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A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS DOS HOMOSSEXUAIS (uma breve análise da ADIN 4.277 e da ADPF 132, sob as luzes da liberdade, da igualdade e
da fraternidade) *
Luís Carlos Martins Alves Jr.**
“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.” (Guimarães Rosa: Grande Sertão Veredas).
Senhoras e Senhores.1. A merecida homenagem que a Seção Judiciária da Justiça Federal do
Estado do Piauí presta ao centenário de nascimento de Cláudio Pacheco revela o apreço
que essa instituição tem demonstrado em face de importantes figuras do cenário jurídico
nacional e regional.
2. As virtudes jurídicas de Cláudio Pacheco Brasil, bem como sua
vastíssima produção intelectual, foram desfiladas pelo eminente professor Celso Barros
Coelho. Este também uma das maiores referências do Direito e da Política piauiense.
3. Fiquei comovido com a lembrança de meu nome para participar desta
importante solenidade. Atribuo esse convite à amizade dos Juízes Federais e à
coincidência, para mim feliz, de ser conterrâneo do homenageado. Ambos somos filhos de
Campo Maior, a “Terra dos Carnaubais”.
4. Colho da oportunidade para revelar uma situação pitoresca ocorrida
ante esse fato: ser conterrâneo de Cláudio Pacheco.
* Esboço de texto (sem revisão) de fala proferida em justa homenagem ao centenário de nascimento do jurista Cláudio Pacheco Brasil, piauiense de Campo Maior, autor, dentre outras, das seguintes obras: (a) Tratado das Constituições Brasileiras – 14 volumes; (b) História do Banco do Brasil – 5 volumes; e (c) Novo Tratado das Constituições Brasileiras – 6 volumes. Evento patrocinado pela Seção Judiciária da Justiça Federal no Estado do Piauí, ocorrido em Teresina, no dia 25.9.2009.** Bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí – UFPI; Doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG; Professor de Direito Constitucional da Graduação, do Mestrado e do Doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília – CEUB; Procurador da Fazenda Nacional perante o Supremo Tribunal Federal.
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5. No ano de 1996, estimulado e conduzido pelo Professor Enoque
Soares Cavalcanti, fui prestar exames para ingressar no Curso de Doutorado na Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais - a tradicional “Casa de Afonso Penna”
-, na área de Direito Constitucional.
6. Naquela Academia, fui recebido pelo professor José Alfredo de
Oliveira Baracho - outro ídolo já caído -, que, após analisar o meu currículo e verificar o local
de nascimento, disse-me que sobre os meus ombros pesavam a tradição e a
respeitabilidade do nome de Cláudio Pacheco, e que eu soubesse honrar a memória do
grande constitucionalista brasileiro, nascido no Piauí.
7. Para minha fortuna, o fato de ser campomaiorense, conterrâneo do
homenageado, contribuiu para meu ingresso no doutorado, pois boa era a imagem que o
professor Baracho tinha do excepcional jurista piauiense.
8. Como assinalou o ilustre professor Celso Barros, o nome e o homem
Cláudio Pacheco foram muito além dos estreitos lindes do Piauí e viajaram o Brasil e o
Mundo.
9. Por isso, senhoras e senhores, de minha verdadeira emoção em
participar desta justa reverência à memória desse colosso das letras jurídicas.
10. Contudo, sou obrigado a confessar que talvez não tenha conseguido
honrar plenamente o nome do homenageado e provavelmente tenho frustrado as
expectativas depositadas pelo professor Baracho, pois careço das virtudes intelectuais que
sobejavam em Cláudio Pacheco.
11. Todavia, se me faltam esses indispensáveis dotes intelectuais que
distinguiam o eminente jurista homenageado, e que diferenciam os grandes mestres dos
pálidos aprendizes, sobram-me, no entanto, esforço, tenacidade, dedicação e
comprometimento nas missões que devo cumprir e nos estudos que empreendo.
12. E nesta sessão solene que honra a forte passagem de Cláudio
Pacheco, personagem que timbrou indelevelmente o seu nome nas letras jurídicas
nacionais, escolhi como tema de minha fala o seguinte assunto: os direitos
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constitucionais dos homossexuais, sob as luzes da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
13. Essa é a missão que pretendo cumprir: falar do palpitante tema que
aludi, procurando demonstrar que somente vale a pena “levar os direitos a sério” e dialogar
sobre a Constituição, o constitucionalismo e o direito constitucional quando vivenciamos um
regime verdadeiramente democrático, fundado na tolerância, na pluralidade, no respeito e
na consideração que todas as pessoas merecem, independentemente de suas
características pessoais, de suas posições sociais, de suas escolhas individuais ou das
alternativas de vida que procuram construir.
14. Isso porque todos somos uma experiência única e irrepetível na
história universal, e, sobretudo e principalmente, porque somos seres dotados de uma
essencial dignidade que nos humaniza, e que nos dá valor em si, pelo ser humano que
somos.
15. O simples fato de pertencer ao gênero humano já é por si só suficiente
e bastante para que tenhamos o direito de sermos individualmente considerados e nos dá o
dever de respeitar o outro, seja o igual, seja o diferente.
16. Esse é o ponto-de-partida de minha fala nesta solenidade. O ponto-de-
chegada deverá ser a adequada compreensão do específico fenômeno constitucional, tendo
como fio-condutor as promessas da liberdade, da igualdade e da fraternidade entre os
membros dessa fantástica e complexa experiência universal: a pessoa humana.
17. Nesse percurso, visitaremos as citadas ações e os direitos
constitucionais dos homossexuais, antes, contudo, trilharemos o caminho que perpassa pela
interpretação, argumentação e aplicação da Constituição.
18. Com efeito, as normas jurídicas podem ser compreendidas como
“técnica de imposição” ou como “arte de convencimento”. Nos regimes políticos autoritários,
o Direito se qualifica principalmente como instrumento de imposição de comportamentos
desejáveis pelos governantes. Todavia, cuide-se que nas verdadeiras democracias é
possível criticar o governo, os governantes e as instituições sem medo e sem o receio do
sofrer quaisquer constrangimentos ilegítimos.
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19. Nos regimes políticos democráticos, onde deve prevalecer o império
da razão e a busca dos consensos, por meio do diálogo, o direito se qualifica como “arte de
convencimento” na estabilização de expectativas comportamentais construídas pelos
governantes e pelos governados.
20. Na democracia, a norma jurídica é construída com a participação dos
envolvidos na solução civilizada dos problemas de convivência social.
21. Nos Poderes Estatais (Legislativo, Executivo e Judiciário) devem
existir canais de comunicação entre aqueles que criarão as normas jurídicas e aqueles que
serão os destinatários das conseqüências das normas criadas.
22. Se no regime autoritário, independentemente dos interesses dos
cidadãos, o governante impõe o direito que entende ser o mais adequado para garantir a
“paz social”, no regime democrático, o direito não é imposto pelo governante
independentemente dos interesses dos governados, mas a partir desses interesses, usando
da arte do convencimento dialógico e racional, ao invés da opressão, do temor e da força
bruta e irracional, própria dos governos autoritários. Além da almejada “paz”, busca-se a
“justiça” possível.
23. Pois bem, senhoras e senhores, por vivermos em um regime
democrático, entendido, repita-se, como reino da liberdade, da tolerância, da pluralidade, da
razão, do diálogo, da busca do consenso, da aceitação do outro e da inclusão dos
“diferentes”, como manifestações do respeito e consideração que todos igualmente
merecemos por sermos dignos desses tratamentos, parto da idéia do direito como “arte do
convencimento”.
24. Nessa perspectiva, devo estabelecer alguns “conceitos operacionais”
para uma adequada compreensão dos fenômenos constitucionais problemáticos.
25. Fixarei as noções de enunciado, de proposição e de norma
constitucional. Depois, assentarei as noções de interpretação, argumentação e a aplicação
das normas constitucionais. E, por fim, ainda na seara das premissas, acolherei a
metodologia do “tridimensionalismo constitucional”, uma visão temperada da clássica e
conhecida teoria “tridimensional do direito”, de Miguel Reale, na qual devemos considerar,
além do texto normativo, as circunstâncias fáticas e os valores sociais institucionalizados na
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construção da melhor decisão possível para a solução do problema constitucional sob
exame, empolgando os referenciais da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
26. Forte nesses fundamentos, enfrentaremos o tema específico dos
“direitos constitucionais dos homossexuais”.
27. Seguirei os passos trilhados por Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito,
2006, pp. 4 e seguintes) e por José Joaquim Gomes Canotilho (Direito Constitucional e
Teoria da Constituição,1998, pp. 1.065 e seguintes), chamarei de “enunciado constitucional”
as palavras contidas no texto constitucional, ou seja, os símbolos lingüísticos sujeitos a
múltiplas significações. As palavras podem ter, de acordo com as circunstâncias ou de
acordo com as pessoas, vários sentidos.
