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A INTERCULTURALIDADE EM QUESTÃO: REFLEXÕES A PARTIR DO
ENSINO DA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
SANTOS, Ana Paula da Silva
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ
SILVA, Rita de Cassia de Oliveira e
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ
Resumo
A Educação Física, enquanto prática pedagógica, vem assumindo os desafios
impostos pela diferença no âmbito educacional. Propostas classificatórias e excludentes
não mais atendem à demanda deste componente curricular frente a tais desafios. Neste
contexto, apesar de possibilitar aos indivíduos interagir entre si, relacionando-se através
da expressão do movimento, a Educação Física também pode ser responsável por
reproduzir visões hegemônicas de conteúdos que privilegiam modelos homogeneizados
de corpos, atitudes e comportamentos. Neste sentido, este estudo teve como objetivo
compreender como a diferença é tratada e questionada nas aulas de Educação Física em
uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública e como a formação
de professores/as está impregnada (ou não) pelas demandas advindas desta prática
pedagógica. Como instrumentos metodológicos utilizamos entrevista coletiva com os/as
alunos/as, entrevista semi-estruturada com o professor, observação destas aulas, as
anotações das narrativas e comportamentos considerados significantes e a observação das
aulas de um curso de formação de professores. Como descoberta relevante evidenciamos
que a diferença, embora de forma tênue, já começa a adentrar os espaços da prática
pedagógica da Educação Física, assim como os cursos de formação.Assim, acreditamos
que relacionar a perspectiva intercultural ao ensino de Educação Física, seja na prática
pedagógica ou nos cursos de formação inicial, possibilita refletir sobre as desigualdades
presentes no espaço escolar e construir propostas de intervenção que viabilizem a
superação de preconceitos e discriminações. Um ensino que considere o universo cultural
dos estudantes, abrindo espaço para a diversidade de gênero, etnia, classe social e raça
presentes na sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Educação Física, Diferença e Interculturalidade
Introdução
A questão da diferença vem apresentando na nossa sociedade cada vez mais
visibilidade e se manifesta de diversas formas, desde as questões étnicas, de gênero,
orientação sexual e classe social, até mesmo as questões religiosas, modos de expressão
e saberes. As problemáticas são múltiplas, especialmente visibilizadas por grupos
considerados desprestigiados culturalmente que buscam a sua legitimação através da
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denúncia de injustiças, discriminações e desigualdades reivindicando igualdade e
reconhecimento político e cultural.
Neste universo, a educação estabelece uma relação profunda com a cultura, não
podendo ser analisada sem que haja uma profunda relação. Corroborando com tal
proposição, Candau (2008, p.13) afirma:
[...] não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto
que se situa. Neste sentido, não é possível conceber uma experiência
pedagógica ‘desculturizada’, isto é, desvinculada totalmente das questões
culturais da sociedade (CANDAU, 2008, p. 13).
A referida autora destaca também que, em tempos atuais, a consciência do caráter
homogeneizador e monocultural da escola é cada vez mais profundo, assim como, de uma
forma até contraditória, a consciência da necessidade de romper com esta e construir
práticas em que as questões relacionadas à diferença e ao multiculturalismo sejam
reconhecidas.
A Educação Física como campo de conhecimento, apesar de possibilitar aos
indivíduos interagir entre si, relacionando-se através da expressão do movimento,
também pode ser responsável por reproduzir visões hegemônicas de conteúdos que
privilegiam modelos homogeneizados de corpos, atitudes e comportamentos que
colaboram para silenciar as vozes de grupos discriminados historicamente.
Deste modo, os indivíduos se apropriam de um repertório gestual que caracteriza
a cultura corporali na qual estão inseridos, onde a brincadeira, o jogo, o esporte, a dança,
a luta e a ginástica podem ser entendidos como elementos constitutivos da identidade
cultural de seus praticantes (NEIRA, 2011).
Reconhecendo a importância pedagógica e política do comprometimento em
formar identidades culturais abertas e sensíveis à diferença (CANEN, 2008), é
fundamental pensar na construção de currículos no campo da Educação Física que
rompam com princípios tradicionais da área caracterizados por serem elitistas,
excludentes, classificatórios e monoculturais.
Desta forma, como salienta Neira (2011), com aulas focadas nas habilidades
motoras, na aprendizagem do gesto esportivo ou nas visões monoculturais de saúde e
cuidados com o corpo, dificilmente o currículo possibilitará a construção de
subjetividades abertas à diversidade cultural.
