a origem do rio grande do sul

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Rio Grande do Sul

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Esta revista conta a história do Rio Grande do Sul

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Rio Grande do Sul

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Sumário Informações Gerais .................................................................................................................................................. 3 A origem do Rio Grande do Sul – I ......................................................................................................................... 5 A origem do Rio Grande do Sul – II ....................................................................................................................... 6 Invasões Castelhanas ............................................................................................................................................... 6 A Origem da Palavra Gaúcho .................................................................................................................................. 7 Província isolada ..................................................................................................................................................... 7 As Charqueadas ....................................................................................................................................................... 8 Descontentamento com o controle alfandegário ...................................................................................................... 8 Dinheiro gaúcho pagava até dívidas com os ingleses .............................................................................................. 9 Na fronteira, reinava um clima de tensão ................................................................................................................ 9 A origem do nome Farrapos .................................................................................................................................. 10 Como se vivia no Rio Grande na época da Revolução .......................................................................................... 11 Bento Gonçalves da Silva ...................................................................................................................................... 12 Italianos foram atraídos pelos ideais farroupilhas ................................................................................................. 13 A epopéia dos lanchões pelos campos gaúchos ..................................................................................................... 14 Bento Manoel Ribeiro, uma figura muito polêmica .............................................................................................. 14 Duque de Caxias .................................................................................................................................................... 15 As condições da pacificação .................................................................................................................................. 16 Os primórdios ........................................................................................................................................................ 16 Início dos Sete Povos das Missões ........................................................................................................................ 17 O início do aproveitamento do couro .................................................................................................................... 17 O povoamento e a integração do Rio Grande do Sul à economia do Brasil .......................................................... 18 As faces do Rio Grande ......................................................................................................................................... 18 Início do povoamento ............................................................................................................................................ 21 O início da indústria do charque ............................................................................................................................ 21 A produção artesanal de artefatos de couro para o autoconsumo e para o mercado .............................................. 22 Portugueses ............................................................................................................................................................ 22 Espanhóis .............................................................................................................................................................. 23 Alemães ................................................................................................................................................................. 25 Italianos ................................................................................................................................................................. 29 Negros ................................................................................................................................................................... 31 Judeus .................................................................................................................................................................... 33 Japoneses ............................................................................................................................................................... 34 A Proclamação da República e o Rio Grande do Sul ............................................................................................ 35 Maragatos e pica-paus ........................................................................................................................................... 36 Os Muckers - Um episódio de fanatismo religioso................................................................................................ 36 Síntese da história do Rio Grande do Sul .............................................................................................................. 37 Origem dos Termos Chimangos e Maragatos ....................................................................................................... 41 Revolução Farroupilha .......................................................................................................................................... 42 A Guerra do Paraguai ............................................................................................................................................ 44 O Rio Grande Castilhista (1891-1930) .................................................................................................................. 48 O Divisor de Águas (1930-1945) .......................................................................................................................... 49 Do Rio Grande Populista ao Rio Grande Autoritário (1945-1985) ....................................................................... 50 Renúncia e Legalidade - 12 dias que abalaram o Brasil ........................................................................................ 51 O movimento pela legalidade ................................................................................................................................ 53

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Informações Gerais Posicionamento estratégico no sul do continente Pelo Tratado de Tordesilhas de 1493 - que dividira o mundo de então, recém aclarado pelas viagens de Colombo -, a linha que separava os dois reinos católicos da Península Ibérica passava, aqui no Brasil, na sua extensão meridional, ao largo do litoral do atual Estado de Santa Catarina. Teoricamente, portanto, a área que viria fazer parte do Rio Grande do Sul, pertencia pois aos espanhóis. Portugal, por sua vez, sempre procurou estabelecer como sua real fronteira, como limite extremo do seu império na América do Sul, não uma linha abstrata, mas sim a margem esquerda do Rio da Prata. Todos os conflitos entre o Estado do Brasil e seus vizinhos do Prata foram decorrentes desse antagonismo sobre quais eram os verdadeiros marcos de cada um: o traço determinado pelo Tratado de Tordesilhas ou a curva do Rio da Prata. O Rio Grande do Sul foi, desde o seu principio, ao contrário dos demais estados brasileiros, uma “fronteira quente”, isto é, local de disputa militar e diplomática , foco de tensão armada que se estendeu dos finais do século XVII até o século XIX. Limite extremo da colonização portuguesa no Sul do continente latino-americano, o Rio Grande do Sul, desde o início de sua ocupação, desempenhou duas funções vitais. A primeira foi a de ser um local estratégico, cuja manutenção era vital para garantir a presença portuguesa junto às áreas de colonização espanhola. A segunda foi a de servir como fornecedor de alimentos e outros bens para as demais regiões do país. Situado fora do eixo de comércio do Brasil com Portugal, coube ao Rio Grande o papel vital de fornecer o gado que sustentou o ciclo do ouro em Minas Gerais e o do charque, que era o alimento básico dos escravos e da população de baixa renda das cidades brasileiras. A partir do início do século XX, coube também ao Rio Grande a função de "celeiro do país", responsável por uma fatia significativa da produção agrícola nacional. A história da ocupação e do povoamento do Estado do Rio Grande do Sul, o mais meridional do Brasil, está demarcada pela questão fronteiriça. Região limite entre dois Impérios - o Espanhol, com sede em Buenos Aires, no Rio da Prata, e o Português, com o Rio de Janeiro - , o chamado Continente de São Pedro do Rio Grande do Sul, desde o século XVII, foi permanentemente disputada pelas duas coroas ibéricas. Ter-se tornado zona de guerra, de combate intermitente por quase dois séculos, marcou a vida política da mais conturbada das províncias do Imperio do Brasil, criando-se uma cultura muito própria, assinalada por guerras civis violentas - tal como a Revolução Farroupilha, de 1835, a mais longa da nossa história - desconhecidas no restante do Brasil. A história do Rio Grande do Sul começou bem antes da efetiva ocupação de seu território pelos portugueses. Inicialmente, o Estado era uma "terra de ninguém", de difícil acesso e muito pouco povoada. Vagavam por suas pradarias os índios guaranis, charruas e tapes e, vez por outra, aventureiros que penetravam em seu território em busca de índios para apresar e escravizar. Esse quadro foi modificado com a chegada dos padres jesuítas que, no início do século XVII, na região formada pelos atuais estados do Rio Grande do Sul e Paraná, e pela Argentina e Paraguai, fundaram as Missões jesuíticas. Nelas se reuniam, em torno de pequenos grupos de religiosos, grandes levas de índios guaranis convertidos. Procurando garantir a alimentação desses índios, os jesuítas introduziram o gado em suas reduções. O clima e a vegetação propícios fizeram com que o gado se multiplicasse. Com isso, a região passou a oferecer dois atrativos para os que apresavam índios: além deles, havia também o gado. Até 1640 várias expedições vindas de São Paulo estiveram no Rio Grande, para capturar índios e gado, provocando o desmantelamento das Missões existentes no atual Estado. Nessa época os índios, comandados pelos jesuítas, derrotaram os chamados bandeirantes e as missões tiveram mais de cem anos de paz. Ao final do século XVII, devido aos constantes conflitos de fronteira entre Portugal e Espanha, os jesuítas resolveram concentrar a população indígena convertida em uma área que consideravam mais segura, e escolheram a zona localizada na região noroeste do Rio Grande do Sul. Foram criados os "Sete Povos das Missões". Mas a prosperidade desses povos, que funcionavam independentemente das coroas portuguesa e espanhola, terminou por decretar o seu fim. Em 1750, um tratado firmado entre os dois países estabeleceu que a região das Missões passaria à posse de Portugal, em troca da Colônia de Sacramento, que havia sido fundada pelos portugueses em 1680 nas margens do Rio da Prata, defronte a Buenos Aires. Embora tenha havido resistência por parte de padres e índios, as Missões foram desmanteladas. Mas deixaram um legado que, por muito tempo, seria a base da economia do Rio Grande do Sul: os grandes rebanhos de bovinos e cavalos, criados soltos pelas pradarias. Esses rebanhos atrairiam os colonizadores portugueses, que passaram a se instalar na região de forma sistemática a partir de 1726. A descoberta das minas de ouro em Minas Gerais iria, posteriormente, criar uma grande demanda pelo gado da região, e consolidou a ocupação do

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território. Nessa época, a célula básica da comunidade gaúcha eram as estâncias, sempre com grandes extensões, onde o gado era criado. A constância dos embates fez com que a exigência da polítização da população fosse sempre muito intensa, acirrando ainda mais os enfrentamentos partidários, criando uma cultura belicosa, de hostilidade entre os partidos, quase sempre polarizados em duas correntes poucas dispostas à conciliação, gerando um clima propício à guerra civil.

Em 1740 chegou à região do atual Rio Grande do Sul o primeiro grupo organizado de povoadores. Vindos da ilha dos Açores, contavam com o apoio oficial do governo, que pretendia que se instalassem na vasta área onde anteriormente estavam situadas as Missões. Mas as dificuldades de transporte fizeram com que terminassem por se fixar na área onde hoje está Porto Alegre, a capital do Estado. Praticando a agricultura de pequena propriedade, não encontraram, em um território em que cada estância funcionava como uma célula independente, mercado para seus produtos, e terminaram por se integrar à economia voltada para a pecuária. Posteriormente, em 1780, um fato iria reforçar ainda mais o caráter rural da vida do atual Estado. Foi criada a primeira charqueada comercial em Pelotas. Aos poucos, o charque se tornou o principal produto de exportação do Rio Grande, sendo enviado para as demais regiões do país. Essa situação começou a ser modificada no início do século XIX. A estrutura econômica do Brasil de então se baseava na exportação dos produtos agrícolas plantados em grandes propriedades por trabalhadores escravos. O Rio Grande fornecia o charque para esses trabalhadores, e também para os moradores pobres das grandes cidades. Mas, a partir da década de vinte do século passado, o governo brasileiro resolveu estimular a vinda de imigrantes europeus, para formar uma camada social de homens livres que tivessem habilitação profissional, e pudessem oferecer ao país os produtos que até então tinham que ser importados, ou que eram produzidos em escala mínima. Isto significa que o governo queria trazer pequenos produtores - para fornecer alimentos para as cidades - e artesãos. A idéia, apoiada por alguns, era rejeitada pelos senhores de escravos, que temiam que os trabalhadores livres "fossem um mau exemplo", demonstrando que o trabalho pago produzia mais e melhor que o escravo. Moradores de regiões mais ao norte do país, os grandes senhores de escravos conseguiram impedir que os imigrantes fossem destinados às suas regiões. Por isto, o governo terminou por levá-los para o Rio Grande do Sul, que estava situado à margem do grande eixo econômico, no centro do país.

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Os primeiros imigrantes que chegaram foram os alemães, em 1824. Eles foram assentados em glebas de terra situadas nas proximidades da capital gaúcha. E, em pouco tempo, começaram a mudar o perfil da economia do atual Estado. Primeiramente, introduziram o artesanato em uma escala que, até então, nunca fora praticada. Depois, estabeleceram laços comerciais com seus países de origem, que terminaram por beneficiar o Rio Grande. Pela primeira vez havia, no país, uma região em que predominavam os homens livres, que viviam de seu trabalho, e não da exploração do trabalho alheio. As levas de imigrantes se sucederam, e aos poucos transformaram o perfil do Rio Grande. Trouxeram a agricultura de pequena propriedade e o artesanato. Através dessas atividades, consolidaram um mercado interno e desenvolveram a camada média da população. E, embora o poder político ainda fosse detido pelos grandes senhores das estâncias e charqueadas, o poder econômico dos imigrantes foi, aos poucos, se consolidando. Durante a fase inicial da colonização alemã, um fato iria abalar a política e a economia do Rio Grande, causando reflexos políticos no centro do país e até nos países vizinhos. Foi a Revolução Farroupilha, que durou de 1835 a 1845. Deflagrada pelos gaúchos, que não aceitavam a situação de subordinação a que o governo central submetia o Rio Grande, a Revolução tinha a intenção de proclamar uma república independente, e levava, para o Sul do continente, os ideais de liberdade em voga então na Europa. Também chamada de Guerra dos Farrapos, a revolução só foi contida com muita dificuldade pelo governo central, que precisou enviar grande parte do exército brasileiro para o Rio Grande do Sul. Ao final, ciente das dificuldades que a guerra estava causando - e preocupado com a eventualidade de uma guerra iminente com a Argentina -, o governo brasileiro terminou por estabelecer um acordo com os revoltosos, garantindo que nenhum deles seria punido e que os oficiais que participaram da revolução seriam reintegrados ao Exército Brasileiro. A revolução significou uma pausa de dez anos no desenvolvimento econômico do Rio Grande. Mas, por outro lado, garantiu ao Estado um grau de respeitabilidade política que nunca antes fora alcançado por qualquer outro Estado além de Rio de Janeiro e São Paulo, onde se encontravam as forças econômicas que governavam o país. Em 1875 começaram a chegar ao Rio Grande imigrantes italianos. Como as terras da proximidade da capital já estavam ocupadas pelos alemães, foram encaminhados para a região da Serra. E, aos poucos, se desenvolveu o eixo básico de industrialização do Estado, que liga a capital a Caxias do Sul - esta a cidade-pólo da região de imigração italiana -, passando pelo Vale do Sinos, a região de colonização alemã. Esse eixo tornou-se vital para o desenvolvimento industrial gaúcho (como é chamado o povo do Rio Grande do Sul). Durante este século, a situação econômica do Estado passou por uma progressiva transformação. No campo, a diversificação agrícola avançou. Novos cultivos, como o arroz, foram introduzidos. Na década de setenta, o boom da soja levou um produto agrícola gaúcho ao mercado internacional. Paralelamente, a pecuária perdeu a condição de atividade primária única. A atividade industrial, nascida do artesanato dos imigrantes, se desenvolveu em um ritmo crescente. O eixo Porto Alegre - Caxias se transformou na área de maior concentração industrial do Estado. No Vale do Sinos, cresceu a indústria calçadista, que se tornou uma das locomotivas da exportação da indústria brasileira de manufaturados. Essa condição foi mantida até o início da década de 90, quando a produção calçadista chinesa começou a ameaçar a indústria calçadista nacional. Em Caxias do Sul, os setores mecânico e metalúrgico ganharam relevância. A região de colonização italiana se transformou numa grande fornecedora de peças e componentes para a indústria automobilística nacional. O crescimento industrial não significou, contudo, o abandono da agricultura. O Rio Grande do Sul continua sendo considerado, juntamente com o Paraná, como o Estado celeiro do país, responsável pela maior produção nacional de grãos. De um Estado que se encontrava à margem da economia brasileira, o Rio Grande se transformou em uma das bases dessa economia. (Lígia Gomes Carneiro) A origem do Rio Grande do Sul – I O Rio Grande do Sul é, certamente, o Estado brasileiro cuja história apresenta maior número de episódios de lutas e guerras. E essa característica esteve presente desde os primórdios de sua ocupação. Para entender o porque desse aspecto, é preciso recuar bastante no tempo, até o final do século XVII. Por que é então que começam a surgir os “esboços” do que será o nosso Estado. Até então, essa região era uma espécie de terra de ninguém, uma área de dono indefinido, que ficava entre as possessões portuguesas e espanholas. Ambas as Coroas adotavam uma política expansionista, e

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estavam interessadas em ocupar o máximo possível de território. Portanto, mais cedo ou mais tarde, terminaria havendo um confronto na área do Rio Grande do Sul, na medida em que, se uma das potências decidisse fundar um núcleo de colonização, a outra imediatamente reagiria. E foi o que aconteceu. Dom Pedro II de Portugal, que foi regente de 1668 a 1683 e rei de 1683 a 1706, decidiu que o Império Português deveria ocupar a margem esquerda do rio da Prata. E doou, em 1674, duas capitanias “nas terras que estão sem donatários” ao longo da costa e até a “boca do Rio da Prata”. Essa doação foi confirmada dois anos depois por uma Bula Papal, que considerava que o Bispado do Rio de Janeiro tinha como limite no sul o rio da Prata. O passo seguinte na consolidação da presença lusa no sul do continente foi a fundação da Colônia de Sacramento. Essa colônia tinha o objetivo de afirmar, definitivamente, a presença portuguesa na área, e servir como um ponto de apoio militar. A colônia foi fundada em primeiro de janeiro de 1680, nas margens do Rio da Prata. Era uma espécie de ponta de lança da presença portuguesa — estava muito afastada de qualquer outro ponto de colonização lusa no Brasil. Por isso, foi facilmente capturada pelos espanhóis em agosto do mesmo ano. A partir de então, portugueses e espanhóis se revezaram constantemente na posse da Colônia de Sacramento. Os tratados, que determinam sua posse, se sucedem. E, enquanto isso, os portugueses começam a estabelecer um novo ponto de apoio na ocupação do território do sul: Laguna, no atual Estado de Santa Catarina, que foi fundada em 1684 para servir como apoio para Sacramento. E é a partir de Laguna que vai se iniciar realmente a ocupação do território gaúcho.

A origem do Rio Grande do Sul – II Embora a fundação de Laguna em 1684 seja o marco do início da ocupação sistemática das terras do sul do continente, isso não significa que, antes mesmo disso, elas não atraíssem os portugueses por razões não só políticas (a ocupação da maior faixa possível de território por Portugal), mas também econômicas. Afinal, o continente do Rio Grande era rico em gado, uma herança que os jesuítas das Missões haviam deixado: ao serem desfeitas as comunidades missioneiras, o gado vacum ficou solto no território gaúcho, e se multiplicou, formando vastos rebanhos. E era em busca desses grandes rebanhos — e também de índios para escravizar — que vinham grupos de exploradores das áreas mais povoadas localizadas mais ao Norte, como São Vicente (São Paulo). Esses grupos levavam consigo as informações sobre a abundância de gado no chamado Continente de São Pedro. E essas informações terminaram por fazer com que o então governador geral, Rodrigo de César Meneses, escrevesse para o rei português, afirmando que era preciso “mandar povoar toda aquela fronteira, de cuja capacidade pela abundância e a fartura se pode fazer uma das maiores povoações da América”. A abundância e a fartura podiam ser grandes, e a ambição portuguesa era, sem dúvida, ainda maior. Mas a ocupação de tão vasta área de território esbarrava em uma limitação: a falta de população, de pessoal para enviar para a nova área. O povoado mais extremo então existente, além da Colônia de Sacramento, era Laguna — que contava com a exígua população de 32 casais. Por isso, a ocupação do Rio Grande começa não com o envio de colonos, mas com expedições de exploração, captura de gado e descoberta de rotas. A primeira delas, em 1725, foi liderada por João Magalhães. Dois anos depois,o grupo liderado por Francisco de Sousa e Faria estabeleceu o primeiro caminho que liga a Colônia de Sacramento à Vila de Curitiba.

Invasões Castelhanas A história do Rio Grande do Sul, em vários momentos, foi definida por acontecimentos que ocorriam muito longe daqui. É esse o caso das invasões castelhanas: elas ocorreram em função de problemas de relacionamentos entre as cortes européias, mas quem “pagou o pato” foram os habitantes do território gaúcho. Em 1761 os governos da Espanha, Nápoles (então um reino independente) e França fizeram um pacto para combater o poder crescente da Inglaterra, que dominava progressivamente os mares e se consolidava cada vez mais como um império colonial. Esses países eram todos governados por reis da família Bourbon, descendentes de Luís XIV. Por isso, o pacto ficou conhecido como “Pacto de Família”. Portugal não aderiu ao pacto, pois já era aliada dos ingleses. A aliança vinha do tempo de D. João I, que era casado com a princesa inglesa Felipa de Lancaster. E havia também um motivo econômico: Portugal dependia dos navios ingleses para o comércio em suas colônias. No entanto, os três poderosos reinos não aceitaram a atitude portuguesa. Um grande exército, formado por espanhóis e franceses, invadiu Portugal.

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As hostilidades não se limitaram ao solo europeu, e se estenderam às colônias. Prevendo isso, o comandante da região do Rio da Prata, Gomes Freire de Andrade, ordenou que o governador do Rio Grande, Elói Madureira, tomasse medidas para impedir a invasão do território brasileiro pelas forças castelhanas. As medidas adotadas não foram, porém, capazes de evitar a invasão. O governador de Buenos Aires. D. Pedro Ceballos, cercou a Colônia de Sacramento, então sob o domínio português, No dia 29 de outubro de 1762, as tropas portuguesas que estavam na colônia se renderam – afinal, eram 900 homens contra os 4 mil espanhóis. O passo seguinte da marcha espanhola sobre o Brasil foi a tomada do forte Santa Teresa (atualmente em território uruguaio), que havia sido constituído pelo comandante de Rio Pardo, Tomás Luís Osório, como forma de resistir ao avanço espanhol. O forte foi construído em janeiro de 1763 e tomado em abril do mesmo ano. A seguir (quatro dias depois) caiu o forte de São Miguel, próximo de Chuí. E no dia seguinte, 24 de abril de 1763, a vila de Rio Grande foi ocupada pelos espanhóis. Com a ocupação, o então governador Elói Madureira recuou para Viamão, onde instalou a sede do governo. Mais uma vez, acontecimentos da Europa vieram interferir diretamente com o que acontecia aqui. Os países da Europa firmaram um tratado de paz. Isso interrompeu a marcha espanhola sobre o território brasileiro - mas não fez com que fossem devolvidos os territórios ocupados. A vila de Rio Grande só seria retomada em 1776, após uma série de episódios de emboscadas e batalhas entre os dois lados. (Por Lígia Gomes Carneiro)

A Origem da Palavra Gaúcho Pode uma palavra que define toda uma cultura e modo de vida não ter explicação plausível para sua origem? É o que acontece com a palavra "gaúcho". Se alguém pudesse reunir os mais respeitados filologistas e historiadores que se dedicaram à questão em uma sala, chegaria a uma conclusão simples: ninguém sabe de onde a palavra veio. Isso não significa que sua origem não tenha sido pesquisada. No Rio Grande do Sul, na Argentina e no Uruguai, estudiosos das mais variadas áreas tentaram achar a sua origem. O escritor uruguaio Buenaventura Caviglia Hijo provavelmente foi o que fez a pesquisa mais extensa. E listou 36 possíveis origens da palavra, segundo autores argentinos, uruguaios e brasileiros. Entre as línguas apontadas como dando origem a ela, estão o português, o tupi, o guarani, o árabe, o castelhano, o araucano, o charrua, o latim, o gitano, o alemão, o francês, o inglês, o aimará, o hebraico, o quíchua... e mais algumas. Uma das "possíveis" origens é a palavra garrucho, que define o portador de uma garrucha ou garrocha (lança usada para cortar o jarrete do gado). Assim, se alguém perguntar a um gaúcho o que significa o termo, ele poderá responder, de consciência limpa: "Gaúcho é algo impossível de definir". Dessa maneira, além de estar dando uma resposta aparentemente "profunda", estará escapando de explicar que, na verdade, nem os gaúchos sabem de onde veio o termo. E, como diz Carlos Reverbel, em seu livro denominado "O Gaúcho", talvez o melhor seja mesmo aplicar ao problema o ditado (gaúcho, por sinal), de que não se deve gastar pólvora em chimango e, ao invés de discutir a palavra, se fará melhor em tentar entender a cultura e a história do povo dos pampas. (Por: Lígia Gomes Carneiro). Província isolada Em 1835, ano em que começou a Revolução Farroupilha, a província do Rio Grande do Sul era, ainda, muito pouco povoada. Com não mais que 400 mil habitantes, tinha sua população concentrada na região da Depressão Central e no Litoral, com poucos núcleos habitacionais na zona de Cima da Serra e nas Missões, e com a Campanha ocupada principalmente por estâncias de gado. Existiam, então, quatorze municípios: Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, Santo Antonio da Patrulha, Cachoeira do Sul, Pelotas, Piratini, Alegrete, Caçapava do Sul, São José do Norte, Triunfo, Jaguarão, São Borja e Cruz Alta. Entre eles, três se destacavam: Porto Alegre, capital da província; o porto de Rio Grande, por onde se fazia a maior parte das transações comerciais; e Pelotas, onde prosperava a manufatura do charque. As comunicações eram bastante precárias. Em 1823, o charqueador Gonçalves Chaves, em seu livro "Memórias Ecônomo-Políticas", dizia que não existia uma só ponte em toda a província. A principal forma de transporte de cargas eram as carroças, que tinham que enfrentar caminhos intransitáveis durante os períodos de chuva. Isto resultava em um grande isolamento de certas regiões, como a área da fronteira com o Uruguai e Argentina que, tendo dificuldades de se comunicar com o litoral, canalizava sua produção de charque para o porto de Montevidéu. Também se utilizavam os rios, como o Taquari, Jacuí e Caí, através dos quais se estabelecia a comunicação com Porto Alegre e, desta cidade, com o porto de Rio Grande. Em 1832 houve um

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considerável progresso na navegação fluvial, com a introdução de barcos a vapor. Mas a inovação, que tornava o transporte bem mais rápido do que o feito pelos veleiros, foi prejudicada pela Revolução Farroupilha, ficando quase que totalmente estagnada até o seu término. Apesar do isolamento da província, e das diferentes zonas dentro dela, grande parte dos produtos usados no Rio Grande era importada, pois, como nas demais regiões do país, a indústria nacional era praticamente inexistente. Vinham do exterior fósforos, vassouras, pregos, sapatos etc. As classes mais abastadas podiam encontrar tecidos e acessórios vindos da Europa. O Rio Grande, por sua vez, exportava charque - principalmente para as demais províncias -, e couros, para o exterior. O isolamento poderia dar a falsa impressão de uma província pacata, com uma vida quase parada. Isto, porém, não era verdadeiro. Os gaúchos, durante o século passado, tiveram que lutar ferozmente com os espanhóis para garantir suas terras e, mesmo no início do século XIX, ainda enfrentavam problemas de fronteira, o último dos quais - antes da Revolução Farroupilha - tinha sido a guerra pela libertação do Uruguai, que tinha permanecido ocupado pelo Brasil entre 1817 e 1825.

As Charqueadas Surgimento e importância econômica O gado foi a base da economia gaúcha durante um longo período da história do Rio Grande. Introduzido pelos jesuítas, atraiu os tropeiros que vinham de São Paulo e Minas para buscar gado e levá-lo para aquelas províncias. Serviu, também, de esteio para a fixação de habitantes, na medida em que permitiu uma atividade econômica para os estancieiros que aqui se fixaram. Essa base seria ainda mais consolidada com o surgimento das charqueadas. Elas iriam produzir o charque, um produto que era a base da alimentação de escravos em todo o Brasil. E, com essa produção, trariam riqueza à região de Pelotas, que se tornou uma espécie de "capital cultural" do Estado. As charqueadas começaram a surgir na região de Pelotas em torno de 1780. Anteriormente, o charque já era produzido no sul do continente, mas de maneira artesanal e em pequena escala. No entanto, uma série de secas sucessivas no Nordeste, onde estava concentrada a maior produção de charque do país, criou uma oportunidade para o produto gaúcho. E o charque começou a ser produzido em maior escala. Opulência A partir desse momento, a produção de charque se tornou o centro da vida econômica da região de Pelotas. As charqueadas estavam situadas ao longo de rios que facilitavam o transporte para o porto de Rio Grande - de onde o charque seguia para o Rio e outros portos brasileiros. Com o dinheiro gerado por elas, Pelotas se transformou. Essa renda permitiu que surgisse um grupo de famílias ricas e que cultivavam hábitos sofisticados. Em 1835, Wolfhang Harnish descrevia a cidade de Pelotas como um local de opulência extrema: "... já funcionam 35 charqueadas nos arredores da cidade... A riqueza que trazem é fantástica... Esses milionários pelotenses bem que poderiam ter vivido no Rio ou em Nice ou ainda em Paris, poderiam ter concorrido com os fidalgos russos no luxo e na dissipação de Monte Carlo". Miséria A contraparte dessa opulência eram as próprias charqueadas, onde os enormes grupos de escravos eram submetidos a um trabalho exaustivo. E, como estavam reunidos em grupos muito grandes, os senhores adotavam a política de extrema intimidação para mantê-los obedientes. As charqueadas eram verdadeiros "estabelecimentos penitenciários", como bem as descreveu o francês Nicolau Dreyf, no livro "Notícia Descritiva da Provincia de São Pedro do Rio Grande do Sul". Parte desse tratamento brutal dado aos escravos se devia ao interesse econômico: quanto mais produzissem, mais seus donos lucravam. Outra parte, entretanto, vinha do medo: com uma enorme população escrava, Pelotas era, potencialmente, um foco de rebeliões. Por isso, ao menor sinal de revolta eram tomadas providências drásticas. Para que se tenha uma idéia do tamanho da população escrava de Pelotas: existiam ali, em 1833, 5.169 escravos, 3.555 homens livres e 1.136 libertos. Não obstante a violência e os métodos relativamente primitivos usados pelas charqueadas da região de Pelotas, elas foram capazes de sobreviver e gerar lucros consideráveis até o final do escravismo. A partir de então, enfrentaram dificuldades cada vez maiores e terminaram por se extinguir. Descontentamento com o controle alfandegário Na região de fronteira do Rio Grande, política e economia se misturavam. Ao lado da participação dos brasileiros nas questões uruguaias, havia o problema do controle alfandegário, especialmente do gado. Os charqueadores da região de Pelotas - que dependiam do gado gaúcho - defendiam um

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rígido controle, pois não queriam que as reses daqui fossem enviadas para o Uruguai. Os estancieiros, por sua vez, queriam o livre trânsito. Em 1824 foram criados postos aduaneiros na fronteira, para controlar o recolhimento do quinto real, do imposto de 640 réis sobre cada animal e os dízimos cobrados sobre couro, charque, sebo e gordura. Com a guerra de 1825 a 1828, pela independência uruguaia do domínio brasileiro, o funcionamento desses postos foi interrompido. Após a guerra, como a situação econômica da província não era muito boa, foi proibido o fluxo de gado para o Uruguai. Em 1830 foram adotadas novas medidas. Entre elas, um imposto de 15% sobre todas as mercadorias entradas no Império, inclusive o gado uruguaio. Isso não agradava a ninguém: aos charqueadores porque não queriam que o gado saísse, mas não tinham objeção a que entrasse. Aos estancieiros porque queriam que o gado saísse e entrasse a seu bel-prazer. Diante de tantos impasses, continuava o contrabando de gado. No ano seguinte (1831), o governo instalou quatro postos fiscais para o recebimento do dízimo (taxa de 2% sobre o gado a ser transportado para o Uruguai), do quinto sobre o couro e de 15% sobre toda a mercadoria importada do Uruguai, incluindo o gado. Essa última taxa era a que mais irritava os estancieiros, e viria a ser extinta em 1835. Além disso, o gado de raça não podia deixar a província, sem autorização especial. O do Uruguai tinha que pagar, lá, 800 réis em moeda de prata por cabeça. Isso fez intensificar o contrabando e o descontentamento.

