a letra no corpo

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Ótimo texto de Celso Rennó Lima.

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  • A letra no corpo

    Celso Renn Lima

    tu que est escrevendo teu rtulo! Paulo Vilhea, ator.Tatuagem alma! Tatiane, modelo.

    Paredes para se proteger Entrevistada1.Tatuagem no moda, coisa definitiva, Tatuador.2

    Desde Freud sabemos que o sintoma psquico tem, no corpo, seu substrato.

    Nesta vertente ele pde inventar um conceito que acabou sendo seu mito principal:

    a pulso. Conceito limtrofe entre o somtico e o psquico deu uma consistncia

    lgica articulao entre o Real do corpo, o Simblico da palavra e superfcie

    corporal enquanto imagem. Se o sintoma encontra neste campo uma forma de se

    escrever, tambm neste campo que se verifica como, ao longo dos sculos e nas

    mais diversas culturas, o homem buscou escrever a sua letra de gozo.

    E ele o fez utilizando o espao que sempre designou seu, na tentativa de

    vencer as barreiras que a entrada do simblico trouxe na sua relao com a coisa

    corporal. Entre o homem e seu corpo h um jogo, no duplo sentido do termo, nos

    diz Le Breton. De maneira artesanal, milhes de indivduos fazem-se bricoleurs

    inventivos e incansveis de seus corpos.3 Isso traduz, de alguma maneira um

    movimento de tomar posse do corpo atravs da inscrio de uma marca prpria:

    tu que est escrevendo teu rtulo! ou ento uma forma de investir o corpo

    como lugar de prazer e criao: Tatuagem alma!. Mas tudo isso numa busca de

    substituir os limites que o sentido que sustenta o sujeito no mundo, a partir da

    interpretao que ele fez do desejo do Outro, pode ser ampliado ao ultrapassar os

    limites da marca que o simblico inscreveu. Assim ele pode 4fixar o sinal de sua

    diferena: Tatuagem no moda, coisa definitiva. Uma conseqncia que se 1 Neste quadro, duas entrevistadas do os seguintes depoimentos: 1- Fiz tatuagem com 14 anos, deu a maior confuso l em casa, minha me liberal e concordou. 2- Outra, da mesma idade: minha me adorou!2 Notas extradas de um programa de televiso Tribos, GNT, domingo, dia 17/10, s 18:30 hs.3 Le Breton, p. 74 Le Breton, p. 9.

  • tenta criar uma outra pele que acaba funcionando ao faze-lo crer existir Paredes

    para se proteger.

    Riscos, rabiscos, marcas em um corpo que tem a sua origem na incidncia de

    um simblico que se faz suporte, pois sabido que a imagem no pode consistir

    sem esta marca que Lacan, seguindo Freud, chama de trao unrio.

    Em outras palavras podemos dizer que por um lado existe uma

    representao primordial do sujeito que se resume nesta marca. Para alm dela,

    para que o sujeito a se reconhea, ele precisa de uma imagem que esteja

    estruturada por esta marca do trao unrio.

    Esta marca produz, alm disso, um orifcio que acontece como conseqncia

    do processo de nomeao. Estes orifcios corporais, produtos do simblico na

    forma imaginria tm, como efeito, o real em torno do qual a pulso vai fazer seu

    percurso. Um bom exemplo so as orelhas, presena real, s quais responde a voz

    fazendo eco da palavra sobre o corpo.

    O que Lacan vai construir como objeto a o resultado dos buracos

    produzidos pela nomeao no imaginrio do corpo. Eles tm valor de real

    enquanto marca e a letra deriva desta marca. Assim se pode constituir a

    identidade: uma articulao, um n entre a forma, o nome e o real que produto

    da articulao entre a imagem e o sentido.5 Alm disto, importante destacar que

    existe uma afinidade da marca com o prprio corpo, onde se indica que apenas

    pelo gozo, e de modo algum por outras vias, que se estabelece a diviso em que se

    distingue o narcisismo da relao com o objeto6.