Dentro deste contexto, algumas questões nos parecem urgentes para a prática
pedagógica da Educação Física: por que ainda nos deparamos com propostas
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competitivas e excludentes? Por que as questões relacionadas à diferença e diversidade
cultural ainda são tão incipientes no campo? De que forma os/as professores/as podem
promover em suas práticas, oportunidades inclusivas, transformadoras, valorizadoras da
diferença e que desnaturalizem e questionem preconceitos e discriminações? Como a
formação de professores/as pode contribuir para uma futura prática pedagógica sensível
para as questões culturais?
Para tanto, foram analisadas duas propostas: a prática pedagógica de um professor
de Educação Física atuante na Rede Pública de Ensino do Rio de Janeiro e um curso de
formação de professores/as de Educação Física, localizado na mesma cidade.
Procuramos a partir destes dados, compreender como a diferença é tratada e
questionada nas aulas da referida disciplina em turmas de 5º ano do Ensino Fundamental
e como a formação de professores/as é impregnada (ou não) pelas demandas advindas
desta prática pedagógica.
Educação Física e tendências pedagógicas: onde fica a “diferença”?
Entendendo a Educação Física como integrante da educação geral de todo/a
educando/a desde a Educação infantil até o Ensino médio, acredita-se que ela tenha
características diferenciadas dos outros campos do conhecimento, pois em suas aulas, os
indivíduos parecem estar mais livres das limitações impostas pelas carteiras, cadeiras,
mesas e salas escolares.
Entretanto, se, por um lado, a Educação Física representa este espaço
potencialmente transformador e diferenciado na educação escolar, por outro, tem sido
estruturada por uma visão competitiva, construída historicamente, deixando-se, não raro,
penetrar por perspectivas hegemônicas de uma sociedade que privilegia modelos
padronizados de corpo, êxito e individualismo.
No Brasil, a Educação Física apareceu associada aos ideais eugênicos de
regeneração e embranquecimento da raça. Tal concepção foi sendo difundida em
congressos médicos, propostas pedagógicas e em discursos políticos, tornando-se, assim,
um poderoso instrumento nas mãos da burguesia para justificar seu domínio de classe em
busca do progresso. A explicação biológica aprisionava o indivíduo em determinados
espaços de classe e papéis sociais, garantindo-se, deste modo, a ordem social vigente. Os
discursos presentes nestes currículos enfatizavam padrões de feminilidade,
masculinidade, classe social e etnia desprezando qualquer outra possibilidade (NEIRA,
2011, SOARES, 2012).
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De acordo com Ghiraldelli Jr (1992), o viés higienista da Educação Física é
fortemente evidenciado nos anos finais do Império até a primeira república. Esta
tendência defendia a ênfase na questão da saúde, ou seja, a ginástica, o jogo, os esportes
em geral, tinham o objetivo de disciplinar os hábitos das pessoas no sentido de levá-las a
se afastarem de práticas que pudessem deteriorar sua saúde e também os aspectos morais,
comprometendo assim a “vida coletiva”.
A Educação Física militarista (década de 1930 e meados da década de 40),
segundo Ghiraldelli Jr (1992), destacava o seu papel na formação do homem obediente e
adestrado. A ideia central de tal concepção era o “aperfeiçoamento da raça” seguindo as
determinações impostas pela “biologia nazifascista”, daí a Educação Física funcionar
como atividade aceleradora do processo de seleção natural. Até hoje vemos práticas que
nos remetem ao militarismo: a formação dos/as alunos/as em filas, o uso do apito, a defesa
da bandeira do país em jogos internacionais, são exemplos desta influência.
No período pós-guerra (1945 a 1964) surge a chamada Educação Física
Pedagogicista que inaugura formas de pensamentos que modificam a prática da Educação
Física: instauração da apologia da Educação Física enquanto “centro vivo” da escola
pública, ou seja, professores/as de Educação Física são, desde então, responsáveis pelas
particularidades educativas das quais as outras disciplinas, as chamadas “instrutivas” não
poderiam cuidar (GHIRALDELLI JR, 1992). Pode-se encontrar esta prática até hoje em
escolas públicas e privadas, causando um esvaziando e até menos a “menos valia” dos
conteúdos específicos da área de Educação Física.
