a ineficácia da convenção de arbitragem por insuficiência económica de uma das partes

5
Da Ineficácia da Convenção de Arbitragem por Insuficiência Económica de uma das Partes I. Uma questão que tem sido abordada e alvo de discussão no âmbito da convenção de arbitragem, quer pela doutrina 1 , quer em decisões judiciais 2 , prende-se com a questão da ineficácia da convenção de arbitragem por insuficiência económica de uma das partes. Nesta circunstância, tem-se questionado e debatido a possibilidade de uma das partes, uma vez invocada a sua insuficiência económica e a impossibilidade de suportar a respectiva quota-parte dos encargos com a constituição e o funcionamento do tribunal arbitral, poder instaurar acção nos tribunais judiciais, sem que lhe possa ser oposta pela contraparte, ou contrapartes, a incompetência absoluta do tribunal decorrente da preterição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto na alínea b) do art. 96º do Código de Processo Civil (CPC) 3 e a subsequente excepção dilatória decorrente da incompetência absoluta do tribunal, prevista no art. 577.º/b) do CPC. 1 Cfr. MANUEL PEREIRA BARROCAS, Manual de Arbitragem, 2010, pp. 231-234; bem como, JOSÉ MIGUEL JÚDICE, Anotação ao Acórdão 311/08 do Tribunal Constitucional, 2009 (disponível emhttp://www.josemigueljudicearbitration.com/xms/files/03_ARTIGOS_CONF ERENCIAS_JMJ/01_Artigos_JMJ/ Acesso_a_Justica_Anotacao_Acordao_311_TC_.pdf , consultado pela última vez em 9 de Dezembro de 2013; também publicado na Revista Internacional de Arbitragem e Mediação, Associação Portuguesa de Arbitragem, Ano 2, 2009, pp. 161-190). 2 Cfr. o Ac. do STJ de 18/05/1999; Processo n.º 99A1015; Relator: ARAGÃO SEIA; e o Ac. do STJ de 28/11/2002; Processo n.º 03B1604; Relator: PIRES DA ROSA (ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt , consultado pela última vez em 9 de Dezembro de 2013); e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 311/08 de 30 de Maio de 2008, publicado em Diário da República, 2ª série, nº 148, 1 de Agosto de 2008, pp. 34401- 5. 3 Doravante, qualquer referência ao Código de Processo Civil terá em conta a recentíssima reforma levada a cabo pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.

Upload: joao-mascarenhas-de-carvalho

Post on 16-Jan-2016

12 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Ineficácia Da Convenção de Arbitragem Por Insuficiência Económica de Uma Das Partes

Da Ineficácia da Convenção de Arbitragem por Insuficiência

Económica de uma das Partes

I. Uma questão que tem sido abordada e alvo de discussão no âmbito da convenção de arbitragem, quer pela doutrina1, quer em decisões judiciais2, prende-se com a questão da ineficácia da convenção de arbitragem por insuficiência económica de uma das partes.

Nesta circunstância, tem-se questionado e debatido a possibilidade de uma das partes, uma vez invocada a sua insuficiência económica e a impossibilidade de suportar a respectiva quota-parte dos encargos com a constituição e o funcionamento do tribunal arbitral, poder instaurar acção nos tribunais judiciais, sem que lhe possa ser oposta pela contraparte, ou contrapartes, a incompetência absoluta do tribunal decorrente da preterição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto na alínea b) do art. 96º do Código de Processo Civil (CPC)3 e a subsequente excepção dilatória decorrente da incompetência absoluta do tribunal, prevista no art. 577.º/b) do CPC.

E se na doutrina ainda se discute a possibilidade do recurso aos tribunais judiciais sem que primeiro se esgotem outras medidas alternativas que possam salvaguardar a intervenção do tribunal arbitral, como adiante melhor se verá4, já as decisões judiciais que têm vindo a ser proferidas sobre esta matéria vêm consagrando unanimemente aquela faculdade, desde que estejamos em presença de uma situação de insuficiência económica de uma das partes.