    Minha proposta trabalhar estes rabiscos, letras que marcam um corpo, a

    partir da borda, limite que elas podem impor ao gozo. O objetivo , pontualmente,

    tentar apreender como o trao pode nos sinalizar a relao que um determinado

    sujeito tem com o seu corpo enquanto Outro e, desta forma, fornecer subsdios

    para trabalhar este tempo para compreender que a adolescncia.

    5 Brousse, p. 155.6 Lacan, S. VII. P. 47

    2

  • Parto da estrutura da cadeia borromeana, pois ela nos permite trabalhar este

    ponto lacaniano, que o objeto a, enquanto margeado pelo enlaamento dos

    trs registros: Real, Simblico e Imaginrio.

    Na articulao R-S temos J Gozo FlicoNa articulao R-I temos JA Gozo do corpo enquanto Outro.

    Na articulao I-S temos S1-S2 - Gozo do sentido

    Esta a estrutura que faz emergir o sujeito nos distintos pontos onde o gozo

    parcial se manifesta, e sempre com a esperana de poder transpassar os limites

    para alcanar um gozo total, ilusrio e assim capturar o que estaria mais alm

    destes limites, reunindo-os neste condensador de gozo que o objeto a, aqui

    colocado como ponto central.

    3

  • Neste contexto, em que a amarrao borromeana nos permite falar de uma

    estrutura que faz emergir o sujeito, podemos nos perguntar a respeito da potncia

    da letra, da escritura como o que pode sustentar e at mesmo fazer reparos quando

    o pouco de realidade que um sujeito construiu a partir da extrao do objeto a

    no opera. Uma primeira resposta que a escritura funciona como um ponto de

    capitonagem, uma ancoragem que permite ao sujeito manter e, inclusive, ser

    produtivo no lao social.

    Com respeito letra podemos fazer duas consideraes, conforme nos

    sugere Sergio Larriera7: Em primeiro lugar a letra cumpre a funo de transcrever

    sons da lngua (...) entre o que o trao da escritura e o som dos fonemas que

    compem a palavra existe uma ida e vinda da escritura leitura, um crculo da

    letra que vai do trao ao som. (...) Por outro lado a leitura e a escritura podem

    dirigir-se ao sentido, significao ou perda de sentido ou o sem-sentido.

    Lacan, entretanto, desenvolve uma teoria da escritura em seu Seminrio IX, onde

    desenha uma articulao entre o trao unrio e a identificao. Neste momento de

    seu ensino, Lacan vai nos apresentar uma teoria da origem da escritura a partir da

    letra, sem que esta tenha a funo de descrever sons. A letra teria surgido em

    relao a um objeto determinado, no sentido de ser apenas um trao. O som foi

    acrescido simultaneamente a partir da associao com o objeto, ou seja, a partir dos

    efeitos da lngua, com o que se nomeiam os objetos. Desta forma, simultaneamente,

    se nomeia e se rabisca, se marca o objeto sem, contudo, haver uma conexo entre

    eles. Ser somente em um segundo momento, no s depois, que o som vai ser

    associado ao trao.

    Est aqui exposta a razo da potncia da letra, na medida em que ela pode

    estabelecer uma circularidade entre o trao e o som, produzindo efeitos de sentido

    e de sem sentido. nesta circularidade e utilizando-se das bordas que demarcam o

    espao do objeto a que vamos entender o que se pode chamar de gozo parcial da

    letra. Disse bordas e parcial para definir que o gozo absoluto seria a satisfao

    7 Larriera, p. 146 e ss.

    4

  • pulsional sem limites, o que seria a pulso de morte. A letra, pelo contrrio,

    apresenta um efeito de castrao, e assim pode funcionar, tambm, como ndice de

    condensador de gozo. Isto acontece porque a letra produz uma certa mutilao do

    gozo para coloca-lo em funo da letra. A conseqncia disto que a letra no se

    restringe a marcar um nico tipo de gozo, mas opera com vrios tipos de gozo.

