdemos a morte a poesia no-la
redescobre pela temporalidade, porém, este redescobrir, é o próprio descobrir de uma ausência.
A poesia dá realidade à morte, à maneira com que Cioran descreve a liberdade: “Liberar-se é
alegrar-se dessa irrealidade e buscá-la a todo instante”57. Para Blanchot - dada a constituição
ontológica da linguagem, no sentido de que refere apenas o subsistente e não o evanescente –
o fato de sermos mortais: “Nós mencionamos, mas para dominá-lo com um nome e, em nome
56 Cf. BLANCHOT, Maurice. “A literatura e o direito à morte”, 2011, p. 340. No original: BLANCHOT, Maurice
“La littérature et le droit à la mort”, 1948, p. 320. 57 Tradução nossa. No original: “Se délivrer, c’est se rejouir de cette irréalité et la rechercher à tout instant” in :
CIORAN, Emil. Le mauvais démiurge, 1969 in: Oeuvres, 1995, p. 1196.
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do qual, no final, nós o abandonamos”58. Cioran, claramente, não terá descuidado este aspecto:
“Dizemos: a Morte, e esta abstração nos exime de experimentar sua infinitude e seu horror”59.
É aí que o silêncio, em reta influência de Bataille, tornar-se-á uma questão central para
entendermos a clivagem poética no seio da linguagem. Para Derrida, por exemplo, a
responsabilidade pressupõe o segredo e o silêncio como instância de singularidade da ética. A
responsabilidade vê-se envolvida no paradoxo em que, por mais devedora que se encontre à
expressão pública da linguagem, a um determinado fazer-se compreender, o instante de decisão
resta calado no seio humano como uma atitude que é, de modo abismal, inconfessável,
inexprimível. Daí Derrida sinalizar esta aporia da responsabilidade, embora, acuse a formulação
de uma responsabilidade absoluta:
A responsabilidade absoluta dos meus atos, enquanto que ela deve ser a minha, de
modo singular, por ninguém poder fazê-lo em meu lugar, implica não apenas o
segredo mas, inclusive, que não falando aos outros, eu não preste contas, eu não
responda sobre nada, e não responda sobre nada aos outros ou defronte os outros60
A figura central em que orbita todo este livro de Derrida, Abraão, é tida como símbolo
desta impossibilidade de justificar-se da ética. Tal lacuna em que temos a figura de Abraão, é
propriamente esta margem em que, radicalmente oposta à moralidade, à linguagem pública dos
homens, inobstante, tem uma responsabilidade exasperante em relação ao outro, tão
radicalmente outro, que nenhuma linguagem pode determiná-lo. Embora Abraão
obstinadamente cale-se sobre o propósito divino, a ponto de, talvez, tencionar-se à obrigação
da fala como confissão, inclusive, d