II. Esta insuficiência económica tem sido aferida, quer em razão dos requisitos próprios do estabelecido para a impossibilidade objectiva

1 Cfr. MANUEL PEREIRA BARROCAS, Manual de Arbitragem, 2010, pp. 231-234; bem como, JOSÉ MIGUEL JÚDICE, Anotação ao Acórdão 311/08 do Tribunal Constitucional, 2009 (disponível emhttp://www.josemigueljudicearbitration.com/xms/files/03_ARTIGOS_CONFERENCIAS_JMJ/01_Artigos_JMJ/Acesso_a_Justica_Anotacao_Acordao_311_TC_.pdf, consultado pela última vez em 9 de Dezembro de 2013; também publicado na Revista Internacional de Arbitragem e Mediação, Associação Portuguesa de Arbitragem, Ano 2, 2009, pp. 161-190).2 Cfr. o Ac. do STJ de 18/05/1999; Processo n.º 99A1015; Relator: ARAGÃO SEIA; e o Ac. do STJ de 28/11/2002; Processo n.º 03B1604; Relator: PIRES DA ROSA (ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt, consultado pela última vez em 9 de Dezembro de 2013); e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 311/08 de 30 de Maio de 2008, publicado em Diário da República, 2ª série, nº 148, 1 de Agosto de 2008, pp. 34401-5.3 Doravante, qualquer referência ao Código de Processo Civil terá em conta a recentíssima reforma levada a cabo pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho. 4 JOSÉ MIGUEL JÚDICE, Anotação ao Acórdão…, cit.

Page 2: A Ineficácia Da Convenção de Arbitragem Por Insuficiência Económica de Uma Das Partes

(cfr. art.º 790º do CC), quer em razão do princípio constitucional da garantia do acesso à justiça (cfr. art.º 20º, nº 1 da CRP).

Duas questões fundamentais, em torno do que muito se tem debatido e desenvolvido o entendimento sobre a ineficácia da convenção de arbitragem por insuficiência económica de uma das partes e a consequente possibilidade do recurso dessa parte aos tribunais judiciais para dirimir o conflito de interesses em causa. A questão da insuficiência económica de uma das partes, levanta desde logo o problema de como determinar e reconhecer a sua efectiva verificação.

Nos casos em que a insuficiência económica invocada junto dos tribunais judiciais resulta na concessão do apoio judiciário, essa insuficiência não só deverá ser dada como plenamente provada, como o recurso a esta instância, em detrimento da convenção de arbitragem, encontra total justificação, dado que a parte nunca poderia obter tal benefício no âmbito do tribunal arbitral, por aqui o Estado não prestar esse apoio5.

Mas a concessão do apoio judiciário não deverá por si só constituir-se como regra absoluta, ou pedra de toque, para aferir da insuficiência económica da parte que a invoca, pois que, face às despesas e encargos previsivelmente elevados decorrentes da constituição e funcionamento do tribunal arbitral, poderá a parte não ter meios para a suportar e, ainda assim, ter condição económica para custear um pleito nos tribunais judiciais, mesmo sem apoio judiciário, por configurar encargos económicos, porventura, de menor monta.

III. Sobre esta temática pronunciou-se também já o Tribunal Constitucional, que, através do Acórdão nº 311/086, veio adoptar idêntico entendimento, quer quanto à impossibilidade objectiva por insuficiência económica - embora aferindo aqui tal situação pelo recurso à concessão do apoio judiciário e que, em nossa opinião, não se deve esgotar em tal evidência, com no parágrafo anterior ficou dito -, quer quanto à garantia do acesso à justiça, constitucionalmente garantida (art.º 20º, nº 1 da CRP).

No Acórdão em apreço, o Tribunal Constitucional, sem por em causa as instâncias arbitrais, consagradas na ordem jurídico-constitucional portuguesa (art.º 209º, nº 2, da CRP), nem tão pouco os princípios constitucionais da confiança e determinabilidade da lei aplicável, vem

5 V., o Ac. do TRL de 05/06/2001; Processo n.º 00110641; Relator: LOPES BENTO, segundo o qual “o regime de apoio judiciário não se aplica nos tribunais arbitrais”.6 Ac. do TC n.º 311/08 de 30 de Maio de 2008, publicado em Diário da República, 2ª série, nº 148, 1 de Agosto de 2008, pp. 34401-5.