28. Certo. Os termos constitucionais não são unívocos, e muito menos
inequívocos. São termos plurívocos, a depender das circunstâncias ou das pessoas.
29. Continuo estribado nesses referidos autores. Chamarei de “proposição
constitucional” os múltiplos sentidos ou as diversas significações que podem ser atribuídas
aos “enunciados constitucionais” pela comunidade dos intérpretes ou dos envolvidos no
fenômeno constitucional. Cada “enunciado constitucional” pode suscitar, reitera-se, variadas
significações e os mais díspares sentidos.
30. Sucede, no entanto, que essas significações atribuídas, essas
“propostas constitucionais” não têm força vinculante. Ou seja, não podem obrigar, nem
proibir, nem facultar os comportamentos humanos ou das instituições, porque inexistem
conseqüências para o eventual cumprimento ou descumprimento de suas “recomendações”
ou “sugestões”.
31. As “proposições constitucionais” não são protegidas por “sanções”
institucionalizadas, no caso de eventual descumprimento, pois não acatar a proposição não
significa descumpri-la, mas tão somente não acolher a “sugestão ou a recomendação”
proposta. Também não viabilizam o recebimento de “prêmios” na hipótese de aceitação de
suas “recomendações” ou acolhimento de suas “sugestões”. Em suma, a proposição não
tem força jurídica vinculante, não é dever-ser jurídico que obriga ou proíbe ou faculta. É um
pode-ser, uma vez que todo e qualquer um pode fazer a sua “proposição constitucional”.
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32. E, para finalizar esses primeiros conceitos operacionais indispensáveis
para uma adequada compreensão dos fenômenos constitucionais, chamarei de “norma
constitucional” a significação, com força vinculante, atribuída ao “conjunto de enunciados” na
solução de problemas ou dúvidas constitucionais.
33. A “norma constitucional” é a decisão com força vinculante e com
validade jurídica que obriga ou proíbe ou faculta um determinado comportamento ou uma
específica conduta.
34. A “norma constitucional” é o “dever-ser” cujo eventual cumprimento
deverá gerar uma conseqüência “premial” ou cujo possível descumprimento deverá gerar
uma conseqüência “sancionatória”.
35. A “norma constitucional” deverá ser protegida pelas Instituições
estatais e sociais, pois deverá vincular as expectativas comportamentais dos indivíduos e
das corporações.
36. A principal diferença entre a “proposição constitucional” e a “norma
constitucional” reside na força vinculante e no caráter de validade jurídica desta – a norma –
em face daquela – a proposição.
37. Em síntese, podemos dizer que a “norma” é a “proposição” com força
vinculante e com validade jurídica, porquanto o seu eventual cumprimento pode ensejar
situações “premiais” e o seu possível descumprimento pode atrair a “sanção” socialmente
institucionalizada.
38. Nessa batida, se a “proposição” não gera qualquer conseqüência, a
“norma” poderá gerar no mínimo duas conseqüências: se observada, a possibilidade de não
sofrer quaisquer constrangimentos; se desrespeitada, a possibilidade de sofrer
constrangimentos (sanções institucionalizadas).
39. Isso nos conduz a não confundirmos o “texto normativo” (conjunto de
enunciados prescritos) com a “norma” (dever-ser vinculativo das condutas e
comportamentos).
40. A “norma” nasce do “texto”, mas com ele não se confunde.
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41. Nesse quadro, sabemos que “enunciado”, “proposição” e “norma”
constitucional são “coisas” distintas, a despeito de suas indiscutíveis proximidades e
interseções.
42. Repito, para bem sedimentar, o “enunciado” é o símbolo lingüístico
sujeito a diversas significações. A “proposição” é uma das múltiplas propostas de
significação que toda e qualquer pessoa pode fazer acerca dos “enunciados”. E a “norma” é
a significação válida e juridicamente vinculante que obriga ou proíbe ou faculta as condutas
e os comportamentos humanos.
43. Irei, nesse compasso, estabelecer as noções operacionais do que seja
a interpretação, a aplicação e a argumentação constitucional.
44. Lastreado nos cogitados doutrinadores (Kelsen e Canotilho), chamarei
de interpretação a atribuição de sentidos às circunstâncias fáticas e aos enunciados jurídico-
normativos.
45. É o intérprete quem diz o que lhe diz o direito. O direito não diz nada
para ninguém. Quem fala pelo direito é o seu intérprete. Por conseqüência, cada intérprete
tem o seu direito, motivado, não raras vezes, por “circunstâncias específicas”, “interesses
particulares” e “conveniências pessoais”.
46. Com razão Eros Roberto Grau (Ensaio e discurso sobre a
interpretação/aplicação do Direito, 2006, p. 30), hoje Ministro do STF, quando diz que o
direito é alográfico:
“O direito é alográfico. E alográfico porque o texto normativo não se
completa no sentido nele impresso pelo legislador. A ‘completude’ do
texto somente é atingida quando o sentido por ele expressado é
produzido, como nova forma de expressão, pelo intérprete”.
47. Todavia, há limites para a atuação do intérprete. O principal deles, ao
meu sentir, consiste no fato de que o intérprete deve respeitar o que está escrito no texto
normativo.
48. O que isso significa? Basicamente que o intérprete não pode falar o
que não está escrito no texto, nem pode deixar de falar aquilo que efetivamente está escrito
no texto. É chamada “limitação semântica” do texto.
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49. Isso implica no fato de que deve o intérprete atribuir os sentidos
possíveis a partir do texto normativo. Não pode o intérprete ignorar o que está escrito no
texto. Ao contrário, deve considerar o enunciado prescrito no texto normativo.
50. Contudo, isso não significa que o intérprete deverá ficar “enjaulado” no
escrito do texto normativo, mas também, repito, não poderá “se libertar arbitrariamente”
daquilo que efetivamente se encontra escrito no texto a ser interpretado.
51. Reitero: o intérprete não pode dizer o que não está “dito” no texto, nem
pode deixar de falar aquilo que o texto efetivamente “fala”. O texto normativo não pode ser
ignorado. As normas pressupõem os textos.
52. Além do respeito aos enunciados contidos no texto normativo, é
preciso reconhecer que tais enunciados não são contraditórios e se o forem são apenas
aparentemente contraditórios. O texto não pode “dizer” e “desdizer” algo ao mesmo tempo.
É de se reconhecer a unidade e a coerência narrativa do texto, rechaçando-se eventuais
contradições internas.
53. Na atribuição de significados normativos, o intérprete deve atribuir
sentidos razoáveis e proporcionais. Ou seja, adequados, aceitáveis, necessários e
compatíveis com a realidade social, política, cultural, econômica, científica, tecnológica etc.,
em suma, com as “circunstâncias fáticas” e com “os valores institucionalizados”. O
pressuposto para esses sentidos razoáveis e proporcionais é o “bom senso”. O direito deve
ser interpretado com “bom senso”.
54. No processo de interpretação, no caso de aparente contradição
(colisão ou conflito) entre os enunciados constitucionais, o intérprete deverá fazer uma
ponderação de interesses, bens e valores constitucionalizados, circunstanciando os
aspectos fáticos e considerando os enunciados constitucionais, para que seus eventuais
excessos subjetivistas não coloquem em risco a desejável certeza, segurança,
previsibilidade e estabilidade normativas.
55. Pois bem, se cada pessoa humana é livre para interpretar o direito,
atribuindo-lhe o sentido que melhor lhe aprouver, dadas as complexas circunstâncias da
vida e os múltiplos interesses existentes em uma sociedade, especialmente nas abertas e
multiculturais, tendo em perspectiva os paradigmas sociais e os prismas individuais dos
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intérpretes, na solução dos problemas jurídico-constitucionais há de se buscar uma
interpretação que seja vinculativa, ou seja, uma decisão que deve ser aplicada à solução do
caso concreto e sobre o qual há uma controvérsia jurídica que necessita ser resolvida ou
pacificada.
56. Nessa linha, chamarei de aplicação a solução normativa encontrada
para resolver um problema jurídico-constitucional, que decida um conflito de interesses e de
visões contrapostas.
57. Essa interpretação oficial e vinculativa é realizada pelos Poderes
Estatais (Legislativo, Executivo e Judiciário). No entanto, se o problema jurídico reclamar
uma decisão definitiva e solucionadora da controvérsia, deverá essa decisão ser
pronunciada pelo Poder Judiciário. Deverá ser construída em um processo judicial, cabendo
ao Juiz a missão de dizer quem está com a “verdade”, com a “razão” e com o “direito”.
