a literariedade -_jonathan_culler

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1 A literariedade Jonathan Culler. Que é literatura? Esta pergunta, que parece impor-se como a pergunta base dos estudos literários e como o objeto primordial da teoria literária, pode ser compreendida de diferentes maneiras: em primeiro lugar, como uma pergunta sobre a natureza geral da literatura. Que tipo de objeto ou de atividade é a literatura? Para que serve? Por que estudá-la? Qual o seu lugar na diversidade das atividades humanas? Compreendida desta maneira, se trataria de uma pergunta não de definição, mas de caracterização, e isto porque interessaria a todos os que se ocupam da literatura e queriam saber porque se dedicar a esta atividade e não a outra. Mas o que é literatura? Também pode significar o que distingue literatura das outras coisas: o que é que a distingue dos outros textos, das outras representações? O que a distingue dos outros produtos do ser humano ou das outras práticas? Perguntar-se qual é ou quais são a ou as qualidades distintivas da literatura é colocar a pergunta da literariedade: qual é ou quais são os critérios que fazem de algo literatura? Apesar do caráter aparentemente central desta pergunta acerca dos estudos literários, temos de confessar que não se chegou a uma definição central de literariedade. Northrop Frye, em seu livro Anatomia da Crítica, tem razão quando declara que “não dispomos de verdadeiros critérios para distinguir um estrutura verbal literária de uma que não é” (1966,13). Há várias razões para isso. Se refletirmos um momento, nos damos conta de que há dificuldades de princípio assim como dificuldades empíricas. Existe uma imensa variedade de obras literárias e um romance determinado, por exemplo, Em busca do tempo perdido ou Jane Eyre, pode parecer-se mais com uma autobiografia do que com um soneto, ainda que uma poesia lírica de Burns, de Heine ou de Verlaine se pareça mais com uma canção do que uma obra de teatro de Sófocles. Assim, um primeiro problema consistiria em saber se existem propriedades interessantes que estão presentes em todas as obras que denominamos literárias e que as distinguem dos objetos não literários aos quais se parecem. Mas esta pergunta se torna mais difícil em uma perspectiva histórica, por puco que seja. Segundo um célebre perito em poesia, “a fronteira que separa a obra poética d a que não é poética é mais instável que a fronteira dos territórios administrativos da China” (JAKOBSON, 1973, 114). Podemos pensar em alguns poemas modernos que em outras épocas não seriam considerado como literatura. Os talk poems do poeta norte-americano David Antin, por exemplo, manifestam um discurso que não pode ser mais comum, sem rimas nem ritmos, sem figuras especiais, e que possui todas as vacilações e repetições da fala cotidiana. Quando do auge do nouveau roman francês, muitos críticos e leitores achavam que essas construções sem personagens a sem as intrigas tradicionais tampouco podiam ser consideradas literatura. Esses textos não poderiam levar o nome de “romance” no século XIX. Nessas condições, poderíamos chegar à conclusão de que a literatura não é nada coisa além do que aquilo que uma determinada sociedade trata como literatura: quer dizer, um conjunto de textos que os árbitros da cultura professores, escritores, críticos, acadêmicos reconhecem que pertence à literatura. Esta conclusão não é muito satisfatória, mas nos servimos de outras categorias da mesma natureza mediante as quais os critérios de definição e delimitação dos objetos culturais nos remetem às opiniões mutáveis de um grupo, grande ou pequeno. Neste sentido, a literatura seria uma categoria como a das más ervas (Ellis, 1974). As ervas más são um simplesmente um tipo de plantas que uma sociedade não trata cultivar, mas sim de eliminar quando brotam em um lugar em que deve florescer outra coisa. De forma que não haveria qualidades de forma ou de fundo que as más ervas possuiriam. Não há nenhuma essência de “má erva” ou nenhum critério pertinente de delimitação. Aquele que se interessasse por esta categoria, o que teria de fazer não seria buscar a natureza botânica das ervas más, mas levar a cabo investigações históricas, sociológicas e talvez psicológicas, sobre as diferentes espécies de plantas que estão catalogadas com ervas más por grupos ou sociedades diferentes, sem por isso chegar a estar jamais seguro de encontrar um critério geral, nem sequer para uma época determinada. Se a literatura fosse uma categoria desse tipo, a literariedade não seria objeto de análise de um teórico, mas unicamente objeto de uma investigação histórica que pretenderia tornar explícitos os critérios utilizados por diferentes grupos que se interessam pela literatura. Mas em geral, as respostas às perguntas sobre a literariedade não se formulam desta maneira. As próprias dificuldades de definição e de delimitação inspiram e fazem que seja

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Page 1: A literariedade -_jonathan_culler

1 A literariedade

Jonathan Culler.

Que é literatura? Esta pergunta, que parece impor-se como a pergunta base dos estudos literários e como o

objeto primordial da teoria literária, pode ser compreendida de diferentes maneiras: em primeiro lugar, como uma

pergunta sobre a natureza geral da literatura. Que tipo de objeto ou de atividade é a literatura? Para que serve? Por

que estudá-la? Qual o seu lugar na diversidade das atividades humanas? Compreendida desta maneira, se trataria

de uma pergunta não de definição, mas de caracterização, e isto porque interessaria a todos os que se ocupam da

literatura e queriam saber porque se dedicar a esta atividade e não a outra.

Mas o que é literatura? Também pode significar o que distingue literatura das outras coisas: o que é que a

distingue dos outros textos, das outras representações? O que a distingue dos outros produtos do ser humano ou das

outras práticas? Perguntar-se qual é ou quais são a ou as qualidades distintivas da literatura é colocar a pergunta da

literariedade: qual é ou quais são os critérios que fazem de algo literatura?

Apesar do caráter aparentemente central desta pergunta acerca dos estudos literários, temos de confessar

que não se chegou a uma definição central de literariedade.

