a leitura na educaÇÃo de jovens e adultos: … · doutorado em teoria da literatura pela...
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
Departamento de Ciências Humanas – Campus I
Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Mestrado em Estudo de Linguagens
VERENA SANTOS ANDRADE FERREIRA
A LEITURA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:
EXPERIÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES
SALVADOR – BAHIA
2012
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VERENA SANTOS ANDRADE FERREIRA
A LEITURA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:
EXPERIÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação da Universidade do Estado da Bahia,
como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Estudo de Linguagens.
Área de concentração: Linguagens: práticas e
contextos.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Márcia Rios da Silva.
SALVADOR – BAHIA
2012
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FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de Bibliotecas da UNEB
VERENA SANTOS ANDRADE FERREIRA
Ferreira, Verena Santos Andrade
A leitura na educação de jovens e adultos: experiências e representações / Verena
Santos Andrade Ferreira . - Salvador, 2012.
113f.
Orientadora: Profª. Drª Márcia Rios da Silva
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de
Ciências Humanas. Campus I. 2012.
Contém referências, apêndices e anexos.
1. Leitura. 2. Leitura - Estudo e ensino. 3. Educação de adultos. 4. Educação
do adolescente. I. Silva, Márcia Rios da. II. Universidade do Estado da Bahia,
Departamento de Ciências humanas.
CDD: 472.4
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A LEITURA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:
EXPERIÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Márcia Rios da Silva
Doutorado em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia
__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Helena da Rocha Besnosik
Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo
__________________________________________________
Prof.ª Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro
Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, PUC
Salvador, 27 de agosto de 2012.
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PALAVRAS DE AGRADECIMENTO...
... QUE SUCEDEM O RECONHECIMENTO
São muitos os agradecimentos, porque, durante essa breve/longa caminhada, muitas pessoas
fizeram parte da história desse trabalho, de forma direta ou indireta, que se iniciou com o
processo de seleção para o curso de mestrado, tão desejado, mas que não se encerra nessas
páginas...
Agradeço a Deus, porque Dele veio a força; por ter me concedido no curso a vaga que tanto
pedi; por ter me dado força para superar todas as dificuldades que despontaram durante esse
período; por ter removido as pedras do meu caminho, tornando mais suave a minha
caminhada; pela leveza que sentia no coração em meio a tantas idas e vindas, o que me dava a
certeza de estar no caminho certo, segundo a Sua vontade; pela nova porta que abriu em
minha vida profissional, ainda durante o curso de mestrado; por ter me dado força e fé não só
para iniciar a caminhada, mas, sobretudo, por concluí-la imbuída do mesmo sentimento.
Minha reverência.
De forma especial, à minha orientadora, professora Dra. Márcia Rios, pelo profissionalismo,
colaboração e paciência. A confiança em sua competência foi a minha segurança nos
momentos de aflição. Sem o seu equilíbrio, certamente esta caminhada teria se feito muito
mais difícil.
Também de modo muito especial, à professora Dra. Verbena Cordeiro, pelo apoio e
generosidade demonstrados no meu percurso de pesquisadora da “leitura”. Também pela
leitura cuidadosa do texto apresentado no Exame de Qualificação, meu carinho e admiração.
À professora Dra. Marisa Lajolo, pelas contribuições feitas para o Exame de Qualificação.
Sua presença na banca examinadora é motivo de muita satisfação.
Ao Professor Dr. Paulo Santos, que muito contribuiu com o meu entendimento de
“dissertação”.
A Adriana Reis, regente da disciplina do Tirocínio Docente, pelo carinho e generosidade.
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À secretaria do PPGEL, nas pessoas de Camila e Danilo, pela atenção dispensada sempre que
requerida.
Aos colegas de turma, a companhia, parceria, apoio e carinho que certamente contribuíram
para ajudar a suportar a saudade de casa e o cansaço de tantas idas e vindas.
De forma especial, às “meninas” da turma, Jeane, Patrícia, Sabrina e Eliã, com quem, por
alguns meses, compartilhei as alegrias e embaraços da vida cotidiana.
Aos meus filhos, Lucca e Breno, que, por tantas vezes, tiveram que partilhar a mãe com os
livros, a compreensão na inocência do silêncio. Amor sublime.
Ao meu marido Vitor, o apoio incondicional, parceiro de tantas caminhadas. Para você,
qualquer palavra de agradecimento fala muito pouco.
Aos meus pais, a torcida e o apoio.
A tio Heráclito, o abrigo que tornou mais suave minha passagem pela capital baiana.
Aos colegas de trabalho (Andreia e Marconi), o constante apoio, amizade e carinho.
A Carla, Viviane, Antonieta e Tânia que, no exercício da colaboração e generosidade,
contribuíram com a realização dessa pesquisa.
Aos sujeitos que tornaram possível este trabalho, a confiança e a colaboração. Junto com
minha gratidão, ofereço o meu respeito por suas histórias de vida.
Todos vocês, de diferentes formas, ajudaram a escrever a história que conto ao longo dessas
páginas.
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Todo ponto de vista é a vista de um ponto.
Para entender como alguém lê, é
necessário saber como são seus olhos e
qual é sua visão de mundo. Isso faz da
leitura sempre uma releitura.
Leonardo Boff
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RESUMO
Esta dissertação tem por objetivo analisar as experiências e representações sobre leitura na
Educação de Jovens e Adultos (EJA), tomando como universo os estudantes dos Eixos VI e
VII dessa modalidade de ensino, matriculados em uma escola da rede pública do estado da
Bahia, no município de Jequié. Foi realizado um estudo empírico através de entrevistas
individuais com os estudantes, no intuito de conhecer as suas práticas de leitura, dentro e fora
do espaço escolar, e compreender as circunstâncias e condições em que essas atividades são
desenvolvidas, as impressões produzidas por aquelas, os suportes e gêneros utilizados e,
sobretudo, o modo pelo qual esses estudantes valoram a leitura, o que constitui as
representações sobre tal ato. Para o desenvolvimento deste trabalho investigativo, busca-se o
apoio nas contribuições teóricas e nas reflexões produzidas pelo campo da Sociologia da
Leitura, da História da Leitura e pela teoria das Representações Sociais. Tal estudo sinaliza a
necessidade de ressignificar as formas de interação e apropriação da cultura escrita pelas
camadas mais empobrecidas da sociedade brasileira, da qual a EJA é um exemplo pontual,
face às concepções do ato de ler como atividade de formação e fruição.
Palavras-chave: Representações sobre leitura; práticas de leitura; Educação de Jovens e
Adultos.
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ABSTRACT
This thesis aims to analyze the experiences and representations about reading in Youth and
Adults Education (EJA), taking as universe the students of the Axes VI and VII of this
modality of education, enrolled in a public school in the state of Bahia, in a town called
Jequié. It was accomplished a collection of data through individual interviews with students,
in order to make a survey of their readings, inside and outside the school, understand the
circumstances and conditions under which these activities are developed, the impressions
produced by those, the support and genres used and, especially, the way these students value
the reading, what compose the representations about this act. For the development of this
research work, seeks to support in the theoretical contributions and in the reflections produced
by the field of Sociology of Reading and Reading History, by the theory of Social
Representations and by the Aesthetic of Reception. This study indicates the need to reframe
the forms of interaction and appropriation of culture written by the poorest layers of Brazilian
society, in which the EJA is a timely example, given the conceptions of the act of reading as
an activity of formation and enjoyment.
Keywords: Representations of reading; reading practices; Education of Youth and Adults.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 12
2 OS ESTUDANTES DA EJA E SUAS EXPERIÊNCIAS DE LEITURA 27
2.1 A leitura no espaço da escola 31
2.2 Além dos muros da escola 46
3 A COTAÇÃO DA LEITURA ENTRE OS ESTUDANTES DA EJA 64
3.1 A via do conhecimento e do trabalho 65
3.2 Ler é decodificar? 79
3.3 A leitura é um sacrifício 82
CONSIDERAÇÕES FINAIS 94
REFERÊNCIAS 97
APÊNDICES 101
ANEXOS 106
12
1 INTRODUÇÃO
Esta dissertação é fruto de um trabalho que se iniciou no ano de 2010, com o ingresso no
curso de Mestrado em Estudo de Linguagens, na Linha de Pesquisa Leitura, Literatura e
Identidades, no intento de compreender como a leitura é valorada e experenciada por jovens e
adultos que fazem parte das camadas menos privilegiadas da sociedade e vêm de um processo
irregular de escolarização, mas a todo tempo interagem com as mensagens escritas que se
multiplicam na sociedade contemporânea.
No Brasil, com a difusão da alfabetização e a propagação dos meios de comunicação de
massa, a leitura, que antes era privilégio de poucos, estende-se a grande parte da população
através das instituições de ensino de nível básico. No entanto, esse acesso não acontece de
modo igual para todos. Há uma parcela significativa de jovens e adultos que ficaram à
margem do sistema de escolarização. Alguns desses jovens e adultos compõem hoje o
universo de estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA)1, reconhecida como uma
modalidade específica de educação dentro do sistema formal de ensino.
O grande número de jovens e adultos que não concluíram a escolarização básica é uma
realidade de raízes históricas, que encontra sua explicação na forma como se desenvolveu a
política social e educacional no país, desde sua condição de colônia e se estende até os dias
atuais, com contornos, implicações e conotações diferentes em decorrência das
transformações políticas, econômicas e sociais do mundo contemporâneo, que levam a uma
reorganização do trabalho, da produção de bens e serviços, das relações entre países e dos
aspectos culturais. Esses fenômenos são de grande impacto social e cultural, gerando diversos
efeitos na vida dos cidadãos.
Desde a Constituição de 1824, a primeira outorgada no Brasil Império, de forma autoritária, o
tema educação esteve presente em todas as constituintes. A Carta Constitucional de 1934 é a
1 Dados do PNAD/2007 revelam que a Educação de Jovens e Adultos (EJA) era frequentada em 2007, ou
anteriormente, por cerca de 10,9 milhões pessoas, o que correspondia a 7,7% da população com 15 anos ou mais
de idade. De cerca de 8 milhões de pessoas que passaram pela EJA antes de 2007, 42,7% não concluíram o
curso, sendo que o principal motivo apontado para o abandono foi a incompatibilidade do horário das aulas com
o de trabalho ou de procurar trabalho (27,9%), seguido pela falta de interesse em fazer o curso (15,6%). Fonte:
www.ecodebate.com.br/2009/05/23/especial-ibge-divulga-perfil-da-educaçao-e-alfabetizaçao-de-jovens-e-
adultos-e-da-educaçao-profissional-no-pais/. Acesso em 10 de abril de 2010. Foram utilizados dados do ano de
2007 na indisponibilidade de outros mais atuais sobre essa modalidade de educação nos meios virtuais.
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primeira a incluir em seu texto a participação de adultos no sistema educacional, em seu
artigo 150, parágrafo único, alínea a: “ensino primário, integral, gratuito e de frequência
obrigatória extensivo aos adultos”.
A partir da década de 1940, a Educação de Adultos foi tema de diversas conferências
internacionais, sendo apresentada como um dos pontos críticos no enfrentamento dos desafios
culturais contemporâneos. A mais recente delas, a VI CONFINTEA (Conferência
Internacional de Educação de Adultos), aconteceu em dezembro de 2009, em Belém do Pará,
e foi encerrada com apelos aos governantes de levarem a diante, em ritmo acelerado e com
esforços redobrados, a Educação de Adultos2.
Durante muito tempo as ações voltadas a esse público se desenvolveram a partir de programas
de alfabetização, ensinando fundamentalmente os códigos da leitura, escrita e operações
matemáticas que supostamente permitiriam maior inserção social no modelo de sociedade que
se desenhava.
Na década de 1960, o pensamento de Paulo Freire vem dar novo enfoque às ações de
alfabetização, propondo um caminho metodológico que se centrava nos processos de
conscientização, através da problematização da realidade do sujeito, para além da aquisição
da técnica da decodificação dos grafemas. O golpe militar de 1964 acabou com tais
experiências e gestou o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) e o Ensino
Supletivo para suprir a escolarização regular para os adolescentes e adultos que não a tinham
concluído em idade própria. Era a resposta do governo às experiências da década passada e
sua adequação à nova ordem social que se estabelecia.
Com a redemocratização da sociedade, a Constituição Federal de 1988 avançou no tema
educação de adultos e em seu art. 208, inciso I, declara o ensino fundamental obrigatório e
gratuito, inclusive para aqueles que não tiveram acesso em idade própria, na condição de
direito público subjetivo. Nesse contexto surge a EJA no cenário brasileiro: como resposta a
uma dívida da sociedade com grande parte de sua população.
2 Informações retiradas do site da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura). Disponível em www.unesco.org. Acesso em 12 de setembro de 2011. Vê-se que o tempo passou e o
problema persiste não apenas a nível local, mas com a ressalva de que nos países ditos subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento esse problema é muito mais acirrado. Os participantes da conferência reconheceram que há a
necessidade de aumento de recursos financeiros e humanos especializados, oferta de currículos relevantes e
mecanismos de monitoramento e avaliação suficientes.
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Os ordenamentos infraconstitucionais absorvem e organizam seus princípios segundo os
ordenamentos da lei maior. Assim, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB
nº. 9.394/96 – incorpora a EJA como uma modalidade de ensino, colocando-lhe sob um título
próprio. Deixa-se de usar a designação de Ensino Supletivo, de caráter complementar e
compensatório, para adotar a denominação Educação de Jovens e Adultos, de caráter não
suplementar, mas fundamental. Por sua vez, a mudança de nomenclatura não alterou as
relações estabelecidas na política educacional brasileira, que continua a priorizar o ensino
regular em detrimento da EJA, baseada na lógica capitalista do custo/benefício.
O Parecer 11/2000 do CNE/CEB (Conselho Nacional de Educação e Câmara de Educação
Básica) surgiu para interpretar os artigos da LDB no tocante à EJA e instituir suas diretrizes
curriculares para o ensino fundamental e médio, bem como orientações para a formação
docente. Na tentativa de romper com uma formulação de ensino supletivo, de caráter
assistencialista, o referido Parecer reconhece a EJA como um direito social em três
dimensões: reparação, eqüidade e permanência e a define como “uma categoria
organizacional constante da estrutura da educação nacional com finalidades e funções
específicas” (BRASIL, 2000, p.05), colocando-a como instrumento para o exercício da
cidadania, ressaltando suas especificidades em função das condições socioculturais de seus
sujeitos.
Desse modo, os jovens e adultos que compõem a modalidade da EJA veem na escola a chance
de integrar-se à sociedade letrada da qual fazem parte por direito, cujo portal de acesso é o
domínio da leitura e da escrita. No entanto, não basta conhecer a técnica da alfabetização.
Numa sociedade cada vez mais marcada pela cultura escrita, é necessário interagir com as
muitas modalidades de textos que circulam pelos espaços sociais e apropriar-se criticamente
do conhecimento acumulado como ferramentas para a compreensão e intervenção na
realidade.
Voltei meu interesse para a EJA quando, no ano de 2008, fui trabalhar nessa modalidade de
ensino, como professora das disciplinas de História e Artes, no segundo segmento do ensino
fundamental, numa escola da rede municipal de Jequié-BA. Graduada em Pedagogia, até
aquele momento havia atuado apenas nesse segmento do ensino regular em instituições
privadas e municipais. A Educação de Jovens e Adultos era uma realidade desconhecida. No
primeiro impacto, um misto de sensações. Faço uso da palavra impacto porque acredito que
melhor traduz a experiência daquele momento.
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Tive que reconstruir minha proposta de trabalho de modo a aproximá-la o máximo possível
do contexto social daquelas pessoas e do que, acredito eu, fazia parte de suas aspirações e
necessidades. Busquei ajuda em estudiosos que, direta ou indiretamente, tratavam daquele
contexto educacional e de algumas de minhas muitas inquietações, a exemplo de Silva (1995,
1999) e Sacristán (2000) que discutem a relação entre identidade, currículo e poder; Kleiman
(1995) e Soares (1998), que escrevem sobre as práticas sociais e os eventos escolares de
letramento.
Percebi que minha atenção cada vez mais convergia para o campo da leitura, indo além da
estrutura cognitiva relativa ao simples ato de decodificar e para perto da leitura como prática
geradora de sociabilidades que constituem o espaço social e objeto das relações de poder que
operam na sociedade. Nessa interação, fui redescobrindo e ressignificando aquele ambiente de
ensino e, simultaneamente, compreendendo as pessoas que lá estavam em seus universos
sociais e culturais.
Como modalidade de ensino, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) descortina uma proposta
de educação diferente do Ensino Regular e não há como pensar nessa especificidade sem
considerar quem são seus sujeitos. Facilmente reconhecemos que jovens e adultos com
escolarização incompleta pertencem a grupos sociais de baixo poder econômico – o que
retrata a história desse país que fez da educação formal ou do acesso à educação formal
privilégio dos poucos favorecidos, herança que atravessa as gerações –, têm diferentes faixas
etárias e diversidade de histórias de vida. Em comum, têm a pobreza, que coloca grande parte
desses sujeitos no patamar da sobrevivência e se caracteriza pela falta de acesso a uma série
de bens econômicos, sociais e culturais.
Por outro lado, esses jovens e adultos não são somente “carentes”. São também construtores
de cultura, de visões de mundo, de saberes múltiplos, de leituras acerca da realidade, de
linguagem (que muitas vezes rotulamos de errada), de sonhos e aspirações, desejos e faltas,
que se faz ao mesmo tempo produto e processo de suas histórias, com suas singularidades e
semelhanças. Essas pessoas retornam à escola depois de algum período afastadas da
instituição escolar, já sujeitos de suas vontades, cientes de suas necessidades e de posse de
suas visões de mundo, em direção à apropriação da cultura letrada e na busca da conclusão da
escolarização básica.
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Reconhecendo tais especificidades, e por compreender a leitura como campo de distinção
social, em que se dá a tensão entre o reconhecido e o não-reconhecido, o valorizado e o não-
valorizado, entre letrado e iletrado e a relação de forças que subjaz a essa tensão, esse trabalho
vem investigar as experiências de leitura desses sujeitos de baixa renda e escolaridade tardia e
interrompida não apenas no contexto escolar, como em suas práticas sociais fora do espaço da
escola.
Além das experiências leitoras, esse estudo vem se ocupar de suas representações sobre
leitura que expressam a forma como apreendem e valoram a leitura no contexto das relações
sociais. Implica conhecer e compreender as práticas de leitura e suas representações a partir
de outro olhar que não seja o dos membros da cultura letrada, mas o de sujeitos das camadas
mais empobrecidas da sociedade, pois, em sua polissemia, a leitura adquire diferentes sentidos
em função das formas de apropriação do texto e de seus mediadores sociais. No entanto, em
razão dos lugares de onde provêm, alguns significados são mais valorizados que outros.
Creditar essas experiências de leitura e buscar, a partir delas, conhecer e compreender as
representações sobre leitura desses sujeitos é reconhecer o lugar de onde falam e vê-los como
sujeitos integrados a um processo histórico que ultrapassa o limite individual e os identifica
com classes sociais, etnias, religiões, gêneros, partidos ou propostas políticas, enfim, grupos
sociais.
Nas últimas décadas, a EJA tem sido tema de muitas teses de doutoramento e dissertações de
mestrado. Sérgio Haddad coordenou dois trabalhos que trazem as produções acadêmicas dos
discentes de programas nacionais de pós-graduação. A primeira publicação, Ensino Supletivo
no Brasil: estado da arte (HADDAD, 1987), analisa as produções de 1975 a 1985; o último
trabalho, O estado da arte das pesquisas em Educação de Jovens e adultos no Brasil: a
produção discente da Pós-graduação em Educação no período de 1986/1998 (HADDAD,
2000), traz uma atualização da proposta para o período de 1986 a 1998. Embora voltado para
os programas nacionais de Educação, esse estudo também capturou produções de outros
programas, como de Linguística, Psicologia, Serviço Social e Sociologia. O objetivo desses
exames, na visão de seu coordenador, além de sistematizar os conhecimentos dessa área, é
conhecer as principais temáticas abordadas e os resultados produzidos, bem como o de
identificar lacunas e campos ainda inexplorados, contribuindo com o avanço das pesquisas na
EJA.
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As teses de doutorado e dissertações de mestrado analisadas na última edição do trabalho
coordenado por Haddad versam sobre as relações entre professores e discentes, a formação
docente para o trabalho na EJA, as políticas públicas para essa modalidade de educação, as
concepções e práticas pedagógicas empreendidas. Uma parcela importante desses trabalhos
dedica-se à aprendizagem da leitura e escrita, problematizando as relações entre alfabetização
e práticas sociais de letramento. No entanto, nessa versão do estudo, não encontramos
trabalhos que investigam as práticas de leitura empreendidas dentro e fora da sala de aula,
dissociadas da apropriação da técnica da alfabetização, nem o papel da literatura nesse espaço
de formação escolar, embora saibamos que esses assuntos foram temas de trabalhos de pós-
graduação na última década.
A escolha da EJA na modalidade do ensino médio como universo de pesquisa se deve ao fato
de que seus sujeitos preenchem as características que impulsionam essa investigação:
primeiro, são sujeitos de baixo poder aquisitivo e escolarização tardia; segundo, interagem
com os materiais escritos em diferentes situações e circunstâncias sociais e, por fim, estão
envolvidos em situações de aprendizagem escolar. Esta última condição é importante porque
permite estabelecer a relação entre as leituras realizadas dentro e fora da escola e
compreender como a escola tem contribuído com a formação do leitor da EJA.
Para estudar as experiências e representações sobre leitura dos sujeitos da EJA, foram
entrevistados 15 estudantes dos eixos VI e VII dessa modalidade de educação que fazem
equivalência com os 3 anos de duração do ensino médio regular. A escolha por esse segmento
educacional se justifica pela busca de um público mais amadurecido do ponto de vista da
escolaridade, uma vez que já teriam concluído a etapa escolar que corresponde ao ensino
fundamental.
O colégio em que foi realizada a pesquisa faz parte da rede estadual de educação3, na cidade
de Jequié4, e atende ao público da Educação Básica no Ensino Fundamental II (6º ao 9º ano) e
3
Para preservar a identidade dos sujeitos envolvidos no trabalho, o nome da escola foi omitido. A preferência
pela rede estadual se justifica em razão de a rede municipal não oferecer o ensino médio, por conta da divisão de
responsabilidades entre os poderes federal, estadual e municipal. 4 Município localizado na região Sudoeste da Bahia, a 365 km da capital Salvador, na zona limite entre a
caatinga e a zona da mata. De economia diversificada, contempla a agropecuária (bovinos, caprinos, café,
cacau), mineração (granito, ferro, mármore, calcário), indústria de confecções e de calçados. Dispõe de um
poliduto que distribui derivados de petróleo e álcool para algumas cidades de Minas Gerais e Espírito Santo.
Conta com uma universidade pública, a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, com cursos de licenciatura
e bacharelado, nas áreas de educação e saúde, e quatro instituições privadas de ensino superior, todas com curso
de bacharelado em diferentes áreas. Cidade centenária, com cerca de 160.000 habitantes, é o local de domicílio
da pesquisadora.
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Ensino Médio, incluindo a Educação de Jovens e Adultos, nos turnos matutino, vespertino e
noturno. Neste último, além da EJA, tem-se também o ensino regular.
O perfil dos estudantes é diversificado. Majoritariamente, são de segmentos sociais populares,
procedentes de escolas públicas estaduais e municipais. Em 2010, foram matriculados 1.556
estudantes. Destes, 176 estavam matriculados na EJA, no segmento correspondente ao Ensino
Médio regular. Com cerca de 70 profissionais entre efetivos, temporários e terceirizados, o
corpo docente é constituído por 52 professores, a maioria, com graduação e especialização.
Destes, 09 atuam na EJA, por terem preferido, segundo a coordenadora pedagógica, essa
modalidade de ensino.
Esse colégio implantou a Educação de Jovens e Adultos em 2009, depois de uma “batalha”5
empreendida pela direção e professores em razão da baixa procura por cursos regulares
ofertados no turno noturno. Então, para atender a uma necessidade da comunidade, de modo
que não houvesse redução das turmas e professores não ficassem com carga horária de aula
abaixo do mínimo permitido, deu-se a referida batalha junto à Secretaria de Educação e
Cultura (SEC) do estado. Não foi possível precisar desde quando o município oferece
educação para os que estão fora da idade regular, mas sabe-se que os cursos são oferecidos
desde a época em que tal segmento recebia a denominação anterior: ensino supletivo.
O meu primeiro contato com a escola foi feito através da direção. Apresentei-me e expliquei
em que consistia o trabalho. Disse que precisava ter contato com alguns alunos para ouvir
sobre suas experiências de leitura. A então diretora disse que veria um/uma
professor/professora para me ajudar na seleção desses alunos.
Voltei à escola na data marcada, e a diretora da instituição já havia combinado com uma
professora para ajudar-me na seleção dos alunos, cujos critérios obedeciam a duas condições
específicas, previamente estabelecidas por mim, de modo a primar pela adequação do
universo de pesquisa ao objetivo proposto: i) fossem escolhidos alunos de diferentes faixas
etárias, a fim de contemplar as diferentes idades que compõem o ambiente heterogêneo da
EJA; ii) fossem alternados alunos do sexo masculino e sexo feminino, para que, ao final da
seleção, não tivéssemos um grupo preponderantemente marcado por um ou outro sexo.
5 Esse foi o termo utilizado pela coordenada pedagógica para justificar a oferta do curso pela escola.
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Na semana seguinte voltei à escola, e a professora colaboradora já havia conseguido os 15
alunos que concederiam as entrevistas. Contou que muitos deles haviam demonstrado
resistência, querendo saber qual o teor das entrevistas, mas, ao final do convite, aceitaram
participar da pesquisa.
De posse dos nomes dos participantes da pesquisa, fizemos um cronograma de trabalho
contando com três entrevistados por noite e elaboramos um convite para os estudantes
selecionados, entregue pela professora colaboradora, com a designação do lugar onde
realizaríamos a entrevista e o horário em que cada um deveria se dirigir ao espaço indicado.
Era uma sala de aula disponibilizada pela direção, visto que não estava sendo utilizada
naquele turno de trabalho. Preferi um local mais reservado para que os alunos ficassem mais à
vontade ao falar de suas experiências de leitura, distantes de olhares curiosos.
As entrevistas aconteceram em cinco dias consecutivos, de segunda a sexta-feira. A cada vez
que um aluno saía da sala, concluída a sua entrevista, tinha a sensação de que o próximo
participante não passaria pela porta, rememorando a resistência a que a professora havia se
referido quando fez a seleção. Contudo, para minha surpresa, nenhum deles deixou de
comparecer, o que permitiu concluir os trabalhos de coleta de dados dentro da semana
prevista.
Foram ouvidos 7 homens e 8 mulheres, todos e todas com idade igual ou superior a 18 anos,
visto ser essa a idade mínima para ingresso na EJA, segundo orientação dos documentos
oficiais6 que tratam dessa modalidade, considerando que aquela seria a idade com a qual os
sujeitos estariam concluindo de modo regular o ensino médio.