Dinheiro gaúcho pagava até dívidas com os ingleses A centralização do poder tinha sido a tônica do governo do Imperador D. Pedro I. Pela constituição de 1824 (que ele outorgara à Nação), os presidentes de província eram escolhidos pelo poder central, que também definia um valor determinado para as despesas de cada província, suprindo-as com dinheiro caso houvesse um déficit, mas, em contrapartida, apropriando-se do dinheiro para aplicá-lo a seu bel-prazer caso houvesse um superávit. Essa situação era altamente insatisfatória para as elites regionais. E, após a abdicação de D. Pedro, começaram a pressionar o governo com o objetivo de obter uma maior autonomia. Isto resultou, em 1834, na promulgação de um ato adicional que, entre suas diversas cláusulas, previa a substituição dos Conselhos Gerais Consultivos - órgãos que desempenhavam o papel de assessorar os presidentes de província - por Assembléias Legislativas Provinciais - que poderiam estabelecer leis fiscais, desde que não interferissem nas arrecadações nacionais já existentes. Esse ato tinha um objetivo principalmente conciliatório: procurava contentar aos liberais, ao dar um pouco mais de autonomia fiscal às províncias; e aos conservadores, ao manter a escolha do presidente da província nas mãos do governo central, bem como o controle final dos fundos provinciais. No Rio Grande do Sul, antes e até depois do ato, existia um grande descontentamento em relação à destinação dos fundos públicos. A província havia acumulado, durante alguns anos, um superávit. Mesmo assim, esse dinheiro não podia ser aplicado em benefício da província, em obras como a construção de pontes, e nem mesmo no pagamento dos credores, que nessa época eram muitos. Existiam aqui inúmeros credores do governo que esperavam o pagamento das dívidas que este contraíra durante as Guerras Cisplatinas, de 1825 a 1828. Eram soldados, comerciantes, estancieiros, que haviam servido nas forças de combate ou tinham fornecido víveres, gado e outros bens para as tropas, sem serem reembolsados. No entanto, como a legislação estabelecia uma quantia determinada para os gastos da província - e não previa o pagamento dessas dívidas - não podiam receber, mesmo havendo dinheiro para pagá-los. Por outro lado, o governo central podia legalmente se apropriar do superávit acumulado para utilização em outros locais. Assim, em 1832, vinte e quatro contos de réis do superávit gaúcho foram mandados para cobrir o déficit de Santa Catarina. O governo central também usou o dinheiro do superávit do Rio Grande para pagar empréstimos feitos junto às Inglaterra. Chegou-se ao ponto de, no início de 1834, o Tesouro da Província dispor de mais de 500 contos de réis que não podia utilizar em nenhuma obra pública. Naturalmente, essa situação irritava os gaúchos, que viam a renda que geravam ser utilizada em outros locais, enquanto a província carecia de estradas, escolas, pontes e outras obras de infra-estrutura básica.

Na fronteira, reinava um clima de tensão Enquanto os problemas referentes à escassez monetária, moedas falsas e retirada do dinheiro público da província atingiam a população do Rio Grande do Sul como um todo, alguns grupos econômicos enfrentavam situações específicas, que também eram causa de descontentamento. Era

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esse o caso dos charqueadores, que pagavam altos impostos sobre seu produto, tendo que concorrer com a produção platina, com menos impostos e mais barata. De seu lado, os estancieiros tinham interesses econômicos e políticos no Uruguai. Durante a ocupação da Banda Oriental (Uruguai) pelo Brasil, de 1817 a 1825, muitos estancieiros gaúchos se estabeleceram lá. Compraram terras e gado, estreitaram laços políticos e familiares. Com a independência daquele país, insistiam em ter livro acesso às pastagens da Banda Oriental: afinal, tinham diversos interesses na área. Mas, para o governo central brasileiro, a presença muito intensa de brasileiros no Uruguai representava um problema: terminavam interferindo na política local, provocando queixas freqüentes do governo uruguaio à diplomacia brasileira. Além disso, o nosso governo sofria a pressão dos charqueadores, que não tinham interesse em que os estancieiros levassem seu gado para o Uruguai. Por isto, depois da independência uruguaia, o governo central adotou uma política dura em relação aos estancieiros gaúchos: proibiu que o gado do Rio Grande fosse levado para os países vizinhos. O Uruguai, por sua vez, adotou postura semelhante, proibindo que gaúchos engordassem ou criassem gado lá. Essas medidas, entretanto, tinham caráter limitado. A fronteira era grande, e era fácil contrabandear gado. Por outro lado, a presença de rio-grandenses no Uruguai era muito intensa, e cedo os líderes políticos daquele país perceberam que não tinham como evitá-la. Fructuoso Rivera, presidente uruguaio, ao constatar que não tinha como contornar a situação, resolveu usá-la em seu proveito. Autorizou um de seus agentes no Rio Grande a passar escritura de terrenos no Uruguai em troca de pagamento em gado. Com isto, Rivera queria se tornar simpático aos gaúchos, e neutralizar a influência que seu rival, Juan Antonio Lavalleja, tinha na zona de fronteira. Essa postura durou pouco tempo. No final de 1832, Rivera começou a confiscar e vender gado e terras daqueles que apoiavam Lavalleja. Entre os brasileiros da fronteira, correu a notícia de que também estava confiscando o gado dos residentes brasileiros naquele país que eram simpatizantes de Lavalleja. Bento Gonçalves, o principal articulador do movimento farroupilha, era nessa época comandante militar da fronteira, em Jaguarão. Na sua opinião, os direitos dos gaúchos no Uruguai deviam ser mantidos, mas Rivera continuava a confiscar e retirar gado nas propriedades próximas da fronteira, e distribuía - gado e terras - entre os que o apoiavam. Bento Gonçalves resolveu então fazer vista grossa quando os opositores de Rivera - ligados a Lavalleja - traziam gado para trocar por armas no Brasil. Após inúmeros enfrentamentos entre as suas tropcas e as de Rivera, Lavalleja entrou, no final de 1832, no Brasil, sendo recebido por Bento. Ao saber do fato, o presidente da província ordenou que Bento desarmasse Lavalleja e os seus homens e os conduzisse para Porto Alegre. Bento trouxe-os para a capital, mas não os desarmou. Chegando na capital, o presidente ofereceu a Lavalleja duas opções: ou ele iria para alguma outra província brasileira, ou para Buenos Aires. O Brasil temia que houvesse uma associação entre Rosas, Lavalleja e Bento para se criar uma república independente ou interferir na política dos três países. Esse temor, aliás, iria reger o relacionamento das autoridades com Bento. Em 1834 Lavalleja voltou ao Brasil, sendo novamente recebido por Bento. Mas então tanto ele como o outro comandante de fronteira, Bento Manoel, em Alegrete, já haviam perdido a confiança do governo. Bento Manoel foi transferido, enquanto Bento foi suspenso.