Northrop Frye, em seu livro Anatomia da Crítica, tem razão quando declara que “não dispomos de

verdadeiros critérios para distinguir um estrutura verbal literária de uma que não é” (1966,13).

Há várias razões para isso. Se refletirmos um momento, nos damos conta de que há dificuldades de

princípio assim como dificuldades empíricas. Existe uma imensa variedade de obras literárias e um romance

determinado, por exemplo, Em busca do tempo perdido ou Jane Eyre, pode parecer-se mais com uma autobiografia

do que com um soneto, ainda que uma poesia lírica de Burns, de Heine ou de Verlaine se pareça mais com uma

canção do que uma obra de teatro de Sófocles. Assim, um primeiro problema consistiria em saber se existem

propriedades interessantes que estão presentes em todas as obras que denominamos literárias e que as distinguem

dos objetos não literários aos quais se parecem. Mas esta pergunta se torna mais difícil em uma perspectiva

histórica, por puco que seja. Segundo um célebre perito em poesia, “a fronteira que separa a obra poética da que

não é poética é mais instável que a fronteira dos territórios administrativos da China” (JAKOBSON, 1973, 114).

Podemos pensar em alguns poemas modernos que em outras épocas não seriam considerado como literatura. Os

talk poems do poeta norte-americano David Antin, por exemplo, manifestam um discurso que não pode ser mais

comum, sem rimas nem ritmos, sem figuras especiais, e que possui todas as vacilações e repetições da fala

cotidiana. Quando do auge do nouveau roman francês, muitos críticos e leitores achavam que essas construções

sem personagens a sem as intrigas tradicionais tampouco podiam ser consideradas literatura. Esses textos não

poderiam levar o nome de “romance” no século XIX.

Nessas condições, poderíamos chegar à conclusão de que a literatura não é nada coisa além do que aquilo

que uma determinada sociedade trata como literatura: quer dizer, um conjunto de textos que os árbitros da cultura –

professores, escritores, críticos, acadêmicos – reconhecem que pertence à literatura. Esta conclusão não é muito

satisfatória, mas nos servimos de outras categorias da mesma natureza mediante as quais os critérios de definição e

delimitação dos objetos culturais nos remetem às opiniões mutáveis de um grupo, grande ou pequeno. Neste

sentido, a literatura seria uma categoria como a das más ervas (Ellis, 1974). As ervas más são um simplesmente um

tipo de plantas que uma sociedade não trata cultivar, mas sim de eliminar quando brotam em um lugar em que

deve florescer outra coisa. De forma que não haveria qualidades de forma ou de fundo que as más ervas

possuiriam. Não há nenhuma essência de “má erva” ou nenhum critério pertinente de delimitação. Aquele que se

interessasse por esta categoria, o que teria de fazer não seria buscar a natureza botânica das ervas más, mas levar a

cabo investigações históricas, sociológicas e talvez psicológicas, sobre as diferentes espécies de plantas que estão

catalogadas com ervas más por grupos ou sociedades diferentes, sem por isso chegar a estar jamais seguro de

encontrar um critério geral, nem sequer para uma época determinada.

Se a literatura fosse uma categoria desse tipo, a literariedade não seria objeto de análise de um teórico, mas

unicamente objeto de uma investigação histórica que pretenderia tornar explícitos os critérios utilizados por

diferentes grupos que se interessam pela literatura. Mas em geral, as respostas às perguntas sobre a literariedade

não se formulam desta maneira. As próprias dificuldades de definição e de delimitação inspiram e fazem que seja

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2 mais interessante a reflexão sobre a natureza da literatura, reflexão esta que é perseguida pelos teóricos, não

porque queira saber que discursos querem excluir ou incluir na literatura, não porque queiram explicitar critérios

que tenham regido as inclusões e exclusões de outras culturas ou momentos históricos, mas porque se perguntam

quais são so aspectos mais importantes da literatura porque querem determinar o que é estudar um texto como parte

integrante da literatura. Em suma, as definições de literariedade não são importantes como critérios para identificar

aquilo que põe em evidência que há literatura [em um texto], mas como instrumentos de orientação teórica e

metodológica que trazem à luz os aspectos fundamentais da literatura e que finalmente orientam os estudos

literários. Por um lado, a literariedade se define em termos de uma relação com uma realidade suposta, como

discurso fictício ou imitação dos atos da linguagem cotidiana. Por outro lado, ao que aponta é para determinadas

propriedades da linguagem. Embora coincidam em alguns pontos, estas duas respostas devem ser analisadas

separadamente e detalhadamente. Haja vista que nem uma nem outra implicam uma resposta historizante, é

necessário proporcionar previamente algumas indicações históricas.

Para explicar o que é literariedade, o que é esta qualidade suscetível de definir o “literário”, teríamos de

compreender o contexto que promoveu a pergunta sobre a natureza da literatura. Obras que denominamos literárias

foram criadas há vinte e cinco séculos, mas a idéia moderna de literatura data de apenas dois séculos. Até o século

XIX, a literatura e termos análogos em outras línguas européias significavam de uma maneira global “os escritos” e

até o “saber livresco”. Nas Briefe die neueste literatur betreffend [Cartas sobre a nova literatura] de Liessinga,

publicadas a partir de 1759, a palavra toma um sentido precocemente moderno que designa a produção literária

contemporânea. É sobretudo o livro de Mme Staël, De la littérature considerée dans ses reports avec les

institutions sociales (1800) [Sobre a literatura considerada em relação às instituições sociais], que marca o

estabelecimento do sentido moderno.