Page 3: A Ineficácia Da Convenção de Arbitragem Por Insuficiência Económica de Uma Das Partes

defender a improcedência e julgar inconstitucional a excepção dilatória da violação da convenção de arbitragem, com a consequente inaplicação dos arts. 96.º/b) e 577.º/b) do CPC, deduzida contra a parte em situação superveniente de insuficiência económica, no âmbito de um litígio que recai sobre uma conduta a que eventualmente seja de imputar essa situação, por violação da garantia do acesso à justiça, consagrado no art.º 20º, nº 1 da CRP.

Este entendimento merece, porém, certas críticas por parte de alguma doutrina. Veja-se a este propósito os comentários ao citado Acórdão feitos pelo Dr. José Miguel Júdice7, em que é posto em causa o entendimento expandido pelo Tribunal Constitucional, por várias ordens de razão, sumariamente espelhadas em função da matéria não configurar um conflito insanável, mas, ao invés, susceptível de harmonização; a possibilidade de se encontrar no sistema normativo uma solução pacífica, sem que necessariamente se tenha que decidir pela sobreposição de um dos direitos; haver meios para resolver o conflito de direitos de forma menos radical e menos provocadora de tensões; e de ser possível, e preferível, restringir os efeitos da solução adoptada para dirimir o conflito de leis de um modo generalizado.

Por via de tal perspectiva, entende o autor em análise que naquele Acórdão o Tribunal Constitucional não só falhou, como “abriu a admissibilidade da prevalência de um direito – o previsto no art.º 20º da Constituição – sobre outro, nos termos em que foi construída a ratio decidendi, deixa aberto o caminho para abusos ou pelo menos para a construção de soluções de abusivas que servirão de manobras dilatórias.”.

Não obstante a pertinência destas questões e dúvidas, é o próprio Acórdão do Tribunal Constitucional que no seu corpo responde a alguma delas, deixando em aberto matéria para reflexão. Veja-se a este propósito a passagem em que, insinuando os acima aludidos princípios constitucionais da confiança e determinabilidade da lei aplicável, refere que “o interesse sacrificado com a preterição do tribunal arbitral é de ordem puramente instrumental, tem a ver apenas com o afastamento de uma via preferencial de apreciação e solução de litígio. Não é afectada, ainda que indirectamente, nenhuma posição material atinente à destinação dos bens. As

7 A já referida Anotação ao Acórdão 311/08 do Tribunal Constitucional, 2009 (disponível em http://www.josemigueljudicearbitration.com/xms/files/03_ARTIGOS_CONFERENCIAS_JMJ/01_Artigos_JMJ/Acesso_a_Justica_Anotacao_Acordao_311_TC_.pdf, consultado pela última vez em 9 de Dezembro de 2013).

Page 4: A Ineficácia Da Convenção de Arbitragem Por Insuficiência Económica de Uma Das Partes

possibilidades de realização do interesse final do recorrente, quanto ao objecto do litígio, mantêm-se intactas.”

IV. Pese embora tais questões doutrinárias, parece, pois, ser pacífico que na ordem jurídica portuguesa vigora o princípio de não poder ser imposta a realização de arbitragem à parte que, após a celebração da convenção arbitral, deixou de ter meios para suportar os encargos com a constituição e o funcionamento do tribunal arbitral.

Assim, e para tal efeito, deverá essa insuficiência económica, que, a verificar-se, configurará uma verdadeira alteração de circunstâncias superveniente, ser expressamente invocada e provada pela parte que dela se pretenda fazer valer.

A ineficácia da convenção de arbitragem, por insuficiência económica superveniente de uma das partes, é igualmente relevante no caso de ser invocada no início do procedimento respectivo, sendo que o tribunal arbitral, logo que constituído, deverá apreciar o invocado, sendo que vindo a reconhecer a insuficiência, mediante a aferição daqueles pressupostos, deverá declarar ineficaz a convenção de arbitragem.

João Mascarenhas de Carvalho

Aluno n.º 142713061 do Mestrado Forense da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa