a origem da vida nos livros didÁticos de biologia. fato ou ficÇÃo?
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A ORIGEM DA VIDA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE BIOLOGIA. FATO OU FICÇÃO?Resumo de artigo apresentado no ENEBIO-2012.TRANSCRIPT
A ORIGEM DA VIDA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE BIOLOGIA.
FATO OU FICÇÃO?
Patrícia Celeste da Silva Delgado (Faculdade de Educação da UFMG – Bolsista CAPES)
Francisco Ângelo Coutinho (Faculdade de Educação da UFMG)
Resumo
Um consenso a que se chegou nos últimos anos na área de educação em ciências é sobre
a importância de ensinar sobre a natureza das ciências. Nesse sentido, o tema origem da
vida deveria ser enfatizado, pois, permite abordar o método histórico da biologia, a
elaboração de hipóteses e construção de modelos. Esse trabalho se propõe a analisar os
textos sobre origem da vida em livros didáticos de Biologia, a partir da obra de Latour e
Woolgar (1997), que enfatiza a importância do texto científico e de seu processo de
construção. Foram analisados livros do Plano Nacional do Livro Didático - 2012,
utilizando, como referência, as categorias de análise de Latour e Woolgar. Resultados
preliminares mostram a predominância de enunciados que enfraquecem as teorias ou o
grau de crença nas mesmas.
Palavras chave: Ensino de Biologia, Natureza das ciências, Origem da Vida.
A ORIGEM DA VIDA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE BIOLOGIA.
FATO OU FICÇÃO?
Patrícia Celeste da Silva Delgado (Faculdade de Educação da UFMG – Bolsista CAPES)
Francisco Ângelo Coutinho (Faculdade de Educação da UFMG)
INTRODUÇÃO
Tornou-se amplamente aceito que a educação científica em ciências naturais não
é somente sobre conteúdos e conceitos específicos (MATTEWS, 2009). Mais do que
isso, uma educação científica deveria “enfatizar elementos sobre a ciência, sua natureza,
seus métodos, bem como seus aspectos sociais, ideológicos e históricos” (HOVARDAS
e KORFIATIS, 2010). Esta linha de raciocínio destaca a necessidade de se explicitar os
elementos que compõem as práticas de produção do conhecimento científico,
entendidos como os que oferecem ideias sobre a estrutura e funcionamento da ciência.
Não existem provas concretas de como a vida começou na Terra. Atualmente,
coexistem diferentes explicações para esse fato, advindas da mitologia, da religião e da
ciência. Entretanto, apesar das inúmeras pesquisas, que muito contribuíram para o
aprendizado sobre a estrutura, funcionamento e evolução da vida, quase nada se sabe
sobre sua origem (SHAPIRO, 2007). Apesar disso, o tema origem da vida deveria ser
privilegiado nos processos de educação em biologia. Isso se justifica pelo fato desse
tema oferecer inúmeras possibilidades de discussão sobre a natureza do conhecimento
científico. Por exemplo, a discussão sobre a construção e o papel de modelos em
explicações científicas. Como não podemos acompanhar os processos que permitiram o
aparecimento da vida na Terra, os cientistas são obrigados a mobilizarem
conhecimentos de diversas áreas – química, física, geologia, astronomia e biologia –
para construírem modelos sobre os possíveis processos e acontecimentos que
permitiram a aparecimento da vida. Além disso, ao se estudar esse tema, o aluno entra
em contato com o método histórico da biologia, o que já introduziria a ideia de evolução
como modificação no tempo.
Fundamentalmente, ainda, são oportunidades que esse tema oferece o de se
discutir problemas fundamentais da biologia e avanços recentes no campo dessa ciência.
Por exemplo, o que separa um sistema de reações química de uma entidade viva? Seria
possível entidades vivas não baseadas na química do carbono? Que condições seriam
necessárias para que a vida evoluísse? A vida é uma consequência da evolução do
universo?