Mas foi somente com a instituição da crítica literária e o estudo profissional da literatura que a pergunta

sobre a especificidade da literatura, e portanto da literariedade, pode se estabelecer. Antes de fins do século XIX, o

estudo da literatura não era uma atividade realizada de maneira independente: estudavam-se os poetas antigos ao

mesmo tempo em que se estudavam os filósofos e os oradores – os escritores de todo tipo – e os escritos que

chamamos literários formavam parte de um todo cultural mais vasto. Foi, pois, com a fundação dos estudos

especificamente literários que o problema do caráter distintivo da literatura se implantou. Temos que considerar

que a pergunta se colocou, não porque se quisesse distinguir o que é literário do que não é, mas porque se queria

promover, mediante a separação do “peculiar” da literatura, métodos de análises que permitiriam fazer avançar a

compreensão deste objeto e deixar de lado os métodos impróprios que não levavam em consideração a natureza

deste objeto.

Assim, foram os formalistas russos, grupo de jovens lingüistas e “poeticistas” de Moscou e Leningrado, no

início do século XX, os que, inicialmente, apontaram a literariedade (literaturnost) e formularam algumas das

grandes linhas do debate sobre esse problema. Roman Jakobson colocava o problema da seguinte maneira: “O

objeto da ciência literária não é a literatura, mas a literariedade, é dizer o que faz de uma determinada obra

literária”(1921,11). Os críticos literários e os historiadores da literatura, postulava [Jakobson], utilizavam a vida

pessoal do autor, a psicologia, a filosofia, em vez de vislumbrar uma ciência literária. “Se os estudos literários

querem se converter em uma ciência – declara Jakobson – têm que reconhecer o procedimento (priem) como o seu

„personagem” único. Depois, a pergunta principal é a da aplicação, a da justificação do procedimento.

Portanto, a questão da literariedade serve para a atrair a atenção para as estruturas que seriam essenciais nas

obras literárias e, em contrapartida, não seriam essenciais em outras obras. Estudar um texto como texto literário

em vez de valer-se dele como documento biográfico e histórico, ou ainda como declaração filosófica é, para o

analista, concentrar sua atenção no uso de algumas estratégias verbais. Os formalistas tinham “como afirmação

fundamental que o objeto da ciência literária deve ser o estudo das particularidades específicas dos objetos

literários que os distinguem de outra narrativa” (Eichenbaun, 1927, 25). O problema essencial consiste em

encontrar particularidades específicas das obras literárias que sejam suficientemente genéricas (gerais) para

manifestar-se na prosa assim como na poesia. Esta literariedade possui três características fundamentais: 1) os

procedimentos do foregrounding (evidentes, de primeiro plano) da própria linguagem; 2) a dependência do texto as

relações, convenções e seus vínculos com outros textos da tradição literária; e 3) a perspectiva da integração

composicional dos elementos e dos materiais utilizados em um texto.

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3 No que se refere ao primeiro ponto, o formalista russo Shklovski declara que “a língua poética difere da

língua prosaica (cotidiana) pelo caráter perceptível [oshchutimost] de sal construção” (Eichenbaum, 1972, 32). Para

o checo Mukarovský, um dos fundadores da escola de Praga que se situa na continuidade do formalismo russo, a

linguagem poética não se define por sua beleza, nem por seu ornamento, nem por sua afetividade, nem por seu

caráter metafórico, nem por sua singularlidade, mas pela sua manifestação (aktualisace, foregrounding) (1977,3,4).

Há várias maneias de tornar perceptível a linguagem de, de modo que o leitor não receba o texto como um simples

meio transparente de comunicar uma mensagem, mas que surja envolvido pela materialidade do significante e

outros aspectos da estrutura verbal. O desvio ou aberração lingüística – a criação de neologismos, as combinações

insólitas de palavras, a eleição de estruturas não gramaticais ou aberrantes no plano semântico – são formas de “pôr

em evidência” que se utiliza, sobretudo, na poesia, mas que se encontram também na prosa, como no início de

Finnegans Wake: “Eins within a space and a wearrywide space it was wohned a Mookse. The onesomeness eas

alltonely, archunsitslike, broadyoval, and a Mookse he would walking go.”1. O fim e o resultado desta forma de

evidenciação é o que os formalistas russos chamam de desfamiliarização [estranhamento] (ostraniere) ou

desautomatização da linguagem, que produz a percepção dos signos enquanto tal. Isto se pode obter mediante o

recurso a diferentes classes de paralelismos e de repetições. No plano do significante, a rima, a assonância e a

aliteração criam o efeito de um objeto muito estruturado como nos versos de Valéry:

Dormeuse, amas doré d’ombres et d’abandons,

Ton repos redoutable est chargé de tels dons… (“La Dormeuse”)

[Dormente cúmulo dourado e sombras e abandonos, / teu repouso terrível está carregado de tuas dádivas...]

Os ritmos, regulares e irregulares, as repetições de categorias sintáticas que criam paralelismo, todo tipo de

estribilhos e de estruturas fechadas, fazem perceptível e linguagem em outros meios. As estruturas do relato

(paralelismos, repetições e detalhes, construção “escalonada”) produzem efeitos herméticos, e se considera que

expressam que se trata de um discurso bem construído em que cada detalhe deve ser levado a sério. Além disso,

uma linguagem figurativa que exige esforço de interpretação serve também para significar a literariedade. Com

efeito, a linguagem literária (obraz) que pretende criar uma nova percepção colocando o objeto em uma

perspectiva insólita, muitas vezes se toma como o elemento mais comum, o mais expandido da literariedade. Até o

romance realista serve-se de imagens novas para mostrar: “os tetos de palha, como gorros enterrados até os

olhos...” (Fleubert, Madame Bovary). Em outro plano a perspectiva realista eleita é o elemento que vai atualizar o

efeito de desfamiliarização. Em Jolstemer, de Tolstoi, o relato é narrado por um cavalo e é por meio dele que os

objetos tornam-se singulares graças a esta percepção inusitada e à tematização da linguagem e da interpretação: o

narrador observa, por exemplo, que as palavras “meu cavalo”, quando se referem a ele, parecem-lhe tão estranhas

como “minha terra”, “meu ar” e “minha água”.