A Educação Física nos anos 70 ganha um viés competitivista, vinculado ao grande
avanço científico nas áreas ligadas ao campo biomédico. Com isso, a Educação Física foi
utilizada para eliminar as críticas internas e para forjar o clima de prosperidade,
desenvolvimento e tranquilidade (GHIRALDELLI JR, 1992).
Romper com a lógica biológica e naturalizada se constitui como o grande desafio
da área a partir da década de 1980, época em que os primeiros sinais de resistências e
subversão a esse modelo hegemônico começam a surgir, impulsionados principalmente
pelos movimentos sociais e as teorias críticas. As chamadas abordagens de Educação
Física escolar surgiram com objetivo de combater o viés competitivista e excludente
presente até então.
Mas e a “diferença”, onde fica nesta história? Para Neira (2007), a prática
pedagógica do campo da Educação Física tem apresentado um grande vínculo com
interpretações instrumentais para o movimento humano o que caracterizaria seu ensino
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pela transmissão e reprodução de padrões preestabelecidos, retirados de elementos
culturais específicos (esportes), o que desencadeia a rejeição pelas diferenças técnicas
dos/as alunos/as ou ainda, o desenvolvimento de habilidades motoras (educação do
movimento) e perspectivas (educação pelo movimento), voltadas para o desempenho,
para o mérito e para o lazer funcional.
Concordamos com Daólio (2004) ao afirmar que a Educação Física pode e deve
ampliar seus horizontes, abandonando de vez a premissa de investigar o movimento
humano, o corpo físico ou o esporte na sua dimensão técnica, para tornar-se um campo
de atuação que considere o ser humano como ator cultural e social.
Neira (2007) adiciona que, como componente curricular, a Educação Física
precisa proporcionar aos/às alunos/as algo que lhes permita superar o saber construído e
vivido para além dos muros escolares. Ela tem de contribuir para a existência do
questionamento acerca dos saberes e a consolidação de um projeto de vida. O mesmo
autor vai além, sinaliza que a prática da Educação Física, em uma abordagem cultural,
visa proporcionar aos sujeitos da educação a oportunidade de conhecer mais
profundamente o seu repertório de cultural corporal ampliando-o e compreendendo-o.
além disso, visa também fornecer acesso a alguns códigos de comunicação de diversas
culturas, por meio da variedade de formas de manifestações corporais.
Em se tratando da formação dos/as professores/as de Educação Física em uma
perspectiva multicultural, estudos indicam (OLIVEIRA e SILVA, JANOÁRIO &
CANEN, 2007), a importância da formação inicial e continuada nas construções teóricas
e nas práticas pedagógicas dos/as professores/as que, segundo uma perspectiva
multicultural, podem implicar na sensibilização para a diversidade cultural de raça,
gênero, classe social e etnia.
Interculturalidade: uma luz no fim do túnel?
Segundo Candau e Russo (2011), a interculturalidade é concebida como uma
estratégia ética, política e epistêmica. Nesta perspectiva, através dos processos educativos
questiona-se a colonialidadeii presente na sociedade e na educação, desvela-se o racismo
e a racialização das relações, promove-se o reconhecimento de distintos saberes e
consolida-se o diálogo entre diferentes conhecimentos, combate-se as diferentes formas
de des-humanização, estimula-se a construção de identidades culturais e o
empoderamento de pessoas e grupos excluídos, favorecendo processos coletivos no que
diz respeito a projetos de vida pessoal e de sociedades “outras”.
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A educação intercultural é confrontada com as visões diferencialistas que visam
processos radicais de afirmação de identidades culturais específicas. Procura superar a
versão essencialista das mesmas e parte da afirmação de que na nossa sociedade, os
processos de hibridização cultural são intensos e geradores da construção de identidades
móveis, abertas e em permanente construção. É ainda consciente dos mecanismos de
poder que permeiam as relações culturais e não desvincula as questões da diferença e da
desigualdade presentes na realidade contemporânea (CANDAU, 2010).
Para Oliveira &Daólio (2011), a educação intercultural trata-se de um movimento
em prol do aprender com o diferente e com ele produzir de forma coletiva. Não para
descartá-lo, nem para supervalorizar determinada cultura, inferiorizá-lo ou subjugá-lo,
mas para a efetivação de um diálogo igualitário, no qual diferentes vozes sejam ouvidas.