Antes do início de cada entrevista, expliquei a razão daquele convite e a importância dos
depoimentos para o desenvolvimento da pesquisa, ao que se seguia o preenchimento de um
questionário7 com os dados pessoais dos entrevistados. Tais dados foram organizados de
modo a esboçar o perfil sociocultural dos participantes da pesquisa, para que suas falas
fossem interpretadas à luz dessas informações.
O quadro abaixo traz a relação dos entrevistados, antecipando as suas identificações e os seus
nomes fictícios, de modo a zelar pelo anonimato na pesquisa. A partir de então, os sujeitos da
pesquisa serão assim identificados.
6 Segundo a Secretaria de Educação do Estado da Bahia (BAHIA, 2009).
7 Cf. apêndice A.
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QUADRO 01: Identificação dos entrevistados.
Nome
fictício Sexo
Idade
Estado
civil Filhos Escolaridade* Emprego** Profissão
Ana F 36 Solteira 02 Regular Informal Dona de casa
Beatriz F 38 Divorciada 06 EJA *** Estudante
Carla F 19 Solteira 00 Regular *** Não informou
Daniel M 25 Solteiro 00 EJA Informal Mototáxi
Edgar M 28 Solteiro 00 EJA Informal Vendedor
Franci F 26 Solteira 00 Regular *** Estudante
Heitor M 18 Solteiro 00 Regular Formal Office boy
Ione F 22 Solteira 00 Regular *** Estudante
Jairo M 32 Casado 01 Regular Formal
Operário de
produção
Lúcio M 46 Casado 02 Regular Formal Torneiro
Marcos M 36 Casado 02 EJA Formal
Auxiliar de
produção****
Nair F 32 Casada 03 EJA Formal Monitora em creche
Odete F 36 Casada 03 EJA Informal Costureira
Paulo M 40 Casado 03 EJA Formal Mecânico de ônibus
Tereza F 22 Solteira 00 Regular Informal Vendedora
Fonte: Questionário de identificação (Apêndice A)
Notas:
* Modalidade em que foi concluído o Ensino Fundamental.
** Refere-se ao tipo de emprego. Todos os entrevistados inseridos no mundo do trabalho disseram trabalhar o
dia inteiro, mesmo aqueles que não têm registro formal, ou seja, estão submetidos a uma jornada de 40 ou 44
horas semanais.
*** Sem vínculo empregatício nem exerce atividade informal.
**** No momento afastado das atividades para exercer mandado classista no sindicato representativo da
categoria.
A partir da oitiva e análise dos depoimentos dos sujeitos acima, buscamos conhecer e
compreender as experiências e representações sobre leitura dos discentes da EJA.
A oitiva dos estudantes da EJA se assenta nas perspectivas teóricas reunidas sob a designação
de “Estética da Recepção”’ e “Sociologia da Leitura”, que conduzem o leitor a um lugar de
centralidade na dinâmica da leitura, quer nas formas de recepção da escrita ou nos papeis
exercidos pelos diferentes mediadores sociais que se colocam entre o leitor e o texto,
descortinando os fatores sociais que se fazem presentes nas histórias de leitura. Inspira-se
também na História Cultural que, nas palavras de Chartier (1990, p.16), “(...) tem por
principal objecto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”. Essa inclinação teórica
21
desloca a história dos lugares ditos “oficiais” ao tempo em que abre espaço para que se
reconheçam outras histórias, geralmente silenciadas ou marginalizadas pela cultura dominante
e pela propensão da história tradicional, que centra sua narrativa nos fatos políticos.
Ajustado nessas vocações teóricas, esse trabalho busca conhecer as representações sobre
leitura dos sujeitos que estão “deslocados” dos espaços de hegemonia da cultura escrita e
erudita, sem perder de vista as relações de poder e dominação que se enunciam nas práticas de
leitura.
Bourdieu (2004) salienta que é preciso construir uma rede de relações que envolva a questão
estudada, ou melhor, essa rede constitui a própria questão. Assim, este trabalho situa as
experiências e representações de leitura formuladas por esses sujeitos no interior de suas
práticas sociais e estas em sua historicidade, relacionando-as com a moldura hegemônica da
leitura em seu caráter de formação intelectual e pessoal e com os eventos de letramento
escolar através dos pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa qualitativa, cuja
finalidade repousa no objetivo da pesquisa de explorar o espectro de experiências e
representações sobre leitura dos sujeitos da EJA.
É oportuno ressaltar que esta dissertação não traz pretensão de esgotar as discussões acerca da
problemática apresentada, mas desenhar uma das possibilidades de análise da questão, em
função do corpus constituído, das molduras teóricas aplicadas, das categorias de tratamento
empreendidas, da concatenação dos dados e teorias e, sobretudo, do olhar da pesquisadora,
que perpassa todas essas instâncias de investigação científica. Por sua vez, o caráter de
“possibilidade de análise” que o trabalho evoca para si não contraria o critério de
cientificidade do mesmo, que é dialeticamente construído em seu percurso de
desenvolvimento; apenas foge do embaraço epistemológico da pretensão de construção de
verdades absolutas.
Para a constituição do corpus de trabalho, os alunos foram convidados a falar de suas
experiências com leitura e o que ela representa em suas vidas. Ao recorrer às entrevistas
narrativas como procedimento investigativo, atentou-se para a necessidade de adequação entre
os objetivos da pesquisa e procedimentos metodológicos salientada por Bourdieu (2004) e se
explica em razão de que, segundo Bauer e Jovchelovitch (2008), a entrevista narrativa
pressupõe o ato do sujeito de narrar suas próprias experiências, forma elementar de
comunicação humana, frequentemente praticada, independente do desempenho da linguagem
22
utilizada. Desse modo, as narrativas têm o fundamento de propiciar aos sujeitos a sua própria
visibilidade, de modo a reconstruir os seus percursos e ressignificá-los. Representa a relação
dialética entre a experiência e a reflexão acerca da própria experiência. Assim, o estudo das
narrativas é o estudo de como os sujeitos experienciam o mundo, particularmente, o mundo de
suas leituras.
O objetivo era o de que os sujeitos falassem de suas experiências conexas à leitura, revelando
as formas como as sentem e descortinando as impressões, as ideias e os valores que envolvem
aquelas atividades, fazendo emergir, assim, as representações sobre leitura das quais são
portadores, construtores ou reprodutores.
A modalidade de entrevista narrativa utilizada foi a individual, para que os sujeitos ficassem
mais à vontade ao falar de suas experiências, num clima de conversação com a interlocutora,
porque, segundo Moscovici (2005, p. 90), “a conversação está no centro de nossos universos
consensuais, porque ela configura e anima as representações sociais e desse modo lhes dá vida
própria”.
Ao discorrer sobre suas experiências com leitura, os entrevistados fizeram emergir as suas
representações sobre tal prática. É claro que aquelas são únicas, individuais e singulares, mas
estão inscritas no interior de modelos compartilhados que caracterizam os grupos sociais, e,
conforme Chartier (1998, p. 91), “esta singularidade é ela própria atravessada por aquilo que
faz que este leitor seja semelhante a todos aqueles que pertencem à mesma comunidade”,
permitindo a construção de ideias e valores relativos à leitura comuns a todos aqueles
indivíduos.
As entrevistas duraram em média 15 minutos. Algumas se estenderam mais, beirando os 40
minutos, outras foram mais breves, em torno de 7 minutos de conversação. Observei que,
mesmo sabendo do assunto a ser tratado nas entrevistas, adiantado pela professora que
selecionou os estudantes e constando no convite feito, os alunos não chegavam à sala muito à
vontade, o que é compreensível. Eles não sabiam ao certo das minhas intenções nem das
perguntas a que seriam submetidos, ou seja, aquela situação lhes era estranha, e, sabemos, o
desconhecido é palco de dúvidas e inseguranças. Além do mais, tal tema, por sua amplitude,
dá margens a muitas possibilidades, e, ao mesmo tempo, tão próximo e distante, prende e
liberta. Ademais, as entrevistas foram realizadas na presença do gravador que, pelo registro
23
que implica, muitas vezes inibe as pessoas, especialmente aquelas que estão pouco
acostumadas a essas situações de investigação acadêmica.
No escopo de instigá-los a falar, foi preparado um roteiro de entrevista8, versando
principalmente sobre o que costumavam ler, as circunstâncias desse ato e os propósitos com
os quais realizavam tais leituras – atentando para o objetivo da pesquisa, qual seja, o de
conhecer as experiências e representações sobre leitura dos sujeitos da EJA – embora a
intenção era deixar falarem o mais livremente possível, segundo os pressupostos da entrevista
narrativa, para que, nessa conversação, fossem identificadas as representações sobre leitura.
Nesse intento, tal roteiro era flexível e o desenvolvimento das entrevistas decorria das
experiências reveladas pelos alunos, de cujo sentido dependia o encaminhamento de algumas
perguntas, ora para aclarar um assunto, ora para dar prosseguimento à conversa, pois,
geralmente, os entrevistados eram econômicos nas palavras, algumas vezes repetindo as
mesmas frases, talvez por não se sentirem à vontade em falar do assunto. Os que se estendiam
mais, comumente fugiam do tópico central, enveredando por histórias pessoais, que muitas
vezes se distanciavam da proposta do trabalho, quando eu tinha que retornar ao tema, a fim de
extrair daquelas falas elementos para a construção desta dissertação.
As perguntas introduzidas geralmente eram as seguintes: o que costumavam ler fora do
espaço da escola; quais eram as leituras oportunizadas pela escola; qual o papel/importância
da leitura em sua vida; dentre outras. Essas intervenções eram sempre feitas com o cuidado de
iniciar o assunto, mas deixar espaço para que o interlocutor estivesse à vontade em fazer os
encaminhamentos que retratavam a sua realidade.
Assim, nesse movimento contínuo de interação entre pesquisadora e entrevistados, os sujeitos
da pesquisa trouxeram à tona as suas experiências com a leitura, emolduradas por seus
contextos sociais e culturais e os fios das ideias que tecem as suas representações sobre
leitura.
Em prosseguimento às atividades de escuta, com o auxílio do gravador, as narrativas foram
transcritas imediatamente após sua realização, conforme orientação de Demartini (1988), no
intuito de não perder na memória os gestos, as entonações, as ênfases e os silêncios, cuja
dificuldade de registro a autora também ressalta. A preocupação com esse registro se dá em
função do entendimento de que essa forma de comunicação ajuda a significar as falas: “Há
8 Cf. Apêndice B.
24
toda uma gama de gestos, expressões, entonações, sinais não verbais, hesitações, alterações de
ritmo, enfim toda uma comunicação não verbal cuja adaptação é muito importante para a
compreensão e validação do que foi efetivamente dito” (Ludke e André, 1986, p.36).
Segundo Marcuschi (1997, p. 09), “o essencial é que o analista saiba quais os seus objetivos e
não deixe de assinalar o que lhe convém”. Dessa forma, as falas dos entrevistados, após a
transcrição, foram recortadas e analisadas de acordo com os núcleos temáticos que interessam
a esse trabalho: as leituras realizadas dentro e fora do espaço escolar, as circunstâncias e
condições em que essas atividades são desenvolvidas; as impressões produzidas por aquelas;
os suportes e gêneros comumente utilizados; a relação da leitura promovida na escola com a
leitura realizada fora do espaço escolar e, sobretudo, como classificam e valoram a leitura, o
que constitui as representações sobre leitura dos participantes da pesquisa.
Além das entrevistas, com o propósito de buscar dados acerca da realidade escolar daqueles
alunos que melhor ilustrassem as suas falas e contribuíssem para a compreensão do
desenvolvimento das atividades de leitura no ambiente escolar, foram solicitados os cadernos
de apontamentos de aula de oito dos estudantes entrevistados, para análise de seus conteúdos,
no intuito de fazer o contraponto de suas falas com tais registros. Nessa ocasião, a professora
que fez a seleção dos alunos também se encarregou de recolher alguns dos cadernos e
devolvê-los, depois de xerocopiadas por mim algumas de suas páginas que estão apensadas a
esta dissertação.
Pela mesma razão, precisei conhecer as concepções dos professores sobre o trabalho com
leitura na EJA. Antecipando a dificuldade de realizar entrevistas para a coleta das
informações, já que é sabido da resistência de muitos professores de colaborar com esse tipo
de trabalho, o que poderia impactar no prazo final para conclusão desta dissertação, optei por
trabalhar com questionários9, de modo a facilitar a coleta, ressaltando a condição de
anonimato. A coordenadora pedagógica da escola se incumbiu de entregar e recolher os
questionários distribuídos entre 03 professoras e 02 professores dos alunos entrevistados. Tal
instrumento de coleta de dados versava sobre o desenvolvimento da leitura na EJA, a partir de
seus fundamentos e suportes, segundo o olhar docente.
9 Cf. Apêndice C.
25
Nessa mesma ocasião, visitei a biblioteca da escola e conversei com a funcionária
encarregada daquele setor para conhecer e compreender o seu papel na constituição dos
leitores da EJA.
Ainda no intuito de obter informações sobre a escola e aclarar dúvidas acerca do trabalho
empreendido nessa modalidade de educação, suas políticas e diretrizes, conversei algumas
vezes com a coordenadora pedagógica da escola, que preferiu não gravar o diálogo, alegando
ficar pouco à vontade na presença do gravador. No entanto, os principais pontos de suas falas
foram registrados e subsidiam a análise dos dados em alguns momentos desse trabalho. A
coordenadora forneceu ainda os dados sobre a estrutura física e administrativa da escola.
Essas intervenções voltadas para o ambiente escolar se fizeram necessárias no sentido de
trazer informações sobre as experiências escolares às quais os alunos entrevistados fizeram
referências em suas falas, a fim de compreender o papel da leitura, através das mediações
pedagógicas, nesse processo de formação do sujeito leitor.
Tais dados, somados a mais de 200 minutos de escuta, submetidos a recortes e exames, nos
levam às experiências e representações sobre leitura dos discentes da EJA, cujas análises, de
agora em diante, organizadas em duas seções que se seguem, compõem, juntamente com esta
seção, o corpo desse trabalho, seguido das considerações finais, referências e anexos, os quais
trazem as transcrições das entrevistas, de modo que as falas recortadas para ilustrar passagens
desse trabalho possam ser percebidas no contexto em que foram produzidas.
A segunda seção, intitulada “Os estudantes da EJA e suas experiências de leitura”, traz um
estudo das práticas de leitura dos entrevistados dentro e fora do espaço escolar. No primeiro
momento, fazemos uma análise das práticas de leitura desenvolvidas na escola, o papel da
biblioteca nesse espaço de formação, as políticas e concepções de leitura ensejadas no espaço
educacional, o papel do livro didático e da literatura na formação do leitor. Esses pontos
mostram de que modo a EJA tem contribuído com a constituição de seus leitores. Subsidiam
essas análises e discussão os documentos oficiais que tratam do Ensino Médio e da Educação
de Jovens e Adultos, bem como as contribuições teórico-críticas de Eni Orlandi, Marisa
Lajolo e Tzvetan Todorov acerca da leitura e literatura na prática pedagógica.
Ainda nessa seção, no segundo momento, delineamos as práticas de leitura ensejadas fora do
contexto escolar, bem como as circunstâncias e propósitos em que tais práticas são
produzidas, revelando as preferências dos sujeitos da pesquisa e os mediadores presentes
26
nessa dinâmica de relações sociais. Para tanto, busca-se o apoio em um referencial teórico e
crítico do campo da Sociologia da Leitura e da Estética da Recepção, particularmente com os
estudos de Márcia Abreu, Martine Poulain e Bernard Lahire acerca dos diferentes modos de
ler; Hans Robert Jauss, com a noção de “horizonte de expectativas” para o entendimento da
recepção das obras literárias e José Paulo Paes, com sua discussão sobre o papel da literatura
de entretenimento na formação do leitor.
A última seção, “A cotação da leitura entre os estudantes da EJA”, traz as representações
sobre leitura desses discentes, retratando o quão são ambivalentes tais representações e de que
modo estão imersas no ambiente social desses sujeitos. Abordamos questões sociais,
históricas e culturais relacionadas à leitura ao passo que analisamos as práticas, imagens e
representações, compreendendo-as na tessitura do enredo desta dissertação de mestrado. Para
isso, recorremos aos estudos de Marisa Lajolo e Regina Zilberman, acerca da formação da
leitura no Brasil, de Eni Orlandi sobre a noção de formações discursivas, bem como às
contribuições teóricas de Serge Moscovici e Jean Claude Abric, que explicam a formação e
manutenção das representações sociais.
Assim, esse trabalho vem trazer sua contribuição às discussões acerca do papel da leitura ao
tempo em que descortina as experiências e representações sobre leitura dos sujeitos de
camadas menos privilegiadas da sociedade. Ao desvelar as representações, que se inscrevem
nas relações de poder e dominação que se configuram e reconfiguram no espaço social ao
longo das décadas, esboçam-se os modos pelos quais são construídas, bem como o papel das
interações discursivas nessas construções. Por sua vez, vem também visibilizar o momento
em que tais representações se afastam do discurso e se reencontram com as práticas desses
sujeitos, que constituem as suas experiências de leitura.
Esse encontro/reencontro com as experiências de leitura dos sujeitos da pesquisa e a
visibilidade de suas representações leva-nos a considerar a necessidade de revisitar e
ressignificar as práticas de leitura, no momento em que elas se entrelaçam com a constituição
histórica desses sujeitos.
27
2 OS ESTUDANTES DA EJA E SUAS EXPERIÊNCIAS DE LEITURA
Fundamental, ao pretender ensinar a leitura, é
convocar o homem para tomar da sua palavra.
Bartolomeu Campos Quierós
A EJA é uma modalidade específica de ensino, norteada pelos parâmetros do Ensino
Fundamental e do Médio (BRASIL, 2000a), em que a contextualização e o reconhecimento de
identidades constituem diretrizes nacionais para a educação. Tendo em vista a
heterogeneidade dos estudantes matriculados na EJA – faixa etária, experiências de vida,
práticas culturais e valores – a EJA defende uma flexibilidade em sua estrutura e duração dos
cursos. Conforme a Resolução 01/2000 do Conselho Nacional de Educação e Câmara de
Educação Básica,
cabe a cada sistema de ensino definir a estrutura e a duração dos cursos da
Educação de Jovens e Adultos, respeitadas as diretrizes curriculares
nacionais, a identidade desta modalidade de educação e o regime de
colaboração entre os entes federativos (BRASIL, 2000b, p.02).
A flexibilidade pressupõe que as experiências de vida dos sujeitos da EJA sejam qualificadas
como aspectos significativos. Nessa perspectiva, no ano em que foi implantada a EJA nesse
colégio, a Secretaria de Educação do Estado da Bahia/SEC-BA lançou um documento de
política para essa modalidade de educação, “Educação de Jovens e Adultos: aprendizagem ao
longo da vida” (BAHIA, 2009), com “orientações para a reestruturação da Educação de
Jovens e Adultos na Rede Estadual de Educação”. O documento norteia a equivalência de
estudos e apresenta uma proposta curricular organizada em torno de eixos temáticos e temas
geradores, considerando as especificidades dos “tempos formativos” dos educandos.
QUADRO 02 – Equivalência de estudos
Nomenclatura anterior Nomenclatura atual
(desde 2009)
Equivalência
EJA III
Eixo VI
Eixo VII
Ensino Médio
Fonte: BAHIA, 2009.
Os cursos são organizados em eixos, fazendo equivalência com o Ensino Médio regular os
Eixos VI e VII, de regime anual e presencial, anteriormente denominada EJA III. Essa
28
proposta curricular é organizada por eixos temáticos e temas geradores, trabalhados por áreas
do conhecimento, divididos por bimestres ao longo de dois anos que integralizam o curso.
QUADRO 03 – Proposta curricular dos Eixos VI e VII da EJA
Eixo temático Duração Temas Geradores Duração Área do
conhecimento
(segundo PCN’s)
VI - Globalização,
cultura e
conhecimento.
1 ano
A sociedade globalizada.
O conhecimento como
instrumento de poder e
inserção social.
Informação ou
conhecimento?
A escola como espaço de
socialização e
conhecimento.
1
bimestre
cada
tema
Linguagens, Ciências
Humanas e suas
tecnologias.
Economia solidária
e
empreendedorismo.
1 ano
A economia a serviço da
vida.
O cooperativismo como
prática solidária.
Agricultura familiar.
Desenvolvimento auto-
sustentável e geração de
renda.
1
bimestre
cada
tema
Ciências da natureza,
Matemática e suas
tecnologias.
Fonte: Bahia, 2009.
O primeiro Eixo trabalha a área de linguagens e ciências humanas, segundo as orientações dos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. O segundo responde pela área de
ciências da natureza e exatas. O documento ressalta que os temas geradores devem ser
acolhidos como possibilidades no processo de aprendizagem, não devendo, portanto, ser
impostos.
Os educadores devem identificar, junto aos estudantes da EJA, temas relacionados à sua
vivência, a exemplo do universo do trabalho, para aprofundar os estudos nas diferentes áreas
do conhecimento. Portanto, a contextualização não deve ter como fim o oferecimento do
curso no turno noturno, para atender aos jovens e adultos com vínculo empregatício formal ou
informal. Tampouco, a fadiga dos estudantes deve justificar um trabalho de qualidade
duvidosa.
29
Em relação à duração do curso, prevê-se sua conclusão em dois anos, enquanto no Ensino
Médio é realizado em três. O Parecer 11/2000 adianta que não se trata de um aligeiramento do
trabalho pedagógico. Ao contrário, busca-se o reconhecimento de sujeitos que trazem muitos
conhecimentos de sua vivência social, ainda que de modo pouco sistematizado, o que permite
a elaboração de um trabalho em ritmo diferente do que ocorre no ensino regular.
Que esses sujeitos trazem muitos saberes nascidos de seus fazeres é fato. No entanto, tal
prerrogativa não pode ser entendida como uma versão empobrecida do ensino regular. Muitas
vezes, tem-se como justificativa para a demanda e a preferência pelos cursos da EJA o fato de
se poder fazer, em tempo menor, a integralização do Ensino Médio. Entendida por esse
ângulo, a EJA, mais que reparação de uma dívida social, faz parte de uma política educacional
que prevê a correção dos dados estatísticos do país acerca do grau de escolaridade dos
brasileiros, visando a uma melhoria, em resposta a pressões de organismos internacionais
preocupados com o IDH10 (Índice de Desenvolvimento Humano).
A proposta curricular da EJA no estado da Bahia, conforme o documento, apoia-se no
entendimento de que essa modalidade de ensino, sendo um processo de desenvolvimento
pleno do sujeito, embora instalada no contexto escolar, deve considerar as experiências de
vida dos sujeitos envolvidos, fazendo daí o ponto de partida para o trabalho pedagógico,
aproximando-se, nos termos do documento, dos ideários da Educação Popular, que inclui a
formação técnica, social e política (FREIRE, 2001), tendo em vista as especificidades dos
tempos formativos dos indivíduos.
Nesse quesito, vale fazer um parêntese para tratar do desenvolvimento cognitivo, que é fruto
do aprendizado do sujeito, decorrente de um processo contínuo de interação social. Nas
últimas décadas, a Pedagogia tem se aproximado da Psicologia para compreender tais
processos. No entanto, tais estudos centram suas perspectivas nas fases da infância e da
adolescência. Segundo Durante (1998, p. 18),
a fase adulta é compreendida como uma fase de estabilidade psicológica,
com ausência de mudanças e um processo de decadência. Como explicita
10
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida comparativa usada para classificar os países pelo
seu grau de desenvolvimento humano e para separar os países desenvolvidos (IDH alto), em desenvolvimento
(IDH médio) e subdesenvolvidos (IDH baixo). A estatística é composta a partir de dados da expectativa de vida
ao nascer, educação, PIB (Produto Interno Bruto) e renda per capita (como indicador do padrão de vida)
recolhidos a nível nacional. A cada ano, os países membros da ONU são classificados de acordo com essas
medidas. Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dndice_de_Desenvolvimento_Humano. Acesso em 05 de março de 2012.
30
Palacios (1995), só no final dos anos 70 deste século, os estudiosos
ampliaram a compreensão do processo de desenvolvimento para além da
adolescência, considerando a idade adulta e a velhice fases que comportam
mudanças no processo de desenvolvimento psicológico. Sendo a idade
adulta passível de mudanças e processos de adaptações, não podemos
entendê-la como fase estável nem classificar os adultos pouco escolarizados
dentro de níveis estáveis e fechados de desenvolvimento psicológico.
Isso significa dizer que se deve considerar a fase adulta como de continuidade do
desenvolvimento cognitivo, em que os fatores presentes no processo de aprendizagem, qual
seja, a interação com o mundo físico e social, cujas experiências e circunstâncias culturais
propiciam situações de aprendizagem, são motores do desenvolvimento cognitivo.
Outro ponto do documento da SEC-BA diz respeito aos critérios de acompanhamento da
aprendizagem. Orienta-se que tal processo seja descrito através de registros bimestrais,
primando pelo diálogo como mediação entre educador e educando, numa perspectiva
formativa de construção das competências e habilidades requeridas para aquele eixo
formativo, respeitando-se o ritmo de desenvolvimento de cada sujeito. O parecer final deve
levar em conta esse percurso formativo ao longo do ano letivo.
Ademais, determina-se que o estudante não seja mantido no mesmo Eixo, salvo se a
frequência for insuficiente a ponto de inviabilizar o acompanhamento do processo formativo.
E, quando aquela for a única opção possível, o documento propõe uma abertura para que o
estudante conclua seus os estudos através dos exames que conferem a certificação do Ensino
Médio.
É sabido que questões de diferentes ordens interferem na aprendizagem; não cabe aqui nos
alongarmos nesse assunto, o que exigiria muitas páginas. Cada sujeito interage com o objeto
de estudo de forma pessoal, servindo-se de suas experiências como moldura cultural para essa
interação, condição sine qua non para o processo de aprendizagem. Assim, em nome das
especificidades dos tempos individuais, a escola deve assumir o desenvolvimento de um
trabalho pedagógico que evite uma formação precária dos sujeitos, atentando para aspectos
importantes na construção das competências e habilidades requeridas ao longo do ensino
básico.
31
2.1 A leitura no espaço da escola11
Nos temas geradores propostos pelo documento da SEC-BA, evidencia-se o foco no
pressuposto de que o conhecimento é “instrumento de poder e inserção social”,
particularmente numa sociedade globalizada. Isso implica a compreensão de que uma das vias
de acesso ao conhecimento a ser construído está no sistema de ensino, responsável por
transmitir aos estudantes um volume de saberes e conhecimentos acumulados no tempo.
No processo da educação formal, mediadores e mediações se fazem presentes, ganhando
relevância a figura do professor, no desenvolvimento de práticas educativas e escolares. Nos
projetos pedagógicos, uma dessas práticas, a leitura, tem seu lugar privilegiado, através da
qual o estudante complementa os conteúdos ministrados, no intuito de ampliá-los,
reproduzindo-os ou construindo novos saberes, e se espera, nesse aprendizado, como defende
a pedagogia moderna, que ele se transforme em cidadão crítico, ao tempo em que expande sua
compreensão de mundo.