58. Dito de modo direto e sem rebuços: a aplicação concreta do direito,
mediante uma interpretação válida e vinculante é a resultante de uma decisão judicial.
59. Isso significa que qualquer um pode – e deve – interpretar o direito.
Mas somente o Juiz deve – e pode – aplicá-lo de modo válido e vinculante, por meio de uma
decisão construída no seio de um devido processo legal, no qual haja a mais ampla defesa
e o indispensável contraditório.
60. Hans Kelsen (obra citada, p. 394) diz que o Juiz é o intérprete
autêntico do direito, porque ele cria o direito que será efetivamente vivenciado pelas
pessoas ou partes envolvidas na controvérsia sob sua apreciação.
61. Essa ação criadora da função jurisdicional foi examinado por Cláudio
Pacheco (Tratado das Constituições Brasileiras, Volume VII, 1965, pp. 13 e 14) para quem
pronunciar o direito, seja legal ou extralegal, é o objeto verdadeiro e completo da jurisdição.
62. Sobre esse aspecto da criatividade normativa do Juiz ou da
interpretação ou da aplicação judicial, disse Cláudio Pacheco, em longa, porém
indispensável, passagem pedagógica:
“Não é possível situar esta questão, abstratamente, apenas no terreno
doutrinário. Não é possível desconhecer que fecundos resultados de
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declaração, de revelação e de construção do direito fluem
constantemente da atividade de interpretação exercida pelos órgãos
judiciais. Mesmo que esses órgãos se mantenham, estritamente,
dentro do seu papel constitucional, a sua incessante ação
interpretativa estará sempre preenchendo o intervalo que permanece
vazio entre a imobilidade literal do texto da lei e a mobilidade
ininterrupta das situações e dos casos reais.
É pela interpretação judicial que a lei, imóvel na sua expressão literal,
segue o seu curso vital de movimento e de adaptação, alcança o
estado de plasticidade que é ao mesmo tempo a sua vida e a sua
força, que lhe abre todas as possibilidades de realização e de
execução. A interpretação judicial elastece a lei, que, sem essa
elasticidade, poderia ficar imóvel no ponto de partida da sua emissão
sem grandes possibilidades de uma plena introdução no convívio
social. Em todos os casos de omissão ou de imperfeição da lei, cabe
aos instrumentos de interpretação muitas vezes refundi-la, decidir para
preencher ou redecidir para possibilitar a execução, em todos estes
casos realmente legislando em sentido de complementação ou de
suprimento, sempre decidindo, certamente muito mais do que
simplesmente executando.
Temos ainda os casos mui freqüentes em que o juiz, deformando o
seu papel constitucional, em vez de só fielmente aplicar a lei, antes a
assimila, agora decidindo, total ou parcialmente, de modo paralelo ou
contraditório, com a própria emissão legislativa.” - Cláudio Pacheco
finaliza com essa relevante advertência contra eventuais abusos
judiciais.
63. De efeito, como dissemos, o intérprete, inclusive e principalmente o
judicial, não pode ignorar o que se contém no texto escrito. O Juiz, na solução da
controvérsia, deve partir do texto, inclusive para, se for o caso, ir além do texto normativo.
64. Tenho dito que na democracia o direito deve ser “arte de
convencimento”. No Estado Democrático de Direito, “vence quem convence”. É preciso
“convencer para vencer” as causas e demandas. Para convencer é preciso argumentar.
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65. Argumentar é demonstrar de modo convincente, aceitável e
racionalmente justificado, o porquê de o intérprete ter atribuído determinado sentido aos
textos normativos e o porquê de ter alcançado determinada solução para os problemas
jurídico-constitucionais que lhe estão submetidos.
66. Nesse particular, filio-me a Chaïm Perelman (Lógica Jurídica, 2000),
no sentido de que é preciso conhecer o seu “auditório” para bem argumentar e, por
conseqüência, para convencer e obter a livre adesão de quem se quer convencer.
67. Nessa perspectiva, há a argumentação do advogado (postulante) e a
argumentação do juiz (decisor).
68. O Advogado deve falar para persuadir o Juiz. O Juiz deve ser o
destinatário dos esforços argumentativos do advogado na tentativa de obter o
convencimento e a adesão do magistrado às suas postulações e o acolhimento dos
interesses e pretensões que defende em juízo. O Advogado deve sempre procurar
convencer o Juiz. O Juiz é o “auditório” do Advogado.
69. Esse é, ao meu sentir, o primeiro passo para o sucesso profissional de
um bom Advogado: perceber que o destinatário imediato de seu ofício é o Juiz.
70. O Juiz, por seu turno, não deve falar para o Advogado. O Juiz deve,
isso sim, falar para a parte, cidadão comum, que nem sempre, ou na maioria das vezes, não
tem o domínio da “linguagem jurídica” e não conhece os termos técnicos específicos do
direito.
71. O Juiz, ao decidir, decide para as partes, solucionando uma
controvérsia ou um conflito entre elas. Para que a decisão seja “convincente”, deve o Juiz
motivar e explicitar as razões justificadoras da solução encontrada e o porquê de ter feito
determinada escolha, pois ao decidir, o Juiz faz uma escolha, regra geral, opta em favor de
uma parte e, por conseqüência, em desfavor de outra. Diz “sim” para uma parte e “não” para
a outra.
72. Ora, para a parte que ouve o “sim” judicial, não interessam as
motivações ou razões justificadoras. A parte “vencedora” quase sempre sabe o porquê de
sua “vitória”.
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73. A rigor, é para a parte que ouve o “não”, que foi “derrotada”, que saiu
“perdedora” da “batalha judicial”, que deve o magistrado demonstrar de modo convincente,
aceitável e racional a motivação e a justificação de sua decisão que lha desfavoreceu.
74. A parte que ouviu o “não” do Juiz, ainda que dele discorde – e
normalmente dele discorda e não se conforma – deve ser convencida que o Juiz não
acolheu a sua pretensão, não concordou com a postulação de seu advogado, porque
efetivamente se convenceu de que o “direito” estava com a outra parte.
75. Em suma, o Juiz deve convencer o “derrotado” de que ele – Juiz –
ficou convencido de que o “vencedor” merecia “ganhar”. Essa demonstração de
convencimento judicial não é nenhum “favor”, mas expressa determinação constitucional
insculpida no art. 93, inciso IX, CF1, que impõe o dever de fundamentação das decisões
judiciais.
76. Fundamentar é explicitar de modo convincente, aceitável e racional as
motivações justificadoras das escolhas e opções feitas por quem tem o poder de decidir.
77. Convencer é uma “arte”. Para convencer, é preciso conhecer
profundamente o tema sobre o qual se vai falar e transmitir esse conhecimento de modo
agradável aos sentidos.
78. O advogado (aquele que postula) deve procurar sempre convencer o
juiz. O juiz (aquele que decide) deve sempre procurar convencer às partes, especialmente a
parte “derrotada”.
79. Tenha-se, por oportuno e necessário, que o Juiz democrático é aquele
que se permite convencer. É o Juiz imparcial. Aquele que, a despeito de seus prévios
entendimentos, de seus “preconceitos ou precompreensões” e de sua “visão de mundo”, se
permite “ouvir” o advogado. É o juiz que não tem medo nem se deixa intimidar por ninguém.
É o juiz, repito, que “ouve” o que a parte tem a lhe dizer.
1Art. 93, inciso IX: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
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80. O bom advogado é aquele que conhece o direito que vai postular; que
sabe “falar” com o juiz, com a merecida reverência, mas com altivez na defesa da parte que
representa.
81. Um dos melhores exemplos da “advocacia” foi a “petição” de Abraão
dirigida a Javé em favor dos eventuais inocentes de Sodoma (Gênesis, 18, 23-33),
verdadeira “aula” de como se deve pedir a quem tem o poder de decidir:
“Abraão aproximou-se e disse: ‘Fareis o justo perecer com o ímpio?
Talvez haja cinqüenta justos na cidade: fá-los-eis perecer? Não
perdoaríeis antes a cidade, em atenção aos cinqüenta justos que nela
poderíeis encontrar? Nãos, vós não poderíeis agir assim, matando o
justo com o ímpio, e tratando o justo como o ímpio! Longe de vós tal
pensamento! Não exerceria o juiz de toda a terra a justiça?’. O Senhor
disse: ‘Se eu encontrar em Sodoma cinqüenta justos, perdoarei a toda
a cidade em atenção a eles’.