Adicionam que a possibilidade de enfrentamento das desigualdades de oportunidades,
estereótipos, preconceitos e sectarismos, ainda diluídos nos cotidianos escolares, dado
pela perspectiva intercultural de educação, aponta para outro tipo de relação social
escolar: o compartilhar democrático, pautado pelo diálogo mútuo entre diferentes
perspectivas.
Considerando a diversidade cultural como fator importante a ser pensado e
trabalhado para a concretização de uma educação de qualidadeiii, acreditamos que a
educação intercultural proposta com Candau (2010) nos possibilite enxergar o “outro”
em todas suas nuances e construções identitárias. Contudo, trata-se de uma perspectiva
que não pode ser vivenciada de forma estanque e apenas quando situações de preconceito
e discriminação ocorram. Necessita afetar todas as instâncias da educação, favorecendo
o constante diálogo entre os diferentes grupos, horizontalizando as relações.
Defendemos a educação intercultural como a perspectiva que pode nos oferecer
pistas e respostas para a realização de um processo educativo que contemple todos e todas
os/as discentes, respeitando suas identidades, dando possibilidades para um diálogo
verdadeiramente igualitário e inclusivo, permitindo assim que a escola possa ser
construída como um espaço de cruzamento de culturas e não como mantenedora de
desigualdades e silenciadora de identidades.
Pensando a diferença em “diferentes” contextos
Inspiradas na metodologia da pesquisa-ação, analisamos a prática pedagógica de
um professor de Educação Física e as aulas de uma turma de 5º ano em uma escola pública
do Rio de Janeiro. Os principais instrumentos metodológicos utilizados foram entrevista
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coletiva com os/as alunos/as, entrevista semi-estruturada com o professor, observação das
aulas e as anotações das narrativas e comportamentos nas aulas considerados
significantes.
Para Thiollent (2011) a pesquisa-ação é uma estratégia metodológica da pesquisa
social que além de ter uma ampla interação entre pesquisadores e pesquisados caminha
no sentido de promover ações concretas para solucionar os problemas detectados no
contexto em questão e aumentar o nível de consciência de todos os envolvidos.
Foi realizada também a técnica da observação, por um período de 2 semestres
letivos, das aulas de 5 disciplinas que compõem um curso de formação de professores/as
de Educação Física, localizado na cidade do Rio de Janeiro. Procuramos refletir sobre
aspectos importantes do que Roberto Cardoso de Oliveira (2006) chama de “O Trabalho
do Antropólogo”: olhar, ouvir e escrever.
Oliveira (2006) argumenta que o olhar e o ouvir não podem ser tomados como
faculdades totalmente independentes no exercício da investigação. Ambas
complementam-se e auxiliam ao/à pesquisador/a a tomar conhecimento da realidade
estudada. Assim como o olhar, o ouvir deve estar preparado para eliminar todos os
“ruídos” que lhe pareçam insignificantes, isto é, que não façam sentido para os fins da
pesquisa, dentro do corpo teórico da disciplina formadora ou para o paradigma no interior
do qual o/a pesquisador/a foi treinado.
A prática pedagógica do professor de Educação Física
O professor de Educação Física pesquisado é recém-formado e com um ano de
experiência na educação básica, mostrou-se interessado e motivado em atuar como sujeito
participante do estudo. Através de uma conversa inicial percebemos em sua fala que as
relações entre os gêneros apareciam como mais marcantes no que se refere a questão da
diferença no espaço da aula e,a seu ver, a turma apresentava uma nítida separação entre
os gêneros: “No momento em que eles vem para aula você percebe nitidamente o grupo
das meninas e dos meninos...conversando...separadamente. E isso prossegue até o
momento que você intervém...se você deixar eles vão assim até o final da aula...poucos
são os meninos e as meninas que tentam interagir em outros grupos”.
Sobre este fato, Louro (2003) afirma que a separação de meninos e meninas é,
muitas vezes, estimulada pelas atividades escolares que dividem grupos de estudo ou
propõem competições.
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Ao ser perguntado sobre a importância de tratar de assuntos ligados as questões
de gênero na prática pedagógica, o referido professor percebe a escola como espaço de
formação de valores mais igualitários entre homens e mulheres: “A escola tem um papel
muito importante, pois pode possibilitar a participação de meninos e meninas em
atividades em conjunto...e o professor acaba tendo um papel crucial pois ele vai ser o
mediador desta situação”.
A escola é considerada umas das instituições reprodutoras de ideologias sexistas.
