a oralidade das praças, feiras e ruas na poesia popular ... · muitas vezes por um instrumento...
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A Oralidade das Praças, Feiras e Ruas na Poesia Popular de Leandro Gomes de
Barros
Gustavo Henrique Alves de Lima
(Graduação em Letras, UNESP/Assis) 1
Resumo: Nesta comunicação pretendo demonstrar que a poesia satírica do poeta de cordel
Leandro Gomes de Barros, produzida entre 1896 e 1918, caracterizou-se, sobretudo, pela forte
resistência à recém-proclamada República e que a importância do referido poeta no cenário da
poesia popular reside no fato de ter dado voz às comunidades pobres do Nordeste que viviam à
margem do ideal cosmopolita reinante, à mercê das deliberações governamentais, reféns das
mazelas sociais e da indiferença das autoridades políticas e religiosas.
Palavras-chave: Oralidade; Literatura de Cordel; Leandro Gomes de Barros
Abstract: In this article I intend to demonstrate that the satirical poetry of the cordel poet
Leandro Gomes de Barros, produced between 1896 and 1918, was characterized mainly by the
strong resistence to the recently proclaimed republic and that the importance of this poet in the
popular poetry scenario is that he has given voice to the poor northeastern communities that
lived in the margins of the prevailing cosmopolitan ideal, at the mercy of governmental
deliberations, hostage to social illnesses and indifference of political and religious authorities.
Keywords: Orality, cordel literature, Leandro Gomes de Barros.
Ecos da voz na tradição literária
Sabemos que muitas histórias, lendas, contos, que serviram de inspiração à literatura,
passaram primeiro pela experiência da tradição oral, tendo sido passadas de boca em boca ou
da boca ao ouvido. Na literatura clássica podemos citar como exemplo a Odisseia, de Homero,
oriunda também dessa tradição oral. Alguns estudiosos, como Milmam Parry (apud ONG,
1998), por exemplo, tendo se debruçado sobre a Ilíada e a Odisseia, conseguiu demonstrar que
ambas as criações eram essencialmente orais. Inicialmente, suas constatações o levaram a
pensar na hipótese de memorização literal, segundo Walter Ong (1998, p. 70), a memorização
literal, procedimento típico da cultura letrada, “é geralmente feita com base em um texto ao
1 Esta comunicação é parte integrante da minha pesquisa de Iniciação Científica “Luiz Gama e Leandro Gomes de Barros em Perspectiva Dialógica”, financiada pela Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo n. 2016/07235-1.
qual o memorizador retorna tantas vezes quanto necessário para aperfeiçoar e testar o domínio
daquela memorização”. O fato de as histórias homéricas serem rigorosamente métricas levou
Parry (apud ONG, 1998, p.71) a perguntar-se: “Como poderia um cantor apresentar
prontamente uma narrativa que consistisse de milhares de versos hexâmetros dactílicos, a
menos que os tivesse memorizado palavra por palavra”, o que apontaria para uma memorização
literal. Após analisar demoradamente os versos de Homero, Parry (apud ONG, 1998, p. 71)
deduziu “que os hexâmetros não eram simplesmente compostos de unidades vocabulares, mas
de fórmulas, grupos de palavras para lidar com material tradicional, ajustando cada fórmula a
um verso hexâmetro”. Assim, ele concluiu que “o poeta possuía um enorme vocabulário de
frases postas em hexâmetros”. Finalmente, Parry pode observar que, munido deste amplo
vocabulário de fórmulas, o poeta podia produzir versos metrificados exatos em quantidade
infinita, como fazem muitos dos nossos atuais poetas populares e repentistas.
Embora tenha sua importância na difusão da cultura, a linguagem escrita parece não dar
conta de expressar a totalidade de sentido da palavra, pois, em alguns aspectos, não é tão
expressiva quanto a fala, haja vista que, por meio desta, a palavra ganha vida. A palavra
oralizada ultrapassa as camadas sociais, os níveis de desigualdade, atingindo, desse modo, o
universal.
