a invenÇÃo de um olhar em movimento.doc

18
Universidade Federal de Goiás Faculdade de História Programa de Pós-Graduação em História A INVENÇÃO DE UM OLHAR EM MOVIMENTO Uma pintura fílmica das artes plásticas em Goiânia 1 Gustavo Henrique dos Santos Vale 2 [email protected] Trailer Mergulhados em nexos pós-modernos, somos intermitentemente atravessados por um conjunto de imagens – artísticas, arquitetônicas, publicitárias etc., integrantes do complexo conjunto imagético das experiências do cotidiano. De forma dialógica, nos relacionamos com elas, agindo e reagindo de acordo com nossos conhecimentos acumulados, experiências de vida, gosto estético, ideologias etc. Concordamos com a premissa de Erwin Panofsky (1979), de que a arte sempre comporta um sentido e é orientada não somente por percepções simbólicas como também históricas. Meneses (2003) nos atenta para uma questão mais específica: a importância das imagens e, fundamentalmente da visualidade, na compreensão das práticas sociais, culturais, econômicas e políticas de um grupo ou sociedade. Destarte, proponho como objeto de análise o filme documentário Mudernage (2009) de Marcela Borela. A ideia é tomar em categorias gerais seus elementos constitutivos e em síntese sua narrativa. Compreendendo o filme não só como um 1 Trabalho avaliativo referente à disciplina “Abordagens Metodológicas da História da Arte e da Imagem”, ministrada pelas professoras Dra. Heloísa Selma Fernandes Capel e Dra. Maria Elizia Borges, dentro do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás (UFG). 2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Linha de pesquisa: Etnografia das idéias e dos repertórios culturais.

Upload: gustavo-vale

Post on 06-Sep-2015

222 views

Category:

Documents


4 download

TRANSCRIPT

Universidade Federal de Gois

Faculdade de Histria

Programa de Ps-Graduao em Histria

A INVENO DE UM OLHAR EM MOVIMENTO

Uma pintura flmica das artes plsticas em Goinia

Gustavo Henrique dos Santos Vale

[email protected] em nexos ps-modernos, somos intermitentemente atravessados por um conjunto de imagens artsticas, arquitetnicas, publicitrias etc., integrantes do complexo conjunto imagtico das experincias do cotidiano. De forma dialgica, nos relacionamos com elas, agindo e reagindo de acordo com nossos conhecimentos acumulados, experincias de vida, gosto esttico, ideologias etc. Concordamos com a premissa de Erwin Panofsky (1979), de que a arte sempre comporta um sentido e orientada no somente por percepes simblicas como tambm histricas.Meneses (2003) nos atenta para uma questo mais especfica: a importncia das imagens e, fundamentalmente da visualidade, na compreenso das prticas sociais, culturais, econmicas e polticas de um grupo ou sociedade.

Destarte, proponho como objeto de anlise o filme documentrio Mudernage (2009) de Marcela Borela. A ideia tomar em categorias gerais seus elementos constitutivos e em sntese sua narrativa. Compreendendo o filme no s como um objeto imagtico composto por diversos elementos formais e sinuosidades histricas, mas tambm como um instrumento de produo simblica de conhecimentos, valores, ideologias etc., que opera a partir dos processos de fruio esttica.Para tanto, inicialmente apresento uma concisa trajetria do gnero cinematogrfico documentrio. Em seguida, procuro evidenciar quais tcnicas foram utilizadas, quais nexos e contedos foram utilizados na construo de Mudernage, seus instrumentos e tecnologias, distinguir os elementos formais e simblicos que compem os quadros visuais e sonoros do filme. Por fim, busco compreender os contextos scio/histricos expressos na obra, refletindo sobre alguns elementos que constituem o imaginrio goiano, sobre as dinmicas visuais que atravessam nossas experincias sociais, transformando-as e sendo transformadas por elas. O Cinema Documentrio

Nesse pouco mais de um sculo de produo cinematogrfica, o conceito de documentrio tem trafegado entre vrias definies, no mesmo passo que a forma de produo de filmes vem se modificando, seja por romper com um modelo especfico, em suas potencialidades idealistas, ou por utiliz-lo de um modo inovador, com rearranjos estticos, discursos de dispositivos e estratgias de narrativas ou, ainda, pelo surgimento de novos recursos tecnolgicos que possibilitam o desenvolvimento de diferentes procedimentos.