De acordo com Louro (2003, p.61): “gestos, movimentos, sentidos são produzidos no
espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornando-se partes de seus corpos”.
Porém, esta mesma escola que reproduz, pode contribuir para a superação e
transformação de concepções preconceituosas e discriminatórias com relação às
diferenças de raça, etnia, classe social e gênero.
Em relação à prática pedagógica da Educação Física, a organização do presente
estudo englobou 10 aulas com 2 tempos de 50 minutos cada,totalizando 20 tempos de
aulas, que tiveram como participantes o professor de Educação Física, a turma de 5º ano
e, nós pesquisadoras.
Dentre estas aulas, destacamos as referentes à temática futebol como aquelas em
que a diferença a partir da categoria gênero, teve grande relevância. Nestas aulas, tivemos
como objetivo identificar e superar preconceitos relacionados ao gênero.
Dentre as palavras e expressões citadas pelos/as alunos/as, algumas nos
despertaram interesse por estarem vinculadas à questão de gênero como “futebol é coisa
de homeme as meninas não sabem jogar futebol porque elas são fracas”.
Argumentamos que tais afirmações eram pautadas em construções
preconceituosas sobre o que é ser homem e o que é ser mulher na sociedade e que cabia
aos sujeitos escolherem suas práticas corporais sem que por esse motivo pudessem sofrer
algum tipo de preconceito ou discriminação.
Após sucessivas mediações, grande parte da turma aceitou participar em conjunto
na aula o que possibilitou discussão, reflexão e ressignificação de atitudes e
comportamentos nas relações entre os/as estudantes.
O relato do professor de Educação Física mostrou a importância atribuída a
intervenções pedagógicas sensíveis a questão da diferença: “É importante trabalhar as
questões de gênero nas aulas de Educação Física, pois mesmo havendo resistência por
parte dos alunos, eles apresentam a consciência sobre o respeito às diferenças e à
diversidade. A intervenção do professor é fundamental, pois se o professor não intervir
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nos momentos de conflito haverá a perpetuação do preconceito e da divisão por gênero,
pois estão coisas que já estão enraizadas na sociedade”.
A formação dos/as professores/as de Educação Física
A partir da observação realizada acerca de cinco disciplinas que compõem o curso
de formação em questão, podemos perceber alguns aspectos importantes para a reflexão
acerca da diversidade cultural.
Dentre as cinco disciplinas observadas, 2 são eminentemente teóricas e 3
apresentam aulas teóricas e práticas. As duas disciplinas teóricas são lecionadas pelo
mesmo professor. São atores deste momento da pesquisa: 3 mulheres e 1 homem. São 4
disciplinas obrigatórias e 1 eletiva para o curso de licenciatura em Educação Física. Cabe
salientar que a instituição também oferece o curso de graduação/bacharelado em
Educação Física e sendo assim, as disciplinas observadas também contam com a
participação de alunos/as deste curso, não tendo o professor ou professora qualquer
controle quanto à procedência acadêmica do curso. As disciplinas são em sua maioria,
oferecidas a alunos/as que estejam cursando a partir do 4º período e uma delas é oferecida
já no 1º, porém os/as alunos/as podem cursá-las a qualquer momento do curso uma vez
que as mesmas não apresentam pré-requisitos para sua participação.
Conteúdos ligados a diversidade cultural (diferença, pessoas com deficiência,
gênero e raça) são apresentados oficialmente em 2 disciplinas, a partir dos programas
oferecidos pelas professoras, aos/às educandos/as, embora as ementas das disciplinas,
presentes no site da instituição, não contemplem a temática.
Embora as disciplinas teóricas não contemplem oficialmente estas questões, elas
surgem cotidianamente nos debates acerca da formação destes/as futuros/as
professores/as e principalmente quando se discute a prática pedagógica dos/as
educadores/as físicos/as.
O professor que ministra duas disciplinas, entre as observadas, afirma que “o
professor de Educação Física não sabe e não está preparado para lidar com a diferença na
escola, ele às vezes até piora a situação”. Esta fala vai ao encontro do que Faria Júnior
(PIRES, 2006) salienta ao observar que o currículo de Educação Física teve sete anos de
atraso com relação à legislação e trinta anos às demais licenciaturas, no que diz respeito
à inserção das disciplinas pedagógicas efetivamente. Isso nos parece suficiente para
compreender uma possível dificuldade dos egressos dos cursos de Licenciatura em
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Educação Física, em lidar com as diferentes realidades encontradas nas escolas,
principalmente, nas instituições públicas de ensino.