Na Idade Média as histórias épicas da Sérvia eram narradas por cantores cegos, e eram
vistas como uma espécie de moeda de troca, pois na medida em que esses cantores iam de casa
em casa recitando ou cantando seus poemas, pediam esmolas para a sua sobrevivência. Esses
jograis percorriam toda a Europa divulgando histórias e acontecidos, tornando-as cada vez mais
conhecidas, e isso também contribuía para eternizá-las na medida em que permaneciam na
memória de seus ouvintes ou eram retransmitidas de geração em geração.
No Brasil ocorre algo semelhante, sobretudo no Nordeste, onde os sucessores daqueles
cantadores cegos também saem narrando epopeias com o mesmo propósito, o de sobrevivência.
Nos primórdios, iam de porta em porta; frequentavam feiras, praças, fazendas; auxiliados
muitas vezes por um instrumento musical, cantavam a tradição do romanceiro. Esses poemas
épicos serviam também para despertar a consciência crítica do leitor/ouvinte, pois muitas vezes
explicitavam, por meio da sátira, os diversos problemas sociais que ajudavam a compor o
cenário nordestino. Esses poemas que eram cantados, de porta em porta, nas pequenas cidades,
nas fazendas do Nordeste, eram conhecidos como “cordel” pelo público intelectualizado da
época, pelo fato de ser um termo trazido de Portugal, pois na Europa já havia esse tipo de poesia
popular, que recebeu esse nome por serem colocados para venda em cordas ou barbantes. Os
poetas populares nordestinos, em primeira instância, desconheciam esse termo, o qual foi se
disseminando pelo Brasil com o passar dos tempos.
Edilene Matos (2007) fala sobre as mudanças que foram ocorrendo no interior dessa
literatura popular de um ponto de vista diacrônico da história. Num primeiro momento, o poeta
procurava reproduzir em suas breves epopeias (cordéis) um panorama de todo o sofrimento do
povo nordestino, a vida no sertão com todos os problemas existentes; em um segundo momento,
esses temas não foram excluídos, mas ampliados, de modo que o poeta de cordel passou a tratar,
além dos personagens lendários da região, de outras personalidades como escritores,
intelectuais, estadistas etc.
No cordel ocorre uma mistura de linguagens; a oralidade funde-se à escrita, mesclando
esses dois níveis de linguagem. No gênero em questão as marcas da oralidade são bem
marcantes, embora a influência da escrita seja relevante. Apesar de as duas se fundirem, a que
vai preponderar nessa literatura é a linguagem oral. Existe uma grande influência da oralidade
que pode ser observada desde a construção do poema até a sua interpretação. No nível da escrita
temos diversas marcações de oralidade, como repetições, ritmos, rimas, e toda uma
musicalidade. Edilene Matos (2007, p. 151) ressalta que:
No caso da literatura de folhetos, a influência da escrita dá-se de modo parcial,
pois nela as marcas da oralidade se afirmam, e a força da voz viva se impõe
de modo indelével. No espaço cambiante da oralidade/escritura, distingue-se
um movimento textual transgressor, uma vez que o texto escrito transgride o
espaço da escritura, ultrapassa-o, sai dos limites do papel, move-se e aspira a
se fazer voz.
Outro fator que deixa evidente a predominância da oralidade em relação à escrita reside
na maneira de como o cordel deve ser lido, diferenciando-se de uma leitura comum: o recitador
ou o leitor deve lê-lo em voz alta. Os folhetos são declamatórios e performáticos, o poeta utiliza
além da linguagem verbal, a linguagem corporal. Ele interpreta o cordel, de modo que não se
limita a simples leitura, pelo contrário, ele dá vida às palavras presentes no texto escrito.
Segundo Edilene Matos (2007, p. 151), “o poeta de cordel, poeta a meio caminho entre a
oralidade e a escritura, exerce efeito encantatório sobre seus leitores/ouvintes, um encanto
transmitido pela palavra viva, grafada no papel e inscrita na voz.” O poeta trabalha com o
ilusório para que o público recepcione sua poesia da melhor maneira possível; sua performance
faz com que a história ali narrada se torne algo mais atrativo. Desse modo, ocorre uma tentativa
de encantamento, ou podemos dizer, reencantamento do universo nordestino, pois recepcionar
essa leitura é algo que se torna prazeroso para o povo pobre e marginalizado.
Leandro Gomes de Barros e as vozes presentes nos folhetos
O primeiro e mais conceituado poeta de cordel nordestino foi o paraibano Leandro
Gomes de Barros (1865-1918), que teria composto e editado aproximadamente dez mil textos
do romanceiro. Ele não criou uma literatura totalmente nova, mas teve um papel crucial na
difusão dessa poesia já existente, pois teve a ideia de utilizar a tipografia como ferramenta de
divulgação dos seus escritos.
Podemos dizer que o cordel, em geral, alinhava múltiplas vozes, sabemos, portanto, que
essa expressão literária nada mais é do que uma poesia do povo e para o povo. Sendo assim,
pode-se afirmar, indubitavelmente, que as vozes desse povo, bem como a de seus antepassados,
estejam presentes na sua composição como um todo.
Primordialmente, os cordéis eram declamados na praça pública, consistindo em poemas
cantados que passavam de boca em boca. Essas pequenas epopeias eram ouvidas pelas pessoas
nas praças e feiras; do meio dessa gente sairiam os futuros cantadores, que acabavam retomando
os temas cantados, recriando-os e assim, ressignificando-os. É inteligível afirmar que cada
leitor/ouvinte recepcionasse os textos lidos e ouvidos de uma maneira diferente. Os ouvintes,
muitos deles futuros cantadores, ouviam as narrativas expressas nos poemas e as recriavam
conforme a necessidade do público e sua recepção, uma mesma história de cordel podia ganhar
outro teor, dependendo da recepção de cada leitor/ouvinte. Isso, de certo modo, faz com que
algumas histórias reproduzidas em cordel se afastem gradativamente das versões primitivas,
consideradas originais, e, por conseguinte, se renovem e se tornem mais atrativas.
Paul Zumthor (1980), ao tecer algumas considerações sobre o cordel no Brasil, salienta
o fator pelo qual mais chamou sua atenção em relação à composição desses poemas: a
sobrevivência de toda uma tradição do imaginário, preservada na oralidade.
Qualquer que tenha sido a diversidade dos elementos que constituíram, a
literatura de cordel veicula até nós formas de dizer e alguns esquemas
ficcionais velhos de quatro, cinco, seis séculos, que atravessaram quase
intactos essa longa duração. Foi o que, no meu primeiro contato com o Brasil,
atraiu em mim a atenção do medievalista: esses curtos poemas narrativos
apareciam globalmente como um verdadeiro conservatório do imaginário e do
discurso poético-medievais. (ZUMTHOR, 1980, p. 2).
Em relação à composição poética dos folhetos, vale ressaltar que sua composição segue
a tradição poética, obedecendo a padrões de sextilhas, que adotam dois sistemas de rimas, sendo
eles ABCBDB, em que a rima ocorre nos versos 2, 4 e 6, em contraponto ABBAACCDDC,
compondo a rima entre os versos 1, 4 e 5, entre os versos 2 e 3; 6, 7 e 10; 8 e 9. Essa é a forma
mais comum utilizada, mas sabemos que também são usadas outras como septilhas, e raramente
em décimas. Acentuamos que apesar de obedecerem a essas formas, o cordel é totalmente mais
livre em sua composição, diferentemente do que ocorre com outras composições da literatura
erudita. Todo esse esquema de rimas, ao lado da musicalidade, do ritmo, da performance,
contribui para a exposição da oralidade no poema.
Quando se debruça sobre as origens do cordel, Zumthor elabora várias discussões em
relação à sua composição e influências, esboçando um breve panorama da colonização no
Brasil, expondo os principais acontecimentos, e, ao fazer isso, ele observa que:
Até a Segunda Guerra Mundial, o Nordeste conservou em relação ao Brasil
meridional e central, uma personalidade fortemente marcada. A coexistência
dos colonos brancos e dos escravos negros foi aí mais longa e mais estreita
que em nenhuma outra parte do país, multiplicaram-se os intercâmbios
interculturais, o que favoreceu a emergência de formas sincréticas: o canto
coletivo, as cantorias primitivas talvez? A extrema raridade de livros
importados no tempo dos portugueses, o analfabetismo generalizado durante
muito tempo nessas regiões; a dispersão da população através de imensos
espaços cinzentos e quentíssimos onde catástrofes naturais frequentes criaram
durante séculos um desequilíbrio econômico permanente; um modo de vida
patriarcal, reagrupando algumas centenas de indivíduos em torno do Senhor,
nessas fazendas quase autárquicas; donde a estreiteza e a violência do
sentimento de pertencimento, um estado de guerra privada latente que mantém
e de que se alimenta... (ZUMTHOR, 1980, p. 6, grifo do autor).
Quando resgata o contexto da época em que o cordel foi introduzido no Brasil, Zumthor
procura introduzir o leitor naquele cenário, preliminarmente de uma forma muito sutil, com a
finalidade de mostrar como a tradição oral possa ter influenciado a literatura de cordel. A
posteriori, Zumthor (1980, p. 6) denota essa influência em seu texto como algo indubitável.
A existência de tradições orais entre os colonos portugueses que nos séculos
XVI e XVII, povoaram o litoral do Brasil, tanto quanto entre os negros que
foram trazidos da África. Seria inverossímil que, entre essas tradições, não
tivessem sido mantidas algumas formas poéticas oriundas do velho folclore
europeu, quiçá africano, senão da prática letrada.
É concebível a influência da voz dos colonos, tanto europeus como africanos, na
concepção da literatura de cordel, haja vista que marcas de oralidade características tanto de
um como de outro podem ser sentidas nessa poesia. Abaixo mostraremos algumas
características presentes nos folhetos que influenciaram sua produção, não apenas observando
a oralidade, mas também visando os aspectos culturais ideológicos presentes nesses poemas.
Ecos da oralidade africana na literatura de cordel
Assim como Zumthor trouxe à luz as reflexões acerca das influências de diferentes
tradições na produção do cordel, relatando que as tradições orais africanas fizeram parte da sua
formação como poesia popular, é de suma importância salientar como essa tradição oral
existente na áfrica foi fundamental para manter viva a cultura do africano em seu país de origem.
Ao contrário do que alguns poderiam pensar, a tradição oral africana não se
limita, de fato, a contos e lendas, ou mesmo a narrativas míticas e históricas,
e os griots estão longe de ser os únicos conservadores e transmissores
qualificados. A tradição oral é a grande escola da vida, cobrindo e envolvendo
todos os aspectos. Ela é, ao mesmo tempo, religião, conhecimento, ciência da
natureza, iniciação à profissão, história, divertimento e recreação, sendo que
qualquer detalhe pode permitir alcançar a Unidade primordial. Fundada com
base na iniciação e na experiência, ela engaja o homem em sua totalidade, e,
neste sentido, podemos dizer que ela contribuiu para criar um tipo de homem
particular e para moldar a alma africana. (HÁMPÂTE BÂ apud BONVINI,
1980, p. 193).
A tradição oral na África é algo bem mais marcado em relação às culturas dos outros
países, até mesmo pela rara presença de textos escritos, ela serve como base cultural
indissociável, pois, segundo Emilio Bonvini (2001), se essa tradição oral não permanecesse
viva, sua cultura seria apagada com o tempo.