O modo de o espectador compreender as obras apresentadas tambm vem sofrendo alteraes, em parte, graas a uma crescente democratizao de acesso a essas novas tecnologias e conceitos miditicos, que se popularizam devido ao intenso desenvolvimento de fluxos e conectividades tcnico/informacionais, ao encurtamento dos espaos e fluidez das fronteiras tpicas do atual momento de globalizao.

Somente durante a dcada de 1920 foram criadas as condies necessrias para a definio desse novo gnero cinematogrfico, sobretudo com Robert Flaherty (1884-1951) e Dziga Vertov (1895-1954), dois cineastas pioneiros e de grande importncia para esta forma de cinema.

Flaherty com o objetivo de manipular o mnimo possvel a realidade a ser filmada, mostrando que, mesmo se atentando em estabelecer uma observao annima, a simples presena da cmera j o bastante para provocar alteraes comportamentais. J Vertov estabeleceu como plataforma do seu trabalho cinematogrfico as articulaes possveis dadas entre os elementos olho, cmera, realidade e montagem, inspirando-se nos ideais futuristas.

Entretanto, foi a partir de 1930 que a sua identidade se firmou, com o Movimento Documentarista Britnico, em especial com o escocs John Grierson (1898-1972), precursor no uso do termo cinema documentrio e criador da Escola Britnica de Documentrios, a primeira do mundo especializada nesse modelo cinematogrfico.

Grierson contribuiu para a consolidao da linguagem documental e o reconhecimento da produo flmica enquanto algo autoral e, sobretudo, definiu algumas margens para a identidade do gnero, propondo-lhe regras, como a obrigatoriedade de se fazer um registro in loco da vida das pessoas e dos acontecimentos do mundo, de expor os objetos de interesse segundo um ponto de vista e dar a esse material um tratamento criativo, como por exemplo, combin-lo e recombin-lo com outro material (como legendas, outras imagens etc.).

Atualmente, segundo Mariana Baltar (2008), um elemento distintivo do documentrio contemporneo ter como elemento nuclear da narrativa o personagem, numa saturao do documentrio moderno. Assim, notvel que em diversos casos, trabalha o real a partir de recortes e traz abordagens mais particularizadas, como possvel observar nos documentrios produzidos no Brasil a partir de 1980, como Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984), Socorro nobre (Walter Salles, 1995), Ns que aqui estamos por vs esperamos (Marcelo Masago, 1999), Santa Cruz (Joo Moreira Salles, 2000).Assim, o documentrio contemporneo, ao dar voz aos personagens e escapar a uma grande narrativa, permite ao espectador tomar suas prprias concluses, a partir de uma postura dialgica composta pela dinmica relao entre o que estranho e o que familiar naquilo que v. Nesse sentido, h um deslocamento do espectador de seu lugar de conforto, de espera, que passa agora para um espao de maior autonomia, atuando ao mesmo tempo como receptores e produtores de sentidos, traando um esquema mimtico entre a sua realidade e a flmica, relacionando os contextos presentes no documentrio com seus conhecimentos acumulados, experincias de vida, gosto esttico etc.

Mudernage 1 episdio

A diretora do filme Marcela Aguiar Borela formada em Jornalismo, especialista em Histria cultural e mestre em Histria pela Universidade Federal de Gois (UFG). Mudernage seu terceiro filme, tendo realizado anteriormente os curta-metragens Poupe-me dos Detalhes Srdidos (fico que roteirizou e dirigiu) e Boca de Lixo (seu primeiro documentrio). O documentrio Mudernage foi selecionado entre quinze projetos inscritos na quarta edio do DOCTV, realizada em Goinia. A diretora realizou duas Oficinas por obrigatoriedade do programa DOCTV, uma para Desenvolvimento de Projetos e outra de Desenho Criativo e Produo. Nessas Oficinas o projeto do filme foi discutido com figuras importantes do cenrio cinematogrfico, como Jean-Claude Bernardet, Cludia Mesquita etc., o que pelo filme.O filme problematiza a experincia nas artes plsticas em Gois, construindo uma discusso que percorre a histria das artes plsticas em Gois, desde seus pioneiros como Gustav Ritter, D.J. Oliveira, Frei Nazareno Confaloni, Luiz Curado, Cleber Gouveia, at o cenrio atual. A primeira parte do filme consta de uma contextualizao que remonta a histria da arte moderna em Goinia, j a segunda parte constri um quadro de valores estticos e idealistas, que, salvo excees, evidenciam o distanciamento e a negao dos artistas contemporneos em relao influncia dos pioneiros.Para a construo desse estado da arte, a diretora do documentrio entrevistou os artistas plsticos Siron Franco, Antnio Poteiro, Roos, Amaury Menezes, Juca de Lima, Carlos Sena, Divino Sobral, Marcelo Sol, Pitgoras, Juliano Moraes, Gilmar Camilo, Mateus Dutra, Fabola Morais e Paulo Veiga. Tambm foram entrevistadas a marchand Eliane Miklos e a poetiza e professora Maria Lcia Flix. Algumas aes foram realizadas especialmente para o documentrio, como a interveno de Fabola Morais em uma das paredes da Escola Goiana de Belas Artes, em que a artista utiliza um retro-projetor para projetar e sobrepor obras dos pioneiros da arte em Gois, articulando-as e transformando-as como resultado de sua arte contempornea. Tem ainda a performance de Henrique Lima e Fernando Martins, dois palhaos que bailam e fazem da cidade de Goinia o seu picadeiro.