A origem do nome Farrapos Muitos dos livros de história insistem na versão de que o nome "farrapos" ou "farroupilhas", dado aos revolucionários gaúchos, teve origem nas roupas que estes vestiam - gastas e esfarrapadas. No entanto, a verdade é bem outra. A denominação é, mesmo, anterior à Revolução Farroupilha, e era utilizada para designar os grupos liberais de idéias exaltadas. Já em 1829 eles se reuniam em sociedades secretas. Uma delas era a Sociedade dos Amigos Unidos, do Rio de Janeiro, cujo objetivo era lutar contra o regime monárquico. Desde então, eram chamados de farroupilhas. Segundo Evaristo da Veiga, o termo havia sido inspirado nos "sans culottes" franceses, os revolucionários mais extremados durante o período da Convenção (1792 a 1795). Os "sans culottes", que literalmente quer dizer sem calção, usavam calças de lã listradas, em oposição ao calção curto adotado pelos mais abastados. Outra versão insiste no fato de que o termo foi provavelmente inspirado nas roupas rústicas de um dos líderes dos liberais, Cipriano Barata que, quando em Lisboa, circulava pela cidade usando chapéu de palha e roupas propositadamente despojadas. Seja qual for sua origem, o termo já era

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aceito em 1831 como designação dos liberais exaltados que, nessa época, publicavam dois jornais no Rio de Janeiro: a Jurubeba dos Farroupilhas e a Matraca dos Farroupilhas. No cenário político, os farroupilhas, reunidos num partido próprio - contrapondo-se aos conservadores, os caramurus - eram um dos grupos mais exaltados e defendiam idéias como a adoção de um regime republicano ou, ao menos, de um regime de federação, em que as províncias tivessem maior autonomia. O partido farroupilha foi fundado no Rio Grande em 1832, por Luís José Alpoim, que participara, no Rio, das agitações populares de sete de abril de 1831, que resultaram na queda do Imperador. Desde o início o partido teve atuação intensa. Em outubro de 1833, promoveu uma manifestação contra a instalação da Sociedade Militar (que congregava conservadores) em Porto Alegre. O confronto entre liberais e conservadores era, no Rio Grande do Sul, particularmente acentuado. Aqui, os moderados não tinham nenhuma expressão, e por isso eram alcunhados de "chimangos" - caça com a qual não valia a pena se gastar chumbo. O apelido, a partir daí, se espalhou para todo o país.

Como se vivia no Rio Grande na época da Revolução Não obstante o "caráter guerreiro" que era atribuído ao Rio Grande pelas populações das demais províncias, os moradores locais conseguiam organizar o seu dia-a-dia de forma pacata. Nas cidades e vilas a grande atração eram as procissões e os atos ligados à religião. As irmandades, organizações de leigos que se dedicavam a festejar um determinado santo ou a certas práticas caridosas, estavam presentes em quase todas as cidades e vilas, e tratavam de dar a pompa necessária às comemorações religiosas, desfilando pelas ruas com seus mantos coloridos. Os moradores, por sua vez, contribuíam para embelezar a festa colocando colchas trabalhadas nos balcões das casas. Mas nesse Rio Grande de então não só se vivia de forma diferente daquela de agora - também se morria de forma diversa. A morte era anunciada pelo sino da igreja - com toques especiais para homem adulto, mulher adulta, moça virgem e crianças. Isto, em certas épocas, chegou a provocar conflitos entre as autoridades civis e eclesiásticas. Quando, no final do século passado, a província enfrentou uma epidemia de cólera, o presidente da província insistiu, junto ao bispo, para que fossem suspensos os toques de sino que anunciavam as mortes, porque "traziam a população em constante sobressalto". Um dos principais atos da preparação para a morte era a confecção de um testamento. Ao contrário dos testamentos atuais, em que a preocupação central é realizar uma distribuição de bens, os de então eram uma espécie de acerto de contas espiritual, em que o testador procurava garantir a redenção de sua alma e comandar o espetáculo de sua morte. Além de determinarem a repartição dos bens, estabeleciam esmolas para os pobres a serem distribuídas no dia da morte do testador, missas a serem rezadas em benefício de sua alma e, em algumas vezes com minúcias incríveis, descreviam como deveria ser o enterro - que, pelo menos até a década de 40 do século passado, era na maioria das vezes feito bem no centro das cidades, atrás da igreja, onde ficavam os cemitérios. Curiosamente para nós, as pessoas não eram enterradas em caixão. Esse hábito só iria surgir a partir da segunda metade do século passado. Antes disso, os caixões eram emprestados ou alugados pelas irmandades que os possuíam, servindo para conduzir o falecido até a cova, onde era retirado do caixão e baixado à terra. Os mais devotos requeriam, em seus testamentos, que fossem enterrados vestindo a roupa de algum santo de sua devoção - São Francisco de Assis, com seus trajes marrons, era especialmente cotado. Mas, de maneira geral, usava-se a mortalha, pano cozido sobre o corpo do defunto: branca para as moças virgens, branca ou azul para as crianças; roxa para as mulheres e homens adultos. Apesar do enorme peso da religião, não se pode imaginar o Rio Grande de então como um enorme paraíso de devotos. Se as exterioridades do culto eram apreciadas e mantidas, eram, entretanto, muitos os problemas. Havia uma falta crônica de sacerdotes, principalmente na Campanha. A presença dos primeiros protestantes provocava atritos relativos à realização de casamentos pelos pastores e ao local de enterro. As sociedades maçônicas floresciam. A maçonaria, aliás, contava com muita força. Nela estavam presentes até sacerdotes, e a maioria dos homens influentes da província era maçom. Entre os maçons ilustres, destacava-se Bento Gonçalves, que organizou diversas lojas na fronteira, e cujo codinome, na maçonaria, era Sucre.