Nas sociedades tradicionais africanas as narrativas orais configuram os pilares
onde se apóiam os valores e as crenças transmitidas pela tradição e,
simultaneamente, previnem as inversões éticas e o desrespeito ao legado
ancestral da cultura. A performance que acompanha essas narrativas responde
pela atualização constante dos ensinamentos, tornando-se exercício vivo e
interativo entre os membros da sociedade. Visual, mímico, imaginativo e
encantatório, o texto oral transmite o legado mais legítimo das culturas locais
através dos exemplos que visam à solidificação dos laços entre os membros
do grupo e garante o discernimento do lugar de pertença do indivíduo, sua
filiação identitária, permitindo-lhe uma visão de si mesmo e do outro comum
mínimo de conflitos. (DUARTE, 2009, p.182).
Quando os negros foram trazidos para o Brasil trouxeram consigo toda sua tradição
oral, fazendo com que essa prática permanecesse viva. O cordel vai se formando no concurso
dessas vozes de culturas miscigenadas, não tendo sido composto apenas por um viés europeu,
mas recebendo forte contribuição da cultura africana. A influência dos povos africanos foi
imprescindível para a formação da cultura brasileira pelo fato de esses mesmos indivíduos
comporem, principalmente no Nordeste, grande parte da população marginalizada.
A oralidade herdada da peleja
Algo muito presente, tanto na cultura africana como no cordel, é a musicalidade,
seguindo um ritmo compassado que se delineia em suas cantigas populares, contos etc. A
exemplo disso temos a “peleja”, também conhecida como “desafio”, contendas verbais
reproduzidas não só entre os cantadores, mas também na literatura de folhetos. Essa prática
musical foi herdada da Europa medieval, visto que é um gênero poético existente a princípio
no continente Europeu, e que foi transplantado para o Nordeste do Brasil. Esse gênero assumia
primordialmente um papel responsivo, de diálogo, colocando em contraste, e se opondo a outro
cordel já existente. Eles eram cantados por cantadores que interpretavam os mesmos, frente a
frente, em uma espécie de disputa, em um festival nomeado cantoria, ocasião em que o ouvinte
podia avaliar as habilidades do cantor, como ocorre até hoje no Nordeste.
Esse gênero poético, além de ser conhecido na Europa, é também praticado por uma
grande parcela dos povos africanos, sua proximidade com o cordel é inegável, nada os separa,
sua composição e regras de versificação são iguais, como observou Zumthor (1980, p. 5,
negritos do autor):
Da cantoria ao folheto, a distância é curta e nenhuma fronteira os separa. As
mesmas regras de versificação se aplicam nas primeiras e na composição dos
segundos. Muitos textos impressos de cordel circularam graças a cantadores, sendo
alguns muito ilustres, como Aderaldo, morto em 1967 em Fortaleza e cujas
Memórias foram publicadas em 1963. Que o poema cantado tenha sido
anteriormente impresso, quiçá escrito a mão, ou que uma de suas variantes tenha
sido posteriormente entregue à escritura; que o autor tenha por objetivo final a leitura
ou a audição: são termos de uma série de equivalências, no âmbito de um amplo
movimento cultural onde a totalidade do sensorium coletivo se engaja e onde a voz,
o ouvido, o olho e a mão participam, em princípio de modo igual, como no Carnaval
ou nos Pastoris de Pernambuco, oriundos das Natividades medievais importadas no
século XVI em Olinda por Frei Gaspar de Santo Antonio...
Muitas das pelejas ouvidas pelos poetas de cordel foram transcritas para o folheto e
muitos folhetos viraram pelejas. Por ser um gênero encontrado tanto na Europa como na África,
é pertinente denotar a presença dessas vozes na literatura de cordel, tanto a voz do europeu pode
estar ali presente, como a voz do africano, na medida em que tomamos ciência que a oralidade
presente no cordel é herdada de diversas etnias, culturas e continentes.