Pôr em evidência os signos lingüísticos e os meios de representação pode fazer da literatura uma crítica dos

modelos semióticos mediante o costume que temos de fazer o mundo inteligível. Assim, pois, o nouveau roman2

1 Finnegans Wake, ou, na tradução brasileira, Finnicius Revém, é o último romance de James Joyce, publicado em 1939, e um dos grandes

marcos da literatura experimental por ser escrito em uma linguagem composta pela fusão de outras palavras, em inglês e outras línguas,

buscando uma multiplicidade de significados.

Referências

Campos, Augusto de; Campos, Haroldo de. (2001) Panorama do Finnegans Wake. São Paulo: Editora Perspectiva. ISBN 85-273-0207-5.

Joyce, James. (1999) Finnegans Wake/Finnicius Revém. Tradução de Donaldo Schüler, 1o volume. Porto Alegre: Ateliê Editorial. ISBN

85-85851-97-X. (N.T)

2 Nouveau roman: Forma experimentalista, característica da produção literária de romancistas franceses da década de 1950, entre os quais

se encontram Nathalie Sarraute e Alain Robbe-Grillet. Os ensaios deste último escritor, reunidos em Pour um Nouveau Roman (1963),

contêm muitos dos fundamentos teóricos desta tendência. De modos vários, os escritores do nouveau roman procuraram eliminar as

personagens, o enredo e a subjectividade inerente ao trabalho do autor, tentando, na sua escrita, apresentar o mundo como uma «coisa em

si mesma», na sua solidez e pureza de conceito. As obras Le Voyeur (1955), de Robbe-Grillet, e Le Planetarium (1959), de Sarraute,

tornaram-se exemplos bem aceites pela crítica desta tendência literária. Outros escritores, como Michel Butor, Claude Ollier e Marguerite

Duras foram também associados ao nouveau roman, também designado por «anti-romance», pela subversão dos processos tradicionais da

narrativa. Em Portugal, aproximaram-se deste tipo de romance escritores como Nuno Bragança e Artur Portela Filho. (N.T)

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4 foi reconhecido por sua crítica aos modelos romanescos tradicionais, tais como os de personagem e os do

princípio de causalidade, mediante os quais interpretamos o mundo quase sem saber, da mesma forma que a poesia

tem tratado muitas vezes de romper as associações que considera “normais”.

Mas há uma ressalva a fazer em relação à literatura como desfamiliarização. No plano lingüístico, de fato, a

literatura destaca-se não só por figuras ou combinações insólitas, mas também pela linguagem “elevada”, que

consiste, em parte, em utilizar fórmulas que perderam sua força inovadora: “the azure vault of heaven” [“a abóbada

azul do firmamento”] percebe-se de imediato como literário porque o emprego do adjetivo ativa no leitor a idéia da

literatura enquanto enunciação elegante e perifrástica de sentimentos elevados. Dizer “quarenta velas” em vez de

“quarenta navios” é uma figura literária convencional. Cada língua possui algumas palavras e convenções que

pertencem a uma linguagem arcaica e elevada e que indicam que têm a ver com a literatura, mesmo quando a

paródia ou destruição desta mesma linguagem seja também discurso literário.

Não obstante, nos expomos a um importante obstáculo quando tratamos de limitar o efeito de literariedade

de um texto à presença de um repertório de procedimentos lingüísticos, pois todos esses elementos e

procedimentos podem ser encontrados em outra parte, em textos não literários. O próprio Jakobson reconhece que

“as aliterações e outros procedimentos eufônicos3 são utilizados... pela linguagem falada no cotidiano. No ônibus

escutam-se brincadeiras baseadas nas mesmas figuras nas quais a poesia mais sutil, e os boatos freqüentemente

estão compostos de acordo com as leis que regem a composição das narrativas curtas...” (1960, 353).

Que quer dizer isto? Esta definição retoma em parte a noção tradicional de que o objeto estético tem um

valor em si, não está submetido a quaisquer fins utilitários, mas possui o que Kant em sua Crítica da razão

denomina a “finalidade sem fim” (Zweckmässigkeit ohne Zweck). Livre das delimitações do discurso cotidiano,

históricos e práticos, a obra literária situa-se de outra maneira (como veremos mais adiante) e pode produzir

ambigüidade, pode constituir-se como estrutura autônoma ligada ao exercício da imaginação do autor e do leitor.

Esta liberdade é que põe em jogo algumas idéias mestras da literariedade: a idéia, por exemplo, de um discurso

polivalente, no qual todos os sentidos de uma palavra (sobretudo as conotações) podem entrar em jogo, ou a de um

discurso portador de um sentido oculto, indireto e complementar, que seria o sentido mais importante.

Assim, pois, contemplamos mais de perto a noção a função poética da linguagem como o tom da linguagem

por sua própria conta. Não se deve compreender tal coisa como uma autonomia, mas como uma relação específica

com outros elementos constituintes da situação lingüística. Se agendo uma entrevista com um amigo, às seis da

tarde, de manhã, em um café, , o que é essencial é que, antes de tudo, a mensagem seja emitida com seriedade por

mim e vá destinada a ele pessoalmente, quer dizer, que não se trate de uma brincadeira, nem de um exemplo

gramatical, que a mensagem não esteja destinada a nada mais, e que a hora e o lugar do encontra estejam fixados

em referência a um contexto geográfico e temporal em que nos situamos. A forma da frase e as palavras específicas

de que me sirvo são menos importantes, como também são as relações com outros convites emitidos por mim e por

outras pessoas antes desta. Em contrapartida, em um poema como “Convidando um amigo para jantar”, do poeta

inglês Ben Johnson, o que se produz é todo o contrário: aqui, o que mais importa é a estrutura das imagens e dos

ritmos no texto; o contexto no qual se insere a mensagem é o contexto de um gênero literário, um certo lirismo do

cotidiano, do que se desprende, no tom e no movimento do poema, uma visão dos valores que sustentam o modo

de vida que se evoca. Shklovski fala da literatura como do “caminho no qual o pé sente a pedra, o caminho que

regressa sobre si mesmo” (1919, 115). A obra na está dirigida a um fim, mas isto não quer dizer que careça de

determinações. Na realidade, a obra se refere a seus próprios meios, ou seja, a evidência da linguagem em um texto

literário é uma maneira de desprendê-lo de outros contextos (do momento e as circunstâncias práticas do

enunciado), de fazer do ato de linguagem que o texto pretendo cumprir (como o convite) um procedimento literário

e situá-lo em um contexto de textos e de procedimentos literários.