No entanto, apesar da importância desse tema, levantamos a hipótese inicial, que
guia a pesquisa aqui apresentada, que a forma como tem sido abordado nos livros
didáticos não explora estas possibilidades.
REFERENCIAL DE ANÁLISE
Para a realização desse estudo, utilizaremos as categorias de análise do texto
científico presentes nas obras de LATOUR e WOOLGAR (1997) e discussões
propostas por LATOUR (2000). Segundo esses autores, o objetivo do texto científico é
persuadir seus leitores e impedi-los de discordarem de seu conteúdo. Para isso, são
utilizados recursos retóricos que alteram o grau de credibilidade de determinado texto:
“Uma sentença pode ser tomada mais fato ou mais ficção, dependendo
da maneira como está inserida em outras. Por si mesma, uma sentença
não é nem fato nem ficção; torna-se um ou outra mais tarde graças a
outras sentenças (LATOUR, 2000, p. 45).
Entretanto, esse é um processo sutil, construído de tal forma a não deixar
vestígios, de maneira que, ao final do processo, o leitor de um artigo científico torna-se
totalmente convencido da existência dos fatos:
A produção de um artigo depende de diversos procedimentos de
escrita e de leitura, que podem ser resumidos pelo termo inscrição
literária. A função da inscrição literária é conseguir persuadir os
leitores, mas estes só ficam plenamente convencidos quando todas as
fontes de persuasão parecem já ter desaparecido [...] um texto ou um
enunciado podem ser lidos como "contendo" um fato, ou '''estando
submetidos" a um fato, quando os leitores tem a convicção de que não
há debate a esse respeito e de que os processos de inscrição foram
esquecidos (LATOUR e WOOLGAR, 1997, p. 76 - 77).
LATOUR (2000, p. 40) propõe que as sentenças podem conter modalidades, isto
é, um enunciado acerca de outro enunciado. Tais modalidades modificam (ou
qualificam) outra sentença, podendo ser positivas ou negativas. “As modalidades positivas
afastam o enunciado de suas condições de produção” e as modalidades negativas “levam um
enunciado para a direção de suas condições de produção, e explicam com detalhes porque ele é
forte ou fraco”.
O uso de marcadores de atenuação é um fenômeno linguístico, tradicionalmente
abordados pela retórica e pela estilística. Marcadores de incerteza são muito utilizados no
discurso para demonstrar dúvida ou redução do grau de comprometimento do locutor
enunciador com o seu enunciado (ROSA, 1992). Em seu trabalho, LATOUR e WOOLGAR
(1997) chamam a atenção para o uso desses marcadores gramaticais.
as modalidades gramaticais ("talvez", "definitivamente estabelecidos",
"improvável", "não confirmado") agem muitas vezes como se
estivessem conferindo um preço aos enunciados, ou, para utilizar uma
analogia mecânica, agem como a expressão do peso de um enunciado.
Ao acrescentar ou suprimir níveis de documentos, os pesquisadores
aumentam ou diminuem o alcance de um enunciado, e seu peso
modifica-se proporcionalmente (LATOUR e WOOLGAR, 1997, p.
87).
Segundo LATOUR (2000), “dependendo das modalidades, as pessoas são
levadas a trilhar caminhos completamente diferentes” (p. 46), podendo acreditar ou
descartar uma informação. Entretanto, se uma sentença não contém nenhum vestígio de
sua autoria, interpretação, tempo e espaço – é um fato, uma caixa preta. A controvérsia
foi encerrada.
Nesse trabalho, utilizaremos as categorias de análise propostas por LATOUR e
WOOLGAR (1997, p. 75-83) em que os enunciados são classificados em 5 tipos os
quais parecem formar um continuum que vai da especulação (tipo 1) ao fato
estabelecido (tipo 5):
Tipo 1 - Enunciado que contém conjecturas ou especulações. Geralmente
utilizado no final de artigos ou em conversas particulares.
Tipo 2 – Enunciado que aproxima-se mais de afirmações do que de fatos aceitos.