Nas falas dos estudantes da EJA, sujeitos desta investigação, constata-se uma visão
pragmática e reducionista da leitura. Eles participam das atividades de leitura propostas em
sala de aula, quase sempre restringindo-se à compreensão dos textos, com o intuito de
responderem às atividades de avaliação. Expõem, assim, uma concepção mecanizada da
aprendizagem, a qual, segundo David Ausubel (apud MOREIRA, 1999), implica em que
novas informações sejam incorporadas à estrutura cognitiva,12 sem que estabeleçam relações
com os esquemas cognitivos13 já presentes naquela estrutura. Ou seja, respondem pela
memorização de determinadas informações para discorrer nas “provas”. Devido a pouca
estabilidade cognitiva dessas informações, dificilmente provoca mudanças de comportamento
do sujeito.
A relação que esses estudantes estabelecem com a leitura não se harmoniza com as diretrizes
dos documentos oficiais elaborados para o Ensino Médio, dentre outras, a prerrogativa do
11
A escola escolhida para compor essa pesquisa é de médio porte. Em sua infraestrutura física conta com os
seguintes espaços: 18 salas de aula; 01 sala da diretoria; 01 para a secretaria; 01 sala de coordenação; 01 sala dos
professores; 03 laboratórios (de ciências exatas, ciências humanas e informática); 01 auditório; 01 biblioteca; 01
sala de vídeo e 01 de apoio (projetos); 01 quadra de esportes; 01 pátio; Dispõe ainda de refeitório (01); (cozinha
(01); espaço para estacionamento (01); portaria (01), dentre outras dependências menores. 12
Conjunto global de pensamentos de um sujeito e a forma como estão organizados. 13
Informações presentes e organizadas na estrutura cognitiva.
32
sujeito posicionar-se de forma crítica diante do conhecimento, relacioná-lo com a prática, e
refletir sobre ele, aprendendo a aprender. Embora o documento da SEC-BA oriente para que
se evite a retenção dos estudantes nos Eixos, o que pode ocorrer com as reprovações, é
recorrente nas falas dos estudantes entrevistados a preocupação com a avaliação formal,
realizada através da “prova escrita”.
Se esse instrumento de avaliação continua a ter tanta relevância, a relação com o
conhecimento torna-se secundária, constatando-se a negação do princípio da contextualização
do conhecimento, construído com a valorização das experiências discentes, como posto nas
diretrizes para a educação nacional. Ainda, tal relevância não se coaduna com as concepções
teóricas e metodológicas expostas no documento da EJA elaborado para a rede estadual da
Bahia, que têm no diálogo com a realidade dos sujeitos um princípio constitutivo.
A interação com o objeto do conhecimento, muitas vezes mediada pela leitura, é o ponto de
partida para a aprendizagem. Portanto, há de se pensar na qualidade dessa interação, uma vez
que os estudantes da EJA já vivenciaram muitas formas de relação com o meio físico e social,
respeitando a diversidade de vivências, idade, saberes e valores, de maneira a favorecer a
aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo. A interação com o objeto de estudo favorece a
aprendizagem que, por sua vez, provoca mudanças no comportamento, ou seja, a
ressignificação do conhecimento sistematizado modifica as formas de compreensão e
intervenção na realidade.
Para esses entrevistados, a leitura está relacionada ao desempenho nas avaliações formais,
expondo a preocupação maior com a conclusão da escolarização básica, na expectativa de se
inserirem no mercado de trabalho. Ocorre assim um distanciamento entre as atividades de
ensino e o processo de construção do conhecimento. Os sujeitos da pesquisa não se sentem,
em suas práticas escolares, construindo conhecimentos, modificando seus modos de
compreender e intervir na realidade. Respondem a uma “prova” visando conseguir a
pontuação necessária à passagem de uma série para outra.
A qualidade dessa interação é motivo de reflexão quando se constata que os entrevistados
desta pesquisa consideram que a leitura, em primeiro lugar, é atividade que assegura um bom
desempenho nas tarefas avaliativas, parecendo ignorar sua importância na construção de
conhecimentos. Conforme suas falas, a construção dos conhecimentos trabalhados em forma
33
de componentes curriculares não é o aspecto mais marcado quando se referem à leitura no
espaço da escola.
As experiências de leitura dos estudantes da EJA no ambiente escolar aproximam-se de uma
aprendizagem mecânica, a despeito da valorização da “aprendizagem significativa” –
defendida pelo referido documento –, conceito central da teoria da aprendizagem de David
Ausubel, cujo processo se dá pela associação da informação nova a outra já existente na
estrutura cognitiva, provocando mudanças no comportamento. A essa informação já existente
na estrutura cognitiva, o autor denomina conceito subsunçor, comumente conhecido nos
espaços pedagógicos como conhecimentos prévios.
De maneira análoga a uma aprendizagem mecânica, tem-se a relação com a leitura, feita para
alcançar os objetivos impostos pelos professores através das “provas”. A leitura torna-se
ferramenta pedagógica para se alcançar determinados objetivos – desempenho favorável nas
atividades avaliativas e progressão na escolarização, por exemplo – não necessariamente
instrumento de construção de conhecimento e identidade. Tal perspectiva ressalta a face
instrumental da leitura:
Isso [caráter técnico da leitura] conduz ao tratamento da leitura apenas em
termos de estratégias pedagógicas exageradamente imediatistas. E a leitura
deve ter, na escola, uma importante função no trabalho intelectual geral. Na
perspectiva imediatista, as soluções propostas colocam à disposição do
estudante apenas mais um artefato escolar pronunciadamente instrumental.
Visando a urgência de resultados escolares, se passa por cima de aspectos
fundamentais que atestam a história das relações com o conhecimento tal
como ele se dá em nossa sociedade, assim como sobre a história particular
de nossas instituições do saber e seus programas. (ORLANDI, 1996, p. 35)
Para a autora, por essa perspectiva ocorre um reducionismo pedagógico, visto que a leitura é
deslocada de seu caráter social e histórico de compreensão da realidade para atender a uma
situação própria do contexto escolar.
Certamente, as leituras oportunizadas pela escola não favorecem o reconhecimento de suas
identidades porque estão pautadas num projeto de educação voltado para a classe média,
contrariando um dos fundamentais princípios dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que é a
contextualização dos conhecimentos. Se estes não encontram ressonância em seus cotidianos,
dificilmente se converterão em aprendizagem significativa. Segundo Orlandi, tal prática
responde por um segundo tipo de reducionismo da leitura, o social: “a escola, tal como existe,
34
em referência à leitura, propõe de forma homogênea que todo mundo leia como a classe
média lê” (1996, p. 37).
Não se deve negar o acesso às formas de conhecimento “legítimo”, porque também são
necessários para que o sujeito intervenha em sua realidade. Contudo, deve-se criar espaço
para a elaboração de outras formas de conhecimento que derivem das vivências dos
estudantes, de modo que se reconheçam na prática escolar e percebam a presença dessas
leituras em suas vidas, contribuindo com a sua formação de cidadão crítico.
Uma vez que os sujeitos da pesquisa relacionaram a leitura às atividades de avaliação, por
vezes dissociada da construção do conhecimento, tal entendimento permite inferir que essa
leitura resulta numa espécie de reprodução da matéria lida na atividade avaliativa,
constituindo o processo parafrástico que, segundo Orlandi (1996, p. 20), “é o que permite a
produção do mesmo sentido sob várias de suas formas (matriz da linguagem)”. Ou seja, é
dizer o que o texto instituiu. Essa perspectiva dificulta que o leitor atribua sentido ao texto, a
partir de seus referenciais e suas histórias de leitura.
Uma alternativa a esse modo de ler empreendido pelos entrevistados da pesquisa seria a
leitura polissêmica que, segundo a autora, é o processo que permite a construção dos sentidos
a partir dos referenciais do estudante, ou seja, o texto é fonte de múltiplos sentidos.
Na construção desses sentidos, a interpretação não é mais um encadeamento lógico intrínseco
ao texto, como pensavam os estruturalistas, mas a própria atividade do leitor. Jonathan Culler,
ao interpretar Stanley Fish, diz que o encontro do leitor com o texto dá-se na experiência da
interpretação: “a experiência é a interpretação” (1997, p.49). Assim, o sentido da leitura é a
experiência que o leitor tem dela. Essa experiência, por sua vez, se inscreve nas vivências
sociais e culturais do leitor, que se entrelaçam com as questões de classe, gênero, etnia,
nacionalidade e cultura.
A prática de leitura parafrástica vai de encontro aos documentos oficiais da educação
nacional, como atestam os Parâmetros Curriculares para a área de Linguagens:
...prevê-se que os eventos de leitura se caracterizem como situações
significativas de interação entre o estudante, os autores lidos, os discursos e
as vozes que ali emergirem, viabilizando, assim, a possibilidade de múltiplas
leituras e a construção de vários sentidos. (BRASIL, 2006, v. 01, p. 33)
35
A construção de um trabalho com leitura que possibilite a construção de múltiplos sentidos
deve, como orientou o educador Paulo Freire, pautar-se num projeto de educação dialógica
que parta da realidade do educando e de seus referenciais socioculturais, buscando a formação
crítica do estudante.
Quando atua na perspectiva parafrástica, a escola ratifica o entendimento da leitura como
prática de decodificação. Se a leitura não pressupõe o posicionamento do leitor diante do
texto, ler é tão somente decodificar, constituindo o que Orlandi (1996) classifica como o
terceiro tipo de reducionismo: o linguístico. Tal decodificação responderia pela “aquisição”
do conhecimento. Se isso não acontece, então o que os estudantes fazem na escola não é
“leitura”. As suas falas ensejam essa lógica ao afirmarem que “não liam nada”, mesmo
inseridos num espaço de educação sistematizada.
O que antes é atividade para descortinar o mundo, a prática escolar, segundo os depoimentos
dos estudantes, tem transformado em ferramenta pedagógica nas situações de atividades
avaliativas, desvencilhada de seu caráter de entendimento e transformação da realidade do
estudante, como preconizado nos documentos oficiais da educação nacional. Apesar desse
discurso já ser conhecido dos pesquisadores que se debruçam sobre essas questões, elas
persistem na prática e se apresentam nas falas dos sujeitos da pesquisa, quando retratam as
leituras desenvolvidas no contexto escolar.
Se a escola não promove a inserção da leitura na vida desses estudantes da EJA, acaba
afastando-os cada vez mais dos livros e da leitura por não contribuir com a construção de um
vínculo entre suas necessidades e vivências e acaba por fomentar a elaboração de uma visão
elitista da leitura, considerada complicada e enfadonha pela maioria dos entrevistados. Desse
modo, a escola atua na contramão da constituição do leitor, quando faz a dicotomia entre as
leituras e as realidades dos educandos. Transforma em conteúdo da escola o que antes é
matéria da vida.
Enquanto os estudantes apresentam a leitura como ferramenta pedagógica para favorecer o
desempenho nas provas, os professores, de modo geral, pontuaram nos questionários a relação
da leitura com o aprendizado e a preferência por textos que estabelecem relação com as
realidades dos estudantes. Os momentos em que as falas dos entrevistados e as considerações
escritas dos professores se bifurcam na prática escolar suscitam um novo trabalho
investigativo que examine tais questões.
36
Junto à concepção da leitura como ferramenta para o desempenho nas atividades avaliativas,
outros fatores de ordem material se somam ao processo de constituição desses leitores dentro
do espaço escolar. Quando os sujeitos da pesquisa foram questionados sobre o suporte de
leitura utilizado na prática escolar, a maioria respondeu que era o “caderno”. Ou seja, ora
copiam no caderno o que o professor escreve na lousa, ora copiam diretamente dos livros que
os docentes levam para a classe e disponibilizam aos estudantes para a cópia no caderno do
conteúdo indicado.
Apesar do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) – e, mais especificamente, o
Programa Nacional do Livro do Ensino Médio (PNLEM) – ter sido ampliado
consideravelmente nas últimas décadas14
, esses estudantes não são contemplados com o livro
didático. Constata-se, assim, o descaso dos governantes com a Educação dos Jovens e
Adultos. No âmbito da educação pública nacional, essa modalidade de ensino é pouco
assistida, a despeito de alguns esforços no sentido de respeitar a dignidade dos seus
estudantes. Muitas vezes o silêncio velado e a omissão política se justificam no “respeito” às
especificidades educacionais desses segmentos sociais.
Segundo a coordenadora pedagógica da escola, a SEC-BA não disponibiliza livros para os
Eixos VI e VII da EJA, cujas razões desconhece, mas adiantou que os professores costumam
levá-los e distribuí-los entre os estudantes, a fim de que os trabalhos sejam desenvolvidos, e
os recolhe em seguida. Assim, os livros circulam, ainda que timidamente, quando deles os
professores extraem questões para os estudos, os ditos “exercícios”, conforme os
entrevistados. Também como fonte bibliográfica para registros dos estudantes em seus
cadernos, visto que a reprodução xerográfica não é comum entre eles. Constata-se uma
precarização quase absoluta de recursos didáticos nessa modalidade de educação.
Não se pode menosprezar o papel do livro didático no espaço escolar, especialmente nos
segmentos sociais menos favorecidos, quando, muitas vezes, a escola representa uma das
poucas possibilidades de acesso e familiarização com esse suporte de leitura. Sem dúvida que
sua proposta deve ser contextualizada e promover pontos de diálogo com a realidade dos
estudantes. Marisa Lajolo e Regina Zilberman destacam a importância do livro didático na
14
Segundo Lindoso (2004), os livros didáticos respondem por 35% do mercado editorial brasileiro. Desse
percentual, boa parte destina-se ao Programa Nacional do Livro Didático – cuja formulação atual data de 1985 –
embora seja difícil precisar o número por falta de transparência na política do governo.
37
formação do leitor, porque, segundo as autoras, ele é uma das condições para o
funcionamento da escola, por isso tão cobiçado pelas editoras, desde as mais antigas:
O livro didático interessa igualmente a uma história da leitura porque ele,
mais ostensivamente que outras formas escritas, forma o leitor. Pode não ser
tão sedutor quanto as publicações destinadas à infância (livros e histórias em
quadrinhos), mas sua influência é inevitável, sendo encontrado em todas as
etapas da escolarização de um indivíduo: é cartilha, quando da alfabetização;
seleta, quando da aprendizagem da tradição literária; manual, quando do
conhecimento das ciências ou da profissionalização adulta, na universidade.
(LAJOLO, ZILBERMAN, 1998, p. 121).
A ausência de livros didáticos para os estudantes reduz assim o contato ou a aproximação com
esse tipo de suporte, distanciando-o de uma concepção mais rica de leitura, relacionando-a,
cada vez mais, ao trabalho intelectualizado e distante da realidade dos entrevistados. Dessa
forma, reforça o entendimento da leitura como uma mera ferramenta pedagógica mais do que
uma via na construção de identidades.
Ademais, o livro didático contribui com o trabalho pedagógico e sua ausência traz
consequências, inclusive, para a construção dos sentidos. Nos cadernos dos estudantes, da
disciplina de Geografia, observa-se uma representação do espaço geográfico: o planisfério e
as coordenadas geográficas, representando o globo terrestre. Sem dúvida, tal exercício auxilia
na assimilação do conteúdo didático, na medida em se reelabora esse assunto através do
desenho.
Contudo, como desenho à mão livre não assegura as devidas proporções geométricas, tal
exercício pode levar a uma compreensão equivocada do assunto, quando o recurso didático da
imagem projetada seria de grande ajuda na visualização desse espaço. Não se afasta a
possibilidade do professor da disciplina ter levado a imagem para a sala de aula; pontua-se
apenas que o registro feito no caderno traz uma imagem sem as devidas proporções
geográficas.
A ausência dos recursos visuais projetados, geralmente presentes nos livros didáticos,
dificulta o entendimento do assunto, enquanto a expressão da ideia associada à imagem – uma
ilustração – facilita a compreensão, principalmente quando determinado conteúdo requer tal
visualização. Evocando Durante (1998), os esquemas cognitivos dos adultos não podem ser
vistos como sistemas estáveis, mas em constante processo de construção.
38
No entanto, as especificidades apontadas no trabalho pedagógico em razão da ausência do
livro não o colocam como recurso didático que, sozinho, traz as condições para o aprendizado
do estudante. A intervenção do professor é sempre necessária a uma ação educativa de
qualidade, do ponto de vista político e técnico.
Considerando que o “caderno” é o principal suporte para esses estudantes em sala de aula,
podem-se fazer as seguintes inferências sobre as atividades de leitura: o professor precisa
delimitar os conteúdos, e os registros no caderno não são suficientes para favorecer que os
estudantes tenham uma compreensão ampliada do assunto. Além disso, tem-se a visão do
professor sobre o que considera mais expressivo. Esse recorte (necessário em razão das
circunstâncias) reduz a atividade polissêmica da leitura, pois restringe a quantidade de
informações com as quais os leitores podem interagir.
Nesse ponto, ressalte-se a preferência dos professores por textos curtos em seu trabalho
pedagógico, conforme os questionários respondidos. É sabido que são muitas as dificuldades
de trabalho na EJA. Trata-se de um público heterogêneo – em faixa etária e com diferentes
processos de escolarização15
. Esses estudantes, em sua maioria, têm vínculo empregatício
formal ou exercem atividade informal, o que implica menos tempo disponível ao estudo.
Contudo, é necessário ultrapassar a concepção de leitura com fins exclusivamente
didatizantes, que tem por meta o ensino do componente curricular, visando facilitar a
aprendizagem.
Formar leitores extrapola a esfera puramente didática e é preciso que a escola atue de modo a
favorecer a competência leitora. Se o sistema de ensino privilegia a leitura didática, abdica da
responsabilidade de contribuir com a constituição de leitores e, para muitos desses estudantes,
talvez a escola represente a última oportunidade de estabelecer uma relação mais positiva com
a cultura letrada.
O caráter pragmático que a leitura comumente tem adquirido junto às classes populares, e
consequentemente junto à EJA, não deve prevalecer na prática pedagógica. Tal pragmatismo
remonta ao início do processo de democratização do ensino, quando era preciso formar
sujeitos capazes de interagir com os textos escritos, e à concepção tecnicista da educação, cuja
15
O tempo desses estudantes distante da escola é variado, assim como o modo de conclusão do Ensino
Fundamental, pois alguns o fizeram no ensino regular, outros, na EJA.
39
função precípua era preparar mão de obra para o mercado de trabalho, conforme os estudos de
Lajolo e Zilberman sobre a formação da leitura no Brasil.
Os desafios que se impõem à sociedade do século XXI exigem da educação formal o
desenvolvimento de novas habilidades e formas de lidar com o conhecimento, colocando
novos parâmetros para a formação do cidadão que reúnem as dimensões fundamentais do
trabalho e da cidadania:
Propõe-se, no nível do Ensino Médio, a formação geral, em oposição à
formação específica; o desenvolvimento de capacidades de pesquisar, buscar
informações, analisá-las e selecioná-las; a capacidade de aprender, criar,
formular, ao invés do simples exercício de memorização. (BRASIL, 2000,
p.05).
O desenvolvimento das capacidades pontuadas nesse documento prescinde basicamente da
leitura enquanto atividade polissêmica, como forma de compreensão da realidade e de
constituição de identidades. Nos cadernos dos estudantes, observam-se alguns registros de
propostas de estudos dirigidos, com o mesmo propósito de facilitar a aprendizagem. A
aplicação de questões-problema vem a ser um método conhecido como estudo dirigido ou
questionário, para possibilitar ao estudante, a partir do texto lido, compreender e resolver
situações-problema, buscando ainda extrapolá-lo para a realidade vivida, exercitando, assim, a
leitura crítica.
Em um desses cadernos, há o registro de uma atividade, também da disciplina Geografia, com
questões sobre o Aquífero Guarani16. Ao analisá-las, constata-se que versam sobre os aspectos
físicos da bacia: localização, constituição das rochas, temperaturas das águas etc. Tal
atividade não traz interrogativas que requeiram dos estudantes reflexões acerca de seus
desdobramentos políticos ou sociais, como não fomentam relações com suas realidades. Desse
modo, a atividade promove uma leitura descontextualizada, que não exige dos estudantes
posicionamento diante do assunto, limitando-os a localizar as respostas no texto de referência.
6
O Aquífero Guarani é a principal reserva subterrânea de água doce da América do Sul e um dos maiores
sistemas aqüíferos do mundo, ocupando uma área total de 1,2 milhões de km² que se estende pelos países do
Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. A maior ocorrência do Aquífero Guarani se dá em território brasileiro
(2/3 da área total) abrangendo os Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul. Disponível em http://www.riosvivos.org.br/Canal/Aquifero+Guarani/278. Acesso
em 28 de maio de 2012.
40
O estudo dirigido tanto pode ser utilizado numa perspectiva crítica, extrapolando o texto, ou
mecânica, que consiste em “encontrar” as respostas para as questões levantadas. No entanto,
uma ou outra direção vai depender da formulação e do encaminhamento dado às questões, o
que significa dizer que os métodos não trazem em si sua fundamentação pedagógica, que é
construída na intervenção do professor.
Desse modo, tais atividades participam dos modos de ler empreendidos, das formas como os
estudantes se aproximam do texto e dos sentidos construídos nessa relação, seja numa
perspectiva crítica, extrapolando o texto, ou acrítica, encontrando as respostas no texto
indicado para o estudo dirigido.
A perspectiva mecânica da aprendizagem nos faz rememorar os pressupostos epistemológicos
da educação tecnicista, que consiste na objetivação do trabalho pedagógico através da
repetição das perguntas e respostas devidamente fracionadas e corrobora com o entendimento
que alguns entrevistados fazem desse tipo de atividade, reconhecendo-a como sendo de
“treinamento”, conforme relato de uma das entrevistadas.
Enquanto mediadora da formação do leitor, a prática de leitura ensejada nesse ambiente de
ensino, destinado à população menos favorecida, de caráter pragmático, didatizante e
tecnicista, reforça a concepção elitista de leitura, junto a esse segmento social.
Descontextualizada de suas realidades e de difícil apropriação, via de regra distante do
suporte livro, a leitura lhe chega como uma atividade intelectualizada, exequível apenas a uma
minoria que dispõe de mais condições sociais e pedagógicas de acesso ao conhecimento
sistematizado.
Nesse momento, sinto-me na responsabilidade de trazer outro tipo de atividade encontrada
nos cadernos dos estudantes para não parecer tendenciosa na escolha do exemplo citado
acima, visto que não nos propomos a discutir práticas pedagógicas, mas o papel da leitura
nesse espaço de formação, através dos encaminhamentos da escola. Em outro caderno, tem-se
o registro de uma atividade da disciplina Sociologia, a ser feita com a letra da canção
“Cidadão”, do compositor paraibano Zé Ramalho, proposta como reflexão para uma produção
escrita. Tal trabalho, além de partir de um gênero textual diferente, permite a construção de
novos sentidos a partir da leitura e da relação com a realidade do aluno, coadunando com os
objetivos propostos para o Ensino Médio.
41
Ainda tratando dos suportes de textos, dois estudantes entrevistados citaram a internet como
meio para realizar suas pesquisas escolares, de interesse pessoal ou para atender a demandas
do trabalho. A justificativa dessa preferência está na agilidade e rapidez do recurso. Para eles,
a internet os leva diretamente ao ponto desejado, criando a sensação de movimento através
das páginas que se alternam a um só clique. Sem dúvida, tal recurso mudou a relação com o
material impresso, criando uma nova gama de leitores que usam as telas dos computadores.
Em relação à pesquisa na internet como tarefa exigida pela escola, um entrevistado destaca a
rapidez de se imprimir um “trabalho” e tê-lo pronto. A pesquisa nesse espaço limita-se a
localizar o assunto desejado, contando com a facilidade da tecnologia. Provavelmente, essa
modalidade de pesquisa não provoca o sentido da investigação, na qual se pressupõe a
reflexão e a construção do conhecimento. Para esse estudante, a tecnologia se transforma em
ferramenta de simplificação e reducionismo do trabalho escolar, como acontece com a leitura,
reduzida a um instrumento pedagógico para favorecer o desempenho nas atividades
avaliativas.
Numa população cujo contato com os livros já era precário, a internet se apresenta como uma
opção rápida para quem não está acostumado a manusear os livros e esses vão ficando cada
vez mais esquecidos. Assim, uma parte da população está se apropriando das páginas virtuais
sem terem antes se apropriado das páginas impressas, ou melhor, sem terem desenvolvido o
hábito da leitura, pois recorrem à internet pelas facilidades que esse recurso tecnológico
proporciona como forma de “driblar” os livros.
Na perspectiva da leitura didatizante, os textos literários encontram pouco espaço nesse
contexto escolar. Para falar do lugar da literatura nesse ambiente de ensino, vale ressaltar que
ela não está entre os componentes curriculares da EJA no segmento correspondente ao Ensino
Médio. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio,
(...) Os conteúdos tradicionais do ensino de língua, ou seja, nomenclatura
gramatical e história da literatura, são deslocados para um segundo plano. O
estudo da gramática passa a ser uma estratégia para
compreensão/interpretação/produção de textos e a literatura integra-se à área
da leitura. (BRASIL, 2000, p.18)
Assim, fica a cargo do professor de Língua Portuguesa incluir a literatura como parte dos
trabalhos com leitura. Pelo visto, isso não acontece, pois nenhum dos estudantes se referiu à
42
leitura de textos literários no ambiente escolar. Esse importante instrumento de compreensão
da realidade e desenvolvimento da sensibilidade estética fica distante das práticas pedagógicas
nessa instituição de ensino, na modalidade da EJA.
No tempo em que a escola primava pela formação humanística e era privilégio das elites da
época, a literatura participava da formação escolar e era considerada o ponto de chegada ao
mundo cultural e pedagógico:
Até um certo período da história do Ocidente, ele [leitor] era formado para a
literatura; hoje, ele é alfabetizado e preparado para entender textos escritos,
mas nem sempre a literatura se apresenta no seu horizonte, porque ainda
sacralizada pelas instituições que a difundem. (ZILBERMAN, 2001, p. 71)
Em tempos atuais, a realidade é bem diferente. No prefácio à obra de Todorov, “A Literatura
em perigo”, Caio Meira (in TODOROV, 2009, p. 08) assinala essa preocupação ao afirmar
que, “para Todorov, o perigo que hoje ronda a literatura é o oposto: o de não ter poder algum,
o de não mais participar da formação cultural do indivíduo, do cidadão”.
Em suas reflexões acerca do ensino da literatura nas escolas francesas, Todorov constata que
“a orientação atual desse ensino, tal como ela se reflete nos programas, vai toda no sentido do
‘estudo da disciplina’ (como na física), ao passo que poderíamos ter preferido nos orientar
para o ‘estudo do objeto’ (como na história)” (TODOROV, 2009, p. 28). Guardadas as
devidas ressalvas entre o sistema de ensino francês e o brasileiro, pode-se perceber que a
literatura, embora não figure como disciplina na grade curricular, é abordada a perspectiva
apontada por Todorov, como estudo da disciplina.
Nos cadernos de Língua Portuguesa dos estudantes entrevistados, têm-se apontamentos de
uma atividade de pesquisa relacionada um projeto intitulado “Parada Poética”. Os registros
trazem dados biográficos de alguns poetas brasileiros e o título de algumas de suas obras, mas
sem indicação de temas ou assuntos desses textos. Privilegia-se ainda a perspectiva da
historiografia literária tradicional, apoiada nas datas, autores e obras.
Segundo Candido (1972, p. 806), a literatura participa do processo de humanização do
homem porque “ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o
que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, por que faz
viver”. No entanto, essa dimensão da literatura não é efetivamente explorada entre os
43
estudantes da EJA nessa escola, como se pode inferir das atividades desenvolvidas, nas quais
se sobressai uma perspectiva pragmática e didática da leitura.
Essa perspectiva se estende para a escrita, como demonstrado pelos professores que
responderam ao questionário e por alguns estudantes, nas entrevistas. No entendimento
destes, os aspectos gramaticais estão intimamente relacionados ao que se considera escrever
bem: palavras e pontuação corretas, uma visão altamente valorizada. Os professores
entrevistados não chegaram a explicitar o que consideram escrever bem, mas, talvez a
compreensão dos estudantes seja consequência de um discurso e uma prática em sala de aula.
Essa questão leva a uma reflexão acerca do trabalho com a língua portuguesa nessas turmas
da EJA. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio,
O processo de ensino/aprendizagem da Língua Portuguesa deve basear-se em
propostas interativas língua/linguagem, consideradas em um processo
discursivo de construção do pensamento simbólico, constitutivo de cada
estudante em particular e da sociedade em geral.
Essa concepção destaca a natureza social e interativa da linguagem, em
contraposição às concepções tradicionais, deslocadas do uso social.
Não se encontram muitas atividades nos cadernos com a língua portuguesa, pois, como
relatado por um dos entrevistados, o professor da disciplina estava afastado do labor por
motivo de saúde. Dentre as atividades observadas, uma traz questões que solicitam aos
estudantes fazerem a pontuação de algumas frases listadas pelo professor e explicarem a
função dos sinais de pontuação.
Resta, pois, saber se o estudo dessas normas gramaticais se encontra inserido nas situações de
comunicação, como orientam os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio ou
se se revestem de artificialismo didático, centrando-se na sintaxe e morfologia gramatical,
desvinculadas das situações de interação social.
Alguns entrevistados também fizeram a relação da leitura com a escrita, no sentido de que ler
é importante para escrever. Mais uma vez, não se sabe ao certo se a vinculação da leitura com
a escrita se dá na apropriação da norma culta, no desenvolvimento das ideias ou em ambas as
perspectivas, porque, mesmo com intervenções da pesquisadora no intuito de desdobrar o
assunto para favorecer o entendimento das falas, algumas vezes essa análise encontrou suas
limitações na repetição das mesmas frases pelos entrevistados.
44
Como esses estudantes são orientados para a leitura de textos de curta extensão, em sua
maioria, informativos, provavelmente a preocupação com a escrita se volta para a elaboração
de textos curtos, numa linguagem simplificada, relacionados às atividades do dia a dia, que
não demandam exercícios de argumentação: lista de mercado, preenchimento de um
formulário de trabalho etc., quando o cuidado com as convenções da língua escrita se coloca
como condição primeira para tornar o texto compreensível ao seu leitor.
Questionados sobre suas produções escritas, mais uma vez os estudantes se reportam às
atividades avaliativas e aos estudos dirigidos, referindo-se aos trabalhos das disciplinas. Tais
atividades funcionam mais como “treinamento”, numa prática da leitura parafrástica, do que
como forma de se colocarem diante do objeto de estudo. Daí, evocando Orlandi (1996, p. 85)
– “a leitura é um dos elementos que constituem o processo de produção da escrita” –, de onde
vem o combustível para a escrita, considerando que nesse espaço a leitura acontece
majoritariamente em perspectiva parafrástica, sedimentando os sentidos construídos pelo
autor ou professor?
O trabalho com a leitura na escola passa pela concepção de aprendizagem dos sujeitos
envolvidos no processo. Ao lado da compreensão parafrástica da leitura, tem-se um projeto de
educação bancária, conforme ensinou Paulo Freire, em que cabe ao estudante “absorver” os
ensinamentos dos professores. Esse projeto parte da premissa de que o estudante nada sabe,
devendo o professor “fornecer” tal conhecimento. Com isso desconsidera-se que o
conhecimento é construído na interação entre sujeito e objeto de estudo, na qual o docente é o
mediador, culminando na apropriação e ressignificação do conhecimento pelo estudante.
Nos depoimentos, a maioria dos estudantes declararam haver momentos para a leitura de
textos nas aulas, individual ou em grupo, às vezes, de forma silenciosa ou leitura oral, visando
à discussão de um determinado texto. Tais relatos permitem inferir que a leitura de um texto
preconiza um momento de interação entre autor, estudantes e professor, embora não seja
possível conhecer os modos de ler empreendidos naqueles momentos17.
Conforme relato de um dos entrevistados, às vezes, era dado espaço a opinião, embora ele
considere mais importante “prestar atenção” na explicação do professor. Assim, o que deveria
ser condição implícita ao processo de aprendizagem torna-se eventual, como se a construção
17
Por modos de ler entende-se aqui a maneira com que o leitor se aproxima do texto, as conexões estabelecidas e
os sentidos construídos.
45
do conhecimento não demandasse seu posicionamento. Fazem parte desse ritual de leitura a
discussão do texto, geralmente sucedido de estudo dirigido e da correção da atividade,
cabendo ao estudante anotar a resposta correta, fornecida pelo professor.
Num contexto em que a leitura quase sempre está voltada para as atividades avaliativas, a
biblioteca, espaço de formação do sujeito, é praticamente ignorada. Em resposta ao
questionário, os professores declaram que costumavam levar os estudantes para a biblioteca, a
fim de familiarizá-los com esse lugar, na busca de contato com livros e outros gêneros
textuais, como artigos e reportagens. Contudo, por suas respostas e pelas falas dos estudantes,
não se pode inferir as situações em que ocorrem as visitas.
Aqui cabe uma ressalva: embora a maioria dos professores declare utilizar diferentes tipos de
textos em seu trabalho, sem elucidar que gêneros são esses, os estudantes entrevistados
parecem não perceber essa variação, importante para que possam transitar por diferentes
formas de linguagem e perceber o contexto característico a cada uma delas.
Indagados sobre os tipos de textos trabalhados nas aulas, a maioria dos estudantes refere-se ao
“assunto” da disciplina, ignorando a sua estrutura composicional, o que o caracteriza também
enquanto gênero. A preferência por um determinado texto é justificada pelo fato do escrito
tratar de “coisas da vida”, ou seja, relacionado ao cotidiano deles. Na sala de aula ou na
biblioteca, parecem não perceber as variações de estrutura dos textos, evidenciando a
ausência, em sala de aula, de um trabalho sobre gêneros textuais.
Ao longo das entrevistas, apenas duas estudantes se referiram à biblioteca da escola, da qual
retiram alguns livros de literatura, escolhidos espontaneamente em razão da capa e da
impressão que fica da leitura das primeiras linhas, sem que haja intervenção da escola nessa
retirada. Quanto à capa, a condição para impressionar era a beleza, as cores ou ilustração.
Nesse gesto de olhar a capa, tem-se uma primeira leitura, que deve corresponder ao seu
horizonte de expectativas. O trabalho gráfico torna-se um grande atrativo para quem não tem
familiaridade com a literatura.
Ainda em relação ao uso da biblioteca da escola, a procura por esse espaço restringe-se às
demandas das pesquisas escolares, de forma eventual. Alguns estudantes realizam essas
buscas na internet, geralmente lan houses. O pouco uso desse espaço se deve, em parte, ao
horário de funcionamento. A biblioteca não abre todas as noites, devido ao número
46
insuficiente de funcionários, e a direção do colégio privilegia a sua abertura no turno diurno.
Aliada a essa restrição de horário, o que faz desse lugar um espaço de baixíssima frequência
pelos estudantes da EJA, tem-se a forma de atendimento aos usuários: um balcão, que separa
as mesas disponíveis aos estudantes das prateleiras de livros, limitando o seu acesso.
Em relação ao acervo, estima-se que haja aproximadamente dois mil exemplares, a muitos
deles adquiridos com recursos públicos. Destes, a maioria é de literatura brasileira, incluindo
a infanto-juvenil. Nesse espaço não se tem acesso à internet nem assinatura de revistas
informativas. Os periódicos disponíveis, temáticos, são enviados pelo Programa Nacional de
Bibliotecas nas Escolas/ PNBE. Faz parte também desse espaço uma pequena videoteca com
documentários, disponível aos professores, para trabalhos em sala de aula.
Ao analisar as políticas públicas para a cultura, e constatando uma ausência quase total delas,
especificamente no tocante à cultura escrita, Lindoso (2004, p. 107) observa que “a sociedade
brasileira nunca teve um movimento que incorporasse as bibliotecas como elemento
fundamental de sua organização”, a começar pelas escolas, onde geralmente as bibliotecas
funcionam como um apêndice das atividades escolares. Conclui-se assim que não basta
possibilitar o acesso: há de fomentar políticas culturais de uso da biblioteca, calcadas em sua
importância para a formação do sujeito.
Assim como os suportes e as atividades de leitura, distantes de um trabalho de leitura como
atividade interpretativa, a biblioteca tem uma presença limitada entre os estudantes da EJA.
Consequentemente, torna-se precária a constituição dos leitores em um espaço educacional
que não cria condições para atividades de leitura mais enriquecedoras. Apoiadas quase sempre
na cópia, paráfrase e memorização, tais atividades, ou modos de ler, contribuem para que a
leitura na cultura brasileira permaneça como atividade elitista e intelectualizada. Desse modo,
a escola não promove uma interação significativa dos estudantes da EJA com o mundo, a
ampliar seus horizontes de expectativas.
2.2 Além dos muros da escola
Se as atividades de leitura no ambiente escolar da EJA são restritas, não é diferente essa
prática social fora dos espaços das salas de aula. A maioria dos estudantes entrevistados
47
iniciava as suas falas declarando não poder colaborar nesta pesquisa porque não “lia nada”, o
que se repetiu em muitos momentos das entrevistas, deixando escapar uma representação que
têm de si enquanto leitores.
O que significa esse “nada” se são capazes de decodificar mensagens e processá-las? Em tal
resposta emerge uma concepção de leitura que marca o lugar social dos sujeitos. Quem
conjuga esse verbo? Assim questiona Magda Soares:18
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer uma faceta fundamental do
problema: quando se diz que o brasileiro lê pouco ou lê mal, o que se está
entendendo por ler? Lê pouco o quê? lê mal o quê? Ler só é verbo
intransitivo, sem complemento, enquanto seu referente forem as habilidades
básicas de decodificar palavras e frases: diz-se de alguém que sabe ler,
assim, sem complemento, ou que não sabe ler, quando se quer com isso dizer
que esse alguém é alfabetizado ou é analfabeto. Para além desse nível
básico, ler como prática social de interação com material escrito torna-se
verbo transitivo, exige complemento: o alfabetizado, o letrado lê (ou não lê)
o quê? lê mal (ou lê bem) o quê? o jornal? o best-seller? Sabrina? Machado
de Assis? Drummond? a revista Capricho? Playboy? Bravo? Caros Amigos?
Veja, Isto é, Época? a conta de luz, de água, de telefone? a bula do remédio?
o verbete do dicionário, da enciclopédia?
No decorrer das entrevistas, os sujeitos da pesquisa, ora espontaneamente, ora provocados
pela pesquisadora, foram dando pistas do que constitui esse “nada” e das relações que
estabelecem com os suportes de leitura em suas práticas sociais.
Estudar as práticas de leitura a partir dos referenciais dos discentes da Educação de Jovens e
Adultos significa conhecer uma realidade distinta dos padrões hegemônicos de leitura, em que
diferentes modos de ler e suportes de leitura se apresentam na relação com a cultura escrita.
Olhando em volta iremos encontrar muitos leitores que não compõem as estatísticas editoriais
do país, mas nem por isso deixam de ser leitores, pois se apropriam da escrita em sua relação
com a sociedade grafocêntrica, nos modos que lhes são peculiares.
A respeito das leituras realizadas fora do espaço escolar, os sujeitos da pesquisa citaram as
revistas de variedades, os panfletos informativos, os manuais e a Bíblia. Essas leituras não são
certamente exemplares das concepções de leitura construídas ao longo dos séculos XVIII e
18 Disponível no site http://www.leiabrasil.org.br/old/leiaecomente/verbo_transitivo.htm. Acesso em 03 de
fevereiro de 2012. Documento sem ano de publicação e sem paginação.
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XIX, quando a prática estava associada ao poder social e posição intelectual, geralmente
relacionada aos homens – com leitura de livros e jornais – e ao universo feminino e infantil,
comumente vinculada à literatura. Daí a valorização da leitura de instrução, representada
pelos livros científicos e jornais, e da leitura de entretenimento, através da literatura.
Os gêneros textuais mais citados pelos entrevistados não se inserem nas categorias instrução
ou entretenimento, ao menos nos moldes reconhecidos pela cultura erudita. Foram parcas as
referências dos entrevistados a livros lidos, sejam científicos, sejam literários. Como as
leituras realizadas por eles não se enquadram na perspectiva construída ao longo daqueles
séculos, esses estudantes não reconhecem as leituras que realizam. Além de declararem que
não liam nada, desconsiderando as leituras e os suportes utilizados, alguns se referiram às
suas leituras como algo irrelevante, pois a “verdadeira” leitura estava nos livros,
provavelmente as produções textuais legitimadas pela cultura erudita.
A falta de reconhecimento de suas práticas leitoras repousa na autoridade conferida a certos
grupos de legitimar práticas, valores e visões de mundo. Como afirmou Michel de Certeau,
“toda autoridade repousa sobre uma adesão. (...) Somente um acordo espiritual, enfim,
confere legitimidade ao exercício de um poder (...).” (CERTEAU, 2003, p. 37). Para os
grupos dominantes, leitura é instrumento de trabalho intelectual ou atividade prazerosa
exercida nas horas ociosas, a qual se consolida através dos livros. Os grupos dominados se
apropriam dessa “verdade”, tomada como essência do autêntico leitor e desqualificam suas
práticas, as quais, na maioria das vezes, passa por outros suportes que fazem parte de suas
redes de socialização.
Entretanto, o que não é reconhecido continua a existir. As relações com a cultura escrita dos
grupos menos privilegiados persistem de modo a imprimir suas marcas de pertencimento às
práticas de leitura. Assim, a concepção de leitura e leitor passa antes pela tensão entre o
reconhecido e o não reconhecido, tensão que se estabelece na dinâmica das relações de poder
que operam na sociedade de classes, que conferem mais legitimidade a determinadas práticas
que outras, a depender do lugar social onde são produzidas e dos modos de ler empreendidos,
segundo os propósitos da leitura realizada.
Logo, percebemos que nossa discussão trilhará o caminho das “lecturas ilegítimas”, como
afirma Poulain (2004, p. 33), ao se referir às leituras desprestigiadas pela cultura erudita.
Trilhará o caminho dos leitores que vivem no mundo real, onde o imperativo é sobreviver,
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cujas relações com o material escrito e os modos de ler se desenvolvem no contexto da
vivência e da sobrevivência.
As diferentes demandas sociais da leitura mostram que não apenas as formas de interpretação
são diferentes e socialmente determinadas (CHARTIER, 1998), mas também que as leituras
das classes mais favorecidas são diferentes daquelas menos favorecidas, porque diferentes são
suas relações com o material escrito, tanto em termos de gêneros e formas de apropriação,
como de acesso aos livros.
A leitura, enquanto prática geradora de sociabilidades, também se constitui em espaço social
e, desse modo, deve ser analisada e compreendida a partir do entorno onde é produzida, como
forma de expressão da identidade de um sujeito ou de uma coletividade. Apartá-la da
realidade onde é produzida é negar a sua historicidade, sem a qual não é possível a
significação, pois todo processo de significação é eminentemente histórico e ideológico.
Os materiais escritos citados pelos entrevistados são os que fazem parte de seus contextos de
socialização, ou seja, os que as suas condições históricas lhes favorecem o acesso e a partir
deles empreendem determinados modos de ler próprios das conjunturas sociais em que se dá a
apropriação da matéria escrita. Portanto, caracterizadores de suas práticas de leitura e,
sobretudo, de suas marcas de pertencimento a determinados grupos sociais.
Tais marcas, no entanto, são sinalizadoras de características de grupos e não de estigmas
sociais sobre as quais pesam a desvalorização e a falta de reconhecimento. Ignorar essa
realidade é mergulhar na matriz hegemônica que envolve a leitura, considerando apenas uma
parcela de sua realidade social, cuja relação com o material escrito se dá através dos livros, de
forma assídua e como prerrogativa para o desenvolvimento intelectual ou entretenimento.
Segundo Tânia Pellegrini (s/d), no artigo “A literatura e o leitor em tempos de mídia e
mercado19
, “se o país é desigual na distribuição das riquezas, também o é na distribuição da
cultura letrada”. Então não se pode esperar que sujeitos socialmente diferentes produzam
sentidos iguais, quiçá amistosos, ou que façam uso da leitura e seus suportes em
circunstâncias também iguais, pois, mesmo em universos culturais semelhantes, os usos e
sentidos são sempre múltiplos e diversos.
19
Não foi encontrado o ano de publicação. Disponível em
http://www.unicamp.br/iel/memorial/Ensaios/tania.html. Acesso em 13/10/2011.
50
É, pois, necessário (re)conhecer os suportes de leitura das classes dominadas, o que passa
antes pelo reconhecimento de suas práticas leitoras como espaço de sociabilidade. Não
significa restringir as classes dominadas àqueles suportes dos quais geralmente se apropriam,
mas antes ajudá-las a se apropriar criticamente desses suportes, atentando para as relações
sociais que perpassam aquelas apropriações e mantendo-se atentas aos discursos de
legitimação, que atuam justamente em fazer com que os ideais das classes dominantes
pareçam legítimos. Ou seja, é buscar as evidências nos antagonismos das classes sociais e
instaurar, segundo Paulo Freire (1988), a leitura como processo para a emancipação do
sujeito.
A leitura de livros voltada para o trabalho intelectual responde pela fração de uma prática
muito maior, mais ampla e mais complexa que é a prática da leitura, que envolve marcadores
culturais, sociais e mesmo psicológicos. Restringir a prática da leitura, senhora de muitas
faces, a apenas uma delas é promover um recorte excludente e representante de uma
supremacia social cujos sujeitos têm acesso ao livro ou participam das redes de sociabilidade
que envolve o uso do livro, quando, para a grande maioria, o livro é um objeto pouco
utilizado, cujos segredos, sabores e dissabores não foram ainda descobertos.
Como prática social, a leitura apresenta muitas possibilidades, mas nenhuma delas pode ser
hierarquizada em razão de seu contexto social, menos ainda desmerecida ou desqualificada.
Em sua complexidade, a leitura abraça muitas possibilidades e múltiplas potencialidades,
emolduradas pela realidade social e motivações de seus sujeitos.
Mesmo reconhecendo que as leituras são emolduradas pelos contextos culturais em que são
produzidas, não deixamos de reconhecer as diferenças inerentes aos atos de ler. Segundo
Lajolo (2010, p. 04),
Atualmente a gente tem muita atenção gasta com coisas que não são tão
importantes. Ficar definindo quem é o leitor maduro, quem é o leitor
literário, quem é o leitor X, quem é o leitor Y, não vai nos conduzir a coisa
nenhuma. Eu entendo que leitor é alguém que é capaz de decodificar uma
mensagem num código escrito. Entendo que escrita é qualquer marca numa
superfície sólida. Essa definição valia antes do computador, que agora não é
mais superfície sólida. Eu acho que leitor é isso. Por outro lado, há leitores
mais competentes e menos competentes. Mais maduros e menos maduros.
Essas diferenças se devem aos diversos modos de ler e formas de relação com a cultura
escrita. Os aspectos sociais se fazem presentes nessas relações, embora não possamos atribuir
unicamente a eles as diferentes formas de desenvolvimento da leitura porque entre sujeitos da
51
mesma classe também reconhecemos as diferenças. Deve-se, contudo, levar em consideração
as distintas motivações pessoais, histórias de vida, demandas e interesses de cada sujeito,
pois, conforme Gadamer (apud LARROSA, 2004, p.18), “que coisa seja ler, e como tem lugar
a leitura, parece-me uma das questões mais obscuras”.
Tomando por base o binômio leitura e erudição, alguns pesquisadores constatam uma crise da
leitura, questão sobre a qual assim se posiciona Márcia Abreu: “aqueles que apregoam a crise
da leitura não pensam na leitura em geral, e sim na leitura de certo tipo de livros – aqueles que
formam a tradição erudita nacional e internacional”. No entanto, tal crise não é exclusiva das
classes menos favorecidas, embora a autora, ao analisar os dados da pesquisa “Retrato da
leitura no Brasil”, aponte uma relação ascendente entre escolaridade e classe social com posse
de livros e hábitos de leitura.
Se os livros não estão presentes de forma efetiva na prática escolar dos entrevistados, menos
ainda fazem parte de suas práticas sociais externas ao espaço escolar. Antes, esses sujeitos
estabelecem outra relação com a leitura, mais pragmática que formativa. Poulain (2004)
elenca os tipos de leitura segundo os seus “efeitos”, apoiada nos estudos de pesquisadores
norteamericanos Douglas Waples e Bernard Berelson: leitura do tipo instrumental,
relacionada a finalidades práticas; a leitura de prestígio, relacionada à autoafirmação das
opiniões; a do tipo de reforço, relacionada à mudança de opinião ou sentimento; a de efeito
estético, em que o prazer do texto é a única expectativa e, por fim, a de distração, cuja
finalidade, segundo o autor, é esquecer as tensões.
A grande maioria dos entrevistados revelou a face instrumental em suas apropriações da
leitura. Ao serem indagados sobre suas experiências com essa prática, logo a relacionaram às
exigências da vida cotidiana: ler o rótulo de um produto, outdoor ou faixa nas vias públicas,
panfleto divulgando produto ou serviço, manual de trabalho cuja leitura facilita a interação
entre sujeito e objeto, recibos de pagamento, entre outros.
Os seus atos de leitura são orientados pelas situações práticas que se impõem aos cidadãos na
contemporaneidade. Nessa leitura não há empenho de vontade ou valores e significações que
a priori determinam a leitura através dos livros. Suas práticas de leitura estão voltadas para o
fazer cotidiano e podem ser assim classificadas como leituras utilitárias, aquelas que encerram
em si uma finalidade prática e momentânea.
52
Segundo Poulain (2004, p. 43), ao analisar os resultados de uma investigação das práticas de
leituras de jovens franceses na década de 1980,
Indiferentes aos discursos que consagram a leitura e a comparam com a
literatura, [jovens franceses] estabelecem uma relação mais realista e prática
com a leitura. Para eles a leitura não está investida de valores e significados
a priori: as situações criam a necessidade, o dever ou o prazer da leitura,
determinando assim o uso dos livros20
. (tradução nossa).
Desse modo, à semelhança do que acontece com os jovens franceses da pesquisa de Poulain,
para os entrevistados da EJA a leitura tem uma finalidade mais imediata, distante, portanto, de
valores constitutivos da formação pessoal ou profissional. Assim, justificam outras formas de
interação com a cultura escrita.
Mas não foram apenas as leituras exigidas pela vida prática as citadas pelos entrevistados.
Mencionaram outros suportes de leitura, a exemplo das revistas, demonstrando que suas
atividades de leitura vão além do fazer habitual. Novamente, as respostas acerca dessas
leituras não se desvinculam da vida cotidiana. No entanto, em relação a tais suportes, o gênero
interfere nas escolhas, e aqui se observam dois padrões de respostas.
Os entrevistados de sexo masculino responderam se interessar pelas revistas se nelas estivesse
estampada alguma reportagem sobre esportes ou veículos automotores21
. As mulheres
mencionaram as reportagens cujos assuntos estão relacionados a artistas e a novelas22
,
revelando essa leitura como desdobramento do tempo investido na televisão, especialmente
nesse tipo de programação, preferido pelo público feminino. Outro gênero textual destacado
por algumas delas foram os horóscopos, encontrado em determinadas revistas, as quais têm a
preferência das mulheres, se comparado ao segmento masculino. Algumas entrevistadas
declararam adquiri-las ou tomarem emprestadas, enquanto os homens, que não as leem muito,
a elas têm acesso por empréstimos.
20
Indiferente a los discursos que sacralizan la lectura y la equiparan com la literatura, establecen uma relación
más realista y práctica com la lectura. Para ellos [jóvenes frances] a lectura no está investida de valores y
significaciones a priori: lãs situaciones particulares crean la necesitad, el deber o el placer de leer, determinando
así el uso de los libros. 21
Foram citadas as revistas Época e a Quatro Rodas. Pelo visto, interessa o assunto da reportagem: esportes ou
veículos automotores, se estampados na capa. Ou seja, folhear revista não é um hábito entre os homens
entrevistados. 22
Citaram as revistas Contigo, Minha Vida, Ana Maria, Querida, todas, publicações populares geralmente
destinadas ao público feminino.
53
Daí decorrem duas conclusões: primeiro, na prática de empréstimos cria-se uma rede de
sociabilidades entre as mulheres; segundo, tais leituras têm certo valor a ponto de justificar a
compra. De fato, a leitura de revistas que giram em torno das novelas e dos artistas representa
a fonte de informação e de diversão acerca da programação de um objeto cultural que é
preferência absoluta entre as mulheres. Sem entrar no mérito de suas programações, a
televisão consegue manter milhões de telespectadores diante de suas telas, como transformar
muitos desses telespectadores em leitores.
Também as leituras das revistas e dos gêneros citados se investem de finalidade prática,
relacionada à apreciação, pelo público masculino, de esportes ou veículos automotores, ou de
telenovelas e o mundo artístico, nesse caso, pelas mulheres. Tais leituras também não
acontecem de modo frequente, mas eventual, embora pareçam fazê-las com apreço. Sem
nenhuma obrigação com o depois, é a leitura do aqui e agora, ou seja, não tem compromisso
com a formação do sujeito, porém, nesse descompromisso, vai imprimindo as suas marcas nos
leitores.
Apenas um estudante entrevistado mencionou a leitura de jornais ou revistas com reportagens
de cunho informativo, referindo-se às notícias, mesmo assim o fez de forma contraditória.
Primeiro, disse que gostava de ler notícias para saber o que acontecia no mundo. Depois,
questionado sobre quais notícias costumava ler, retratou-se, dizendo que lia de vez em
quando, mas que gostava mesmo era de vê-las na televisão.
A leitura informativa sobre acontecimentos sociais e políticos não é uma prática inserida no
tempo produtivo dessas pessoas, menos ainda de forma frequente, com vistas à formação
pessoal. No entanto, saindo da linguagem escrita para a oral, dois entrevistados mencionaram
a preferência pelos noticiários televisivos como veículo de informação, para alguns deles, pela
facilidade para quem está pouco familiarizado com a linguagem escrita: as mensagens curtas,
rápidas e com o auxílio visual, facilitam a compreensão. Contudo, com a alta valorização da
cultura escrita, em detrimento de outros códigos de comunicação, a preferência pela televisão
não costuma causar boa impressão, mas é inegável a sua participação na formação do sujeito.
Os gêneros e suportes de leitura comumente citados pelos entrevistados são os que fazem
parte de suas redes de sociabilidades e geralmente convergem numa perspectiva prática e
imediata, seja na leitura de um rótulo no supermercado, seja na leitura de revistas com
matérias que tratam do mundo das telenovelas e dos artistas midiáticos. Os modos de ler
54
empreendidos nas relações com esses suportes são peculiares ao contexto de suas
apropriações, pois os modos pelos quais se lê um panfleto, uma revista de variedades ou
informativa diferem do modo pelo qual se lê um artigo científico. No entanto, são aquelas
leituras que conferem ao estudante da EJA estatuto de leitor, dentro do ambiente cultural onde
são protagonistas.
Os suportes de leitura até aqui citados pelos estudantes da EJA coincidem com o resultado da
pesquisa “Retrato da leitura no Brasil”23
quando, analisando os dados da pesquisa, Márcia
Abreu (s/d)24
verificou que os suportes mais citados pelos entrevistados atendem a uma
função pragmática: cartazes ou folhetos de propaganda, primeiro lugar na pesquisa (85%),
seguidos das placas de rua (84%) e letreiros de ônibus (78%); na sequência, vêm as revistas
(75%), jornais (68%) e livros (62%).
Alguns dos nossos entrevistados também se referiram à leitura de livros, destacando-se a
Bíblia, que tem a preferência de sete estudantes dentre os quinze entrevistados. Segundo
Lindoso (2004), a Bíblia é o best seller das editoras cristãs. Numa análise acerca da pesquisa
“Retrato da leitura no Brasil”, edição de 2001, constata que “o estudo sobre hábito de leitura e
consumo de livros no Brasil mostra claramente que a Bíblia, independentemente de sua
versão, é o livro mais lido (ou possuído) no Brasil” (LINDOSO, 2004, p.100). É pertinente a
ressalva feita pelo autor porque, em alguns momentos das entrevistas, a Bíblia é referida
como um objeto que se tem nas residências, não um livro que se lê. Assim, esse “livro
possuído” é um bem simbólico de grande valor.
Em relação à leitura da Bíblia, constatam-se entre os entrevistados duas perspectivas distintas:
há os leitores que procuram orientação ou consolo espiritual para os problemas, ou seja, leem
o livro em momentos que buscam entendimento de uma situação vivida ou superação das
dificuldades; e há aqueles que buscam na leitura da Bíblia a realização de um projeto de
formação pessoal. Nesse último caso, a leitura Bíblia faz parte da inserção nas atividades da
igreja, como forma de conhecer, segundo relato de duas entrevistadas, os ensinamentos de
23
A pesquisa foi realizada por A. Franceschini Análises de Mercado, a pedido da CBL (Câmara Brasileira do
Livro), Bracelpa (Associação Brasileira de Celulose e Papel), Snel (Sindicato Nacional dos Editores de Livros) e
Abrelivros (Associação brasileira de Editores de livros), entre os dias 10 de dezembro de 2000 e 25 de janeiro de
2001 com 5.503 entrevistas realizadas com pessoas acima de catorze anos e com mais de três anos de
escolaridade, residentes em 46 cidades do país. 24
Disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Marcia/marcia.htm. Acesso em 25 de maio de
2012.
55
Deus e ter uma vida de mais qualidade, ao menos no plano espiritual. Mais recorrente entre as
mulheres, tal leitura parece ocorrer com frequência e apreço.
A leitura da Bíblia imprime algumas especificidades quanto aos modos de ler. Segundo
Certeau (1994), a leitura de textos religiosos produz certa passividade no leitor diante do
texto, porque, a princípio, não pode ser questionada: é sacralizada. Assim, tal leitura instaura
um modo de ler peculiar a esse projeto, que não admite questionamentos e preza pela
obediência do leitor aos seus postulados.
A literatura, por sua vez, não ficou de todo esquecida pelos estudantes da EJA,
particularmente entre as entrevistadas. Analisando os dados do INAF 200125
, Márcia Abreu
(2003) concluiu que as mulheres constituem o público maior da leitura de romance, livros de
aventura, policial e ficção. Frente a esses dados da pesquisa, a autora questiona se ainda se
mantém, no imaginário social, a ideia construída no século XIX de que a leitura de textos
literários leva à evasão e, portanto, mais próxima das mulheres, devido à sua “natureza”
romântica.
Aliás, essa foi a explicação dada por duas de nossas entrevistadas para justificar o gosto pela
literatura, somada à curiosidade em conhecer histórias de vidas alheias. Também responderam
diferente de “não gosto de ler” ou “não leio nada”, narrando alguma experiência com a leitura
de textos literários, o que mostra que essa prática permanece vinculada aos livros, e em
especial, aos de literatura.
Exceto uma entrevistada, as demais não sabiam indicar o título do livro, tampouco do seu
autor. O que lhes interessa é o conteúdo das narrativas, destacando o seu apreço pelas
histórias de amor e de aventura, por trazerem o sofrimento das personagens, as intrigas e o
final feliz. Este, segundo Paes (1990), contempla o sentimento de recompensa dos leitores.
Por sua vez, essas leituras não são frequentes e trazem um ponto em comum: geralmente, são
interrompidas. Embora demonstrem curiosidade para saber o final da história, dificilmente
leem o livro até a última página, porque, segundo os seus relatos, “o livro ficou chato”.
25
De iniciativa do Instituto Paulo Montenegro em parceria com Ação Social do IBOPE e ONG Ação Educativa,
pesquisa as habilidades e práticas de leitura para fomentar o debate público e subsidiar a formulação de políticas
públicas nas áreas de educação e cultura. É baseado em entrevistas com 2.000 pessoas com idades entre 15 e 64
anos de idade, residentes em zonas urbanas e rurais de todas as regiões do país.
56
Sem adentrar na discussão que envolve os tipos de obras e seus públicos, o que interessa são
os motivos que levam os sujeitos da pesquisa a iniciarem a leitura, prossegui-las ou
interrompê-las. Os critérios de escolhas de uma obra literária parecem aleatórios, dados em
razão das circunstâncias, uma vez que os livros são escolhidos em função da capa, quando
tirados da biblioteca, ou por empréstimo de algum parente ou amigo, visto que se trata de
leitoras pouco familiarizadas com a literatura, o que não significa que não tenham
preferências por determinados gêneros. Ora citam livros valorizados pelo campo erudito da
literatura, ora destacam o best-seller do momento.
Algumas experiências de leitura relatadas pelas entrevistadas ilustram nossas análises. Uma
delas contou ter lido um livro (embora não tenha terminado a leitura) de cujo autor e título
não se lembrava no momento da entrevista. Veio-lhe à mente a palavra “capitão”,
acrescentando que se tratava de uma história de meninos de rua, referindo-se certamente a
Capitães da areia, de Jorge Amado. Explicou que leu uma parte do livro porque a fazia
lembrar-se do irmão. Pelo visto, a história encontrou um ponto de contato com a sua
realidade, o que não foi suficiente para prosseguir a leitura. A entrevistada também declarou
seu gosto pela poesia, justificado por ser texto curto, como os textos curtos trabalhados pelos
professores da EJA. Outra explicação pode residir no fato de que a estudante, quando menina,
escrevia em seu “caderno” de poesias.
Outra entrevistada, depois de alguma dificuldade para mencionar o título, disse ter lido o
livro A cabana,26
ressaltando que não conseguiu entender algumas coisas, embora tenha
gostado da história. Leu também Capitães da areia por indicação de uma amiga, do qual
gostou bastante. Questionada sobre as razões de ter apreciado a leitura, destacou o sofrimento
das personagens, acrescentando a seguinte observação: “a vida está cheia de coisas ruins”.
Os depoimentos acerca da experiência com a leitura de produções literárias trazem traços em
comum quanto ao modo pelo qual os leitores interagem com os textos, pontuado por Lahire
(2004, p.182) quando trata da disposição ético-prática em oposição à disposição estética: “seu
[classes populares] modo de leitura dos textos literários me parecia especialmente revelador
desta disposição ético-prática que supõe uma participação, uma identificação, uma inserção
26
Segundo a entrevistada, o livro conta a história de um pai que perdeu a filha e teve um encontro com Deus,
deduz-se que se trata de A cabana, de William P. Young, publicação que alcançou 3 milhões de exemplares
vendidos no Brasil, desde outubro de 2008, segundo a editora Sextante. Nos EUA, foram mais de 10 milhões.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/968478-autor-do-best-seller-a-cabana-participa-da-bienal-do-
livro.shtml. Acesso em 05 de setembro de 2011.
57
do texto nos elementos da experiência cotidiana passada ou presente”.27
As leitoras parecem
buscar nos textos vestígios de suas histórias, de modo a se reconhecerem no texto e darem
sentido a eles.
Queiroz também reconhece a necessidade de diálogo entre a trama textual e a história do
leitor:
Tal viés diria respeito, por outro lado, ao que Karlheinz Stierle chama de
recepção quase pragmática dos textos ficcionais, comprometida com um
movimento centrífugo no qual “as expectativas do mundo ilusório
engendrado pelo texto são afirmadas pelo seu resgate e a visão de mundo
(Weltsicht) do leitor é afirmada à medida que o texto lhe devolve seus
estereótipos. Este sistema de afirmações torna possível que a leitura quase
pragmática, com sua transformação de ficção e ilusão, ocupe, de modo
inequívoco, os vazios do texto” (QUEIROZ, 1997, p. 93)
Essas leitoras confirmam a disposição prática, no sentido dado por Lahire e Queiroz, de
relacionar o conteúdo do texto ao cotidiano, sem se importar com os aspectos intrínsecos à
obra. Mais vale a relação de similaridade entre história e cotidiano do leitor. Nessa relação, o
leitor se reconhece e atribui significados ao texto, conforme seu sistema de valores. Daí se
pode concluir que, mesmo na leitura de textos ficcionais, há uma relação pragmática com a
leitura.
Tal perspectiva também foi observada por Besnosik (2004), em suas análises sobre
experiências de leitura com professores do Ensino Fundamental da zona rural. Revelando
dificuldades para analisar aspectos “intrínsecos” do texto, esses leitores estabeleciam relação
com as situações vividas no cotidiano, um modo de significar o texto: o seu cotidiano era o
horizonte de expectativas. “Presos aos temas cotidianos, raramente a leitura suscita questões
que possibilitem adentrar o texto na sua dimensão estética” (2004, p. 47).
Segundo Besnosik, só após algumas intervenções avançaram para uma compreensão
“estética” do texto, passando a interrogá-lo, em sua dimensão interna: forma, linguagem e
estrutura composicional. Conclui-se assim que a compreensão de um texto é uma atividade
aprendida. Por isso, não se pode esperar que pessoas pouco familiarizadas com a leitura e com
o texto literário analisem seus aspectos intrínsecos, particularmente os códigos estéticos
elaborados por uma tradição crítica literária, difundidos na escola, durante o Ensino Médio
27
“su modo de lectura de los textos literários me parecia especialmente reveladora de esta disposición ético-
práctica, que supone uma participación, uma identificación, uma inserción del texto em los elementos de la
experiência cotidiana pasada o presente”.
58
regular, através da disciplina Língua Portuguesa. Ou, como ocorre na grade curricular da rede
privada de ensino, na disciplina Literatura.
Muito próximas às atitudes dos leitores da zona rural analisadas por Besnosik, as
entrevistadas do colégio em que realizei a pesquisa desconhecem esses códigos estéticos, pelo
visto, excluídos do repertório do ensino de Língua Portuguesa. Essas leitoras não mencionam
categorias como “personagens”, “enredo”, “estrutura narrativa”, deslocando o foco para a
história contada e a relação de similaridade com o cotidiano. Desse modo, escapam a uma
visão escolarizada da literatura, favorecendo que suas experiências sejam o ponto de
referência para a apreciação de uma obra literária.
Segundo Lajolo (1998, p.33), “a leitura desejável não pode ocorrer a partir da identificação,
mas, pelo contrário, deve favorecer o distanciamento que diverte e conscientiza”. Contudo,
pelas situações descritas acerca da realidade dos sujeitos desta pesquisa, tais leitores buscam
uma leitura de entretenimento, que não demande maiores esforços para compreensão da obra.
Reconstruir suas visões de mundo a partir da obra não é uma de suas preocupações. Antes, a
de “reviver” o texto, a partir da identificação com a história.
Nas palavras de Paes (1990, p.25), “(...) a literatura de entretenimento faz parte da cultura de
massa (...)”. Acrescenta:
(...) a cultura de massa se preocupa em poupar-lhes, no ato do consumo,
maiores esforços de sensibilidade, inteligência e até mesmo atenção ou
memória. (...) Já a cultura de proposta não só problematiza os valores como a
maneira de representá-los na obra de arte, desafiando o fruidor desta a um
esforço de interpretação que lhe estimula a faculdade crítica em vez de
adormecê-la. (PAES, 1990, p. 26)
Quando esse esforço de entendimento é requerido, a leitura é interrompida e considerada
enfadonha. As entrevistadas que declaram ler livros de literatura afirmaram interromper uma
leitura quando esta se torna “chata”. Podem-se encontrar duas possíveis explicações para tal
fato, com base nos modos de ler dessas leitoras. A primeira é que houve alguma dificuldade
de entendimento da trama, contrariando o propósito do entretenimento; a segunda é que a
trama não permitiu a relação com a vida cotidiana, contrariando o horizonte de expectativas
das leitoras.
Essa pode ser a explicação para o fato de que “o livro ficou chato”. A falta de similaridade
entre o texto e o cotidiano do leitor torna aquele pouco atraente, de modo a levá-lo a
59
interromper a leitura. Ou seja, para se tornar um leitor de textos literários é preciso mais que
decodificar um livro. Deve-se adentrar no mundo do texto e não tão somente esperar que
aquele reconforte as expectativas do leitor. Por outro lado, como essas leituras não são
obrigatórias, tais leitores têm a liberdade de interrompê-las.
Segundo Jauss (1994), o horizonte de expectativas diz respeito às vivências dos leitores e é a
partir delas que constroem suas expectativas em relação ao texto. Na experiência da leitura, o
texto dialoga com o universo de expectativas do leitor. Nessa interação, podem ocorrer duas
situações: a obra se aproxima do universo de expectativas do leitor ou rompe com elas.
Havendo esse estranhamento, que Jauss chama de distância estética, o horizonte de
expectativas do leitor pode ser alterado e aí a literatura cumpre seu papel social e formativo.
No caso das leitoras que fazem parte da comunidade de estudantes da EJA, o estranhamento
provoca a interrupção da leitura, porque o que elas esperam da obra é que esta reconforte as
suas expectativas, não que as modifique. Estamos tratando aqui de leitores não acostumados à
leitura e mais especificamente aos textos literários, pois o horizonte de expectativas também
está relacionado às experiências literárias anteriores e ao universo sociocultural do leitor.
O que essas leitoras buscam é uma literatura de entretenimento, que não as submeta a
nenhuma outra atividade que exija esforço cognitivo. Segundo Jauss,
[...] pelo fato de não exigir nenhuma mudança de horizonte, mas sim de
simplesmente atender a expectativas que delineiam uma tendência
dominante do gosto, na medida em que satisfaz a demanda pela reprodução
do belo usual, confirma sentimentos familiares, sanciona as fantasias do
desejo, torna palatáveis – na condição de “sensação” – as expectativas não
corriqueiras ou mesmo lança problemas morais, mas apenas para “solucioná-
los” no sentido edificante, qual questões já previamente decididas. (JAUSS,
1994, p.32)
Nessa perspectiva, é justamente a literatura de massa que mais se aproxima dos horizontes de
expectativas dessas pessoas e de suas disposições recepcionais. No entanto, sobre esse tipo de
leitura pesa a crítica de que, ao invés de humanizar, promove a alienação. Na visão de Márcia
Abreu, para tal crítica,
Saímos da leitura de um desses textos da mesma forma que entramos, pois
eles não nos forçam a pensar, limitando-se a “re-afirmar” nossas crenças e a
nos fazer acreditar na solução exterior dos problemas. Essas histórias são
uma válvula de escape para as frustrações do dia-a-dia, levando o leitor para
60
um lugar onde todas as suas expectativas se cumprem sem que ele deva fazer
nenhum esforço para isso.
Para quem vê assim, a literatura de massa – romances policiais, de aventura,
sentimentais, faroeste, histórias em quadrinho, fotonovelas etc. – é fruto de
uma combinação incessante dos mesmos lugares comuns: personagens sem
nenhuma densidade psicológica, situações previsíveis ordenadas de maneira
já conhecida, repetição constante das mesmas fórmulas de estruturação do
enredo, linguagem simples e sem nenhuma dificuldade aparente. Tudo isso
com o objetivo de evitar que o leitor se questione e questione o mundo em
que vive, sentindo prazer em re-encontrar o que é confortavelmente bem
conhecido. (ABREU, 2006, p. 82)
Partindo desse entendimento, só a literatura eleita como clássica, a “grande Literatura”,
favorece a reflexão crítica da realidade. No entanto, Abreu problematiza essa questão quando
traz uma observação feita por Terry Eagleton, a saber, a de que pessoas cultas e leitoras de
obra clássicas supervisionaram o assassinato de milhares de judeus na Europa do século XX.
A autora se refere ainda à pesquisa do antropólogo Pablo Semán, que entrevistou leitores de
Paulo Coelho, os quais lhe garantiram que a leitura dos romances desse escritor os faz pensar
e fruir.
Seguindo essa perspectiva, não podemos menosprezar o papel da literatura de entretenimento
na formação do leitor, menos ainda engessar os efeitos de sua leitura a partir de concepções
literárias, mesmo porque, como pontua Abreu (2006), a literatura é um fenômeno cultural e
social e, portanto, passível de diferentes valorações pelos grupos sociais ao longo do tempo,
capaz de provocar diversas reações nos leitores.
Acerca da importância da literatura de entretenimento para a formação do leitor, José Paulo
Paes afirma o seguinte:
Numa cultura de literatos como a nossa, todos sonham ser Gustave Flaubert
ou James Joyce, ninguém se contentaria em ser Alexandre Dumas ou Agatha
Christie. Trata-se obviamente de um erro de perspectiva: da massa de
leitores destes últimos autores é que surge a elite dos leitores daqueles, e
nenhuma cultura realmente integrada pode se dispensar de ter, ao lado de
uma vigorosa literatura de proposta, uma não menos vigorosa de
entretenimento. (PAES, 1990, p. 37)
Paes apresenta a literatura de entretenimento como a porta de entrada para a literatura de
proposta. Talvez os leitores da primeira nunca venham a ser leitores da segunda28
, mas, quem
28
Segundo Paes (1990), na literatura de proposta há de igual modo um fito de entretenimento, embora de
natureza mais sutil e menos fisiológica, quando problematiza os valores, desafiando o leitor a um esforço de
interpretação que estimule a criticidade.
61
sabe, aquela seja, de fato, a porta de entrada para o livro e para a literatura na vida de milhões
de brasileiros que não são afeitos aos livros, especialmente à literatura, pouco explorada no
ambiente escolar da EJA, em prejuízo da apreciação ou familiaridade dos estudantes com essa
forma de expressão da cultura escrita.
Além da perspectiva abordada acerca da relação com a literatura, a relação com a linguagem
escrita em construções mais longas ou complexas, que requer algumas habilidades do leitor, é
outra questão que se coloca entre o texto e o seu interlocutor. Os sujeitos desta pesquisa não
estão habituados à leitura de textos longos, a exemplo dos gêneros narrativos como os
romances. Estão familiarizados com a linguagem escrita de cunho apelativo ou instrutivo,
textos com frases curtas, como rótulos de produtos e letreiros de ônibus. Mesmo na escola, há
preferência por textos curtos, de fácil compreensão, para o aprendizado e talvez o
desempenho nas atividades avaliativas.
As operações cognitivas e de memória, necessárias à leitura e compreensão de um texto que
requer o ordenamento de um maior número de ideias para ser significado, constitui tarefa
pouco familiar às habilidades textuais e estratégias de leitura dos entrevistados. A esse
respeito, tratando dos leitores pouco assíduos ou pouco acostumados aos livros, Lahire
afirma:
(...) pois há dificuldades de manuseio linguístico e estilístico: o código
linguístico é a primeira barreira que muitos encontram para acessar o livro,
já que depende do tempo investido na leitura de textos de léxico e sintaxe
complexos; o segundo obstáculo são as questões que esses textos
desenvolvem, as experiências a que se referem, já que sua apreensão por
parte do leitor depende de patrimônios de disposição incorporados em
função de experiências sociais anteriores. Evidentemente, às vezes, ambos os
tipos de obstáculos se combinam, mas não de forma sistemática (...).29
(LAHIRE, 2004, p. 186)
Para pessoas pouco acostumadas à leitura de textos ditos científicos, informativos ou
literários, a sua leitura, exigindo o domínio dos códigos linguísticos e das habilidades
requeridas por tais textos, certamente encontra dificuldade, aliada à falta de informações
prévias que contribuam para o seu entendimento. O texto escrito precisa ser ressignificado no
quadro de referência emoldurado pelas vivências e conhecimentos adquiridos pelo leitor.
29
“(...) pues hay impedimentos de manejo lingüístico y estilístico: el código lingüístico es la primera barrera que
encuentran muchos para acceder al libro, ya que depende del tiempo invertido em la lectura de textos de léxico y
sistaxis complejos; el segundo escollo son los temas que esos textos desarrollan, las experiências que refiere, ya
que su aprehensión por parte del lector depende de patrimônios de disposición incorporados em función de
experiências sociales anteriores. Evidentemente, ambos tipos de obstáculos se combinam a veces aunque no
sistemáticamente (...).
62
Outro ponto comum entre os entrevistados, já destacado, é a dificuldade de se lembrarem do
título de um livro e, sobretudo, do seu autor. Essa questão poderia ser tão somente
esquecimento, entretanto, dada a recorrência, infere-se que não há uma preocupação com
esses “detalhes” da obra. Para sujeitos pouco ambientados com o universo da literatura, e com
os códigos da cultura erudita, que centralizou a figura do autor, importa mais a história
narrada em razão do entretenimento e da relação com a realidade particular do leitor.
Para os entrevistados, a leitura de uma obra não indica preferência por um estilo literário, mas
uma escolha em razão das circunstâncias: empréstimo ou escolha através da capa, como já
explicado. O título ou autor não recebem atenção: talvez ninguém nunca tenha perguntado a
algum dos entrevistados sobre um livro lido.
Além dos livros de literatura citados pelas leitoras, um entrevistado contou ter lido um livro
de autoajuda do Pe. Jonas Abibb30
, tomado por empréstimo, de cujo título também não se
lembra, mas que gostou muito porque, segundo o leitor, trata da vida, do dia-a-dia do ser
humano. Nessa leitura, há uma relação pragmática com o livro, em que o cotidiano do leitor
serviu de referência para a apreciação do texto. Apesar de ter gostado, esse livro foi o único
que leu, porque, nas palavras do leitor, “falta estímulo”.
Outros livros, além dos de literatura e autoajuda mencionados, apareceram timidamente nas
entrevistas, que pertencem aos entrevistados, embora não façam parte das redes de
sociabilidades. Geralmente doados, foram citados um livro da área jurídica, cuja posse se
justifica pelo sonho da entrevistada em fazer o curso de Direito, um de Psicologia e um de
Biologia, para pesquisas escolares; e outros que, segundo o entrevistado que disse possuí-los,
jogados fora pelos colegas, ele os guarda. No espaço em que os livros são descartados31
, ele
os recolhe, embora não os leia, justificando que as leituras que realiza são aquelas exigidas
pela escola, do trabalho ou da vida cotidiana.
Sobre os livros da área de Direito e de Psicologia, os entrevistados declararam ter
compreendido o que leram, embora sabemos que eles não fazem parte do que Fish (apud
LIMA, 1979) chamou de comunidade interpretativa, aquela que dispõe dos códigos culturais
30
Autor de 10 títulos de autoajuda, trata de problemas cotidianos e da existência humana a partir dos
ensinamentos bíblicos. 31
Provavelmente, são livros didáticos do PNLD que não foram devolvidos à escola em tempo hábil, o que
acontece com frequência nas comunidades escolares, devido à falta de controle das instituições competentes.
63
necessários ao entendimento das ideias e questões de um determinado campo de
conhecimento.
Os estudantes da EJA entrevistados não têm familiaridade com a leitura de livros, nem mesmo
de livros didáticos ou técnicos. As experiências de leitura de obras literárias, dentre algumas
estudantes, são práticas ocasionais, algumas vezes interrompidas, o que não as desmerece.
Conforme dados da pesquisa “Retrato da leitura no Brasil”, Márcia Abreu (s/d) constatou que
57% dos entrevistados declaram que não compram livros por falta de condição financeira. No
caso de nossos entrevistados, esse obstáculo sequer foi apontado, do que se pode inferir que
esse objeto não faz parte do repertório cultural deles.
As leituras realizadas por esses estudantes da EJA restringem-se àquelas exigidas pelas
necessidades da vida cotidiana, são efeitos das atividades de lazer ou da vida comunitária, a
exemplo das atividades da igreja que alguns frequentam. Constata-se assim que a escola não
tem conseguido imprimir outros valores às práticas de leitura que incorram na formação
pessoal ou intelectual, que venham ampliar os horizontes de leitura da comunidade da EJA.
A partir do entendimento da literatura como uma produção relevante no processo de
humanização, acredita-se que ela não deva ser privilégio de uma elite. Através da literatura,
pode-se realizar um trabalho que esvazie uma concepção didática e pragmática da leitura no
ambiente da EJA. Segundo Lajolo (1993, p.82), a literatura constitui “um universo, um espaço
de interação de subjetividades (autor/leitor) que escapam ao imediatismo, à previsibilidade, ao
estereótipo das situações e usos da linguagem que configuram a vida cotidiana”.
Desse modo, a literatura poderia representar, nesse espaço educacional, a possibilidade de
interação com o livro, comumente suporte dos textos literários, e com formas de linguagem
mais extensas e subjetivas, permitindo ao estudante viver outra realidade, através das páginas
escritas e, por meio delas, construir um saber não pedagogizado, mas humanizante. Para tanto,
faz-se necessário repensar o papel da literatura no espaço educacional e, mais
especificamente, o papel da EJA no cenário social.
64
3. A COTAÇÃO DA LEITURA ENTRE OS ESTUDANTES DA EJA
A leitura não é uma questão de tudo ou nada, é uma questão
de natureza, de modos de relação, de trabalho, de produção
de sentidos, em uma palavra: historicidade.
Eni Orlandi
A partir dos estudos de Moscovici acerca das representações sociais, que, segundo o autor, “se
apresentam como uma ‘rede’ de ideias, metáforas e imagens, mais ou menos interligadas
livremente e por isso, mais móveis e fluidas que teorias” (2005, p. 210, grifo do autor),
pretende-se conhecer as ideias enunciadas pelos entrevistados nas narrativas a respeito de suas
leituras. Compreende-se que tais ideias constituem as suas representações sobre leitura,
construídas em suas práticas culturais e interações comunicativas.
As representações sobre leitura refletem o modo pelo qual os entrevistados compreendem e
significam a leitura. A “fluidez” a que Moscovici se refere, ao conceitualizar as
representações sociais, fica evidente em muitos momentos das entrevistas, em que as
representações se mostram ambivalentes, multifacetadas e, por vezes, contraditórias, porque
ora emergem das práticas de leitura dos entrevistados, ora refletem os valores produzidos por
uma elite letrada e disseminados na sociedade, dos quais os nossos sujeitos se apropriam
discursivamente.
Tais representações ratificam que a leitura, enquanto prática social e processo de construção
de sentidos, recebe significados diferentes a partir das relações estabelecidas com a matéria
escrita. Essas relações, por sua vez, inscrevem-se nas relações de poder e dominação que se
reconfiguram na sociedade ao longo das décadas. A esse respeito, afirma Chartier:
as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à
universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre
determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o
necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem
os utiliza. (CHARTIER, 1990, p. 17)
Conforme esse entendimento, buscamos situar historicamente as representações sobre leitura
dos sujeitos da pesquisa como produto e processo de suas vivências e de suas relações não
apenas com o texto, antes, com a sociedade. Segundo Martín-Barbero (1995), a leitura é
65
interação: interação com a sociedade. Suas representações refletem a forma como os sujeitos
interagem com a sociedade através da matéria escrita e como valoram essas experiências.
Considerando a singularidade de cada sujeito, mas reconhecendo que, segundo Chartier
(1998), é atravessada pelas questões sociais que fazem com que esses leitores sejam
semelhantes entre si, observamos que os sujeitos da EJA, inseridos em um mesmo universo
social e cultural, apresentam representações semelhantes sobre a leitura.
3.1 A via do conhecimento e do trabalho
Apesar de muitos dos estudantes entrevistados terem declarado que não gostavam de ler ou
não liam “nada”, nenhum deles negou a importância da leitura. Ao contrário, a referência a tal
prática se fazia presente na fala de todos eles, geralmente iniciando os diálogos estabelecidos.
Ione ilustra essa passagem: “a leitura é muito importante para tudo na vida”.
Ao longo das entrevistas, esses estudantes foram revelando em que consiste tal importância e,
nesse sentido, não deixaram de manifestar a vinculação entre leitura e conhecimento. A leitura
foi enunciada como atividade na “aquisição” de conhecimentos, cujo fornecedor é o texto e o
leitor se comporta como o consumidor desses conhecimentos:
Se você lê bastante e eu não leio nada, eu vou estacionar, vou ficar parado,
não vou sair de onde estou, ao passo em que você, através da leitura,
consegue crescer, consegue de certa forma não só acolher essas informações,
mas consegue passar para alguém. (...) Se eu não leio, conhecimento eu não
tenho. (Marcos)
Embora relacionem leitura a conhecimento, quando comentam sobre leitura no contexto
escolar, ela ganha outra conotação:
(...) Quando é prova eu acordo 5 horas da manhã para estudar. Aí estudo um
pouquinho e vou trabalhar (...). Tenho que tirar o segundo grau. Eu faço as
leituras da escola para fazer as provas. A gente precisa terminar os estudos,
completar o segundo grau. Tem empresa que não quer dá trabalho para quem
não tem o segundo grau. Aí fica difícil. Nos dias de prova eu acordo cedo e
leio o assunto da prova antes de ir para o trabalho, porque quando chego em
casa antes de ir para o colégio não dá tempo. (Paulo)
66
Por esse depoimento, a leitura realizada para atender aos propósitos da escola não é uma
prática frequente, mas relacionada à ocorrência das atividades avaliativas, cujo desempenho
permitirá o avanço nas seriações seguintes e, mesmo com essa finalidade, lhe é reservado
pouco tempo.
Ainda, a leitura não é instrumento para o desenvolvimento intelectual e a construção do
conhecimento, através das atividades da escola, mas o instrumento que permitirá a conclusão
do ensino médio, ou melhor, o término da educação básica, como uma exigência do mercado
de trabalho. O depoimento abaixo também ilustra esse entendimento:
[A leitura] é como se fosse algo obrigatório que você tem que fazer para
alcançar aquela meta. Porque a meta dentro do ensino são pontos,
infelizmente, não é conhecimento que conta. (...) Na atualidade, o que eu vejo
é que perdeu um pouco o compromisso de “passar” o conhecimento. As
pessoas vêm aqui, não estudam, na hora da prova “colam” e têm a pontuação
necessária. Perdeu o valor do conhecimento, de buscar informação, de passar
informação, por que tanto a gente busca, como traz. Hoje eu não vejo mais o
estudo, principalmente nessa região, como essencial, mas sim alcançar a
pontuação para “fechar” uma prova. Você aprende um pouco, mas a
preocupação é atingir a média. (Marcos)
Esse depoimento traz em seu bojo problemas cruciais que se instalam no sistema de ensino e
no papel da escola na vida desses sujeitos e contribui com a multiplicação de cidadãos com
formação escolar precária, fragilizando suas posições nos espaços sociais.
Mesmo nessa conjuntura, Marcos ressalta que é possível aprender um pouco, mas enfatiza que
a meta não é essa. Parece ter havido uma inversão do papel da escola, que passou de veículo
de acesso ao conhecimento sistematizado para veículo de distribuição de certificados. Desse
modo, no contexto escolar, a leitura funciona mais como passaporte para a conclusão da
escolarização básica do que como atividade de construção do conhecimento.
Se sabem que a leitura é uma via de acesso ao conhecimento, sabem também que a leitura que
realizam, a exemplo das revistas citadas pelas entrevistadas, não levam ao conhecimento
socialmente valorizado:
Leio sempre revistas de artistas, novelas... essas coisas menos importantes.
(...) Eu sou mal leitora, sou péssima. Um bom leitor é aquele que pega um
livro, que lê, que termina, que já quer outro. Aquele que tem fome de ler. (...)
Eu acho a pessoa muito inteligente, muito culta, a que ‘consome’ um livro
atrás do outro. Eu acho lindo, apesar de que eu não faço. (Nair)
67
Isso faz com que a leitura, nessa perspectiva, seja objeto de estudo e saber, alinhada com as
pessoas de classes mais favorecidas e distantes das práticas de leitura dos sujeitos da pesquisa.
Desse modo, desqualificam suas práticas leitoras em razão de uma concepção do ato de ler
fundamentado no trabalho intelectual.
Certos da importância da leitura e de sua relação com o conhecimento sistematizado, os
entrevistados falam das orientações que dão aos filhos:
Eu poderia dizer um ditado que a gente sempre diz e que tem um grande
erro: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Eu converso sempre
com ele [filho] que tem oito anos mas tem a cabeça muito boa. Eu digo o
seguinte: “hoje eu estou do jeito que eu estou porque eu não busquei o
conhecimento ou não tive oportunidade cedo”. Hoje, ele [filho] tem alguém
que pegue no pé, porque realmente, eu e mãe dele somos muito chatos em
relação às tarefas do dia-a-dia da escola dele. Então passamos para ele o
seguinte: “se você não estudar, se você não ler, se você não buscar o
conhecimento, ou você vai ficar aí como a gente está sempre vendo: as
pessoas marginalizadas, tendo que se drogar, tendo que roubar ou vai,
futuramente, trabalhar como servente de pedreiro no sol quente e você vai
ver que faz falta no futuro o estudo e o conhecimento. É mais ou menos isso
que eu aplico para ele. (Marcos)
Não sou muito de ler, não. Até gosto, mas não tenho tempo. Tive de parar de
estudar muito cedo para cuidar da casa. Agora tive de voltar porque a gente
precisa terminar os estudos. Mas eu falo para o meu filho que ele tem de ler,
que o homem só tem futuro se ele ler. É a leitura que abre as portas na vida.
(...) Sabe como é essa garotada de hoje. Ele não ler muito, não. Só quer saber
de brincar, não leva a vida a sério. Pensa que vai ter pai para a vida toda. Eu
falo para ele que para ter futuro tem que estudar, tem que ler. Eu não estudei
e agora trabalho duro. (Paulo)
Mas quando eu tiver tempo eu quero ler, quero ler muito porque a leitura é
tudo na vida de uma pessoa; ela só tem futuro se tiver leitura. Eu falo isso
para os meus filhos. Eles ainda estão pequenos mas eu já vou colocando na
cabeça deles para quando crescer não querer deixar de estudar. Comigo foi
assim, fui desinteressando pelos estudos e agora estou aqui, tendo que
estudar depois de velha porque eu já podia está fazendo uma faculdade, uma
coisa assim, mas agora eu estou tendo que terminar os estudos para ver se
fica mais fácil conseguir um trabalho. (Ana)
Nas falas destacadas acima, é imputada à leitura a capacidade de mudar a vida das pessoas, ou
melhor, de proporcionar uma vida material de mais conforto baseada na relação leitura e
conhecimento.
68
Regina Zilberman nos faz pensar nas “propriedades mágicas da leitura” quando traz para o
seu texto exemplos extraídos de obras literárias que condenavam a leitura realizada por suas
personagens: “ao ser-lhe atribuída a propensão a fazer mal, ela parece comprovar sua
eficiência”. (ZILBERMAN, 2001, p.38). Essas condenações refletiam o poder atribuído a
determinadas leituras de provocar a subjetividade das pessoas, o que muitas vezes contrariava
os interesses e valores vigentes na sociedade da época, e, ao mesmo tempo, atesta a
propriedade da leitura de incitar a imaginação e o conhecimento dos leitores, exibindo sua
face emancipatória.
As representações sobre leitura elaboradas pelos sujeitos da pesquisa parecem refletir essas
propriedades mágicas quando conferem à leitura o poder de transformar a vida dos leitores.
Entretanto, percebe-se que, contrariamente ao observado por Zilberman (2001), a
transformação não está relacionada ao processo de constituição dos valores e das concepções
de mundo, mas às condições materiais das vidas dos sujeitos entrevistados. Tais condições
geralmente estão vinculadas a uma colocação no mundo do trabalho. Ou seja, estão mais
voltadas ao aspecto pragmático do que ao intelectual, infligindo à leitura caráter de redenção
social quando responsável pelos saberes necessários a uma melhor qualidade de vida,
sobretudo no âmbito material.
No entanto, esses sujeitos não foram preparados para pensar a leitura em sua natureza
emancipatória, como exercício intelectual de alargamento das ideias, como espaço dialógico
em que o leitor se ocupa dos pensamentos alheios para alimentar os próprios pensamentos:
A leitura guarda espaço para o sujeito imaginar sua própria humanidade e
apropriar-se de sua fragilidade, com seus sonhos, seus devaneios e sua
experiência. A leitura acorda no sujeito dizeres insuspeitados enquanto
redimensiona seus entendimentos. (QUEIRÓS, 1999, p. 24).
Antes, os entrevistados citados colocam sobre a leitura e o conhecimento decorrente dela a
responsabilidade por sua inserção no mercado de trabalho, que ofereça condições mais
confortáveis de labor.
Essa perspectiva é confirmada ao se constatar que os melhores postos de trabalho são
reservados para as pessoas com maior nível de escolarização. Paulo, um dos entrevistados,
conhece bem essa realidade ao ser referir a “trabalho duro”. Entretanto, o término da
escolarização básica não garante condições de trabalho mais favoráveis, pois a conclusão do
ensino médio necessariamente não responde por uma formação escolar de qualidade. Num
69
mercado de trabalho que está cada vez mais exigente e especializado, a escola pode funcionar
mais como espaço de emissão de certificados do que de formação de leitores, conforme os
relatos dos entrevistados.
As falas de Marcos e Paulo colocam a leitura como condição para o conhecimento e este
como o redentor de muitos males sociais, o que reflete a visão fantasiosa que esses estudantes
têm da leitura: a de atribuir poderes a uma competência que eles julgam não ter. Além disso,
colocam a leitura como uma prática suficiente quando ela se faz necessária a um futuro de
possibilidades: “A leitura é tudo de bom. É a porta para um futuro brilhante”. (Franci).
É fato que a leitura apresenta muitas possibilidades, mas não são determinações, pois um país
desigual como o Brasil enseja as oportunidades para uma minoria que, além da apropriação da
técnica da leitura, detém as condições políticas e econômicas que permitem transformar
possibilidades em oportunidades.
As questões históricas, políticas e sociais que interferem na formação do leitor ficam
ignoradas quando se confere ao conhecimento a capacidade de promover melhorias na vida
das pessoas e se esquece de que tal conhecimento é fruto de uma relação de poder que se
estabelece na sociedade, ao largo da história.
Nesse momento, vale a pena retomar a história da leitura no Brasil, a partir dos estudos de
Marisa Lajolo e Regina Zilberman, que tratam da formação do público leitor e da
escolarização da leitura para explicar em que contexto e de que forma as classes menos
favorecidas tiveram acesso à escola e, consequentemente, à leitura, de modo a reconhecer a
sua importância na constituição do sujeito.
Ao longo da Antiguidade e Idade Média, a leitura ganhou feição negativa no sentido de incitar
a imaginação de maneira inadequada aos padrões culturais da época. Mas a sociedade
moderna logo tratou de reabilitar a leitura à sua condição positiva.
Se é certo que leitores sempre existiram em todas as sociedades nas quais a
escrita se consolidou enquanto código, como se sabe à propósito dos gregos,
só existem o leitor, enquanto papel de materialidade histórica, e a leitura,
enquanto prática coletiva, em sociedades de recorte burguês, onde se verifica
no todo ou em parte uma economia capitalista. Esta se concretiza em
empresas industriais, comerciais e financeiras, na vitalidade do mercado
consumidor e na valorização da família, do trabalho e da educação.
(LAJOLO, ZILBERMAN, 1998, p.16)
70
É no contexto burguês que a leitura ganha espaço no cenário brasileiro, ligada a uma série de
fatores econômicos e sociais que contribuíram com a difusão da matéria escrita.
A leitura passa, então, a fazer parte das experiências das famílias de classe burguesa, alinhada
com as transformações econômicas e culturais da época, não apenas no sentido de prepará-las
para assumir os lugares de comando na sociedade que se desenhava, como nos momentos de
lazer, através da literatura, que passa a englobar um público até então novo: o de mulheres e
crianças.
A essas transformações veem-se alinhadas novas formas de representação do saber, tributária
das ideias iluministas, e do lazer, decorrente das novas concepções de sociabilidade e
individualidade, quando o livro passa a fazer parte do ambiente familiar. Por sua vez, tais
mudanças também passam a refletir na vida dos menos privilegiados, pois provocam
transformações nas relações econômicas e sociais.
A invenção da prensa mecânica e a fabricação industrial do papel possibilitaram a ampliação
do mercado livreiro e era preciso mercado consumidor para tais produtos, a fim de consolidar
os propósitos da sociedade capitalista. Ou seja, era preciso formar mercado consumidor para a
matéria escrita. Além do mais, as mensagens escritas se multiplicavam e constituíam mais
uma forma de interação com a sociedade moderna e favoreciam o seu desenvolvimento
econômico, científico e cultural. A nova configuração econômica requeria mão de obra
especializada para atender às novas demandas profissionais. Assim, a leitura ganha
importância numa época em que grande parte da população era analfabeta.
É nesse contexto que ocorre a expansão da escolarização se ocupando dos saberes elementares
ao período moderno, a começar pela alfabetização, através da universalização da escola: a
sociedade da época se deparava com uma grande oferta de textos e era preciso decodificá-los.
Assim, a necessária escolarização, até então negligenciada pela nobreza desde a chegada dos
jesuítas ao Brasil, agora era um imperativo para o desenvolvimento da sociedade burguesa,
conforme os estudos de Zilberman (2001).
Naquele momento, nascia a crença na escolarização como “salvadora da pátria”, no sentido de
preparar os cidadãos para fazer desenvolver a sociedade moderna. Junto a essa crença nasce
também outra, de igual teor, a de que a escolarização favoreceria o desenvolvimento pessoal,
71
baseado nos ideais iluministas de que a aquisição do saber é condição primeira para a
ascensão social.
Os ideais iluministas criaram impasses para a hegemonia da classe burguesa, que logo tentou
resolver tal impasse por outras vias, bem a gosto da economia capitalista: escolas para as
diferentes classes sociais. Esta configuração persiste nos dias atuais e engloba aquelas escolas
cujas leituras são para garantir o avanço nas séries seguintes, a despeito do que foi dito pelos
nossos entrevistados.
Com a difusão da alfabetização, a expansão dos meios de comunicação e a proliferação das
mensagens escritas, grupos sociais mais amplos foram trazidos para o processo de produção
do conhecimento e esses grupos passaram a se apropriar da leitura, ou antes, das ideias que
ensejam as capacidades atribuídas à prática da leitura: o desenvolvimento pessoal e
profissional.
Tais ideias nascem com a apropriação da leitura pelas classes dominantes e se propagam no
curso da história e das relações de poder para as outras classes sociais com o sentido de
legitimidade que as classes dominantes lhes conferem: “é pela leitura que as pessoas
conseguem se desenvolver na vida” (Edgar). Os sujeitos se apropriaram dessas ideias que
atravessaram os séculos e ainda hoje se fazem presentes nas representações sobre leitura dos
sujeitos da Educação de Jovens e Adultos, reproduzindo o discurso liberal de que pelo estudo
as pessoas alcancem o sucesso social.
Entretanto, naquele tempo, para os burgueses, e ainda hoje, desenvolvimento pessoal, para
alguns, significa assumir os lugares de comando na sociedade; para outros, os “proletariados”,
significa conseguir uma colocação no mercado de trabalho, dentro das demandas do
crescimento econômico.
Para a maioria dos sujeitos dessa pesquisa, “se desenvolver na vida” significa conseguir uma
colocação que proporcione mais comodidade no exercício da função, ou seja, uma atividade
profissional que requeira menos esforço físico e, consequentemente, possibilite uma vida
material de mais conforto e tranquilidade: “sem a leitura a pessoa vai ser peão” (...) Trabalho
72
de mototáxi, então, [a função] não tem registro32
, corre muito risco33
, trabalha no sol e na
chuva. [Desejo] Um trabalho menos incerto” (Edgar).
Desse modo, a representação da leitura como algo muito importante para garantir um lugar no
mercado de trabalho minimamente confortável tem raízes históricas que ainda germinam na
sociedade brasileira.
Outra vinculação que se fez presente na fala dos entrevistados acerca da importância da
leitura é a da relação da leitura com a comunicação: “A leitura é um meio de você olhar para
as pessoas, se identificar, se comunicar melhor. (...) Por que sem a leitura você não é
ninguém, não sabe conversar, não sabe se expressar, não sabe dizer nada, não tem expressões”
(Franci). E mais: “(...) a leitura de um modo geral aperfeiçoa até a linguagem do ser humano”
(Lúcio).
Os excertos acima mostram a relação da leitura com a linguagem. Essa relação é um
desdobramento da leitura como trabalho intelectual, em que a leitura fornece uma ampliação
dos recursos linguísticos e beneficia a elaboração e a organização das ideias, favorecendo a
sociabilidade e até a autoestima, como sinaliza Lúcio. Esse aprimoramento linguístico
também corrobora com o entendimento da leitura como alavanca para o desenvolvimento
pessoal e profissional porque, do mesmo modo que acontece com a “aquisição” do
conhecimento, se traduz em forma de distinção social.
Mais uma vez busca-se estabelecer um diálogo entre este trabalho e a análise da pesquisa
“Retrato da leitura no Brasil” (2001) desenvolvida por Márcia Abreu (s/d), em que ressaltou
que 89% dos participantes da pesquisa disseram que os livros são um meio eficaz de
transmissão de ideias. Os nossos entrevistados também acreditam que ler é importante para a
obtenção do conhecimento. Entretanto, mais que reconhecer tal importância da leitura, pois
isso eles parecem já saber, é necessário que se criem condições sociais para que possa nascer
o desejo de ler como prática de formação pessoal, porque “nem todos os leitores são gente
branca e bem vestida em casas elegantes e confortáveis” (ABREU, s/d).
Para as classes trabalhadoras, a leitura ganhou um aspecto utilitário: serve para facilitar o
ingresso no mercado de trabalho ou aumentar o desempenho e a produtividade no emprego. O
32
Referindo-se à condição de emprego informal, sem o amparo legal das leis trabalhistas. 33
Reportando-se aos frequentes relatos de assalto aos mototáxis que operam na cidade.
73
reconhecimento de sua importância na relação com o conhecimento sistematizado não
provoca reações na apropriação da cultura erudita, que continua acontecendo de forma
pragmática.
Na verdade, o que se desdobra na prática é a importância dada ao término da escolarização
básica, quando retornam à escola para concluir esse ciclo da educação formal. À escolaridade
é atribuída um valor de positividade por favorecer o ingresso e a permanência no mundo do
trabalho.
No imaginário dos entrevistados, a leitura como atividade intelectual está presente apenas
quando relacionam leitura ao conhecimento. Seja por um processo histórico, político ou
cultural, essa face da leitura não faz parte de suas vidas. Tal constatação nos faz pensar na
relação entre a representação da leitura vinculada ao conhecimento e as práticas leitoras dos
entrevistados e logo se verifica uma lacuna entre elas. Talvez fosse possível pensar em
contradição, mas esse termo não faria jus à relação que se verifica entre ambas. Preferimos
falar em lacuna ou dicotomia porque “o discurso não tem como função constituir a
representação fiel de uma realidade mas assegurar a permanência de uma certa
representação”. (Vignaux, 1979, apud Orlandi, 1996, p.55). Ou seja, as suas representações
sobre leitura não têm a obrigação de retratar as suas experiências leitoras, mas, antes, a forma
como a leitura é compreendida em nossa sociedade.
Assim, entendemos a lacuna como um espaço vazio em que não se verifica a presença do que
foi dito. Ou seja, a prática não nega o que foi dito, entretanto, não se observa na prática o que
foi dito, pelo menos de modo incisivo: o fato de não se apropriarem criticamente do
conhecimento acumulado não sugere que a leitura não seja importante.
As falas dos entrevistados acerca da importância da leitura refletem mais as representações
que têm da leitura no espaço social do que as suas próprias práticas de leitura. Nem sempre as
representações reverberam de forma imediata nas práticas; antes, são reflexo do que é aceito e
compartilhado pelos membros de uma comunidade.
A prática está inserida em contextos sociais e culturais e responde pela identidade do grupo
social, enquanto as falas dos sujeitos da pesquisa traduzem as representações que configuram
a leitura no espaço social. As relações proferidas pelos entrevistados, colocando a leitura
como atividade para o conhecimento e desenvolvimento pessoal são as ideias que, de modo
74
geral, circulam no espaço social que propaga a leitura como o meio de desenvolver todas as
capacidades citadas pelos entrevistados, legitimadas pelas práticas dominantes e ratificadas
pela pedagogia liberal. Ou seja, as representações excedem os limites das classes sociais,
enquanto as práticas, em sua grande maioria, encontram naqueles os seus balizadores.
Moscovici ressalta o caráter normativo e prescritivo das representações, que tem a função de
facilitar a comunicação ao passo que fornece um código para nomear e classificar os aspectos
do mundo social:
Nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos anteriores que
lhes são impostos por suas representações, linguagem ou cultura. Nós
pensamos através de uma linguagem, nós organizamos nossos pensamentos
de acordo com um sistema que está condicionado tanto por nossas
representações como por nossa cultura. (MOSCOVICI, 2005, p. 35)
O código utilizado para nomear e classificar a leitura é o de atividade para o conhecimento e
desenvolvimento e tal código social e cultural é sustentado pela vida cotidiana – que confere
os melhores postos no mundo do trabalho aos que têm mais anos de escolarização – e
historicamente partilhado por uma coletividade desde a difusão dos ideais iluministas. Resta,
pois, saber se os menos privilegiados dessa coletividade conseguirão traduzir em prática esse
código cultural ou se o conhecerão apenas no plano das representações.
As interações comunicativas têm papel importante na construção e manutenção das
representações sociais porque incorporam e compartilham os valores socialmente atribuídos à
leitura, a exemplo do que ocorre com aqueles pais quando ressaltam a importância da leitura
para os seus filhos. Estão contribuindo com a manutenção de tais representações, mesmo
dissociadas de suas práticas leitoras.
Tais representações sobre a leitura retomam a ideia de “ilusão do sujeito” (ORLANDI, 1996)
quando os entrevistados parecem ser a fonte dos sentidos proferidos acerca da leitura,
enquanto, na verdade, reproduzem sentidos preexistentes, construídos por uma elite ao longo
dos últimos séculos, ou seja, a concepção de leitura não se origina neles: são retomados por
eles.
Essa ideia também traz a “ilusão da realidade”, segundo a autora, ou a onipotência do sentido:
leitura só pode significar isso, que incide nas ideias produzidas e disseminadas por uma elite
75
letrada. A ilusão do sujeito se inscreve na eficácia do assujeitamento, quando o sujeito toma
por seu os discursos alheios, considerando-os legítimos e verdadeiros.
Desse modo, a leitura como atividade para o conhecimento, desenvolvimento e emancipação
é um dos pilares do pensamento iluminista. Sua matriz constitutiva está na crença
disseminada pela sociedade moderna de que o conhecimento promove o progresso pessoal e
profissional. Portanto, essa ideia está enraizada na tradição ocidental, abraçada pela pedagogia
liberal e ratificada pelas práticas dominantes que detêm a capacidade de designar sua
legitimação, pois, no bojo das relações de poder simbólico e das interações comunicativas,
fomentam e difundem tais representações. Moscovici reconhece que as representações nascem
de um sistema de valores e crenças construídos historicamente:
Isso significa que as representações sociais são sempre complexas e
necessariamente inscritas dentro de um ‘referencial de um pensamento
preexistente’; sempre dependentes, por conseguinte, de sistemas de crença
ancorados em valores, tradições e imagens do mundo e da existência. Elas
são, sobretudo, o objeto de um permanente trabalho social, no e através do
discurso, de tal modo que cada novo fenômeno pode ser reincorporado
dentro de modelos explicativos e justificativos que são familiares e,
consequentemente, aceitáveis. (MOSCOVICI, 2005, p. 216)
O “referencial de um pensamento preexistente” enunciado por Moscovici constitui o que
Orlandi, numa releitura de Michel Foucault34
, chama de formação discursiva: “A formação
discursiva se define como aquilo que numa dada formação ideológica dada (isto é, a partir de
uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada) determina o que pode e deve ser
dito.” (ORLANDI, 1996, p.58).
Como parte da formação discursiva de nossa sociedade, as representações sobre leitura
relacionadas ao conhecimento e desenvolvimento pessoal e profissional estão presentes nas
redes de relações dos sujeitos e ganham estabilidade e recorrência nas interações cotidianas,
constituindo um conjunto de ideias para explicar a importância da leitura no espaço social.
Tal conjunto de ideias é considerado legítimo e aceito por todos, inclusive por aqueles cujas
práticas de leitura não coincidem com as suas representações, constituindo aquela dicotomia
que Moscovici chama de “complexo de ambigüidade” entre o pensamento e a ação:
34
Conforme Foucault, “sempre que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante
sistema de dispersão e se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos,
transformações) entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, teremos uma
formação discursiva” (1997, p. 43).
76
Em longo prazo, a conversação (os discursos) cria nós de estabilidade e
recorrência, uma base comum de significância entre seus praticantes. As
regras dessa arte mantêm todo um complexo de ambigüidades e convenções,
sem o qual a vida social não poderia existir. Elas capacitam as pessoas a
compartilharem um estoque implícito de imagens e de idéias que são
consideradas certas e mutuamente aceitas. (MOSCOVICI, 2005, p. 51)
O pensamento representa o quadro cognitivo e referencial que classifica a leitura e a ação
representa a intervenção do sujeito em seu ambiente social. Ou seja, a leitura, em sua
complexidade como espaço de sociabilidades, tem duas faces: a da representação e a da ação,
sem que, necessariamente, a representação seja o retrato fiel da ação, mas o seu domínio
compreensível, inteligível e aceitável.
Esse domínio se expande e se alarga com tanta rapidez entre os sujeitos, que chega a se
assemelhar a um clichê. Difícil será encontrar um sujeito que não classifique a leitura dentro
desse mesmo quadro referencial de sua importância, independente da classe social, sem se dar
conta dos divisores sociais que emolduram as práticas de leitura.
Consequentemente, o status dos fenômenos da representação social é o de
um status simbólico: estabelecendo um vínculo, construindo uma imagem,
evocando, dizendo e fazendo com que se fale, partilhando um significado
através de algumas proposições transmissíveis e, no melhor dos casos,
sintetizando em um clichê que se torna um emblema. No seu limite, é o caso
de fenômenos que afetam todas aquelas relações simbólicas que uma
sociedade cria e mantém e que se relacionam com tudo que produz efeitos
em matérias de economia ou poder. (MOSCOVICI, 2005, p.216)
Dessa forma, as representações sobre leitura têm um domínio simbólico mais que prático.
Operam na construção de quadro referencial cognitivo que explica o papel da leitura na
sociedade contemporânea, muitas vezes assemelhando-se a um “clichê”.
Dada a sua recorrência e familiaridade, essas representações podem se transformar em senso
comum, que é uma forma de explicar a leitura de modo espontâneo: “na verdade, as
representações sociais diariamente e “espontaneamente” se tornam senso comum (...)”
(MOSCOVICI, 2005, p. 200). Então, a importância da leitura virou senso comum e isso faz
com que as questões intervenientes na formação do leitor não sejam colocadas à luz por
pessoas menos atentas à problemática da constituição do hábito da leitura como processo
político, social e cultural.
As representações sobre leitura, tomando como aporte teórico as ideias de Moscovici (2005)
quanto ao surgimento das representações sociais, nascem de uma ideia-fonte que é tributária
77
de uma construção histórica: a da leitura como atividade para o conhecimento e
desenvolvimento social. Essa ideia-fonte tem origem nos esquemas culturais e sociais e se
instala na memória coletiva. Moscovici denomina esse processo de “ancoragem”, ou seja, é o
momento em que a ideia passa a ser familiar a aceita por todos.
A ancoragem culmina na objetivação da ideia, que é a criação de um campo semântico que
traz as chaves interpretativas para a exteriorização daquela ideia: leitura para o conhecimento
e o desenvolvimento social. É uma forma de compreender e explicar a leitura na vida
cotidiana. Esse processo tem na interação comunicativa papel primordial na constituição,
manutenção e transformação das representações.
Desse modo, as representações que refletem a importância da leitura no tocante ao
conhecimento acumulado e desenvolvimento social indicam um quadro referencial cognitivo
para explicar a leitura a partir de valores sociais e culturais que podem ou não deixar marcas
na apropriação da cultura escrita pelas classes sociais menos favorecidas.
Outro aspecto observado nas falas dos entrevistados é que as suas representações sobre leitura
geralmente estão relacionadas às representações do saber, pautadas na constituição do
conhecimento, nunca às representações do lazer, como acontece na leitura de textos literários,
que, muito embora motivadas pelo deleite, cumprem seu papel social quando fazem repensar
a realidade e ampliar o conhecimento de si mesmo e do mundo através das linhas da ficção.
A associação da leitura à literatura e, consequentemente, a enunciação de representações
sobre leitura a partir de textos literários não foi proferida por nenhum dos participantes da
pesquisa, mesmo entre aqueles poucos que disseram gostar de ler romances e já terem tido
alguma experiência com os livros literários.
Conforme Orlandi (2003), o não dito também pode ser interpretado: a representação da leitura
como atividade para a instrução, escolarização, conhecimento e desenvolvimento faz parte do
imaginário dos sujeitos da pesquisa no sentido de proporcionar meios para que consigam uma
“boa” colocação no mercado de trabalho. O ato de ler vinculado à literatura e ao prazer como
desdobramento daquela não faz parte do imaginário das pessoas que participaram desse
trabalho, ou seja, não passou pelos processos de ancoragem e objetivação, característicos das
representações sociais.
78
A ausência dessa representação sobre leitura de textos literários pode ser explicada pela falta
de familiaridade dos participantes da pesquisa com o que se convencionou chamar de vida
cultural e literária. Isso significa que, mesmo sendo “slogan” de muitas campanhas
publicitárias nas últimas décadas e dos projetos escolares de incentivo à leitura –
especialmente no primeiro ciclo da educação básica –, a leitura relacionada ao prazer não faz
parte das trocas comunicativas dessas pessoas, não faz parte dos seus imaginários e, portanto,
não se constitui numa representação da leitura.
Essa constatação também tem raízes históricas. Se as camadas mais modestas da população
foram apresentadas à leitura como forma de se desenvolver e fazer desenvolver a sociedade
capitalista, pela razão inversa não foram apresentados à literatura:
A introdução ao mundo das letras tinha de se mostrar mais rápida e eficiente
e, ao mesmo tempo, levar em conta que se destinava a usuários, boa parte
provenientes do campo e de origem humilde, que até então não sentiam falta
da escrita e da leitura de textos. (ZILBERMAN, 2001, p.70)
Dessa forma, no projeto de escolarização das camadas mais pobres da sociedade, voltado para
formar “usuários” da língua escrita, não havia espaço para a literatura, contrariamente ao que
acontecia nos lares burgueses, onde a literatura ajudou a difundir as práticas de leitura,
sobretudo através das mulheres.
Ademais, a democratização da leitura por meio da expansão da literatura contava com
algumas barreiras: primeiro, a escola, imbuída dos ideais iluministas, não tomava para si essa
função; além do mais, os professores não estavam preparados para trabalhar com tal
perspectiva, uma vez que não tiveram a devida formação; segundo, o conceito de literatura
suscitava controvérsia, aliás, como o é ainda hoje; terceiro, não havia – como também não há
em dias atuais – política cultural de incentivo à leitura; por último, mas não menos
importante, como fazer crescer o interesse pela literatura numa população analfabeta e de
tradição oral?
Todos esses fatores juntos contribuíam com o processo de exclusão da literatura, somando-se
a eles o crescimento da indústria televisiva e radiofônica que, de longe, ocupa o espaço do
lazer na vida dos cidadãos. Não com muita surpresa podemos constatar que, passado séculos
de história, esses fatores se mostram igualmente atuais, salvo as inovações de ordem
tecnológica.
79
Desse modo, a literatura se difundiu, principalmente, entre uma pequena parcela da sociedade,
ratificadas pelas práticas das escolas, das famílias e das bibliotecas. Por outro lado, a
industrialização da literatura dependia da difusão desse hábito de leitura. Esses são os
impasses e antagonismos criados pela sociedade capitalista, quando, ainda hoje, tal hábito
continua se difundindo apenas entre uma pequena parcela da população.
3.2 Ler é decodificar?
Retomando a frase de Ione, “a leitura é muito importante para tudo na vida”, tal importância a
que o entrevistado se refere foi relacionada a uma questão de ordem mais prática do que
intelectual, a colocação no mercado de trabalho e, consequentemente, a uma vida de mais
facilidades. Mas essa importância também pode estar relacionada a outra questão igualmente
prática, porém relacionada às atividades do dia a dia.
A face segundo a qual a leitura foi delegada às classes menos privilegiadas também se fez
presente nas representações sobre leitura dos sujeitos entrevistados. Ela foi lembrada (ou
confundida) com a decodificação, como forma de interagir com a profusão de mensagens
escritas da sociedade contemporânea. As falas abaixo atestam esse entendimento:
“Para tudo na vida hoje a gente precisa da leitura. (...) Sem a leitura você sai na rua e fica
perdido, não sabe se mexer” (Ione), provavelmente referindo-se à racionalização dos espaços
sociais que decorre da multiplicação das legendas que se espalham pelas cidades e de cuja
leitura depende a movimentação e comunicação no ambiente social. Tereza também
manifestou o mesmo entendimento da importância da leitura: “[A leitura] está espalhada pelas
ruas, nas faixas, nos supermercados, nas farmácias, nos bancos... em tudo. Temos que pagar
contas”.
Entretanto, nem a face mais pragmática da leitura exclui a sua condição de processo de
atribuição de sentidos, pois, mesmo as situações próprias do dia a dia da vida contemporânea,
como exemplificadas pelos entrevistados, não excluem a atribuição de sentidos: a leitura de
um rótulo de um produto no supermercado implica tomada de decisão a partir dos sentidos a
ele atribuídos, o que se configura no seio da matriz social que envolve o sujeito.
80
Outro entrevistado fez emergir o mesmo sentido atribuído à leitura, ao passo que aborda o
constrangimento de quem não dispõe da técnica da decodificação:
Já pensou você ir comprar uma coisa e não saber ler? Pode até ser enrolado.
Na eleição, tem gente que nem consegue votar porque não tem leitura. Já
pensou, você querer dar um voto para uma pessoa, não saber [ler] e acabar
dando para outra [pessoa] porque não tem a leitura. É muito triste. Eu
conheço muita gente que fica nervosa no dia de votar, nem dorme direito
com medo de dar vexame por que fica com vergonha também de dar o voto
errado. (Daniel)
O depoimento acima demonstra a importância da alfabetização e como ela ainda é confundida
ou tomada pela leitura. Esta depende da alfabetização, mas não se encerra nela, que, segundo
Soares (2003), responde pela aquisição da “tecnologia da escrita”, que abrange o conjunto de
técnicas e habilidades necessárias à prática da leitura e da escrita: domínio do sistema
alfabético e das habilidades motoras para manipulação dos instrumentos de escrita e suportes
de leitura, além das habilidades de organização especial do texto.
As ocasiões citadas pelos entrevistados, de uso efetivo da tecnologia da escrita, possíveis
graças ao domínio da técnica da alfabetização, fazem parte das situações de letramento da
vida desses sujeitos, ou seja, constituem as situações em que se apropriam da escrita com
vistas a determinados fins, no caso, realizar as tarefas cotidianas. No entanto, há outras formas
de letramento que precisam ser descobertas por esses sujeitos. A leitura não pode ser restrita
às atividades do dia a dia, pois, segundo Foucambert (1994, p. 05),
todos sabem a diferença entre ver e olhar, ouvir e escutar... ler não é apenas
passar os olhos por algo escrito, não é fazer a versão oral de um escrito. Ler
significa ser questionado pelo mundo e por si mesmo, significa que certas
respostas podem ser encontradas na escrita, significa poder ter acesso a essa
escrita, significa construir uma resposta que integra parte das novas
informações ao que já se é.
Assim, além de permitir a interação com a sociedade contemporânea, mediada pelo uso da
tecnologia da escrita, através da leitura deve-se ter acesso também à cultura escrita – não tão
somente aos letreiros que se multiplicam pela sociedade grafocêntrica – de modo a interrogar
a si mesmo e ao mundo.
Quando indagado se o seu trabalho exigia algum tipo de leitura, Lúcio respondeu: “Mesmo na
produção, eu tenho que estar lendo, anotando a produção, lendo a cor do material com que eu
trabalho. Eu tenho sempre um talão em mão; tudo isso exige a leitura”. Ou seja, a leitura é
81
identificada em sua faceta de instrumento para o desempenho do ofício e não de preparação
para o exercício da função.
Ao falar da leitura, Franci contou a história da mãe analfabeta:
Ela [mãe] olha assim os documentos e fala: “estuda, minha filha, lê bastante
porque hoje, olha os meus documentos como são; está lá o dedo e [escrito]
analfabeto. (...) Eu sei como é triste você chegar num lugar e mostrar o
documento como analfabeta”. É triste mesmo! Ela me agradece por ter
incentivado [a mãe] a ler; eu era ainda novinha quando comecei a ler e
ajudar “ela”. Ela sempre incentivou todos nós [filhos], justamente por isso,
porque às vezes ela chegava a algum lugar e começava a conversar e as
pessoas ficavam olhando porque ela não sabia se expressar direito. Ela
falava palavras que eram comuns com gente mais velha, palavras que nem
existem mais e as pessoas ficavam observando, criticando (...). Porque você
tem que ter estudo para tudo. E ela me incentivou bastante, porque via a
situação que ela passava, não arrumava trabalho... a vida era de doméstica...
por que não tinha um nível de estudo. (...) A pessoa analfabeta,
simplesmente não sabe dialogar, não sabe conversar. Quando tem um
problema para resolver, vai na ignorância, começa a discutir, aquela
baixaria; e a pessoa que tem estudo ao invés de brigar, conversa.
O depoimento acima, além de mais uma vez evidenciar a confusão entre leitura e
alfabetização, revela também a aquisição dessa técnica de decodificação como direito social e
prerrogativa para o exercício da cidadania, ideias propagadas pelas campanhas de
alfabetização para a erradicação das taxas de analfabetismo no país, desde a década de 1940.
Só recentemente é que a leitura extrapolou os limites da decodificação, quando os estudiosos
do assunto passaram a chamar a atenção para os papeis dos diferentes mediadores da leitura e
para as histórias de vida do leitor.
Se a relação da leitura como o conhecimento deriva de uma construção histórica a partir da
difusão dos ideais iluministas, a vinculação da leitura com a alfabetização também resulta de
um processo histórico, quando o ato de ler era confundido com a capacidade de decifração
dos sinais escritos. Por sua vez, tal ideia ainda persiste no imaginário de nossos sujeitos.
Todas as falas dos entrevistados relacionam a leitura ao processo de decodificação dos sinais
gráficos para interagir com os muitos textos da sociedade contemporânea, quando do início da
democratização da escola, em que era preciso formar sujeitos capazes de decifrar o código
escrito, como se a leitura fosse tão somente um processo que requer a competência da
decodificação gráfica:
82
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que na sociedade brasileira em seu
todo, a leitura não é ainda “hábito” nem “ato”. Ao contrário, ela é vista como
comportamento diferenciador, a que somente seres privilegiados, bem
dotados intelectualmente, cultural e economicamente, podem ter acesso. As
exceções não fazem senão confirmar a regra. Em decorrência, o que se
reserva às minorias, quando muito, é o exercício de reconhecimento de
signos para atividades imediatas ligadas á sobrevivência ou pouco mais que
isso. (PERROTI, 1999, p. 31)
As camadas privilegiadas continuam servindo-se da leitura como atividade para o
conhecimento, desenvolvimento, emancipação ou opressão das camadas subalternas. Por sua
vez, a grande maioria das camadas menos privilegiadas continua utilizando a leitura para
interagir com os artefatos da sociedade contemporânea, embora reproduza o discurso das
classes privilegiadas quando fala da relação entre leitura, conhecimento e desenvolvimento
pessoal e profissional. Pois, é esse discurso que continua veiculado na mídia, legitimado
pelas instituições sociais, a exemplo dos sistemas de ensino e validado pelas práticas
dominantes.
Os entrevistados relacionam a leitura ao conhecimento, entretanto, a sua escolarização é
precária; falam para as gerações seguintes acerca da importância da leitura, mas não se fazem
exemplos. Percebe-se uma lacuna entre o discurso e a prática: pensa-se o leitor nos moldes de
representação dos discursos da classe burguesa, mas realiza-se a leitura na forma que foi
delegada às camadas populares: restrita à técnica da decodificação para interagir com as
mensagens escritas da sociedade contemporânea.
A assimilação da técnica da decodificação por si só não muda as relações sociais em torno do
conhecimento acumulado, mas sim, as formas de sua apropriação, em que estão impressas as
marcas de quem se apropria. O acesso à cultura escrita, através da universalização da
competência da alfabetização, por si só não promove a democratização do saber. Segundo
Pompougnac (in FRAISSE, 1997, p. 15), “a nova capacidade [decifração dos sinais
impressos] continua frágil enquanto não engendrar com novos comportamentos, com o
domínio de novas práticas além da mera decodificação”.
É preciso que esses sujeitos conheçam a leitura como atividade de formação, de modo a tomar
parte do seu universo cultural, social e político no sentido de saber quem são e o que
gostariam de ser. Isso é condição para a cidadania consciente, pois, do contrário, o mero
exercício da decodificação os conduz a uma cidadania assistida, tutelada, de conformação a
um lugar social que lhes fora previamente destinado pelas elites do país.
83
3.3 A leitura é um sacrifício
Não foram apenas as ideias relacionadas à importância da leitura que os entrevistados
revelaram em suas falas. Manifestaram também uma face hostil. As falas que retratam essa
hostilidade apontam outro aspecto de suas representações sobre leitura, agora apoiadas em
suas práticas culturais e não mais na formação discursiva da sociedade contemporânea.
Vamos buscar aqui as possíveis razões que explicam tal representação, situadas em seu
espaço e tempo.
A maioria deles se referiu à leitura como uma atividade enfadonha, geralmente concluindo
suas falas com a afirmação de que não liam. Essas pessoas rotulam de “chato” aquilo que
pouco conhecem, pois, quando dizem isso, referem-se geralmente à leitura de livros, em que
são parcas as suas experiências. Como não têm o hábito da leitura, ao menos na perspectiva
da formação pessoal e profissional, leem basicamente o que consideram necessário e nessa
categoria se incluem as leituras realizadas no contexto escolar, sobretudo os textos
“objetivos”: “eu não vou poder te ajudar porque eu não leio nada. (...) Para ser sincera, eu só
leio quando vem a prova. Eu não gosto de ler” (Ione); e “eu não tiro muitas xerox para ler.
Leio basicamente o necessário para garantir a prova” (Lúcio). Desprovidos de uma razão
maior que justifique tais leituras, as atividades avaliativas servem de motivação.
Outra questão a ser considerada nessa relação de hostilidade com a leitura é a infância dos
entrevistados. Nesse período de suas vidas, não encontraram um ambiente favorável aos livros
e à leitura no ambiente familiar. Segundo Hébrard (2001, p. 37), “para a sociologia das
práticas culturais, a leitura é uma arte de fazer com que se herda mais do que se aprenda.” O
autor deixa evidente a importância do papel da família no desenvolvimento do hábito da
leitura.
Conforme narrado por quase todos os entrevistados, suas realidades hoje refletem e de certa
forma reproduzem as realidades que viveram na infância:
(...) Eu vim de uma infância muito difícil. Minha mãe não teve grau de
instrução nenhum. Ficou mais complicado por que eu comecei no colégio a
partir dos 11 anos de idade. O pessoal [professores] teve que acelerar porque
84
nessa época a gente já vai perdendo. Você não tem o incentivo da leitura,
tudo isso colaborou para eu hoje eu não leia tanto. (Marcos)
Eu acho que hoje as crianças têm mais livros, tem mais interesse por ser um
livro mais colorido. Mas antes não era assim. Um livro que uma criança que
estudava em escola pública tinha era aquele do colégio; então, você não
queria mais ler em casa... Minha infância era na rua, brincando de correr, de
esconder, inventando um monte de coisas. Não tinha essa coisa de estudar,
não. Eu acho que a culpa é do passado por eu não ler muito bem hoje. (Nair)
O primeiro depoimento pontua a escolarização tardia como entrave à constituição de leitor,
cujos efeitos se prolongaram até a idade adulta. O segundo depoimento faz alusão ao restrito
acesso aos livros, bem como a sua apresentação gráfica, pouco atraente para as crianças. No
entanto, ambos os depoimentos remetem à falta de incentivo na infância em suas constituições
de leitores, porém, em seus relatos, parecem reconhecer a interveniência de fatores sociais
nesse processo de formação, a exemplo da infância difícil e do pouco acesso aos livros.
A leitura é uma atividade cultural, e como tal, precisa ser aprendida. Não basta apenas ensinar
a técnica da alfabetização e espalhar mensagens gráficas pelos espaços sociais. É preciso que
as pessoas despertem para o mundo da leitura em suas múltiplas dimensões e possibilidades e,
para que isso aconteça, há de se ter um contexto que, de alguma forma, fomente e oportunize
esse despertar.
A despeito de vir de uma realidade social distinta no espaço e no tempo, o relato de
Pompougnac (in FRAISSE, 1997) acerca da constituição leitora do autor contemporâneo
François Cavanna indica que não apenas as questões materiais influenciam positivamente na
formação do leitor, do contrário, todos os bem nascidos seriam leitores frequentes: de origem
humilde, filho de pai italiano e mão francesa, viveu num bairro de imigrantes italianos, na
França. Pai analfabeto, foi a mãe que, mulher de pouca escolaridade e afeita à literatura
popular, iniciou o filho nas atividades de leitura quando o fazia ler para ela enquanto lavava as
louças. Esse relato é para mostrar que, para além das condições materiais, é importante na
constituição do leitor um ambiente que, de alguma forma, instigue, provoque, atraia para as
páginas impressas.
O exemplo acima não coloca a responsabilidade pela formação do leitor apenas no ambiente
familiar nem exime o poder público – através das escolas e demais instituições encarregadas
85
da democratização do saber e da cultura – desse compromisso. Igualmente, não desconsidera
as condições materiais de acesso aos livros na constituição do hábito da leitura. Apenas
pontua a importância da convivência com os livros no ambiente familiar, convívio que,
segundo os depoimentos, foi negado à grande maioria dos participantes da pesquisa.
No universo de quinze entrevistados, apenas duas pessoas contaram ter alguém do convívio
que costuma ler livros com alguma frequência. Uma delas, Edgar, não especificou que tipo de
leituras essa pessoa fazia. Disse que lia muitas coisas: “sempre vejo lendo alguma coisa”. A
outra pessoa, Ione, falou: “meu pai é testemunha de Jeová e vive com a Bíblia embaixo do
braço”. Apesar de “viver com a Bíblia debaixo do braço”, o exemplo do pai não mudou os
sentimentos de Ione em relação à leitura, tida por ela como enfadonha, talvez porque as
experiências leitoras do pai passe antes por uma crença religiosa que não faz parte de suas
aspirações, a julgar pela forma com que se referiu ao comportamento do pai.
Os relatos acima apontam a ausência do livro e da leitura nas experiências cotidianas desses
estudantes da EJA. Mais uma vez cabe ressaltar que o convívio com leitores assíduos por si só
não contribui para a constituição de leitores, pois esse percurso vai por caminhos pessoais
(embora emoldurado pelo contexto social), sinuosos e muitas vezes escapam a algumas
teorizações.
Os entrevistados também não encontraram nas atividades de leitura o instrumento para a sua
formação profissional, pois são sujeitos que ingressaram no mercado de trabalho sem terem
concluído a escolarização básica. Seus trabalhos são, em grande maioria, atividades braçais,
que não exigem formação técnica ou acadêmica, tornando-se profissionais antes de
concluírem a escolarização básica. Isso significa que a escolarização não é imprescindível à
profissionalização, que pode acontecer no desenvolvimento do próprio ofício, em cursos
profissionalizantes ou com a observação do labor de alguém próximo.
Assim, a leitura não é uma atividade de formação profissional, ausentando-se da vida desses
sujeitos por meio dessa perspectiva. Realidade esta que é diferente nas classes em que a
escolarização é frequente e regular e precede a formação profissional. Isso não significa que
para as pessoas que realizam a leitura em nome da formação profissional ler não possa ser
considerado enfadonho ou complicado. Tal proposição não conduz a essa conclusão: apenas
aponta para a condição de que a leitura faz parte da vida escolar e profissional das camadas
privilegiadas, o que também lhes confere o direito de afirmar que ler é maçante, embora com
86
mais experiências de leitura no sentido da formação escolar e profissional que as pessoas das
classes modestas.
Para justificar que ler é tedioso, alguns entrevistados também relacionaram a leitura à
ausência de movimento, ou melhor, trata-se de uma atividade que mantém os corpos quietos:
“Sei que é importante [a leitura], mas acho uma chatice ficar parado com o livro na cara.”
(Ione). Segundo Chartier (1998, p.77), “Elas [maneiras de ler] colocam em jogo a relação
entre o corpo e o livro, os possíveis usos da escrita e as categorias intelectuais que asseguram
sua compreensão.” Como já dito, esses sujeitos estão acostumados ao movimento, às
atividades braçais e, muitas vezes, principalmente no caso das mulheres, à jornada dupla de
trabalho, que inclui as atividades profissionais e os afazeres domésticos.
A leitura também passa pela linguagem do corpo: o movimento. Estar diante de um livro que,
a priori, não traz significado algum para pessoas acostumadas ao movimento do corpo gera a
sensação de desconforto, de tempo desperdiçado, contribuindo com o entendimento da leitura
como algo fastidioso, quando esta perspectiva também está associada à ausência de um
significado especial para aquele estado de inércia.
A questão do movimento leva a outro aspecto também abordado pelos partícipes da pesquisa.
A falta de tempo, uma das razões para a pouca leitura. A sociedade moderna que
democratizou a alfabetização e contribuiu com a profusão dos sinais gráficos pelos espaços
sociais, também trouxe a televisão que rouba o espaço da leitura enquanto atividade de lazer e
(in)formação, porque moldou outras formas de esquemas perceptivos, baseados na cultura
oral e visual, que favorece a agregação social ao passo que a leitura, em dias atuais, é uma
atividade solitária, a exigir concentração e ambiente favorável a essa concentração.
Embora tivessem alegado falta de tempo para ler, quando perguntados sobre o que faziam
após cumprir com as atribuições diárias, os entrevistados afirmaram assistir a televisão. E,
ressaltemos, diante da televisão também ficamos parados. Assim, a falta de tempo não é o
principal motivo para a pouca leitura, mas, como afirma Poulain (2004, p. 33),
O tempo de leitura não é um tempo positivo, mas negativo,
contrariamente à organização estruturada da vida ativa [...]; a leitura
implica uma visão passiva, somente lhe é dedicado ‘o tempo morto’, os
restos do tempo ativo [...]; os leitores pouco frequentes não consideram o
ato de ler como uma atividade de acumulação de benefício simbólico ou
87
social, por esta razão não pode ser objeto de uma programação específica
do tempo35
. (tradução nossa).
Assim, a falta de tempo também não responde sozinha pela pouca leitura, mas a ausência de
condições sociais efetivas que levem esses sujeitos a inserirem em suas vidas espaço para a
leitura como um tempo produtivo, seja de formação ou de lazer. Para comparar situações em
tempos históricos distintos, vale citar Lyons (2002), quando chama atenção para o fato de que,
na Idade Média, as pessoas costumavam ler à luz de velas. Um público restrito, certamente,
mas que demonstrava empenho e investimento de vontade para a leitura, talvez porque aquela
fosse uma das poucas formas disponíveis de acesso à informação e entretenimento naqueles
tempos.