Tambm fizeram parte dessas aes, o Grupo Empreza, que realizou a performance (vdeo-performance) Paisagens Destiladas, na casa de Marcela Borela, consistindo em conversar e beber cachaa em frente s obras de arte que decoram as paredes da casa. Mateus Dutra faz um desenho da mudernage e realiza intervenes urbanas. Por ltimo, o artista Divino Sobral realiza a performance Coral de rvore, interveno sobre rvore do cerrado utilizando l colorida e livros de histria da arte em Gois. O filme apresenta um aspecto dubiamente rstico e sofisticado em suas formas, cores e movimentos, no havendo um tratamento artificializado das imagens. H cenas do filme gravadas durante o dia e outras durante a noite. No h apenas uma locao, os ambientes retratados pelo filme so diversos, mas todos localizados na cidade de Goinia. Os personagens foram entrevistados em diferentes lugares como, por exemplo, em seus atelis, no espao pblico durante uma produo artstica, em suas casas etc.

O filme utiliza como recurso trechos de outros documentrios como Pedro Fundamental e D.J. Oliveira 9 minutos de esperana de PX Silveira e Goinia, Goinia de Tnia Bastos. Outro recurso apresentado so algumas mise-en-scenes, como dois palhaos que surgem bailando nas ruas de Goinia num jogo alegrico em relao aos palhaos de Roos, e at mesmo quando a diretora torna-se atriz da performance Coral de rvore, interveno sobre rvore do cerrado com l colorida e livros de histria da arte em Gois, de Divino Sobral.Inmeras obras de arte so veiculadas no documentrio, todas elas produzidas cho goiano. So obras dos artistas D.J. Oliveira, Confaloni, Cleber Gouveia, Siron Franco, Luiz Curado, Gustav Ritter, Roos, Antnio Poteiro, Z Cesar, Carlos Sena, Fernando Costa Filho, Selma Parreira, Saida Cunha, Amaury Menezes, Isa Costa, Ana Maria Pacheco, Goianira do Couto, Joo do Couto e Otto Marques. medida que variam as narrativas e os personagens, essas obras de arte pintam tela, e suas cores vo ocupando o espao visual do filme conforme a trama se desenrola. Com enquadramentos comportados, e movimentos de cmera no muito ousados, Mudernage um filme conceitualmente ousado, se constri como um produto hbrido, coadunando tradio e modernidade. Utiliza alguns efeitos visuais que se repetem algumas vezes durante o filme, porm no subtraem o trato documental que o filme d ao tema problematizado. Os aparatos de produo cinematogrfica so constantemente colocados em quadro, a cmera, o microfone, a equipe, a diretora e at a claquete. Essa reflexo interna acerca dos artifcios de se fazer um filme caracterizam o cinema enquanto linguagem, discernindo-o de outras linguagens. Seu discurso cinematogrfico, sua abordagem procedimental expressa um devir, uma mudana considerada como uma passagem de um estado para outro, no havendo condies estticas e perfeitas como referncia. Um elemento formal do filme que sistematiza esse paradigma sua trilha sonora, bem como relata a diretoraA existncia da msica do Elomar trovadoresca, tradicional, mais que isso, anti-moderna relacionada a descoberta que fiz de uma gravao das canes do compositor barroco pirenopolino Tonico do Padre, feita nos anos 1970, e outras garimpagens: algumas coisas do cancioneiro caipira, uma gravao do Luiz Curado tocando sanfona com o filho no violino e outra do maestro alemo Jean Douliez com uma orquestra em Goinia, formaram a trilha sonora do filme. Declaradamente, um contraponto do arcaico ao moderno. Assim, para o universo musical do filme, alm dos achados histrico/regionais citados pela diretora, como as composies barrocas do pirenopolino Tonico do Padre, em o Concerto dos Sapos, houve tambm o investimento na composio de Elomar Figueira Mello intitulada O Violro. No mais, a trilha composta tambm por trechos do canto da procisso de Nossa Senhora das Dores Quaresma da cidade de Gois em 03/04/2009, por mantras cantados por Fabola Morais e La Cumparcita tocada por Luiz Curado no acordeom, Luiz Antnio no violino e Wanderley no violo. Tambm foram utilizados trechos da composio de Guto Carvalho para o documentrio D.J. Oliveira 9 minutos de eternidade de PX Silveira, trechos do Quarteto n.4 em D Menor de L.V Beethoven e de Porta do Mundo de Tio Carreiro.Mudernage constri uma reflexo acerca das artes plsticas em Goinia. Em sua busca pelos estatutos e sintomas de uma arte moderna, explicita a relao entre a subjetividade e a materialidade na produo de um filme e as estratgias de articulao do discurso flmico, na qual a diretora se coloca como parte da trama, alm de explicitar os artifcios da produo cinematogrfica. Segundo definio da diretora Marcela Borela, o documentrio Mudernage um filme-processo, ou seja, sua construo se faz a partir do prprio ato de filmar. A essa ideia podemos ajustar a compreenso do documentarista Eduardo Coutinho