Voltamos agora, portanto, às afirmações de Jakobson para quem os estudos literários farão do procedimento

seu personagem único: qualquer discussão que se centra na literariedade não considerará o procedimento como um

meio de expressar uma mensagem qualquer, mas como o protagonista, o sujeito do discurso literário.

Em um determinado nível, o texto nos conta uma aventura puramente literária (formal). Então temos de nos

perguntar: o que faz aqui este encadeamento? Em que se converte o soneto? Em que consistem as combinações de

imagens e quais são os seus efeitos? Em vez de tratar um elemento formal – a forma do soneto, por exemplo –

3 eufônicos: que produzem sons harmoniosos (N.T).

Page 5: A literariedade -_jonathan_culler

5 como um meio para expressar a visão de um amante, pode-se contemplar este conteúdo como o meio de explorar

ou de fazer avançar ou desviar o soneto. Este aspecto da literariedade, que tende a isolar o texto dos contextos

práticos e históricos da sua produção, redefine, por oposição, o contexto como o contexto específico da literatura.

Neste contexto, escrever é inscrever-se na tradição literária, e tem-se que explicar as obras de acordo com esta

única perspectiva.

Toda obra literária se cria em referência e em oposição a um modelo específico que fornecem outras obras

da tradição. As obras estão determinadas por estruturas convencionais – por exemplo, os procedimentos para

estabelecer a intriga. Shkolovski demonstra que “a convencionalidade mora no miolo de toda obra, posto que as

situações estão livres de suas relações cotidianas e se determinam segundo as leis de uma trama artística dada!”

(1911, 118). Como indicamos, a forma da obra está determinada pelas formas literárias preexistentes.

À medida que a literatura, em seus vínculos com outros discursos literários, é um comentário ou uma

reflexão sobre a literatura, isto nos ajuda a ver o papel das estruturas lingüísticas e retóricas que tratamos

anteriormente em nossa análise da literariedade como evidência da linguagem. Constatamos que o foregrounding

[primeiro plano] apenas pode chegar a ser um critério suficiente do literário, visto que há repetições e aberrações

também em outros textos. É, melhor dizendo, o modo de integração destas estruturas – é dizer, o estabelecimento

de uma interdependência funcional e unificadora de acordo com as normas da tradição do contexto literário – o que

caracteriza a literatura. São os três níveis ou os tipos de integração que devemos contemplar.

Em um primeiro nível está a integração das estruturas ou das relações que, em outros discursos não têm

função alguma. Quando marco um encontro, na forma de minha mensagem se pode ignorar uma assonância, uma

aliteração ou um paralelismo. Precisamente porque o texto literário não é um discurso que comunique informações

práticas, mas porque está vinculado a uma situação de comunicação peculiar, na qual reina a convenção da

importância dos detalhes e das estruturas lingüísticas, significa em vários níveis de análise. Em um poema,

qualquer paralelismo coloca a questão das relações semânticas entre seus componentes. Ali onde domina a ficção

poética da linguagem, “a similaridade se converte no procedimento constitutivo da seqüência” (Jakobson, 1960,

358) – procedimento constitutivo no momento para o autor, que escolhe e reúne os elementos em virtude de

qualquer similaridade (fonológica, morfológica, sintática ou semântica) e para o leitor, que deve considerar em que

medida uma espécie de equivalência se transforma em outra. Na “Chanson d’automne”, de Verlaine, as repetições

de sons e de estruturas rítmicas

Produzem aproximações nos níveis semântico e temático:

Les sanglots longs

Des violons

De l’automne

Blessent mon caeur

D’une langueur

Monotone

[Os grandes soluços/ Dos violinos/ Do outono/ Ferem meu coração/ com uma languidez/ Monótona.]

O resultado desta estruturação – efeito propriamente literário – consiste em fazer funcionar a capacidade da

linguagem para produzir pensamento. As comparações criam a idéia, por exemplo, de um outono relacionado com

os violinos, a idéia de uma relação entre a languidez da estação, os soluços e talvez os ventos violentos que podem

gemer como violinos. Em suma, a primeira classe de integração é a produção de efeitos semânticos e temáticos

mediante estruturas formais.

A integração em segundo nível é a da obra de arte completa: a convenção pela qual a obra literária há de ser

um todo orgânico (Ingarden, 1931) e a que, em conseqüência, o sabor da interpretação consista em buscar e

demonstrar essa unidade, é uma das noções fundamentais da literariedade. Os formalistas russos falam da

“dominante” que se apresenta em forma de um elemento ou de uma estrutura unificadora (às vezes uma figura,

como o quiasmo) localizável em todos os níveis (Jakobson, 1973, 145). Mas é pouco freqüente encontrar um só

motivo que encarne a literariedade deste modo. O essencial é que se suponha esta unidade e engendre um esforço

para perceber como um momento ou um elemento do texto pode relacionar-se com outros, transforma-los,

inclusive confrontá-los, e criar uma estrutura de conjunto. Esse aspecto da literatura se põe em evidência de

Page 6: A literariedade -_jonathan_culler

6 maneira surpreendente em textos de aparência fragmentária que exigem um esforço especial do leitor. “Papyrus”,

de Ezra Pound, consiste em três versos fragmentários:

Spring.../ Too long…/ Gongola… [Primavera…/Muito tempo…/Gongola…]

As convenções da literariedade incitam os leitores a conferir uma totalidade formal a este texto e a outorgar

uma significação às “ausências” que se revelam nele. Se tomamos “Gongola” como um nome próprio e se supomos

uma relação entre Gongola e o que fala, as lacunas do poema acabam funcionando como signos da ausência, da

carência, sobretudo na primavera.