Abraão continuou: ‘Não levei a mal, se ainda ouso falar ao meu
Senhor, embora seja eu pó e cinza. Se porventura faltarem cinco aos
cinqüenta justos, fareis perecer toda a cidade por causa desses
cinco?’ – Não a destruirei, respondeu o Senhor, se nela eu encontrar
quarenta e cinco justos.’ Abraão insistiu ainda e disse: ‘Talvez só haja
aí quarenta’. – ‘Não destruirei a cidade por causa desses quarenta’.
Abraão disse de novo: ‘Rogo-vos, Senhor, que não vos irriteis se eu
insisto ainda! Talvez só se encontrem trinta! – ‘Se eu encontrar trinta,
disse o Senhor, não o farei’. Abrão continuou: ‘Desculpai, se ouso
ainda, falar ao meu Senhor: pode ser que só se encontrem vinte’. –
‘Em atenção aos vinte, não a destruirei’. Abraão replicou: ‘Que o
Senhor não se irrite se falo ainda um última vez! Que será, se forem
achados dez?’ E Deus respondeu: ‘Não a destruirei por causa desses
dez’. E o Senhor retirou-se, depois de ter falado com Abraão, e este
voltou para a sua casa’.
82. Se Deus permanecesse conversando com Abraão, provavelmente
este teria demovido o Senhor da vontade de destruir Sodoma. O “advogado” Abraão fez o
que pode, mas o “Juiz Eterno” não quis mais lhe escutar.
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83. Evandro Lins (A defesa tem a palavra, 1980, pp. 20 e seguintes), que
foi um grande Ministro do STF e um excepcional Advogado, conquanto falasse do advogado
na “tribuna do júri”, deixou para todos nós a seguinte e válida orientação:
“A defesa é um meio que persegue um fim. Não é preciso defender
‘bonito’, é preciso defender ‘útil’.
Podem variar os estilos da eloqüência judiciária, mas ela há de ser
lógica, há de ter força, há de falar à razão e ao sentimento. Só é bom
advogado quem tem imaginação, criatividade, capacidade de se
renovar, poder de comunicação com os jurados...
Não deve o advogado descurar do estudo, da leitura de tudo que lhe
caía às mãos, literatura, poesia, história e direito, não só o direito
penal e as ciências causal-explicativas do crime, a sociologia, a
criminologia, a psicologia, mas também deve ter o conhecimento
perfeito e completo da causa que vai defender”
Estudem, conheçam o processo, organizem um esquema para o
desenvolvimento da defesa...
Leiam, releiam e tresleiam, todas as vezes que forem à tribuna, os
autores necessários à demonstração da tese a ser defendida, e
marquem os trechos que pretendam citar. Leiam, também, literatura,
leiam poesia, leiam história, porque é preciso abastecer-se para o
momento decisivo”.
84. Com razão Evandro Lins, piauiense nascido em Parnaíba. O
Advogado deve falar com “razão” e com “emoção”. O Juiz não é uma máquina insensível
aos sentimentos. O Juiz, pessoa humana que é, é ser racional e emocional. É um ser
humano como qualquer outro, com virtudes e vícios. A diferença reside no fato de que tem a
imensa e sagrada responsabilidade de decidir as causas de seus semelhantes.
85. Insisto na arte do convencimento. É preciso saber convencer. Para
isso, deve-se conhecer o “assunto” e deve-se transmitir esse conhecimento de modo
agradável e inteligível. É preciso ter o domínio da “palavra” e da “linguagem”.
86. Para isso, é preciso ler. Ler de tudo. Não apenas ler direito, mas
como disse Evandro Lins, ler tudo que lhes cair nas mãos, mormente “literatura de boa
qualidade”, pois somente tem o domínio da “palavra” quem tem boa leitura. É preciso visitar
os grandes autores nacionais e estrangeiros (Machado, Shakespeare, Balzac, Cervantes
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etc). É preciso conhecer e conviver com os gênios criativos da raça humana. Homens e
mulheres que refletem o que há de melhor nas capacidades e nas infinitas possibilidades do
gênero humano, inspiradores dos nossos melhores sonhos.
87. Peço licença para ler uma das mais belas passagens da literatura.
Cuida-se de trechos extraídos da peça “Antônio e Cleópatra”, de William Shakespeare.
88. Começo com a primeira fala da peça, no Ato I, Cena 1, é de Filo,
oficial romano, emitida em uma sala no palácio de Cleópatra, em Alexandria, no Egito,
falando para Demétrio, outro oficial romano. Filo critica o inaceitável comportamento
apaixonado de Antônio:
FILO: Não, mas esta caduquice e o enrabichamento do nosso general
desborda por todos os lados: aqueles olhos soberbos que, ao passar
em revista as fileiras das tropas formadas durante a guerra,
resplandeciam como Marte na armadura, agora baixam e inclinam-se,
concentrando o serviço devotado da inspeção numa fronte morena. O
seu coração de comandante militar, que na luta corpo-a-corpo das
grandes batalhas arrebentava com as palpitações as fivelas da
couraça, renega toda a têmpera de soldado e tornou-se o fole e o
abano para esfriar o fogo de uma meretriz egípcia. Examinai-o bem e
nele vereis um dos três pilares do mundo transformado no bobo e no
brinquedo amoroso de uma puta... Mirai e enxergareis.
89. A outra fala sucede no Ato II, Cena 2, entre Enobarbus, oficial romano
admirador de Antônio, e Agripa, oficial romano seguidor de Augusto César, na qual
Enobarbus explica para Agripa como Cleópatra cativou o coração de Antônio:
ENOBARBUS: No primeiro encontro com Marco Antônio, no rio Cidno,
ela botou o coração dele no bolso.
AGRIPA: Lá ela apareceu em todo o esplendor, ou o meu informante
inventou a vontade.
ENOBARBUS: Eu vo-lo contarei. Ela sentava-se num barco que, como
um trono flamejante, se queimava na água: a popa, recoberta de
lâminas de ouro marchetado; as velas, todas de púrpura e tão
perfumadas que os ventos delas se enamoravam; os remos de prata
marcavam o ritmo pela música de flautas e obrigavam a água que eles
batiam, como se apaixonada pelos golpes, a segui-los rapidamente
15
para cobrir os sulcos que cavavam. Quanto à sua própria pessoa,
qualquer descrição, por mais resplendente, afigura-se pobre se
comparada com a realidade: reclinada sob extensa tenda de tecido
entrelaçado de seda e ouro, era mais bela ainda que a pintura de
Vênus, em que a imaginação artística superou a natureza. A cada
lado seu, meninos formosos, de covinhas no rosto, semelhantes a
Cupidos sorridentes, com leques de cores várias. E o vento que os
leques agitavam parecia incandescer a face delicada que abanavam
para refrescar, desfazendo o que faziam.
AGRIPA: Que esplêndida experiência para Antônio!
ENOBARBUS: As suas damas de honra, análogas a ninfas do mar,
com ar de sereias, descobriam-lhe a vontade pelos seus olhos e, num
movimento gracioso, em torno dela formavam moldura ornamental. No
leme, outra senhora da corte, disfarçada em sereia, governa: as velas
e os cordumes de seda enchem-se de orgulho ao toque de mãos
delicadamente suaves como pétalas de flores e que com presteza
executam a tarefa. Vindo do barco, um maravilhoso perfume
inexplicável toca as pessoas postadas nas margens do rio. A cidade
expele os seus habitantes para vê-la; e Antônio, sentado no trono na
praça pública, permaneceu sozinho, assobiando para o ar que, se não
fosse o horror ao vácuo, também teria ido contemplar Cleópatra e
cavado um branco na natureza.
AGRIPA: Egípcia maravilhosa!
90. Indago: quem não se apaixonaria por Cleópatra? Quanto lirismo e
beleza no manejo da palavra.
91. A “palavra dominada” faz dela um poderoso instrumento de
manifestação de nossas visões, idéias, pensamentos, interesses e vontades. Sendo o
direito “arte de convencimento”, é fundamental que o intérprete tenha pleno domínio da
linguagem, não apenas a jurídica, mas de toda a linguagem para que saiba provocar e
iluminar a razão e tocar e suscitar as emoções do ouvinte/“auditório”.
92. O intérprete deve mirar no cérebro e no coração.
16
93. Repito à exaustão: argumentar é procurar persuadir e convencer. E só
persuade e convence quem conhece o assunto sobre o qual fala e sabe transmitir com
lucidez e de modo agradável esse conhecimento que domina.
94. A palavra pode ser escrita ou falada. A escrita, em princípio, deve ser
mais cerebral, mais racional, pois o “olho” humano é um grande aliado da “razão”. Por outro
lado, a palavra falada, sem prejuízo de sua racionalidade, pode ser mais emotiva, pois o
“ouvido” humano é mais sensível às emoções e às paixões.