[...] no existe outra necessidade seno a de conceber o filme como algo construdo pelo prprio ato de filmar com determinadas pessoas em determinadas circunstncias. Por isso, meus filmes sempre contam que so filmes, sempre revelam, de algum modo, ao espectador, suas prprias condies de produo. Estamos sempre filmando encontros. A imanncia desse momento fundamental. Por isso, a presena de um ao outro, e a presena da cmera filmando esse encontro, o que importa. De repente, nessa interao, nesse dilogo, nesse encontro, se produz uma experincia que s faz sentido para mim se eu sentir que ela nunca aconteceu antes e que jamais vai acontecer depois. O que no quer dizer que aquela pessoa que estou entrevistando no tenha dito as mesmas coisas antes, ou que no venha a dizer depois para outras pessoas. Mas sei que ela nunca vai dizer da mesma forma porque a forma como ela disse depende tambm da minha prpria interveno.

Essa perspectiva inclui a compreenso da obra como um filme dispositivo. No no sentido em que, a partir da dcada de 1970, os estruturalistas franceses como Jean-Louis Baudry e Christian Metz discutiram o conceito, referindo-o especificidade das condies do espectador, assim como tambm nos apresenta Philippe Dubois (2004), ao falar da sala escura, do silncio, da imobilidade dos espectadores etc.

Caracteriza-se como filme dispositivo no sentido em Cezar Migliorin (2005) aborda o termo, em artigo intitulado O Dispositivo como Estratgia Narrativa, em que o autor reflete sobre a capacidade do dispositivo de disparar e capturar acontecimentos, de incitar a realidade e seus atores a produzirem novas camadas de sentidos.

No entanto, como nos lembra Migliorin (2005), no podemos perder de vista a ideia de haver uma conscincia miditica por parte dos sujeitos do filme. Eles sabem que so, naquele momento, personagens de uma narrativa miditica. Experincia esta adquirida pelo estatuto ou estado de telespectador miditico das grandes, pequenas e alternativas mdias e de um sistema panptico de vigilncia cotidiana, vivenciadas nas ruas e estabelecimentos das grandes cidades. Todos esses atravessamentos espao/temporais e esttico/ideolgicos, orientados por um nexo historicizante, estruturam o documentrio. possvel dizer, a partir das curvas narrativas da trama, que h uma histria sendo contada, mas o mais interessante que podemos dizer que h tambm uma histria sendo construda, provocada. Essa dinmica interna ao documentrio, voltada para seu prprio estatuto e artifcio, aproxima o filme das diretrizes do cinema documentrio brasileiro contemporneo. Alguns cineastas j consagrados no cenrio nacional, como Eduardo Coutinho, Walter Salles, Kiko Goifman etc., atuam nessa direo.Mudernage 2 episdio

Boi! Boi! Boi! h boi!... Cenas de uma boiada abrem o documentrio Mudernage (2009) de Marcela Borela. 0102