O carnaval medieval nos cordéis: as vozes da praça pública
Procedimentos antigos foram preservados na e pela literatura de folhetos, tanto na forma
quanto no conteúdo. Um desses procedimentos refere-se ao uso de figuras carnavalescas
medievais alojadas nas vozes e visões de mundo aportadas com o colonizador europeu no
Nordeste brasileiro. Na literatura de folhetos é evidente a presença da voz da praça pública,
algo que dialoga com o conceito de praça pública do carnaval medieval estudado por Bakhtin
em sua obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, que pensa nas figuras
carnavalizadas presentes na literatura ao analisar o romance do escritor francês François
Rabelais. Com base no estudo de Gargântua e Pantagruel, o teórico russo elabora o conceito
de carnavalização, que consiste basicamente na transposição das imagens do carnaval para a
literatura e para a arte de modo geral. Para Bakhtin (1981, p. 173):
O carnaval é uma grandiosa cosmovisão universalmente popular dos milênios
passados. Essa cosmovisão, que liberta do medo, aproxima ao máximo o
mundo do homem e o homem do homem (tudo é trazido para a zona de contato
familiar livre), com o seu contentamento com as mudanças e sua alegre
relatividade, opõe-se somente à seriedade oficial unilateral e sombria, gerada
pelo medo, dogmática, hostil aos processos de formação e à mudança,
tendente a absolutizar um dado estado da existência e do sistema social.
Esta concepção de carnaval difere, em alguns aspectos, da concepção moderna de
Carnaval, como a conhecemos no Brasil. No Carnaval da Idade Média o povo participava da
festa ativamente, assumindo o papel de protagonista. No carnaval ocorre a inversão da vida, ou
o mundo às avessas, pois as “verdades” elaboradas pela cultura oficial são contestadas, as
barreiras sociais existentes são quebradas, não existem diferenças, todos no carnaval são iguais,
independente de raça, classe social e idade. O povo, nessa época do ano, sentia-se livre para
falar, se expressar, tinha voz. Tudo era permitido no carnaval, de modo que essa visão utópica
negava todas as verdades impostas pelo estado feudal e pela Igreja.
Na poesia popular de Leandro Gomes de Barros essas figuras do Carnaval medieval são
fortemente exploradas, logicamente adequadas ao seu contexto, à sua realidade e à de sua
comunidade. O poeta utiliza essas figuras para construir sua poesia satírica, explorando as
imagens do cômico-carnavalesco e também o riso para criticar a República e a Igreja. O
processo de destronamento das figuras hierárquicas é um dos componentes das imagens
carnavalizadas e uma leitura rápida da poesia de Leandro nos leva a perceber que ele explora
fartamente tais recursos. Um dos poemas mais famosos e que melhor expressa o emprego dessas
imagens intitula-se “A caganeira”, em que o poeta alega ter-lhe sido aplicado um cristel em
virtude de uma dor de barriga: pretexto para a construção da sátira à sociedade republicana.
Neste poema, o poeta relata ter defecado abundantemente os representantes do estado
republicano e da Igreja, nos seguintes termos:
Porta – bandeiras, caguei então,
Quase mata-me a tal indigestão,
E até da polícia os capitães,
Do exército, padres e capelães,
Oficiais, generais tantos caguei
Que sem beira do cu quase fiquei,
Caguei vigários, párocos e bispos,
Abades, priores e arcebispos,
Frades, caguei carmelitanos,
Capuchinhos da Penha,
[franciscanos,
Beneditinos de S. Bento,
De cada um caguei um cento,
Freiras caguei em quantidade,
Recolhidas irmãs de caridade,
Jesuítas, caguei a bom cagar,
Que sentir o cu já se rebentar,
Engenheiros, ajudantes e fiscais,
Um papa caguei e cardeais,
Duques, marqueses e viscondes.