95. O importante, reitero, é que o intérprete conheça tanto a matéria sobre
a qual discursará, e também conheça o destinatário de seu discurso, de modo que saiba
cativar as atenções de seu “auditório” e assim, se for o caso, poderá persuadi-lo e
convencê-lo a aderir às suas interpretações.
96. Certo. De posse desses conceitos operacionais e das técnicas de
persuasão e convencimento, o intérprete deverá escolher uma metodologia adequada para
compreender os fenômenos jurídico-normativos ou solucionar um problema jurídico-
constitucional.
97. Nesse particular, penso que a “teoria tridimensional do direito”,
exposta por Miguel Reale (Filosofia do Direito, 2002, pp. 497 e seguintes), adequada para
essa finalidade, sem embargo da existência de outros relevantes métodos jurídicos.
98. Isso significa que o intérprete do fenômeno jurídico-normativo, deverá
levar em consideração, para uma adequada compreensão ou solução do problema jurídico-
constitucional que lhe é submetido, as circunstâncias fáticas, os valores sociais
institucionalizados e os enunciados prescritos nos textos normativos e nos precedentes
judiciais.
99. Ou seja, deverá o intérprete ter o máximo conhecimento possível de
todas as circunstâncias que envolvam os fatos que deram ensejo ao conflito ou à
controvérsia jurídica. Os fatos são a base material sobre a qual será construída a decisão
solucionadora do conflito.
100. Na apreciação das circunstâncias fáticas, o intérprete deve considerar
os “valores sociais institucionalizados” e as suas “visões particulares do mundo e da
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realidade”. De efeito, o intérprete está inserido em um determinado contexto social,
influenciado pela “cultura” e, obviamente, tem a sua experiência individual de mundo.
101. Esses “valores” podem ser considerados como os paradigmas sociais
que estabelecem as “verdades” socialmente aceitas e compartilhadas pelos membros de
uma determinada sociedade em um circunstanciado momento histórico.
102. A esses “paradigmas sociais”, agreguem-se, repita-se, os “prismas
individuais” do intérprete. A sua singular experiência de vida. Os seus vícios, as suas
virtudes. As suas alegrias, as suas melancolias e frustrações. Os seus sonhos, esperanças,
e as suas desilusões. Enfim, a sua essencial humanidade.
103. E para completar o processo de interpretação, compreensão e solução
dos fenômenos e problemas jurídicos, deve-se levar em consideração os “enunciados”
prescritos nos textos normativos e nos precedentes judiciais.
104. O intérprete não pode desprezar as “palavras” contidas nos textos
normativos, já o dissemos. O texto não pode ser ignorado. O intérprete não pode dizer o que
o texto não diz, nem deixar de dizer o que o texto diz. É preciso respeitar e considerar o que
está escrito no texto. O mesmo se diga em relação aos precedentes judiciais. Esses
precedentes não podem ser ignorados pelos intérpretes.
105. Com efeito, direito não é diletantismo. É um instrumento para
solucionar problemas concretos da vida em sociedade. Nesse sentido, deve o intérprete
considerar as soluções já apresentadas para os mesmos problemas ou para questões
similares.
106. Nesse particular, o Juiz deve, em homenagem à sua própria
respeitabilidade, procurar ser fiel aos seus precedentes, às suas razões de decidir. A
coerência é uma das maiores virtudes dos bons magistrados. Isso produz a sensação
concreta de certeza e previsibilidade de quais comportamentos ou condutas são lícitas e
válidas. Isso sinaliza o que é proibido ou obrigatório ou facultativo.
107. No entanto, isso não significa que o Juiz não possa modificar o seu
entendimento ou as suas visões de mundo. Em absoluto. É até desejável que o Juiz evolua.
Todos nós evoluímos à medida que nos aperfeiçoamos, que nos abrimos para o mundo e
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deixamos a clausura de nossas prisões individuais. É fora de toda a dúvida que todos os
dias nós podemos nos modificar, que podemos evoluir, que podemos melhorar.
108. Sucede, todavia, que é preciso encontrar um “ponto ótimo” de
estabilidade, que não significa imutabilidade.
109. O intérprete, sobretudo o judicial, não deve ficar mudando de
entendimento a “toda hora ou a todo momento ou a cada nova causa”. Isso gera
instabilidade e incerteza, bem como desconfiança na seriedade e no comprometimento do
Juiz.
110. De sorte que o Juiz, sempre que for mudar o seu entendimento,
deverá justificar, de modo convincente, as motivações que o levaram a evoluir em suas
posições. Deve demonstrar que houve relevantes mudanças nas circunstâncias fáticas ou
nos paradigmas sociais ou nos prismas individuais ou mesmo nos enunciados prescritos nos
textos normativos e em outros precedentes jurisprudenciais.
111. O intérprete judicial não pode ter a “instabilidade das nuvens”. Não
pode se deixar conduzir por qualquer novo “vento teórico” ou por qualquer nova
“argumentação” ou “fundamentação”, sob pena de perder a credibilidade e o respeito.
112. A maior “arma” do Juiz repousa em sua credibilidade, em sua
seriedade e no respeito que a comunidade lhe devota. Um Juiz que não é respeitado,
porque não é coerente ou porque não tem uma reta conduta, é um fator de risco e de
desequilíbrio da boa convivência social.
113. Pois bem, senhoras e senhoras, encerro a primeira parte desta
exposição.
114. Finquei os seguintes alicerces: a) somente vale a pena dialogar e levar
a sério o direito nos regimes democráticos, onde reinam liberdade, a igualdade e a
fraternidade; b) a democracia é “a busca do consenso por meio do diálogo” e de que o
direito é “arte de convencimento”.
115. Estabeleci que se deve ter pleno domínio dos conceitos operacionais
“enunciado”, “proposição” e “norma”, e que a “interpretação”, a “aplicação” e a
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“argumentação” requerem uma adequada metodologia jurídica para bem compreender e
solucionar os problemas constitucionais.
116. De sorte que poderei analisar os “direitos constitucionais dos
homossexuais”. Este assunto é de provocante atualidade e extrema importância social, pois
felizmente vivemos em uma sociedade aberta e democrática, tendo como objetivo final o
pleno exercício das infinitas possibilidades de todos os seres humanos, tendo a dignidade
como tratamento que todos reciprocamente merecemos, uma vez que devemos aceitar as
pluralidades e exercitar a mútua tolerância.
117. Antes, contudo, insisto que a solução de problemas constitucionais
deve ocorrer à luz da sã razão e do diálogo sincero, fundado em evidências comprováveis e
socialmente aceitáveis.
118. Isso deve afastar as justificações religiosas do presente debate.
119. A religiosidade é um bem fundamental de qualquer cultura e deve ser
garantido a todas as pessoas o direito de exercitar as suas crenças. Mas também é preciso
respeitar os descrentes ou quem não compartilha das mesmas concepções de fé.
120. Isso não implica, em absoluto, na imposição de silêncio ao “discurso
religioso”. Mas no fato de que as “crenças religiosas” somente têm valor para quem nelas
acredita e deposita sua fé.
121. A religião é um poderoso instrumento de agregação social, de
identificação cultural e de orientação individual, iluminando o entendimento e o
comportamento de quem acredita no “divino”. Mas não pode servir de substrato para a
regulação jurídica das condutas dos indivíduos, pelo menos nos Estados Democráticos de
Direito.
122. Em uma verdadeira democracia, fundada na tolerância e na
pluralidade, ninguém pode ser constrangido a crer, nem a deixar de crer, ou a crer de uma
“única maneira”.
123. Assim, os “discursos religiosos”, que não devem ser silenciados,
somente têm valor para quem acredita no seu conteúdo e respeita o seu emissor.
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124. Nessa perspectiva, dentro dos “templos” ou falando para os seus
“fiéis”, as lideranças religiosas têm todo o direito de condenarem as práticas que julgarem
inadequadas àquela determinada religião ou que agridam determinada fé.
125. Isso está garantido no texto constitucional: a liberdade religiosa ou de
crença (art. 5º, VI, CF).
126. Ou seja, repito, o “líder religioso” pode condenar qualquer conduta.
Pode atacar o “marido que espanca sua esposa”. Pode condenar os “pais que abandonam
material e emocionalmente os seus filhos”. Pode atacar o “patrão que não trata com
dignidade os seus empregados”. Pode investir contra o “governante que usa do poder em
benefício próprio, em vez de trabalhar pela comunidade”. Enfim o “líder religioso” pode falar
o que quiser, inclusive dizer que o homossexualismo é pecado, se assim ele entender.