    Pode-se propor, seguindo Larriera, trs tipos de gozo:

    1 gozo prprio do corpo da letra;

    2 gozo uniano da letra;

    3 gozo da produo de sentido.

    O primeiro, o gozo prprio do corpo da letra, se evidencia pelo exerccio

    mesmo da escrita, na forma como se trata, p. ex. a caligrafia. Neste tipo de gozo o

    que se destaca o aspecto imaginrio da letra: o fazer letras simplesmente por

    faze-las, letras sem sentido, independente do som a que ela corresponde, ou ao

    sentido que uma seqncia pode produzir. Seria como dizer que o rabisco no corpo

    como arte, pois afinal: Tatuagem alma!

    O segundo, o gozo uniano da letra, refere-se inveno do Um, o famoso

    h o Um (Il y a dUn) que Lacan constri em seu Seminrio XIX8. Para no entrar

    em todas as elaboraes matemticas e filosficas com as quais Lacan sustenta sua

    inveno, vamos resumi-la, para nosso propsito, dizendo que este gozo uniano da

    letra trata da funo da letra como puro trao que borra o objeto. Esta referncia

    vai na direo do que se disse acima quando tratamos da origem da escritura a

    partir do que Lacan elaborou no Seminrio IX, quando o trao tinha a funo

    apenas de negar as particularidades do objeto, reduzindo-o a um trao, uma marca

    na parede da caverna. Este gozo uniano est na corrente do que se prope Joyce,

    p.ex. quando desmonta a lngua em seus escritos, negando-lhe o servio a qualquer

    significao. No se podem compor cadeias, restringindo-se aos puros sons,

    musicalidade, embora isto se aproxime muito da poesia. Este o gozo uniano da

    letra, com o qual se nega a particularidade da comunicao, ou seja, do significante

    8 Lacan, S. XIX. Lio de 15 de maro de 1972,

    5

  • enquanto o que representa um sujeito para outro significante, deixando apenas

    restos pulverizados da lngua. Neste caso, pode-se dizer que assim se constroem

    Paredes para se proteger.

    O terceiro modo, o gozo da produo de sentido, diz respeito a um gozo

    semntico que busca aproximar-se do impossvel do objeto, modela-lo,

    desfrutando do deslizamento metonmico, e do prazer metafrico de produzir

    sentido. Talvez aqui possa ser inscrita a presena do trao unrio como sustentao

    do significante em sua funo de representar um sujeito para outro significante e,

    desta forma dizer que, ao marcar o corpo, traduzindo passagens, lembranas,

    amores de sua vida, vai-se estar escrevendo teu rtulo.

    Seja qual for a causa que mobiliza o rabisco, ele no moda, coisa

    definitiva e se presta ao mal-entendido que faz andar o mundo. graas ao Mal-

    entendido universal que o mundo inteiro se entende. Porque se algum dia, para

    nossa desgraa, nos compreendssemos, jamais chegaramos a um acordo9.

    Referncias Bibliogrficas:

    Baudelaire, Charles. Poesia e Prosa. Trad. Fernando Guerreiro, Editora Nova

    Aguilar S.A. Rio de Janeiro, 1995.

    Brousse, Marie Helene. A propsito del cuerpo en la enseaza de Lacan.

    Seminario de Investigacin: El cuerpo en Psicoanlisis, Escuela Lacaniana de

    Psicoanlisis del Campo Freudiano, Madrid, 2001.

    Lacan, Jacques. Le Seminrie XIX Ou pire... Indito.

    9 Baudelaire, p. 547.

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  • Lacan, Jacques. O Seminrio VII O avesso da psicanlise. Trad. Ari Roitman.

    Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de Janeiro. 1992.

    Larriera, Sergio, El cuerpo en Joyce. Seminario de Investigacin: El cuerpo

    en Psicoanlisis, Escuela Lacaniana de Psicoanlisis del Campo Freudiano, Madrid,

    2001.

    Le Breton, David. Signes didentit Tatouges, piercings et autres marques

    corporalles. ditions Mtaili, Paris, 2002.

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