Não é que sempre se encontra a unidade que se busca, mas a suposição da unidade faz que apareçam

tensões e até contradições entre os elementos ou entre as estruturas em diferentes níveis. “A linguagem da poesia é

a linguagem do paradoxo”, declara um ilustre representante do New Criticism4 norte-americano (Brooks, 1947,3): a

literatura, mediante o jogo das conotações e a apresentação irônica dos discursos (os discursos do cotidiano e os

discursos da literatura anterior), faz que se sinta até que ponto toda a redução a uma posição ou a uma visão

monológica baseia-se em simplificações. A linguagem da poesia procura os meios para o questionamento de

proposições simplistas. Quando, por exemplo, se trata de definir a relação entre as dimensões constatativas e

performativas do texto – a relação entre o que ele diz e o que ele faz -, é freqüente tropeçar em dificuldades. Um

exemplo célebre: o verso do poeta norte-americano Archibald Macleish, freqüentemente citado pelo New

Criticism, “A poem should not mean, but be” [“Um poema não deveria significar mas ser”], contrapõe ser e

significar e, através disso, significa: faz que se veja que a oposição entre ser e significação é mais complicada do

que se supunha anteriormente.

Mas é a presunção de unidade – este segundo nível de integração – que faz que surjam as dissonâncias e se

produzam muitos efeitos literários deste gênero.

Em um terceiro nível de integração, a obra significa muito em relação ao contexto literário: em sua relação

com os procedimentos e convenções, com os gêneros literários, com os códigos e modelos pelos quais a literatura

permite aos leitores interpretar o mundo. Neste nível, o texto literário oferece sempre um comentário sobre uma

leitura implícita (Iser, 1972) ou pode se interpretado como uma alegoria da leitura, uma reflexão sobre as

dificuldades da interpretação (De Man, 1979). A possibilidade de ler um texto literário como uma reflexão sobre

sua própria natureza e sobre a natureza da literatura, faz da literatura um discurso auto-reflexivo, um discurso que,

implicitamente (por causa de sua situação de comunicação adiada), conta algo interessante sobre sua própria

atividade significativa. Isto não quer dizer que se explique o texto inteiramente ou se domine plenamente: pelo

contrário, as investigações recentes indicam que há sempre aspectos do funcionamento do texto que escapam à

reflexão ou à definição. Neste sentido, o tema profundo da literatura sempre é a impossibilidade da literatura, essa

perseguição do absoluto literário é de certa maneira o fracasso (Blanchot, 1955). Mas para voltar às formas mais

familiares que traduzem a prática mediante a qual os autores buscam renovar e fazer progredir a literatura, esta é

uma crítica da literatura – da noção de literatura que ele herda-, e nisto, a literariedade é um tipo de reflexividade.

O atual debate sobre literariedade oscila entre uma definição das propriedades dos textos (da organização

do texto) e uma definição das convenções e pressupostos com os quais se aborda o texto literário. Estas duas

perspectivas não são de modo algum idênticas, nem tampouco se pode supor que estejam em contradição. Na

realidade, a natureza da linguagem e dos fenômenos culturais exige essa alternância de perspectivas: só em relação

a um conjunto de convenções, em um ou outro nível, em um o outro nível, é como uma série de marcas ou uma

seqüência sonora estão dotadas de propriedades. Não obstante, essa alternância de perspectivas cria problemas para

uma delimitação da literatura. Por uma parte, está claro que a noção de literariedade é uma função das relações

diferenciais do discurso literário e de outros discursos, mais que uma qualidade intrínseca. Se se toma um

fragmento de prosa periodística e se dispõe em uma página em forma de poema, vemos surgir algumas qualidades

que estão no texto, mas que são uma função das novas convenções que se aplicam a ele:

4 O New Criticism é um movimento inicial da teoria literária surgido nos anos 20 nos Estados Unidos. Ele propõe a separação do texto e

do autor a fim de que o texto que seja objeto em si mesmo. Rompe com biografismo da crítica de então, mas rejeita também a análise

literária a partir de contextos sociais ou culturais. Por isso dizemos que se enquadra na Corrente Textualista dos estudos literários.

Um dos conceitos mais conhecidos destes teóricos é o Close Reading, leitura analítica e minuciosa do texto preconizada por Elliot.

Colhida em: http://pt.wikipedia.org/wiki/New_Criticism (N.T) .

Page 7: A literariedade -_jonathan_culler

7

Hier sur la Nationale sept

Une automobile

Roulant à cent à l’heure s’est jeteé

Sur un platane

Ses quatre occupants ont été

Tués. (Genette, 1969, 150)

[Ontem, na estrada nacional sete,/Um automóvel/ A cem por hora lançou-se/Contra um plátano/Seus quatro

ocupantes foram/Mortos.]

Os diversos dados mudam de aspecto. “Ontem” já não se relaciona somente com uma data, mas com todos

os “ontens” e, em conseqüência, conota um acontecimento freqüente, não extraordinário. “Lançou-se” adquire uma

nova força, como se o carro tivesse vontade própria, e se escuta o “esmagamento” do plátano. O estilo de

reportagem e a escassez de detalhes podem inclusive indicar uma atitude de resignação. Em outro nível, se poderia

na eleição do tema um comentário sobre o lirismo hoje, em que a tragédia adquire esta forma banal. Estas

interpretações literárias são o resultado de uma orientação crítica que contempla esse discurso como se fosse

literatura. Precisamente porque isso é possível, é necessário refletir sobre o que é literariedade.

Mas, por outro lado, cada vez que se identifica uma certa literariedade, se constata que estes tipos de

organizações encontram-se em outros discursos, até quando não se trata esse discurso como se fosse literatura.