127. Todavia, esse “líder religioso” não poderá exigir a punição jurídica de
quem é homossexual, assim como não pode pedir o “apedrejamento da mulher adúltera” ou
“apedrejamento dos que não crêem em Javé”, como determina, por exemplo, o
Deuteronômio bíblico.
128. Nada obstante a transcendental sacralidade dos textos religiosos, em
nossa sociedade civil, aberta e democrática, as nossas condutas e comportamentos devem
ser pautados pelos mandamentos legais e constitucionais.
129. Reitero, a fé é um importante pilar de sustentação dos indivíduos e
das comunidades, mas não pode servir de pretexto para regular juridicamente os
comportamentos humanos.
130. Nessa toada, é fora de toda a dúvida, que a questão dos
homossexuais, especialmente nos países de formação religiosa e moral cristãs, fortemente
influenciados pelos princípios religiosos e morais do judaísmo e das tradições greco-
romana, sempre foi um tema problemático.
131. Na Inglaterra, por exemplo, pátria das liberdades fundamentais da
pessoa humana, viu-se a criminalização e tratamentos aviltantes sofridos pelos
homossexuais.
21
132. No ano de 1895, o genial escritor irlandês Oscar Wilde foi condenado
por “cometer atos imorais com diversos rapazes”. Ele intitulava o homossexualismo como “o
amor que não ousa dizer o nome”.
133. Tão grave quanto as punições sofridas por Oscar Wilde, foi o
tratamento hediondo e desumano infligido em Alan Turing, um dos maiores gênios da
matemática e da computação, que contribuiu decisivamente para que os ingleses
derrotassem os alemães na 2ª Grande Guerra, ao quebrar os códigos alemães ultra-
secretos.
134. Pois bem, por ser homossexual, Alan Turing foi afastado do serviço de
inteligência britânico, foi publicamente humilhado, julgado e condenado por “vícios
impróprios” e obrigado a tratar-se com hormônios para combater a sua homossexualidade.
Deprimido, com apenas 41 anos, cometeu suicídio em 7 de junho de 1954.
135. Recentemente, no último dia 11, deste mês, o governo britânico pediu
desculpas formais e resgatou o honrado e patriótico nome de Alan Turing. É claro que isso
não o trouxe de volta, nem justifica o indizível sofrimento que ele sofreu, mas revela uma
mudança de mentalidade, revela novos “paradigmas sociais”.
136. E nenhuma data poderia ser mais simbólica que o 11 de setembro,
pois no ano de 2001, os ataques terroristas cometidos contra as “Torres Gêmeas” nos EUA,
representaram, ao meu sentir, a ruptura da modernidade (a era das certezas racionais) e a
chegada da pós-modernidade (a era das incertezas racionais), superando de vez a pré-
modernidade (a era das certezas irracionais) (?).
137. A ninguém escapa que na tradição cristã ocidental, inclusive em nosso
País, as pessoas que tenham tendências homossexuais sempre se viram obrigadas a viver
no medo, no isolamento, na vergonha, na mentira, exilados dentro de sua própria pátria.
Talvez se fossem portadores de doenças contagiosas e infecciosas não sofreriam com
tantas humilhações e com tantos tratamentos indignos e desumanos.
138. Felizmente, nos últimos anos, a despeito da existência dos
preconceitos, os homossexuais estão organizados, em “associações” e “movimentos”, “em
passeatas de orgulho gay”, que reivindicam o justo e devido respeito e consideração que
merecem. Ser homossexual não é crime. É uma opção de vida que deve ser respeitada,
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pois que suas condutas não afetam nem prejudicam a vida de ninguém. É uma questão
eminentemente individual e restrita ao domínio da vida privada e da intimidade.
139. A homossexualidade, já o disse, pode até ser um ilícito religioso, a
depender das crenças e convicções religiosas de cada um. Pode até ser uma conduta
imoral, a depender dos valores de cada um. Mas não é e nem deve ser um ilícito civil, nem
muito menos uma conduta criminosa a ensejar uma sanção penal. É só um estilo ou uma
alternativa de vida. Nada mais do que isso.
140. Certo. Em uma perspectiva democrática, de verdadeiro respeito pelos
direitos fundamentais de todas as pessoas humanas, o “eu”, o “outro” e o “nós” somos a
medida de todas as coisas.
141. Nessa linha de compreensão, foi ajuizada ação perante o Supremo
Tribunal Federal postulando as seguintes declarações da Corte:
(a) que é obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da união entre
pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que
atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável
entre homem e mulher; e
(b) que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões
estáveis estendem-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do
mesmo sexo.
142. A referida ação foi proposta em 2.7.2009, pela Procuradora-Geral da
República Deborah Duprat, no exercício interino do elevado cargo.
143. Tenha-se que a PGR propôs inicialmente uma ADPF – argüição de
descumprimento preceito fundamental, tombada sob n. 178. Mas o Presidente da Suprema
Corte, Ministro Gilmar Mendes, aplicando o princípio da fungibilidade processual,
determinou que fosse reautuada como ADIN – ação direta de inconstitucionalidade,
tombada sob o n. 4.277. Não nos interessam essas filigranas processuais.
144. Cuide-se, por uma questão de justiça histórica, que o Governador do
Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, em 27.2.2008, propôs uma ADPF, tombada sob o n. 132,
tendo como alvo “o conjunto de decisões judiciais que negam às uniões homoafetivas o
23
mesmo regime jurídico das uniões estáveis, interpretando discriminatoriamente a legislação
estadual e a legislação federal”.
145. Nada obstante a precedência cronológica da referida ADPF 132,
considerando a maior abrangência da aludida ADIn 4.277, focaremos nela as nossas
atenções, sem prejuízo dos relevantes fundamentos e argumentos esgrimidos na citada
ADPF 132.
146. Pois bem, na cogitada ADIn 4.277 foram feitos os já mencionados
pedidos para “(a) declarar a obrigatoriedade do reconhecimento, como entidade familiar, da
união entre pessoas do mesmo sexo, desde que atendidos os requisitos exigidos para a
constituição da união estável entre homem e mulher; e (b) declarar que os mesmos direitos
e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendem-se aos companheiros nas
uniões entre pessoas do mesmo sexo”.2
147. Na referida ADPF 132, no ponto que interessa, pediu-se uma
“interpretação conforme a Constituição do art. 1.723 do Código Civil, para o fim de que esse
dispositivo não seja interpretado de modo a impedir a aplicação do regime jurídico da união
estável às uniões homoafetivas, impondo-se, ao revés, sua aplicação extensiva, sob pena
de inconstitucionalidade”.3
148. Os fundamentos normativos dispostos nos enunciados constitucionais
que dão base às cogitadas postulações são os seguintes:
a) princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III,
CF);
b) os princípios constitucionais da liberdade, da igualdade e da
segurança (art. 5º, caput, CF);
c) o princípio constitucional da proibição das discriminações e dos
preconceitos odiosos (art. 3º, IV, CF);
d) o princípio constitucional da laicidade estatal (arts. 5º, VI e VIII; e
19, I, CF); e
e) o princípio constitucional do reconhecimento como entidade familiar
das uniões estáveis (art. 226, § 3º, CF).
2 Petição inicial disponível no site do Supremo Tribunal Federal (www.stf.jus.br).3 Petição inicial disponível no site do STF (www.stf.jus.br).
24
149. Além do texto constitucional, os postulantes socorrem-se do disposto nos
arts. 2º, § 1º; e 26, do Pacto dos Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações
Unidas, reconhecido pelo Estado brasileiro por meio do Decreto presidencial n. 592, de
7.7.1992, que consagra o “direito à igualdade ao proibir por motivos de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social,
situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação”.
150. Além dos referidos enunciados normativos, os postulantes agregam
várias decisões judiciais, inclusive de Tribunais Superiores e do próprio STF, no sentido do
reconhecimento de vínculos jurídicos decorrentes dos inquestionáveis laços afetivos que
envolvem os homossexuais.
151. Vale destacar o acórdão do Recurso Especial Eleitoral, julgado no
TSE, em 2.10.2004, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, cujo voto tem a seguinte
passagem:
“É um dado da vida real a existência de relações homossexuais em
que, assim como na união estável, no casamento ou no concubinato,
presume-se que haja fortes vínculos afetivos.
Assim, entendo que os sujeitos de uma relação estável homossexual
(denominação adotada pelo Código Civil alemão), à semelhança do
que ocorre com os de relação estável, de concubinato e de
casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art.
14, § 7º, da Constituição Federal”.
152. Nessa linha, demonstram os suplicantes a existência de relevantes
manifestações da evolução jurisprudencial brasileira.