Barões, comendadores e condes,
O processo de destronamento se faz acompanhar do riso, que ao mesmo tempo
suaviza o tom escatológico da sátira. Nas estrofes anteriores, os representantes do poder são
rebaixados ao nível de “fezes”, e colocados em um mesmo patamar moral, de modo que,
como no carnaval, todas as hierarquias que as separam são eliminadas. O baixo estrato
corpóreo é fortemente explorado, diferentemente da imagem canônica do corpo que se vale
da arte sublime para sua representação. A imagem do corpo no carnaval não é a de um corpo
acabado, perfeito, mas a de um corpo grotesco, inacabado e deformado, como nos faz
entender José Luiz Fiorin (2008, p. 96):
A estatuária grotesca mostra o corpo em sua ambivalência, num processo
internamente contraditório de morte e vida (daí as estátuas das velhas
grávidas que riem). O corpo não é pronto e acabado. Por isso, todas as
escórias de nascimento e de morte são representadas: gravidez, parto,
desagregação corporal, deformidades, monstruosidades. É o corpo
próximo do nascimento e da morte ou em plena satisfação de suas
necessidades naturais (defecação, micção, cópula e assim por diante).
Como o corpo não é demarcado do mundo, enfatizam-se as partes em que
ele é aberto ao exterior. Daí, os orifícios e protuberâncias desmesurados:
boca aberta, falo descomunal, ventre enorme, seios imensos, ânus exposto.
Como é possível perceber, as vozes da praça pública se fazem presentes na poesia de
Leandro, assim como na literatura de folhetos de modo geral. Leandro recupera ecos das
vozes que confabulam na praça pública, as falas fora da etiqueta, adotando, dessa maneira,
uma linguagem chula, muito próxima daquela empregada pelos foliões durante o carnaval.
Partindo da premissa de que o cordel é também um texto discursivo, e que o sujeito
é responsivo, observamos que tudo que está presente no discurso do cordel funciona como
uma espécie de resposta, nesse caso específico, resposta ao estado, à Igreja, veiculando a
voz de uma comunidade, a nordestina, que até bem pouco tempo se acreditava muda, ideia
que a literatura de folhetos satírica vem ajudando a desconstruir. Por meio do folheto, o poeta
se torna representante de sua comunidade, dando-lhe voz, sobretudo para criticar as
deliberações arbitrárias dos homens no poder e a Igreja, que, segundo antropólogos como
Gilberto Freyre, estava preocupada apenas em casar e batizar os filhos dos coronéis,
ignorando totalmente as mazelas físicas e sociais que vitimavam a população pobre desde a
era colonial.
No carnaval medieval, a máscara se revestia de um teor desmascarador, porque
revelava o próprio Eu, escondido durante todo o ano. Muito mais do que esconder, a máscara
desempenhava uma função reveladora no contexto da praça, pois, ao usá-la, as pessoas
podiam ser elas mesmas, sem submeter-se a nenhum tipo de opressão, e sem se preocupar
com a visão do outro sobre si. Poderíamos comparar a máscara carnavalesca com as
metáforas presentes na literatura de folhetos, uma vez que estas assumem o papel de
mascarar e ao mesmo tempo revelar os anseios e problemas do povo nordestino. Por meio
da sátira e do riso dessacralizador, a poesia de cordel vai abrindo clarões na consciência
coletiva; por meio do riso carnavalesco, jocoso, a comunidade do cordel vai fazendo a
desforra dos homens no poder.
A ideia de mundo às avessas, herdada do carnaval, também está presente na poesia
de Leandro: inversões da ordem hegemônica, o questionamento dessa ordem por meio da
crítica etc. Abaixo transcrevemos alguns versos do poema “O mundo às avessas”, de
Leandro, em que a tópica medieval do “mundo de pernas para o ar” foi fartamente
empregada:
Dizem que na Paraíba,
Muitos casos foram dados,
Os criminosos nas vilas,
Teem prendido soldados.
Com pouco selam-se os homens
E cavalos andam montados.
No estado de Alagoas,
Foi claro para se ver,
Segundo diz o jornal
Em que nós devemos crer,
Um menino fez discurso,
Um mês antes de nascer.
Só nos falta ver agora
O crime na inocência,
Boas obras do diabo,
E cego com paciência,
Um padre sem interesse,
Velho sem experiência
Eu vi um velho no sul,
Que estava muito contente,
Porque estava engatinhando
Esperava certamente
Visto estar tudo as avessas
Nascer-lhe ainda algum dente.