Embora as questões ligadas à diferença e à diversidade não sejam contempladas
oficialmente em todas as disciplinas observadas, nas aulas práticas conflitos e discussões
surgem.
Em todas as disciplinas observadas, pelo menos em uma de suas aulas práticas
questões multiculturais surgem. São questões ligadas ao tema “gênero”,“Ah, mas as
meninas não tem habilidade pra isso”,“Os meninos têm mais força, então não vai valer”,
até discussões acerca do tema “raça”: “Não pega a bola preta não, senão na hora de dar o
nó você vai prender e nem vai ver mais seu próprio dedo”, “Marca o Neguebaiv”, “o
Negueba tá livre”.
Uma das disciplinas contempla de maneira ampla a preocupação com as pessoas
com deficiência, embora haja no curso uma disciplina que tem como objetivo discutir e
fornecer elementos para aulas direcionadas para este grupo.
Temas como “orientação sexual” são silenciados nas aulas, mas estão presentes
nos espaços informais da instituição, como corredores: “Não entendo bissexualidade, não
entendo isso, ou gosta de uma coisa, ou gosta de outra; “Enquanto elas faziam
escondidinho tava bom”.
Percebemos a partir das aulas observadas que as questões ligadas à diferença e à
diversidade cultural, embora de maneira tímida, estão presentes no curso de formação e
precisam ser mais amplamente explicitadas e discutidas, para que não sejamos
responsáveis pela manutenção do status quo. Muita ainda precisa ser feito, mas
percebemos que a preocupação com a diferença e a diversidade cultural já se encontra
presente na formação inicial de professores/as de Educação Física.
Algumas Considerações
Evidenciamos neste estudo que a diferença, embora de forma tênue, já começa a
adentrar os espaços da aula de Educação Física, seja como momento de questionamento
e reflexão, ou como momento de reafirmação de identidades. Em sua prática, o professor
de Educação Física mostrou preocupação em propor intervenções pedagógicas pautadas
na questão da diferença quando deparou-se com conflitos ocasionados pelas relações
entre os gêneros e as marcas da desigualdade que as imperam.
Em relação a análise das disciplinas do curso de formação em questão,
entendemos que a diferença também é abordada de forma incipiente, necessitando de
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maior discussão e reflexão contribuindo para formar futuros/as professores/as de
Educação Física com sensibilidade para as questões relacionadas à diversidade cultural.
Dentro do exposto, acreditamos que relacionar a perspectiva intercultural ao
ensino de Educação Física, seja na prática pedagógica ou nos cursos de formação inicial,
possibilita refletir sobre as desigualdades presentes no espaço escolar e construir
propostas de intervenção que viabilizem a superação de preconceitos e discriminações
através do reconhecimento, problematização e enfrentamento de desigualdades e
estereótipos presentes de forma naturalizada na escola e, especificadamente, nas aulas de
Educação Física.
Uma prática intercultural da Educação Física caminha em direção a um ensino
que considera o universo cultural dos estudantes, abrindo espaço para a diversidade de
gênero, etnia, classe social e raça presentes na sociedade contemporânea.
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iÀ cultura corporal são atribuídas as diferentes manifestações do esporte, do jogo, da ginástica, da dança e
da luta, cada uma dessas manifestações terá uma identidade cultural, sentido e significado diferentes na
cultura na qual ocorrem (NEIRA& NUNES, 2006). iiA colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno,
porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de poder entre os povos ou nações, refere-se à forma
como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do
mercado capitalista mundial e a ideia de raça. Ainda que o colonialismo tenha precedido à colonialidade,
esta sobrevive após o fim do colonialismo. A colonialidade se mantém viva nos manuais de aprendizagem,
nos critérios para os trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas
aspirações dos sujeitos e em tantos outros aspectos da experiência moderna. Enfim, respira-se a
colonialidade na modernidade cotidianamente (MALDONADO-TORRES apud OLIVEIRA, 2010). iiiAqui entendemos educação de qualidade como aquela que apresenta como pano de fundo a diversidade
cultural (CANDAU, 2010). ivA palavra “Negueba” faz referência a um jogador de futebol negro e é utilizada como apelido dado a um
dos alunos da turma que tem a pele escura.
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