153. Ante esse quadro “fático circunstancial”, em face da modificação de
“valores da sociedade” e com esteio nos “agitados preceitos normativos e nos precedentes
judiciais”, defendem uma interpretação teleológica e principiológica dos seguintes
dispositivos normativos:
Constituição Federal de 1988
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado.
25
§ 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei
facilitar sua conversão em casamento.
Código Civil de 2002 (Lei 10.406/2002)
Art. 1.723. É reconhecida a como entidade familiar a união estável
entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de
família.
154. Segundo os requerentes, é possível extrair (ou atribuir) do aludido
conjunto normativo e dos precedentes jurisprudenciais, mandamento constitucional que
autorize o reconhecimento, como entidade familiar, à união estável entre pessoas do mesmo
sexo, com todas as conseqüências jurídicas decorrentes desse cogitado reconhecimento.
155. Com estribo em sólida doutrina de caráter jurídico, antropológico,
sociológico e filosófico, de produção nacional e estrangeira, amparados por decisões
judiciais, e conscientes da profunda mudança de mentalidades e de paradigmas da
sociedade ocidental e da brasileira em particular, os postulantes esgrimem argumentos
favoráveis às suas pretensões, fortes na tese de que a Constituição de 1988 é uma “Carta
de Princípios” consagradores da dignidade humana, a liberdade, a igualdade e a
fraternidade.
156. Aduzem que as práticas homossexuais não agridem os direitos
fundamentais dos “outros”, nem violam os próprios deveres fundamentais dos
homossexuais, mas devem ser eficazmente protegidos, pois são direitos da pessoa
humana, como “quaisquer outros direitos fundamentais”. Defendem que é da essência do
gênero humano conduzir a sua vida afetiva e sexual da maneira que melhor lhe aprouver,
tendo a liberdade como vetor comportamental.
157. Além dos demandantes (Procuradoria-Geral da República e Governo
do Estado do Rio de Janeiro), há manifestações da Advocacia-Geral da União e de vários
“amici curiae” interessados no julgamento desses feitos.
158. Induvidosamente, será mais uma grande oportunidade de a Suprema
Corte se firmar como “Tribunal de direitos fundamentais da pessoa humana”, mediante a
26
imensa participação de vários setores da sociedade aberta, plural e democrática na
participação dos debates e dos julgamentos, para a construção da “melhor” norma/decisão
possível, legitimada pela densa e intensa participação de todos os interessados na solução
do conflito constitucional sob exame da “Corte Constitucional” (Karl Popper, A sociedade
aberta e seus inimigos, 1987; e Peter Häberle, Hermenêutica Constitucional – a sociedade
aberta dos intérpretes da constituição: uma contribuição para uma interpretação pluralista e
“procedimental” da constituição, 1997).
159. Pois bem, ao meu sentir, dentre os inúmeros e relevantes argumentos
utilizados para persuadir e convencer da “verdade” e “validade” de suas interpretações,
aqueles que mais me impressionaram, particularmente, foram basicamente dois:
1º O de que do enunciado estampado no § 3º do art. 226 não é
possível “extrair/atribuir” uma vedação às uniões familiares dos
homossexuais.
2º O fato de que se é possível reconhecer como “companheiro
familiar” o parceiro homossexual, para efeitos de inelegibilidade
eleitoral ou de nepotismo, também é possível lho reconhecer como
“companheiro familiar” para efeitos civis, na plenitude das
conseqüência advindas desse indiscutível “fato da vida”.
160. Reconheço que há vários outros relevantes e importantes argumentos,
inclusive até mais sofisticados e elaborados do que aqueles que me impressionaram. Nada
obstante a existência de outras argumentações fortes, ao meu sentir, no entanto, os
argumentos mais “convincentes e persuasivos” foram aqueles que mencionei, com a vênia
de quem pensar em contrário.
161. Insisto, vez mais, que a argumentação religiosa, com o devido respeito
e consideração que as fés, crenças e concepções religiosas devem ter, não deve ser
discurso “levado a sério” no debate constitucional, porquanto este deve ser fundado em
bases racionais e em evidências comprováveis e aceitáveis. Isso, no entanto, não pode
excluir nem calar as vozes religiosas, pois isso seria intolerância e discriminação.
162. Nada obstante o indiscutível e venerável valor das religiões e a densa
legitimidade social dos “líderes religiosos”, é preciso deixar bem claro que o “pecado” ou o
“castigo” só têm importância para quem neles acredita.
27
163. Assim, sem embargo da força cultural e social da moral religiosa e da
fé divina, na construção da nossa comunidade, as nossas condutas devem ser pautadas
pelas leis e pela Constituição, aprovadas pelos legítimos representantes do povo, escolhidos
em processos eleitorais democráticos.
164. Volto aos argumentos que julgo convincentes. Tendo como fio-
condutor o fato de que seja possível vislumbrar no texto constitucional, especificamente no §
7º do art. 14, a inelegibilidade familiar extensiva aos “companheiros homossexuais estáveis”,
em favor do brocardo romano de que “onde há a mesma razão da lei, aí deve-se aplicar a
mesma disposição legal” (ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio)” é possível
reconhecer, para efeitos civis, o mesmo caráter “familiar” para essas “uniões homossexuais
estáveis”.
165. Daí que possível, reitera-se, enxergar no § 3º do art. 226, CF, a
inexistência de vedação ao reconhecimento como entidade familiar das uniões
homossexuais estáveis.
166. Segundo eles, da leitura do citado dispositivo constitucional (§ 3º, art.
226) é possível extrair/atribuir três conclusões possíveis:
1ª A Constituição proibiu as uniões entre as pessoas do mesmo sexo;
2ª A Constituição não se pronunciou sobre o assunto, que pode ser
livremente decidido pelo legislador, num ou noutro sentido; e
3ª A Constituição requer o conhecimento das uniões entre pessoas do
mesmo sexo, impondo-se, em razão do sistema constitucional, uma
interpretação analógica do seu art. 226, § 3º.
167. Os requerentes, com espeque em uma leitura principiológica e
teleológica do texto constitucional, e reconhecendo a mudança de mentalidades e de
paradigmas da sociedade brasileira, acolhem e defendem a referida 3ª conclusão.
168. Para os postulantes e para os seus “amici curiae”, as circunstâncias
fáticas, os valores sociais institucionalizados, os precedentes jurisprudenciais e o texto
constitucional autorizam o reconhecimento como entidade familar das uniões homossexuais
ou homoafetivas estáveis, da mesma maneira daquelas envolvendo uniões heterossexuais e
com as mesmas conseqüências jurídicas, sociais, morais e patrimoniais.
28
169. Sucede, todavia, que há fortes argumentos em sentido oposto ao
pretendido pelos demandantes nas multicitadas ações que tramitam perante o Supremo
Tribunal Federal.
170. Utilizarei do artigo intitulado “Normas Constitucionais
Inconstitucionais”, disponível no site do Consultor Jurídico - CONJUR (www.conjur.br),
escrito pelos professores Lênio Streck, Vicente Barreto e Rafael de Oliveira.
171. Devo, no entanto, alertar que as visões dissidentes não são inimigas
dos homossexuais, nem são favoráveis à discriminação odiosa ou a qualquer tratamento
degradante que sofram.
172. Na verdade, são pessoas que enxergam os homossexuais como seres
merecedores de respeito e consideração, mas que, ao sentir delas, não podem receber do
Poder Judiciário a chancela normativa de “entidades familiares”, como sucedem com as
“uniões estáveis” dos heterossexuais, pois entendem que somente por meio de uma
“emenda constitucional” seria possível estender aos homossexuais os mesmos
“reconhecimentos familiares” que foram estendidos às “uniões estáveis heterossexuais”.
173. Inclusive, as opiniões dissidentes que devem ser levadas a sério,
concordam, em sua maioria, que os direitos patrimoniais constituídos ao longo de uma
duradoura relação homoafetiva, com uma comunhão de esforços e dedicações, devem ser
resguardados e protegidos. Todavia, reiteor, entendem que não é possível extrair/atribuir do
texto constitucional uma autorização para o reconhecimento como “entidade familiar” às
“uniões homoafetivas estáveis”.
174. Os autores buscaram sua fonte inspiradora em clássica obra de Otto
Bachoff intitulada “Normas Constitucionais Inconstitucionais?” para defender a idéia de que
não se pode concordar com a existência de normas constitucionais originárias
inconstitucionais ou inválidas ou contraditórias.
175. Segundo eles, nada obstante as mudanças de valores, de
mentalidades, de paradigmas, e a despeito da indiscutível carga principiológica contida na
Constituição, especialmente a vocacionada para a dignidade da pessoa humana, para a
liberdade, para a igualdade e para a fraternidade, não pode o intérprete ignorar os
enunciados normativos prescritos no texto constitucional.