0304

05

06080910

11

12

13

14

15

16

17

18

19

20

21

22

23

A sequncia acima reconstitui as cenas introdutrias do filme e revela as sinuosidades histricas que acompanham a cidade de Goinia. Fala de sua histria da arte, mostrando quais contextos engendraram o fazer artstico da cidade. Fundamentalmente a mudana da capital do estado, antes Vila Boa (hoje, Cidade de Gois), para Goinia cidade que sinalizou a modernizao do estado de Gois foi o principal motor para o surgimento de uma arte moderna goiana. Afinal, como nos lembra Fabris (1994), no podemos analisar a modernidade desvinculando-a do surgimento da uma nova paisagem urbana. de fundamental importncia pensar o documentrio Mudernage em relao sua historicidade. Nesse caso, aponto para uma lgica ps-moderna explcita na obra por meio de seus personagens, dispositivos, trilha sonora etc. Sobretudo, podemos perceb-la a partir de uma abordagem sistemtica do filme, tomando-o como pensamento material e objetivado, que deixa de ser objeto e se torna sujeito, sujeito pensante. (COLI, 2010, p.210). Logo, a dimenso espao/temporal e o imaginrio produzido pela obra constituem a lgica de seu papel histrico.

No entanto, os pensamentos e valores tradicionais ainda habitam a realidade de Goinia, por meio de uma construo histrica/cultural que tem como caracterstica central o encontro entre traos ruralistas e metropolitanos. No filme, podemos perceber claramente esse paradigma, em que h uma forte negao do velho em detrimento do novo, observando a tenso entre os artistas contemporneos em relao aos modernos. Assim, apesar de construrem argumentos que pedestalizam os pioneiros, os artistas contemporneos esquivam-se de suas influncias.Mudernage uma pintura flmica das artes plsticas em Goinia, um produto imagtico de carter histrico/artstico. Nessa direo, compreendemos que as imagens constituem um rgo de memria social e traduzem as tenses espirituais de uma cultura. Assim, as imagens so transmissoras de uma herana do passado, o que faz com o que seu estudo possibilite a realizao de um diagnstico do homem ocidental (WARBURG apud PESAVENTO 2008, p.3), no nosso caso do indivduo goianiense.Assim como em Mudernage, alguns documentrios contemporneos, como Serras da Desordem (2004) de Andrea Tonacci, Pees (2004) de Eduardo Coutinho, Hrcules 56 (2007) de Silvio Da-Rin, O tempo e o lugar (2008) de Eduardo Escorel etc., tematizam a memria brasileira com o intuito de problematizar as marquises da histria nacional.Consideraes Finais

Mudernage contribui para a compreenso de uma goianidade, a partir de um conjunto de elementos contrastivos e complementares que se imbricam nas prticas cotidianas dos goianienses. Assim, os procedimentos reflexivos, os personagens, somadas ao diversificado conjunto de obras de arte que aparecem no filme, problematizam nossa condio identitria cultural.

O filme inventa um olhar em movimento, construindo percursos visuais, posicionando estrategicamente nossas atenes em relao a seus personagens e suas narrativas. possvel dizer que se trata de uma obra ps-moderna, caracterizada como tal pelas estratgias do seu discurso cinematogrfico, sobretudo pela nfase dada relao entre o tradicional e o moderno. Porm, no resulta num relativismo limtrofe, mas busca elucidar a construo social e cultural da realidade, constituindo-se como um produto histrico, abrindo uma porta para entrar e sair da modernidade, como nos lembra Canclini (1997).

Destarte, o filme constri um quadro iconogrfico repleto de significados que penetram o universo memorial da cidade de Goinia. Entretanto, revela um contexto que marcado pela fragmentao, cada vez mais acelerada do espao e do tempo, vivida pela circulao cada vez mais veloz de narrativas, discursos e informaes.

Referncia Bibliogrficas

FABRIS, Annatereza. Modernidade e vanguarda: o casos brasileiro. In: Modernidade e Modernismo no Brasil. Campinas: Mercado de Letras, 2007.

GADAMER H. G., Verdade e mtodo, 4 ed., Petrpolis: Vozes, 2002.

GARCIA-CANCLINI, Nestor. Culturas hbridas. Estratgias para entrar e sair da modernidade. So Paulo: Edusp, 1997.

MARINHO, T. A.; BRITTO, C.; MACEDO, J. E.; ALMEIDA, R. (orgs). Gois e a (Ps)Modernidade: Dimenses e Reflexes. Editora UCG, Goinia, 2009.