Jakobson mesmo cita como exemplo da função poética da linguagem um lema norte-americano da campanha

presidencial de Eisenhower em 1954, “I Like Ike” [Eu gosto do Ike]: há aqui uma repetição paronomástica muito

acentuada na qual o sujeito do gosto e o objeto do gosto estão inteiramente envoltos pelo ato de gostar (Like

contém I e Ike), como se fosse inevitável, inscrito até na língua, que “I like Ike” (1960,357). Temos que observar

que em toda uma série de investigações teóricas atuais – em campos tão diferentes como a antropologia,a

psicanálise, a filosofia e a história - têm encontrado uma certa literariedade em fenômenos não literários. Os

estudos de Sigmund Freud e de Jacques Lacan demonstraram, por exemplo, o papel constitutivo no funcionamento

da psique de uma lógica da significação mais diretamente observável na poesia. Jacques Derrida mostra a

centralidade inquestionável da metáfora no discurso filosófico. Claude-Levi Strauss descreveu uma lógica do

concreto que atua nos mitos e no totemismo, lógica que se parece com o jogo de oposições (macho/fêmea,

terrestre/celeste, moreno/loiro, sol/lua) da temática literária. É como se cada procedimento e cada espécie de

estrutura que poderiam parecer essencialmente literários, encontram-se também em outros discursos. Esta

constatação seria desesperante se o objetivo das investigações sobre a natureza da literatura consistisse unicamente

em distinguir a literatura do que não é, mas à medida em que a finalidade consiste em identificar o que é

importante na literatura, a busca da literariedade nos mostra até que ponto a literariedade pode iluminar outros

fenômenos culturais e revelar mecanismos semióticos fundamentais.

A outra concepção da literariedade, representada por velhos lemas como a fórmula de Sir Philip Sydney

segundo a qual “o poeta não afirma nada e portanto não mente”, põem a tônica em uma relação particular do

discurso com a realidade: estas proposições referem-se a pessoas e acontecimentos imaginários mais que

históricos. Este caminho não consegue captar o critério distintivo da literatura haja vista que no discurso há outras

instâncias da ficção. Enunciados que pertencem à lingüística e à filosofia põem em cena personagens fictícios – Le

roi actuel de la France est chauve, John is eager to please [O rei atual da França é calvo. João está ansioso por

agradar] – como fazem toda parábola e todo cenário hipotético. Mas estas observações não minimizam a

importância dos esforços para definir as relações da literatura com a realidade. A ficcionalidade não se limita a

personagens, situações e acontecimentos imaginários. Não é [dizer] unicamente que Anna Karenina, don Quixote e

Hans Castorp não existam; um “eu” de um poema não designa tampouco um indivíduo empírico em um dado

momento, mas um sujeito criado no e pelo poema: “J‟ai plus de souvenirs que si j‟avais mille ans”5, o primeiro

5 SPLEEN

Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.

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8 verso de “Spleen” de Baudelaire, não é uma proposição sobre o Charles Baudelaire que escreveu Flores de Mal.

Neste sentido, a obra literária é um acontecimento semântico: projeta um mundo imaginário, que abarca os

narradores e os leitores implícitos. Mas esta concepção de literatura como ficção não é de todo exata, posto que as

obras literárias também põem em cena realidades históricas e psicológicas – Napoleão, a batalha de Waterloo, as

condições de trabalho dos trabalhadores das minas, o sentimento de ciúmes de um menino mimado etc. Podemos

então dizer que a obra se refere mais a um mundo possível entre vários mundos possíveis do que a um mundo

imaginário. Para expor melhor as implicações desta ficcionalidade, alguns teóricos, em vez de dizerem que a obra

se refere a um mundo de ficção, querem dizer que o ato de referência é em si fictício. Como ato de linguagem, a

obra literária é imitação de um ato de linguagem “sério”, na qual o locutor é responsável pelas proposições que

emite, pelas promessas que fez, etc. Por esta perspectiva, a ficção se entende em relação com o “discurso natural”

ou não fictício o qual imita6. “A ficcionalidade essencial das obras literárias não se há de descobrir na ausência de

realidade dos personagens, objetos e acontecimentos aos quais se referem, mas na realidade do próprio ato de

referência” (Smith, 1978, 11). Assim, em um romance, é o ato de narrar os acontecimentos, de descrever os

personagens e de referir-se aos lugares é que é fictício. O romance representa o ato de alguém que descreve, que

conta feitos etc. A mimese da literatura não consistiria tanto na imitação dos personagens e dos acontecimentos

como na imitação dos discursos “naturais”, dos atos de linguagem “sérios”. Os romances seriam as instâncias

fictícias de diversos tipos de livros - crônicas, diários, memórias, biografias, histórias e até coleções de cartas. O

novelista “faz crer que escreve uma biografia, mas o que faz é fabricar uma” (Smith, 1978, 30). O teórico espanhol

Martinez-Bonati vai mais longe que os signos chamados lingüísticos de uma obra na realidade são imitações

fictícias, e não verdadeiramente lingüísticas, dos signos propriamente lingüísticos (1981,81).

Há romances que efetivamente “nos levam a crer” que são biografias ou coleções de cartas, ou que põem

em cena um personagem que simula contar sua vida, ma na maior parte dos casos o texto literários, a

ficcionalidade não é de modo algum a qualidade essencial que distingue um romance de uma biografia. Smith

entende que ao escrever A Morte de Ivan Ilich Tolstoi “faz crer que escreve uma biografia, mas na verdade fabrica

Uma cômoda imensa atulhada de planos,

Versos, cartas de amor, romances escrituras,

Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,

Guarda menos segredos que o meu coração.

É uma pirâmide, um fantástico porão,

E jazigo não há que mais mortos possua.

- Eu sou um cemitério odiado pela lua,

Onde, como remorsos, vermes atrevidos

Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.