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176. Assim, soa perigoso, em nome de “valores” e “princípios” desprezar o
que está expressamente escrito na Constituição. No caso específico, está escrito que “para
efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher
como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (§ 3º do art.
226, CF)”.
177. É a união estável entre o homem e a mulher que poderá ser elevada à
categoria de “entidade familiar”, possível de ser convertida em casamento.
178. A finalidade é a eventual, se possível, conversão da união estável em
casamento. Pois a especial proteção do Estado se destina à família, base da sociedade. E o
casamento é o instrumento principal de reconhecimento da existência de uma entidade
familiar.
179. Nesse prisma, onde se lê o homem e a mulher não é possível
enxergar o homem e o homem, ou a mulher e a mulher, pois não é possível, à luz da
redação originária e atual do texto constitucional, conceber-se “casamento entre dois
homens ou entre duas mulheres”, que constituirão uma “entidade familiar protegida pelo
Estado”.
180. Defendem o respeito ao enunciado textual.
181. Esses doutrinadores entendem ser um perigo à democracia
representativa e eletiva, que em nome de “princípios” e “valores”, e das “melhores e mais
dignas intenções”, se transfira para o Poder Judiciário, via ativismo judicial, a missão, que é
própria do Poder Legislativo, de “mudar o texto da Constituição”.
182. O caminho democrático e legítimo adequado é via representantes
políticos, por meio de Emenda Constitucional.
183. Nesse prisma, a prevalecer o entendimento de que pode o Judiciário,
via STF, corrigir os supostos “equívocos” ou aparentes “lacunas” do Constituinte Originário,
o Tribunal deixará de ser o “Guardião da Constituição”, para, quem sabe, ser o seu
“Carcereiro ou Algoz”, digo eu.
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184. O direito há de ter um mínimo de objetividade, dizem os mencionados
doutrinadores. E essa mínima objetividade é garantida pelo “texto”. Continuam que sem
texto não há normas; sem normas não há texto, e que o texto deve ser levado a sério, deve
ser considerado.
185. Rechaçam, pereptoriamente, a idéia de um conjunto de valores
“superiores” aos enunciados.
186. Finalizam seu artigo com as seguintes e relevantes considerações:
“Como nota final – e que isso fique bem claro – voltamos a lembrar os leitores que não somos contrários à regulamentação da união homoafetiva. Desde já, colocamo-nos à disposição para a discussão no plano da elaboração legislativa (por lei ou por emenda constitucional). Entendemos, tal qual entende a Procuradoria Geral da República, que a regulamentação é necessária para proteção dos direitos pessoais e patrimoniais dos homossexuais que vivem como consortes. Porém, pelos motivos amplamente expostos acima, estamos convictos que não é através do exercício de um ativismo judicial que essa regulamentação deve ser levada a efeito. Em nome do direito não podemos fragilizar o direito. Não se pode confundir a jurisdição constitucional, absolutamente necessária para concretizar direitos previstos na Constituição, com um apelo indevido à jurisdição para que atue nas hipóteses que não estão previstas na Constituição (aliás, no caso, a Constituição aponta para outro sentido).
Numa palavra: temos uma Constituição que é o Alfa e o Ômega da ordem jurídica democrática. Uma Constituição dirigente e compromissória. Viver em uma democracia tem seus custos. Neste caso um custo básico: os pré-compromissos constitucionais só podem ser liberados por aqueles que a própria Constituição determina (o poder constituinte derivado). Se tudo o que não está previsto na Constituição pode ser “realizado” pelo Poder Judiciário, não precisaríamos sequer ter feito a Constituição: o Judiciário faria melhor (ou o Ministério Público!) A propósito: se a tese da referida ADPF vingar, há uma série de reivindicações que devem desde já ser encaminhadas ao Poder Judiciário (e que possuem amplo apoio popular...!). Precisamos enumerá-las?
Numa palavra final: propugnando sempre pela preservação do grau de autonomia atingido pelo direito e na democracia, pensamos que melhor mesmo é confiar na Constituição e na forma que ela mesma impõe para a sua alteração e à formulação de leis. Afinal, duzentos anos de constitucionalismo deveria nos ensinar o preço da regra contramajoritária. Ulisses no comando do seu barco sabia do perigo do canto das sereias...! Ah, os fatos sociais...; o velho positivismo fático. Ah, as maiorias... Mas, como saber a sua vontade, se não pela via do parlamento? Ou isso, ou entreguemos tudo às demandas judiciais! E não nos queixemos depois do “excesso de judicialização” ou de “ativismos”...!”
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187. Pois bem, senhoras e senhores, esses são, ao meu sentir, os
principais fundamentos e argumentos relativos ao tema do eventual reconhecimento como
“entidade familiar das uniões homoafetivas estáveis”.
188. Como se percebe, o intérprete pode sempre atribuir/extrair os mais
variados sentidos possíveis aos enunciados normativos prescritos no texto constitucional,
desde que saiba argumentar de modo racional e convincente na defesa de sua
interpretação.
189. Como lhes disse, é um tema palpitante e atual que reclamará da
Suprema Corte brasileira uma adequada postura como “guardiã da Constituição” e como
“Tribunal de direitos fundamentais”.
190. Induvidosamente, será mais um julgamento do STF que chamará as
atenções e empolgará os mais acesos debates, provocando manifestações de variados
atores sociais e políticos.
191. Que a Corte saiba, como tem sabido, manter-se à altura das
expectativas da sociedade brasileira, pois “os direitos constitucionais devem ser levados a
sério”.
192. Em síntese, se eu tivesse de resumir o principal argumento favorável
ao reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar, diria o seguinte:
“Se para efeitos eleitorais e para proibir o nepotismo é possível reconhecer o companheiro
homossexual como “cônjuge”, por uma questão de unidade e coerência sistemática, devo
reconhecer como “cônjuge” para os demais efeitos civis”.
193. Por seu turno, se tivesse de resumir o principal argumento
desfavorável às pretensões dos requerentes, diria o seguinte: “A despeito das extensões
para efeitos eleitorais e de moralidade administrativa, aquelas soluções tópicas e
circunstanciais não podem ser generalizadas e nem podem contrariar o expresso enunciado
contido no § 3º do art. 226, pois a união estável a ser protegida pelo Estado é aquela
possível de ser convertida em casamento, ou seja, a do homem e a da mulher”.
194. Cada um de nós é livre para aderir a um ou a outro entendimento, pois
somos partícipes dessa comunidade aberta e plural, e devemos fazer as nossas escolhas e
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opções de acordo com as nossas consciências e convicções, buscando, sempre a conduta
que nos dê conforto moral e paz espiritual. Que saibamos fazer o bem a nós mesmos e aos
outros.
195. E, para finalizar, considerando que estamos em uma manhã de sexta-
feira, homenageando Cláudio Pacheco, esse monumento humano do Piauí, peço, vez mais,
licença para encerrar com mais uma obra-de-arte do bardo Shakespeare, essa dádiva da
Inglaterra para a humanidade, para quebrar um pouco a seriedade e a solenidade do
evento, de modo que saibamos que se o direito e o trabalho devem ser levados a sério, é
sempre bom “aproveitar as outras coisas boas que a vida nos oferece”.
196. Trata-se de uma passagem da peça “Júlio César”, no 1º Ato, Cena 2,
envolvendo um diálogo entre Júlio César e Marco Antônio:
CÉSAR: Faze com que me rodeiem homens que são gordos, de cara lustrosa, e homens que dormem à noite. Ali temos Cássio, com uma aparência magra e esfaimada; ele pensa demais; homens assim são perigosos.
ANTÔNIO: Não o tema, César, ele não é perigoso. É um nobre romano, e bem intencionado.
CÉSAR: Gostaria que ele fosse menos magro! Mas não tenho medo dele, não. E, no entanto, se no nome de César coubesse medo, não sei de outro homem que eu devesse evitar mais do que esse esquálido Cássio. Ele lê demais, é um grande observador, e enxergar por trás das ações dos homens. Não ama o teatro como tu, Antônio; ele não ouve música. Raramente sorri, e sorri de um jeito que é como se estivesse zombando de si mesmo a ponto de sorrir de alguma coisa. Homens, como ele jamais têm o coração tranqüilo enquanto têm a sua frente alguém maior e, portanto, são muito perigosos. Na verdade, estou te falando sobre o que se deve temer, e não sobre o que eu temo, pois sou sempre César. Coloca-te à minha direita, pois deste ouvido sou surdo, e dize-me verdadeiramente o que pensas dele.”
Muitíssimo obrigado pela generosa atenção!
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