Usado quando se trata de hipóteses possíveis, que devem ser testadas. Segundo o autor,
“são aqueles que contém modalidades nas quais se insiste sobre a
generalidade dos dados de que se dispõe (ou não ). As relações de
base são em seguida embutidas em apelos ao "que é geralmente
conhecido", ou "ao que se pode razoavelmente pensar que acontece".
Tipo 3 - Esse tipo de enunciado contém expressões da forma: "A tem certa
relação com B" ou “contém enunciados sobre outros enunciados”. Assemelham-se mais
a afirmações do que a fatos aceitos.
Tipo 4 – Correspondem a fatos aceitos, mas, o texto é claramente explicado,
sendo comum o seu uso em textos destinados aos estudantes. Segundo os autores,
“Embora a relação apresentada no enunciado não esteja sob questão, ela é claramente
expressa, ao contrário dos enunciados do tipo 5” (LATOUR e WOOLGAR (1997, p.
78).
Tipo 5 – Referem-se a fatos aceitos, ao conhecimento tácito. Nesse caso não são
utilizadas modalidades nem há explicações complementares.
Os autores acrescentam, ainda um tipo 6, que “que corresponde aos fatos de tal
modo tomados tácitos, de tal modo incorporados na prática, que nem chegam a
constituir objeto de uma formulação explicita” (LATOUR e WOOLGAR, 1997, p. 81).
METODOLOGIA
Foi realizada uma análise preliminar de oito livros de biologia (Tabela 1) do
Programa Nacional do Livro Didático – PNLD - 2012 (GUIA DE LIVROS
DIDÁTICOS, 2011). Em cada livro, foi avaliado o conteúdo relacionado ao tema
origem da vida.
Não foram considerados alguns temas recorrentes nos capítulos sobre origem da
vida, mas, que não são diretamente relacionados ao assunto, por exemplo: Origem do
universo; origem do sistema solar; surgimento de células eucarióticas, dentre outros.
Relatos históricos também foram desconsiderados.
A unidade de análise foi o período. De acordo com BRAGA e MORTIMER
(2004, p. 59) apesar de Bakhtin considerar o enunciado como a unidade de comunicação
verbal, é difícil estabelecer os limites de enunciados em um texto escrito. Dessa forma,
usar o período, delimitado empiricamente de maneira inequívoca, torna a análise mais
operacional. Dessa forma, os períodos, do texto analisado, foram classificados em um
dos cinco tipos propostos por (LATOUR e WOOLGAR, 1997).
Tabela 1: Livros didáticos de biologia, recomendados pelo PNLD 2012, analisados no presente estudo.
NÚMERO AUTORES LIVRO VOLUME EDITORA
I José Mariano Amabis, Gilberto Rodrigues Martho
Biologia 1 Moderna
II Nélio Bizzo
Novas Bases da Biologia
1 Ática
III André Catani et al.
Ser Protagonista Biologia.
1 Edições SM
IV Fernando Gewandsnajder, Sérgio de Vasconcellos Linhares
Biologia Hoje 1 Ática
V Mendonça e Lawrence
Biologia para a nova geração.
1 Nova Geração
VI Antônio Pezzi, Demétrio Gowdak, Neide Simões Mattos
BIOLOGIA 3 FTD
VII Sérgio Rosso, e Sônia
Lopes BIO 1 Saraiva
VIII César da Silva Junior,
Sezar Sasson, Nelson Caldini Júnior
Biologia 1 1 Saraiva
RESULTADOS PRELIMINARES
Após uma análise preliminar dos livros verificou-se os enunciados do tipo 1, 3 e
5 são mais raros e que há uma predominância de enunciados do tipo 2 e 4. Discutiremos
brevemente nesse trabalho os resultados referentes aos enunciados 1, 4 e 2,
respectivamente.
Enunciados do tipo 1, usados para tratar de conjecturas ou especulações, foram
encontrados em apenas dois livros e estavam relacionados à discussão do Criacionismo,
uma visão não científica da origem da vida. Os exemplos abaixo ilustram o uso desse
tipo de enunciado:
Essa é a mais antiga de todas as ideias sobre a origem da vida e tem
um forte cunho religioso, sendo até hoje aceita por fiéis de várias
religiões. Essa corrente afirma que os seres vivos foram criados
individualmente por uma divindade (ROSSO e LOPES, 2010, p. 192).