MENESES, Ulpiano Bezerra de. Fontes Visuais, Cultura Visual. Balano provisrio, propostas cautelares. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, V.23, n.45, p.11-23, 2003.MIGLIORIN, Cezar.O Dispositivo como Estratgia Narrativa, 2005. Disponvel em: Acesso em: 03/01/2012.PANOFSKY, Erwin.O sentido das artes visuais. 2 ed. So Paulo: Perspectiva. 1979.

PESAVENTO Sandra Jatahy, Ndia Maria Weber Santos, Miriam de Souza Rossini; Narrativas, imagens e prticas sociais: percursos em historia cultural. Porto Alegre, RS: Asterisco, 2008.Fontes Visuais

Mudernage; Documentrio digital; 52; Ano: 2009; Pesquisa, roteiro e direo Marcela Borela; Produo Executiva Robney Bruno; Direo de fotografia Pedro Guimares e Emerson Maia; Montagem Erico Rassi e Jader Augustus; Direo de Arte Letycia Rossi; Som direto Chico Macedo; Produo Mara Atti e Guilherme Wohlgemuth; Assistente de Direo - Guilherme Wohlgemuth; Still Laiza Vasconselos e Ivana Andrade; Maquinista Chico Macedo; 1 Assistente de Cmera e Maquinaria Marco Antonio Junior (Makakim); 2 Assistente de Cmera Kaisson Labre Martins; Assistente de produo Maressa Stephanie Alves; Pesquisadora Convidada Letcia Badam; Assistente de pesquisa Maiani Camargo Contijo; Assiste de Montagem Murilo Berardo; Assessoria Jurdica Olavo Campos Telles.Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984)

Socorro nobre (Walter Salles, 1995)

Ns que aqui estamos por vs esperamos (Marcelo Masago, 1999)

Santa Cruz (Joo Moreira Salles, 2000)Serras da Desordem (Andrea Tonacci, 2004)

Pees (Eduardo Coutinho, 2004)

Hrcules 56 (Silvio Da-Rin, 2007)

O tempo e o lugar (Eduardo Escorel 2008)

Trabalho avaliativo referente disciplina Abordagens Metodolgicas da Histria da Arte e da Imagem, ministrada pelas professoras Dra. HYPERLINK "http://www.historia.ufg.br/sites/historia_pos-historia/pages/20868" Helosa Selma Fernandes Capel e Dra. HYPERLINK "http://www.historia.ufg.br/sites/historia_pos-historia/pages/20785" Maria Elizia Borges, dentro do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Gois (UFG).

Mestrando do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social pela Universidade Federal de Gois (UFG). Linha de pesquisa: Etnografia das idias e dos repertrios culturais.

Essa expresso refere-se captao de imagens fora de estdios, no prprio local onde se encontra o objeto de interesse do filme.

Entrevista de Marcela Borela para o jornal Opo, disponvel em HYPERLINK "http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural/a-dama-do-cine-cultura" http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural/a-dama-do-cine-cultura

Considerado o tango mais famoso do mundo, La Cumparsita uma obra musical criada pelo msico uruguaio Gerardo Matos Rodrguez (1897-1948).

Coutinho em entrevista revista Galxia em outubro de 2007.

Remeto o leitor anlise que Michael Foucault faz da composio arquitetnica de Jeremy Bentham, em seu livro Vigiar e Punir de 1975.

Na atualidade, tornou-se corrente o uso do termo ps-modernidade para definir a condio scio-cultural e esttica do capitalismo contemporneo. No entanto, diversas controvrsias no uso e emprego do termo se somam resultadas da dificuldade de se examinar tais processos em curso com suficiente distanciamento e, principalmente, de se perceber com clareza os limites ou os sinais de ruptura. Muitos termos so utilizados na tentativa de resoluo desse impasse: modernidade lquida, reflexiva, tardia, alta, hipermodernidade, entre outros, produzindo um arcabouo explicativo variado que ressalta em congruncia a exacerbao do individualismo, do consumismo, da tica hedonista, a fragmentao do tempo e espao (LIPOVETSKY, 2005), marcados pelo desenvolvimento de formas tecnolgicas de vida que propiciam, entre outros, um gigantesco fluxo de informaes e produtos, acarretando num permanente descarte das classificaes e frmulas. Alguns autores destacam seu lado ambguo, multiforme (BAUMAN, 2001), outros o fim das metanarrativas (LYOTARD, 1979), ou a reflexividade dos indivduos (GIDDENS, 1991), outros ainda a tendncia poltica e cultural neoconservadoras, com vistas a combater os ideais iluministas (HABERMAS, 2000). (MARINHO; BRITTO; MACEDO; ALMEIDA, 2009)