Quando se justifica ausência de tempo para a leitura, observa-se também falta de investimento
de vontade. Ou seja, o que está em jogo é a valorização de um capital simbólico ao qual essas
pessoas se mantêm indiferentes. Porém, seria incorreto e até injusto lançar inteiramente sobre
elas a responsabilidade pela escassez de leitura, uma vez que, “se a televisão conseguiu em
tempo relativamente breve o que a indústria do livro não conseguiu até hoje, foi talvez devido
à circunstância de ter chegado cedo a um país onde o livro chegou tarde” (PAES, 1990, p. 36).
A modernidade que trouxe a urgência da leitura na América Latina também trouxe outras
opções de lazer, a exemplo da televisão, que impera entre as práticas culturais dos sujeitos.
Nair reconhece que há falta de vontade na prática da leitura:
Eu prefiro uma música, televisão, alguma coisa que já ‘desce’ pronto (...).
Sou ruim de leitura, leio pouquíssimo. Não é nem tempo, não tenho força de
vontade. Porque tempo a gente arranja, quando gosta. O que me falta mesmo
é força de vontade para sair lendo. Enfio a cara na televisão e pronto.
Marcos vai além, falando de motivação:
Talvez seja isso [hábito da leitura] ou até mesmo uma motivação. Porque o
ser humano é assim: quando você acha algo ou alguém para te motivar, você
vai. E depois que você foi motivado e começou a praticar você não para. Eu
35
El tiempo de lectura no es um tiempo positivo, sino negativo, contrariamente a la organización estructurada de
la vida activa [...]; la lectura implica uma visión passiva, solo se le dedica “el tiempo muerto”, los restos del
tiempo activo[...]; los lectores poco frecuentes no consideran el acto de leer como uma actividade de
acumulación de beneficio simbólico o social, por esta razón no puede ser objeto de uma programación específica
del tiempo.
88
acho que dento da leitura é assim: o difícil é começar; eu acho que a leitura
tem algo a mais: você começa a ler e quer descobrir mais.
Falta de vontade e de motivação faz parte do universo cultural e social que envolve a prática
da leitura na vida desses sujeitos. Por sua vez, são as condições sociais que inibem o que esses
sujeitos chamam de falta de motivação e vontade. Certamente, estão relacionadas a pouca
relevância da leitura em suas vidas e também à parca contribuição que as instituições que
devem fomentar a prática da leitura – escola, família, biblioteca – têm dado a essa tarefa.
Conforme já dito, a leitura não faz parte de seus cotidianos, nem como atividade de formação
nem de lazer. Esse espaço é preenchido com a televisão, cuja programação acontece através
de imagens que se sucedem, criando a sensação de movimento nos telespectadores.
Como disse Nair, a televisão já “desce” pronto, referindo-se certamente à questão de que a
televisão exige do telespectador pouca atividade mental, estando mais próxima de seus
esquemas práticos, acostumados à cultura oral e ao recurso visual, contrariamente à leitura,
que exige do leitor maior esforço para compreensão e concentração.
Quando questionada sobre o que gostava de ver na televisão, Nair respondeu:
Muita coisa, novela principalmente. Adoro! Tem novela que é muito boa,
tem novela que é mais ou menos. Programa de auditório também. Às vezes.
Filme de vez em quando, só se for de amor ou engraçado. Gosto muito de
televisão, mas o meu forte mesmo é a novela.
Vê-se que entre as preferências de Nair – considerando a programação televisiva atual – não
estão os programas que possam contribuir favoravelmente com a formação do cidadão crítico.
Ou seja, as novelas preenchem o tempo livre dessas pessoas porque representam o
entretenimento e estabelecem com elas uma forma de comunicação:
(...) o gênero é uma estratégia de comunicação, ligada profundamente aos
vários universos culturais. Chegam a ser verdadeiros idiomas que, se não
pertencem à sua cultura, ficam de fora. O gênero não é só uma estratégia de
produção, de escritura, é tanto ou mais uma estratégia de leitura. (MARTÍN-
BARBERO, 1995, p.67)
Por outro lado, é o autor que chama a atenção para o fato de que essa realidade não configura
uma carência, mas outra forma de representar-se, quando diz que no consumo dos produtos
televisivos também há produção de sentido, pois o propósito do entretenimento não exime os
leitores ou mesmo os telespectadores de sua construção. Desse modo, deve-se entender o que
89
fazem os meios com as pessoas e o que elas fazem consigo, enquanto “divertem-se e
comovem-se sem se transformar ideologicamente” (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 281).
Levando em conta que a maioria das novelas – gênero televisivo da preferência de Nair – é
exibida à noite, horário em que ela está na escola, perguntamos como faz para assistir, ao que
respondeu: “quando quer dá um jeito”, revelando que a programação televisiva faz parte de
seu cotidiano e figura como um momento de distração. Nesse sentido, há um investimento de
vontade, superando as dificuldades que se apresentam, contrariamente ao que acontece com a
leitura.
Por trás da falta de vontade, motivação e hábito a que se referiram os entrevistados, estão
questões de diversas ordens que obliteram as relações com a leitura e atuam na configuração
de representações da leitura como uma atividade enfadonha. Surpreendentemente, parecem
reconhecer tais questões: papel da escola, formação profissional, ambiente familiar, presença
da televisão, só para citar algumas razões apontadas pelos estudantes. Por outro lado, parecem
desconhecer que por trás desses aspectos está um projeto de sociedade cuidadosamente
articulado ao longo dos séculos para a manutenção do status quo.
A motivação e a força de vontade a que esses sujeitos se referiram consiste em descobrir a
leitura como passaporte para as viagens do pensamento, encontro e desencontro, superadas as
dificuldades sociais e culturais. Vencê-las, pois, é o desafio para perder-se nas linhas do texto
e encontrar-se nas palavras escritas.
Para esses estudantes, ler não representa uma atividade de formação, de inserção ou de
distração, embora destaquem a sua importância para “tudo na vida”, está ausente de seus
universos culturais, de seus projetos e da vida cotidiana, por motivos que, muitas vezes,
fogem do domínio de suas escolhas.
Além do mais, não estão habituados ao exercício da leitura, como se tivessem aprendido a
viver sem ela: “Como eu não tenho o hábito de ler, posso dizer que não faz falta” (Marcos).
Nesse momento, o entrevistado não se refere às muitas mensagens escritas que figuram nos
espaços sociais, pois a leitura daquelas – através dos relatos dos participantes da pesquisa –
sabemos que são relevantes na vida cotidiana contemporânea. Certamente refere-se à leitura
dos livros, sejam estes científicos ou literários, que trazem o registro da herança cultural da
humanidade. Como afirma Martín-Barbero (1995, p. 49), “o livro para eles [classes
90
populares] não tem o valor de prestígio, de status, que tem para nós. É outra relação com o
livro, com a leitura, é outra cultura”. Na verdade, acostumaram-se a viver sem o poder
conscientizador da leitura, ou melhor, não conhecem esse poder, então, será possível sentir
falta de algo que ainda não descobriram?
Se questões históricas contribuem com a formação das representações que aludem às
possibilidades conferidas à leitura, a exemplo do conhecimento e do desenvolvimento pessoal,
também são razões da mesma ordem que fomentam a construção de representações mais
hostis ao ato de ler. Marisa Lajolo vem pontuar as causas históricas para essa relação negativa
com o livro e com a cultura escrita:
A tradição cultural brasileira é uma tradição de exclusão da leitura. A leitura
é algo que no Brasil foi implantado para as classes dominantes. O sistema
escolar brasileiro sempre foi muito precário. E isto faz com que as pessoas
não tenham familiaridade com o livro. Não havendo essa familiaridade, não
vão gostar de ler. Não gostando de ler, não leem. Então, é mais ou menos
normal que seja assim. (LAJOLO, 2010, p. 04)
Entretanto, vale ressaltar que a pouca familiaridade com os livros não é algo específico das
classes mais populares. É um problema da sociedade brasileira, de suas políticas, princípios e
premissas, que ultrapassa os limites das classes sociais.
Paralelamente à tradição de exclusão da leitura, há um fortalecimento da cultura oral
decorrente do desenvolvimento da indústria midiática:
(...) como estamos pensando a reorganização que está acontecendo, quando
nossas maiorias, que quase não lêem, saem da cultural oral e entram na
modernidade por meio da gramática do rádio, do cinema e da televisão?
Enquanto nós estamos pensando na modernidade ligada à ilustração, ao
livro, como o grande meio ilustrado, nossas maiorias não apenas estão sendo
incorporadas à modernidade, estão apropriando-se da modernidade. Posso
explicar o que chamo de apropriar-se da modernidade, pelas maiorias
nacionais, sem passar pelo livro, porque a imensa maioria nunca aprende a
ler ou ler muito pouco. (MARTÍN-BARBERO, 1995, p. 50)
No entanto, é pertinente ressaltar que, quando o autor fala nas maiorias, não está apenas se
referindo aos sujeitos de níveis sociais mais baixos. As classes mais privilegiadas também
conhecem os efeitos dessa tradição cultural de pouca leitura e os efeitos da indústria de
entretenimento. A despeito de tratar de uma realidade social diferente do Brasil, a colocação
de Poulain ilustra que a baixa frequência da atividade de leitura não é apenas questão de
classe social:
91
A preocupação, antes concentrada no público pouco leitor ou não leitor,
se estende agora a um público que antes se encontrava ‘livre de suspeitas’
no que diz respeito a suas práticas de leitura: jovens, estudantes, alunos,
incluindo professores... A inquietude sobre o nível e os modos de leitura
se generaliza a todas as classes sociais...36
(POULAIN, 2004, p. 41,
tradução nossa).
Sem dúvida, a realidade econômica e as redes de sociabilidade fomentadas por aquela
alargam ou estreitam as possibilidades de acesso e utilização do livro, mas a questão vai
muito além desses divisores sociais: passa pela história individual que se mistura à realidade
social e convergem na ausência de políticas públicas de acesso aos diversos bens culturais e
de incentivo à leitura, fazendo com que esta seja considerada “chata”, quando se percebe que
tal declaração se arroga na pouca familiaridade com o ato de ler.
Ao mesmo tempo e modo que os sujeitos da pesquisa consideram a leitura uma atividade
muito importante, a grande maioria dos entrevistados (salvo duas exceções) afirmou não
gostar de ler; lê muito pouco ou não lê “nada”; que ler era “chato” ou complicado: “não é tão
simples não. A leitura é complicadíssima, ainda mais para quem não tem o hábito de ler”
(Marcos).
Diferente das representações que reverberam na sociedade, relacionadas à formação
discursiva acerca da importância da leitura, as concepções da leitura como atividade
enfadonha e complicada constituem as representações sobre leitura associadas às práticas
leitoras dos sujeitos entrevistados:
Jordelet esclarece que “qualificar esse saber [representação] como prático se
refere à experiência a partir da qual ele é produzido, aos quadros e condições
nos quais o é, e sobretudo ao fato de que a representação serve para se agir
sobre o mundo e sobre os outros” (apud SÁ, 1996, p. 33).
É a partir das relações estabelecidas com a matéria escrita, nos contextos comuns a esse
público da EJA, que é fomentada a representação de que a leitura é uma atividade maçante e é
também a partir dessa representação que se baseia a relação com a leitura em momentos
futuros, quando os estudantes não se mostram muito interessados nos livros e outros suportes
da cultura escrita que escapam às suas atividades cotidianas.
36
La preocupación, antes concentrada en el público poco lector o no lector, se extiende ahora a um público que
antes se encontraba “libre de sospechas” en lo que respecta a sus prácticas de lectura: jóvenes, estudiantes,
alumnos, incluso profesores... La inquietud sobre el nível y los modos de lectura se generaliza a todas las capas
sociales...
92
Nesse caso, considerando as práticas de leitura dos sujeitos entrevistados, as representações
produzidas ganham um enfoque hostil porque as relações estabelecidas com a leitura não são
positivadas por seus agentes, ou seja, segundo suas perspectivas, são atividades desenvolvidas
por obrigação, geralmente voltadas para a ocorrência das atividades avaliativas no âmbito da
escola. As leituras realizadas fora da escola não constituem obrigação mas não se inserem no
tempo produtivo das pessoas, porque ocorrem à margem das representações hegemônicas de
leitura e leitor, embora pareçam fazê-las com certo prazer.
Abric (apud SÁ, 1996) sistematiza quatro papeis essenciais às representações sociais: funções
de saber; funções identitárias37
; funções de orientação e funções justificatórias38
. Deteremo-
nos em duas que constituem relevância para o trabalho:
Funções de saber: elas permitem compreender e explicar a realidade. Saber
prático do senso comum, (...) elas permitem aos atores sociais adquirir
conhecimentos e integrá-los a um quadro compreensível e assimilável para
eles, em coerência com seu funcionamento cognitivo e os valores aos quais
aderem. Por outro lado, elas facilitam – e são mesmo condição necessária
para – a comunicação social. Elas definem o quadro de referência comum
que permite a troca social, a transmissão e a difusão desse saber ‘ingênuo’.
(...)
Funções de orientação: elas guiam os comportamentos e as práticas. A
representação intervém diretamente na definição da finalidade da situação,
determinando assim a priori o tipo de relações pertinentes para o sujeito (...).
A representação produz igualmente um sistema de antecipações e de
expectativas, constituindo portanto uma ação sobre a realidade: seleção e
filtragem de informações, interpretações visando tornar essa realidade
conforme à representação (...). Enfim, enquanto (...) refletindo a natureza das
regras e dos laços sociais, a representação é prescritiva de comportamentos
ou de práticas obrigatórias. Ela define o que é lícito, tolerável ou aceitável
em um dado contexto social. (apud SÁ, 1999, p. 44, grifos do autor).
Conforme descrito, as representações que apregoam a importância da leitura se inserem nas
funções de saber porque respondem por um quadro conceitual e simbólico para a leitura,
geralmente relacionado às trocas comunicativas. Entretanto, não podemos deixar de
considerar que essas representações também trazem um caráter prático quando se apóiam nas
relações exigidas pelo mercado de trabalho.
37
Funções identitárias: as representações sociais com essa função permitem a elaboração de uma identidade
social e pessoal amparada num sistema de valores historicamente construído bem como salvaguardar as suas
especificidades e exercer papel importante no controle social exercido pela coletividade sobre cada um de seus
membros, especialmente nos processos de socialização. 38
Funções justificatórias: as representações sociais com esse papel permitem justificar a posteriori as tomadas
de decisão, possibilitando aos sujeitos explicar e justificar suas condutas em uma determinada situação a partir
do sistema de valores convalidado na representação social.
93
As representações que anunciam o aspecto tedioso da leitura se enquadram nas funções de
orientação, pois são construídas nas situações de interação e compõem um sistema de
antecipações e expectativas, orientando a ação sobre a leitura, que, desse modo, acontece de
forma negativada.
Tal como as representações que configuram a leitura como uma atividade maçante, as
representações que relacionam a leitura à decodificação e a ocorrência de provas também se
enquadram nas funções de orientação, pois são construídas a partir das experiências dos
sujeitos da pesquisa com as situações de leitura.
Segundo Abric (1998), em seus estudos sobre as representações sociais, podemos
compreender que esse paradoxo entre as representações sobre leitura, ora enfatizando um
aspecto afirmativo – a importância – outrora um aspecto contraproducente – a hostilidade –
não constitui uma contradição, uma vez que as representações sociais têm dois componentes:
o núcleo central e o núcleo periférico:
É a existência desse duplo sistema que permite compreender uma das
características básicas das representações, que pode parecer contraditória:
elas são simultaneamente estáveis e móveis, rígidas e flexíveis. Estáveis e
rígidas posto que determinadas por um núcleo central profundamente
ancorado no sistema de valores partilhado pelos membros do grupo; móveis
e fluidas, posto que alimentando-se das experiências individuais, elas
integram os dados do vivido e da situação específica, integram a evolução
das relações e das práticas sociais nas quais se inserem os indivíduos ou os
grupos. (ABRIC, 1998, p. 34)
Dessa forma, uma representação não descaracteriza a outra: afirmar que ler é “chato” não
implica considerar que a leitura não seja importante. Se a representação da leitura como algo
relevante se sustenta nos valores partilhados pelos membros da sociedade, constituindo o seu
núcleo central, a representação da leitura como atividade enfadonha se baseia nas relações
estabelecidas com a cultura escrita, e constitui o seu núcleo periférico, donde vale ressaltar,
mais uma vez, que são parcas tais experiências.
Desse modo, se as representações amparadas na formação discursiva da sociedade pouco
contribuem com a constituição do leitor da EJA, as representações fundadas na experiência
dificultam ainda mais essa constituição. Transcender da representação para a ação, em ambos
os casos, é o desafio que se impõe aos discentes da modalidade de educação de jovens e
adultos.
94
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo mundo diz “eu sei ler”; isso é, todo mundo é capaz de
entender, com mais ou menos facilidade, um texto curto,
um artigo de jornal, etc.. Mas daí a utilizar a leitura e a
escrita como meio privilegiado de informação ou diversão...
Jean Foucambert
Na tentativa de compreender a relação estabelecida com a leitura por esse grupo de estudantes
da EJA, analisamos como são realizadas as atividades de leitura no contexto escolar,
compreendendo aquelas não como especificidade da disciplina de Língua Portuguesa, mas do
conjunto de disciplinas que compõem o currículo escolar, como forma de acesso ao
conhecimento sistematizado e atividade de construção do saber.
Analisamos também as práticas leitoras realizadas fora do contexto escolar, que, semelhante
ao que acontece no espaço escolar, também se afastam de uma concepção intelectualizada de
leitura e trazem a tona outros suportes e gêneros nem sempre reconhecidos pela cultura
erudita, mas que fazem parte dos cotidianos desses sujeitos e do modo como interagem com
os textos.
Pelos depoimentos que relatam essas experiências, pudemos perceber e compreender as
representações sobre leitura desse público da EJA. Tais representações, ora se afastam de suas
práticas leitoras, quando revelam que a leitura é a via de acesso ao conhecimento; outrora,
referem-se à leitura como atividade enfadonha e “complicada”, pela pouca familiaridade que
têm com o ato de ler na perspectiva da formação intelectual ou da fruição. Entre uma e outra
representação está a que apresenta a leitura como atividade de decodificação, pois,
basicamente, foi isso que fora ensinado às classes menos favorecidas: decodificar!
A leitura é uma atividade que precisa ser aprendida e, como esses sujeitos não participam de
um contexto social e cultural que valorize a prática da leitura como exercício de formação e
de fruição, é comum que não tenham tanta familiaridade com tais experiências.
Nesse sentido, a epígrafe de Foucambert sintetiza essas últimas considerações, porque
descreve a relação estabelecida com a leitura pelos nossos sujeitos. Eles sabem ler. Não
apenas isso: sabem também que a leitura é a via de acesso ao conhecimento sistematizado e
que ela confere distinção social. Mas, na realidade, com base nas atividades de leitura
efetivamente desenvolvidas, a sua importância está mais relacionada ao seu aspecto
95
pragmático, porque é a partir dessa função que o ato de ler ganha sentido em suas vidas. Não
aprenderam a ler como forma de interrogar a vida, mas como forma de se ajustarem à
sociedade contemporânea.
Ainda que reconheçamos que diferentes motivações se fazem presentes nas práticas de leitura,
assim como as condições sociais que intervêm no processo de constituição do leitor, não
podemos negar que a escola, enquanto instituição encarregada do acesso ao conhecimento
sistematizado, exerce um papel de grande relevância na formação do hábito da leitura.
Por sua vez, a escola que serviu de espaço para essa pesquisa tem cumprido precariamente seu
papel na formação do leitor da EJA, porque pouco tem contribuído para que seus estudantes
conheçam a leitura como forma de compreender e intervir na realidade.
Sabemos que a constituição do leitor é um processo histórico, dinâmico e dialético em que se
trava uma disputa “simbólica” de poder. Desse modo, não gostaria de encerrar esse trabalho
condenando a prática pedagógica desenvolvida na EJA pelo colégio onde foi desenvolvida a
pesquisa, como comumente acontece em tantos trabalhos realizados no ambiente escolar,
principalmente porque a escola reflete as políticas educacionais da sociedade como um todo.
Antes, o objetivo é chamar a atenção para – especialmente nas camadas menos privilegiadas
da sociedade – a importância de uma agência mediadora da leitura que facilite o encontro do
leitor com o texto, não apenas para buscar as respostas para uma atividade avaliativa, mas,
sobretudo, como forma de compreender a vida.
Bem verdade que a escola não é a única instância social mediadora da leitura, mas é a que está
mais próxima da realidade dos sujeitos da EJA, daí, vê-se aumentada a sua importância e
responsabilidade na constituição desse leitor em especial.
Segundo Márcia Abreu, “governos, instituições culturais e escolas têm despendido esforços
para convencer as pessoas de que “é importante ler”, de que “ler é um prazer”, mas elas já
sabem disso” (ABREU, 2003, p.34). Assim, cremos que a reflexão acerca da leitura deve
ganhar outro enfoque: não é mais o de ensinar as pessoas que a ler é importante; mas sim,
fazer com que as pessoas usufruam da leitura enquanto atividade de formação e fruição. Essa
é uma reflexão que cabe à sociedade como um todo, mas especialmente às instituições
responsáveis pelas políticas educacionais e culturais do país.
96
No âmbito educacional, temos que pensar em práticas pedagógicas e condições de trabalho
que insiram a leitura como tempo produtivo na vida dessas pessoas; em que a leitura seja
atividade de formação do sujeito crítico e que o princípio da contextualização do
conhecimento e da aprendizagem significativa não estejam presentes apenas nos documentos,
mas que sejam o ponto de partida para os trabalhos escolares, assim como se espera que as
representações da leitura como via de acesso ao conhecimento orientem a interação com a
cultura escrita. Por sua vez, esse é um trabalho longo, árduo e requer investimento e
compreensão da importância da disseminação da leitura como atividade de formação.
Cremos que a porta já está entreaberta, afinal, aprender é uma capacidade humana e as
pessoas parecem já saber a importância da leitura. Ao mesmo tempo em que não usufruem
dela como atividade de emancipação, demonstram estar cientes de que ela encerra outras
possibilidades: “eu acho que a leitura tem algo a mais; você começa a ler e quer descobrir
mais” (Marcos). No entanto, é necessário que se crie condições favoráveis para tal
empreendimento, de modo a superar os muitos obstáculos que foram construídos ao longo da
história do país.
97
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101
APÊNDICES
APÊNDICE A – Questionário para os alunos da EJA 102
APÊNDICE B – Roteiro de entrevista 103
APÊNDICE C – Questionário para os professores da EJA 104
102
APÊNDICE A – QUESTIONÁRIO PARA OS ALUNOS DA EJA
I DENTIFICAÇÃO PESSOAL E PROFISSIONAL DOS ENTREVISTADOS
1. Nome:_______________________
1. Idade: _______________________
2. Sexo: a. ( ) feminino b. ( ) masculino
3. Estado civil: ___________________
4. Filhos: _______________________
5. Escolaridade anterior:
a) ( ) Ensino fundamental regular b) ( ) Ensino fundamental - EJA
6. Tipo de emprego: a) ( ) Formal b) ( ) Informal c) ( ) Autônomo
7. Profissão: ______________________
8. Carga horária semanal de trabalho: _____________________
103
APÊNDICE B – ROTEIRO PARA ENTREVISTA NARRATIVA
A) O que você costuma ler?
B) Gosta de ler?
C) O que prefere ler?
D) Em quais momentos costuma ler?
E) Quais as motivações para as leituras que realiza?
F) Tem alguma dificuldade com a leitura? (Qual? Por que?)
G) O que pensa da leitura?
H) Qual o papel da leitura no mundo em que vivemos?
I) E na sua vida, qual é esse papel?
J) O que costuma ler na escola?
K) O que gosta de ler na escola?
L) Costuma ler o que os professores solicitam?
M) Qual o material utilizado para as leituras da escola?
N) Como são realizadas as atividades que envolvem a leitura na escola?
O) O que gostaria de ler na escola?
P) De que modo a leitura feita na escola tem ajudado em sua vida?
Q) Quando está num lugar que oferece textos para serem lidos, o que costuma fazer?
R) O que significa aprender a ler?
S) O que é uma leitura agradável? E proveitosa?
104
APÊNDICE C – QUESTIONÁRIO PARA OS PROFESSORES DA EJA
As informações coletadas neste instrumento de pesquisa serão utilizadas com finalidade
estritamente científica. Por gentileza, queira responder às questões abaixo.
Data da aplicação: _____/_____/______
BLOCO I – IDENTIFICAÇÃO PESSOAL E PROFISSIONAL
1. Idade do Professor:
2. Sexo: a. ( ) feminino b. ( ) masculino
3. Turno(s) de trabalho: a. ( )matutino b. ( ) vespertino c. ( ) noturno
6. Rede em que atuação:
a. ( ) Apenas na rede pública.
b. ( ) Nas redes pública e particular.
7. Carga horária de trabalho:
a. ( ) 20 horas semanais b. ( ) 40 horas semanais c. ( ) 60 horas semanais
8. Qual (quais) disciplina(s) leciona nesta escola?_______________________
9. Em qual (quais) série(s) você leciona nesta escola?
a. ( ) Ensino Fundamental I
b.( ) Ensino Fundamental II
c. ( ) Ensino Médio
d. ( ) Educação de Jovens e Adultos
e. ( ) Ensino Técnico e Profissional
f. ( ) Ensino Superior
10. Qual o tempo de atuação na função docente?
a. ( ) de 0 ano a 5 anos b. ( ) de 6 a 10 anos c. ( ) de 11 a 15 anos
d. ( ) 16 a 20 anos e. ( ) superior a 20 anos
11. Há quanto tempo trabalha nesta escola?
a. ( ) de 0 a 5 anos b. ( ) de 6 a 10 anos
c. ( ) de 11 a 15 anos d. ( ) mais de 15 anos
105
BLOCO II - FORMAÇÃO ACADÊMICA
a. Graduação: ___________________________________________________
Ano de conclusão: _______________________________________________
c. Pós-graduação:
( )Especialização ( )Mestrado ( ) Doutorado
Qual: __________________________________________________________
Ano de conclusão: _______________________________________________
BLOCO III - PRÁTICA PEDAGÓGICA
Qual o papel da leitura no espaço da EJA?
Como desenvolve as atividades de leitura em sua disciplina?
Costuma fazer uso da biblioteca? Em que circunstâncias?
Como seleciona os textos ou conteúdos trabalhados na disciplina?
Como você avalia a relação dos alunos com a leitura e com a escola?
Obrigado por colaborar.
106
ANEXOS
ANEXO A – Apontamento 107
ANEXO B – Respostas nos cadernos às questões do livro 108
ANEXO C – Desenho do planisfério a mão livre 109
ANEXO D – Estudo dirigido 110
ANEXO E – Texto produzido a partir de uma música 111
ANEXO F – Pesquisa de literatura 112
ANEXO G – Atividade sobre sinais de pontuação 113