Os versos acima são dotados de ambivalências, de uma série de coisas impossíveis
de acontecer no contexto da ordem estabelecida, como nestes casos: “Os criminosos nas
vilas,/Teem prendido soldados”; “Um menino fez discurso,/Um mês antes de nascer”; “Com
pouco selam-se os homens,/E cavalos andam montados.” Ou ainda como nestes versos:
O crime na inocência,
Boas obras do diabo,
E cego com paciência,
Um padre sem interesse,
Velho sem experiência.
Essas figuras servem para afirmar a desordem, questionar a ordem vigente. Tais
imagens são usadas, de certa forma, com o mesmo intuito do carnaval medieval, só que neste
caso para castigar o regime republicano e seus idealizadores.
Diferente da literatura considerada canônica, a literatura de folhetos, em sua
composição escrita, se vale da voz, ou seja, da fiel transcrição da voz, sendo esta a língua
em uso, que se constitui fora de normas impostas pela gramática. Talvez seja por isso que a
literatura de cordel tenha sido sempre considerada uma literatura marginalizada. Podemos
observar isso na transcrição da fala no excerto abaixo, de autoria do cordelista Leandro
Gomes de Barros, retirado do poema intitulado “Vacina para não ter sogra”.
Eu não lhe perguntei:
Como é essa vacina?
Disse o inglês: Oh! Tu pega
Uma sogra bem ferina,
Bota o cuspo della em ti,
Que sogra aí amofina.
Mim garante que botando,
Tu fica logo sem Ella,
Bota pouco, só na unha,
Que a baba é uma mazela,
Com meia hora depois,
A velha estica a canela.
O que se observa também nessas estrofes é a presença da voz do inglês, marcada
principalmente pelo “mim”. O poeta utiliza uma marca na língua para diferenciar as
nacionalidades, também utilizando esse vocábulo como chacota, algo que demonstra o uso de
diversas vozes por meio das quais o poeta vai compondo seu poema e sua crítica. A figura
satirizada do inglês revela um certo desprezo da comunidade nordestina pelo estrangeiro, que
chega no Nordeste no final do século XIX para implantar a ferrovia e explorar a mão de obra
nativa. Não apenas no poema citado, mas também em outros é possível encontrar palavras
escritas pautadas na fala, sem obedecer a uma gramática da língua, algo que confere a
veracidade da voz presente na poesia, palavras como: cuspo, botando, páo (ao invés de “pau”)
etc.
Considerações finais
As reflexões acerca da(s) oralidade(s), presentes nos folhetos de Leandro Gomes de
Barros e da literatura de cordel, são inúmeras, haja vista que tanto sua obra como a de outros
poetas, é muito vasta. A produção poética do poeta paraibano, ainda muito ligada às recitações
orais e às pelejas cantadas, revelam marcas profundas de uma oralidade trazida de continentes
distantes, da Europa e da África, e até mesmo da tradição homérica sedimentada ao longo dos
séculos no berço da arte de narrar. Na poesia de Leandro podemos ouvir sonoridades que
ecoavam nas praças e feiras, nas estações ferroviárias, onde o poeta costumava passar para
vender seus folhetos. Mas, o mais importante é que essas vozes perpassam os níveis sociais,
assumindo seu caráter ideológico, embarcando não só em uma linha sincrônica, mas
permanecendo com marcas já eternizadas oriundas do passado, fazendo com que ocorra embate
de vozes sociais, que vão se revitalizando a cada performance. Tais vozes, colocadas em versos,
ajudam a desconstruir a ideia de que a comunidade nordestina permaneceu calada a vida inteira
diante das decisões arbitrárias dos homens no poder: dos coronéis, dos oligarcas, do clero e
demais autoridades que viessem privá-los de sua liberdade ou cercear seus direitos.
Referências
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François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 5. ed. São Paulo: Annablume/Hucitec, 2002.
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