Essa ideia afirma que a vida foi criada por uma força superior, por
uma divindade. Evidentemente, isso não pode ser verificado de forma
científica, pois a Ciência não tem os “instrumentos” para testar essa
ideia (SILVA JUNIOR, SASSON E CALDINI JÚNIOR, 2010 p.
303).
Os enunciados do Tipo 4, referem-se a fatos aceitos, expostos com clareza, e são
frequentemente utilizados em livros didáticos, por serem mais explicativos como
convém a um texto destinado a estudantes (LATOUR e WOOLGAR, 1997). Nos livros
de biologia analisados, esse tipo de enunciado apareceu em trechos que se referiam a
fatos, mas que não estavam diretamente relacionados à origem da vida. Nos exemplos
abaixo, nota-se que a ausência da camada de ozônio na atmosfera primitiva é tratada
como um fato:
É importante lembrar que na atmosfera daquela época, diferentemente
do que ocorre hoje, não havia o escudo de ozônio (O3) para barrar as
radiações, especialmente a ultravioleta, que, assim, atingiam a Terra
com grande intensidade (ROSSO e LOPES, 2010, p. 194).
É claro que qualquer ser vivo é muitíssimo mais complexo que um
coacervado, simples agregado de proteínas e outras moléculas
orgânicas (SILVA JUNIOR, SASSON, CALDINI JÚNIOR, 2010).
Nos exemplos abaixo, que tratam especificamente da origem dos seres vivos, os
enunciados são classificados como do tipo 2, em que o grau de crença do enunciado é
reduzido, pelo uso de um modalizador de atenuação (em itálico):
Os seres vivos devem ter surgido da matéria inanimada, com
associações entre as moléculas, formando substâncias cada vez mais
complexas, que acabaram se organizando de modo que formaram os
primeiros organismos (ROSSO e LOPES, 2010, p. 194, grifo nosso).
No entanto, após centenas de milhões de anos, alguns coacervados –
hoje também chamados de protobiontes – podem ter atingido o grau
de complexidade necessário para ter as propriedades de um ser vivo
muito simples (SILVA JUNIOR, SASSON, CALDINI JÚNIOR,
2010, grifo nosso).
Enunciados desse tipo, cujas modalizações os torna mais semelhantes a
hipóteses possíveis do que a fatos aceitos (LATOUR e WOOLGAR, 1997) foram
predominantes na maioria dos livros analisados e estavam relacionados à discussão das
teorias sobre a origem da vida. Também verificou-se uma grande frequência do uso do
tempo verbal Futuro do Pretérito nos enunciados do tipo 2. Dentre outros usos, o
Pretérito do Futuro é utilizado para falar sobre fato incerto como hipóteses ou
suposições ou para atenuar expressões, funcionando, assim, como um marcador de
atenuação. Isso mostra uma tendência ao uso de enunciados que enfraquecem as teorias
sobre a origem da vida ou o grau de crença nas mesmas.
Ao utilizar classificação proposta por LATOUR e WOOLGAR (1997),
evidencia-se que esse tema tem sido tratado, nos livros didáticos, como uma hipótese
possível que deve ser testada e não um fato. Isso está de acordo com a questão levantada
por LATOUR (2000) sobre os diferentes usos que se faz da literatura para tratar de fatos
tácitos ou de temas controversos:
“um fato é algo que é retirado do centro das controvérsias e
coletivamente estabilizado quando a atividade dos textos ulteriores
não consiste apenas em crítica ou deformação, mas também em
ratificação (LATOUR, 2000, p. 72).
Esses resultados preliminares sinalizam para a necessidade de mudanças na
abordagem do tema origem da vida que, apesar de ser um assunto controverso, tem
grande potencial para se explorar outras importantes questões da Biologia.
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