Sou como um camarim onde há rosas fanadas,

Em meio a um turbilhão de modas já passadas,

Onde os tristes pastéis de um Boucher desbotado

Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.

Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,

Quando, sob o rigor das brancas invernias,

O tédio, taciturno exílio da vontade,

Assume as proporções da própria eternidade.

- Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!

Um granito açoitado por ondas de assombro,

A dormir nos confins de um Saara brumoso;

Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,

Esquecida no mapa, e cujo áspero humor

Canta apenas os raios do sol a se pôr.

Fonte: http://geocities.yahoo.com.br/edterranova/baudelapoe76.htm em 16/3/2006. 6 Observamos uma situação peculiar na qual os teóricos da literatura ou da literariedade como ficção definem a literatura como imitação

de um discurso não fictício, e os analistas dos discursos não fictícios (o relato da Historia, por exemplo) mostram que temos de

compreendê-los em relação ao discurso literário. A inteligibilidade da história não dependerá da uma causalidade científica, mas da

maneira que os elementos do relato se sucedem e se vinculam para formar um todo segundo os modelos do gênero literário. Este é outro

exemplo de um campo em que os discursos literários funcionam segundo estruturas e procedimentos que se manifestam mais

explicitamente na literatura.

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9 uma”, embora ao contrário Tolstoi não simula nada. Longe de fabricar um escrito que pareça uma biografia,

Tolstoi vale-se de procedimentos que seriam ilegítimos em uma biografia e que são próprios do romance. Ilich está

escrito em terceira pessoa e, naturalmente vemos o mundo segundo o seu ponto de vista, e seguimos o ponto de

vista do protagonista no momento de sua morte. Käte Hamburger (1968) distingue a literatura dos demais discursos

pela capacidade que ela tem de apresentar um mundo, incluída a experiência anterior, a partir do ponto de vista de

um personagem que está representando em terceira pessoa. O indício desta literariedade é um tipo de frase

propriamente literária, “Morgen war Weihnachten” [Amanhã era natal], na qual os elementos dêiticos (manhã,

ontem, aqui, lá, você) estão definidos em relação a uma subjetividade (do personagem) que está situado no passado

ma no presente da enunciação. Martinez-Bonati refere-se também a modos de discurso da ficção que não são a

imitação de um ato cotidiano supostamente “real” (1981, 104). Assim, há boas razões para supor que a literatura

não é uma imitação fictícia dos atos de linguagem não fictícios e “sérios”, mas um ato de linguagem específico

como, por exemplo, contar uma história.

Por este caminho chegamos a uma conclusão que já foi abordada no princípio de outra forma: que o

discurso literário para possuir condições de enunciação diferentes de outros atos lingüísticos, se relaciona com

condições específicas. Mas quais são essas condições e, em particular, qual é a relação entre estes atos de

linguagem do relato literário e dos relatos não literários? Pergunta essencial para uma literatura vinculada à

ficcionalidade. Mary Louise Pratt, que se opõe à idéia de uma linguagem literária distinta, insiste na importância

que teria contemplar as narrações literárias como membros de uma classe de “textos narrativos de exibição”

[narrative display texts] , classe que abarcaria a todo relato de acontecimentos apresentados como insólitos,

interessantes, destinados a divertir, e nos quais se consideraria que o destinatário reconhece que a pertinência do

relato não está nas informações que este propõe, mas no fato de que seja “contável” [tellable] (1977, 148). Nesta

classe, os relatos literários se beneficiam dos mecanismos da seleção - edição, crítica literária, ensino – que criam,

frente a estes relatos, “um princípio de cooperatividade hiperprotegida” [hyper-protected cooperativa principle] e

permitem ao leitor acreditar que podem resultar dele uma comunicação interessante. Para compreender este

princípio de cooperatividade, temos que notar que se pressupõe uma cooperação que sustenta e faz possível a

comunicação comum: assim, em geral, pressupõe-se que nosso interlocutor se coloca em uma atitude de

cooperação e que sua resposta será pertinente com respeito à questão proposta (se me convidam ao cinema e eu

respondo “faz um bom dia”, o princípio de cooperatividade nos autoriza a encontrar a pertinência dessa resposta).

Em nossas relações cotidianas, às vezes decidimos [coisas] muitos apressadamente que os detalhes e as digressões

do relato que alguém nos faz não são pertinentes e que nosso interlocutor viola o princípio da cooperatividade. Mas

em literatura, este princípio está “hiper-protegido”, no sentido de que pressupomos a pertinência e o valor dos

momentos obscuros, anormais e digressivos. Quando o relato literário parece que não obedece às regras da

comunicação eficaz, é que está a serviço de uma comunicação diferente e indireta.Teríamos que acumular uma

imensa soma de incompreensões e de frustrações frente a um texto para que podermos decidir que não há

solicitação de comunicação cooperativa, pois em literatura até a impertinência dos detalhes pode ser um

componente significativo da arte. Em suma, o que distingue A Morte em Veneza do relato da morte de um homem

mais velho que desejava um rapaz é sobretudo que temos boas razões para supor que o primeiro relato será mais

rico, complexo, “valerá a pena” ouvi-lo ou lê-lo, terá uma unidade e demais propriedades da literariedade das quais

nos ocupamos anteriormente.

Portanto, vemos que uma discussão sobre a ficcionalidade dos atos literários de linguagem nos levam a

essas pressuposições da literariedade que nos fazem buscar e encontrar na obra uma organização complexa e

intensa da linguagem. Isto não quer dizer que tenhamos resolvido o problema da literariedade; não encontramos

um critério distintivo o suficiente que possa definir, o que significa simplesmente que todas as buscas que procura

isolar os elementos e as convenções determinantes para produzir literatura coincidem e propõem juntas meios

importante para os estudos literários.

In ANGENOT, Marc et alii. Teoria Literaria. Madrid: Siglo veintiuno editores: 1993, pp. 36-50.

Tradução: Manoel Francisco Guaranha.