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Bento Gonçalves da Silva Guerreiro durante a maior parte de sua vida, Bento Gonçalves da Silva morreu na cama. Maçom e defensor de idéias liberais, pelas quais lutou durante os quase dez anos da Revolução Farroupilha, viu, ao final de seu esforço, a vitória do poder central. Presidente da uma república, viveu a maior parte de sua vida em um Império. Bento Gonçalves da Silva nasceu em Triunfo, em 1788, filho de alferes. Cedo, porém, saiu de sua terra. Em 1812 foi para Serro Largo, na Banda Oriental (Uruguai), onde se estabeleceu com uma casa de negócios. Dois anos depois estava casado, com Caetana Joana Francisca Garcia. Algumas versões afirmam que, em 1811, antes de se fixar na Banda Oriental, participou do exército pacificador de D. Diego de Souza, que atuou naquela região. Essa informação, entretanto, é discutida. Mas, se não foi em 1811, em 1818 com certeza começou a sua atuação militar, quando participou da campanha do Uruguai (que culminaria com a anexação formal daquele país ao Brasil, em 1821, como Província Cisplatina). Aos poucos, devido à sua habilidade militar, ascendeu de posto, chegando a coronel em 1828, quando foi nomeado comandante do Quarto Regimento de Cavalaria de 1a. linha, estabelecido em Jaguarão. Passou a exercer também os postos de comandante da fronteira e da Guarda Nacional naquela região. Provavelmente já era maçom nessa época, pois consta que organizou várias lojas maçônicas em cidades da fronteira. É certo, contudo, que sua influência política já era grande, pois o posto de comandante da Guarda Nacional era um cargo eminentemente político. Em 1832 Bento foi indicado para um dos postos de maior influência que havia na província, o de comandante da Guarda Nacional do Rio Grande do Sul. Isto lhe dava uma posição estratégica, que soube utilizar quando da Revolução Farroupilha: sob seu comando estavam todos os corpos da Guarda Nacional, força especial que havia sido criada em 1832 e cujo oficialato era sempre composto por membros das elites de cada região. Esse cargo de confiança, entretanto, não impediu que Bento continuasse dando apoio aos seus amigos uruguaios. Foi por isto que, em 1833, foi denunciado como desobediente e protetor do caudilho uruguaio Lavalleja, pelo mesmo homem que o havia indicado para o posto de comandante da Guarda Nacional, o marechal Sebastião Barreto Pereira Pinto, comandante de Armas da Província. Chamado ao Rio de Janeiro para se explicar, Bento saiu vitorioso do episódio: não voltou para a província como comandante de fronteira, mas conseguiu do regente padre Feijó - que também defendia idéias liberais - a nomeação do novo presidente da Província, Antonio Rodrigues Fernandes Braga, o mesmo homem que iria derrubar, em 1835, quando deu início à Revolução. De volta ao Rio Grande, continuou a defender suas idéias liberais, à medida que se afastava de Braga, denunciado pelos farrapos como prepotente e arbitrário. Eleito para a primeira Assembléia Legislativa da província, que se instalou em abril de 1835, foi apontado, logo na fala de abertura, como um dos deputados que planejava um golpe separatista, que pretendia desligar o Rio Grande do Brasil. A partir desse momento, a situação política na província se deteriorou. As acusações mútuas entre liberais e conservadores eram feitas pelos jornais, as sessões da Assembléia eram tumultuadas. Enquanto isto, Bento Gonçalves articulava o golpe que teve lugar no dia 19 de setembro. No dia 21, Bento Gonçalves entrou em Porto Alegre. Permaneceu na cidade por pouco tempo, deixando-a para comandar as tropas revolucionárias em operação na província. Exerceu esse comando até dois de outubro de 1836, quando foi preso no combate da ilha do Fanfa (em Triunfo), junto com outros líderes farrapos. Foi então enviado para a prisão de Santa Cruz e mais tarde para a fortaleza de Lage, no Rio de Janeiro, onde chegou a tentar uma fuga, da qual desistiu porque seu companheiro de cela, o também farrapo Pedro Boticário, era muito gordo, e não conseguiu passar pela janela. Transferiram-no então para o forte do Mar, em Salvador. Mesmo preso, sua influência no movimento farroupilha continuou, pois foi eleito presidente da República Rio-Grandense em 6 de novembro de 1836. Mas, além do apoio farroupilha, Bento contava com o da Maçonaria, de que fazia parte. Essa organização iria lhe facilitar a fuga da prisão, em setembro de 1837. Fingindo que ia tomar um banho de mar, Bento começou a nadar em frente ao forte até que, aproveitando um descuido de seus guardas, fugiu - a nado - em direção a um barco que estava à sua espera. Em novembro ele regressou ao Rio Grande, tendo chegado a Piratini, a então capital farroupilha, em dezembro, quando tomou posse do cargo para o qual havia sido eleito. Imediatamente, passou a presidência ao seu vice, José Mariano de Mattos, para poder comandar o exército farroupilha. A partir de então, sua vida seriam os combates e campanhas, embora se mantivesse como presidente. Em 1843, entretanto, resolveu renunciar ao cargo, desgostoso com as divergências que

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começavam a surgir entre os farrapos. Passou a presidência a José Gomes de Vasconcelos Jardim, e o comando do exército a David Canabarro, assumindo apenas um comando de tropas. As divisões entre os revolucionários terminaram por resultar em um desagradável episódio. Informado que Onofre Pires, um outro líder farrapo, fazia-lhe acusações, dizendo inclusive que era ladrão, Bento o desafiou para um duelo, no início de 1844. Onofre Pires foi ferido, e morreu dias depois devido a uma gangrena. Embora tenha iniciado as negociações de paz com Caxias, em agosto de 1844, Bento não iria concluí-las. O clima de divisão entre os farrapos continuava, e ele foi afastado das negociações pelo grupo que se lhe opunha. Desligou-se, então, definitivamente da vida pública. Passou os dois anos seguintes em sua estância, no Cristal e, já doente, foi em 1847 para a casa de José Gomes de Vasconcelos Jardim, onde morreu, de pleurisia, em julho daquele ano.

Italianos foram atraídos pelos ideais farroupilhas Vindos de uma terra distante e, em sua maioria, refugiados políticos, um grupo de italianos participou ativamente da Revolução Farroupilha. Provavelmente o que os atraía eram os ideais liberais dos farrapos em que viam a semente de uma revolução social mais ampla, e a possibilidade de "fazer a história". Alguns deles tiveram atuação destacada, mas um, Giuseppe Garibaldi, é lembrado de forma especial, principalmente porque, mais tarde, participaria das guerras de unificação da Itália e se tornaria conhecido em toda a Europa graças à sua biografia, escrita por Alexandre Dumas. Os italianos revolucionários haviam chegado à América do Sul antes mesmo do início da Guerra dos Farrapos, dedicando-se principalmente a atividades comerciais e à navegação. Dentre eles muitos eram carbonários, membros da sociedade secreta que atuava na Itália, França e Espanha no início do século XIX e que pregava a adoção do sistema republicano. Essa sociedade derivava da franco-maçonaria, e foi formada para lutar contra o domínio napoleônico no reino de Nápoles (1806 a 1815). Depois, passou a lutar contra os soberanos italianos restaurados após 1815, e organizou levantes e atentados sem maiores conseqüências. A partir de 1818 o carbonarismo começou a ser difundido na França, onde conquistou os bonapartistas liberais. Organizados em lojas (como na maçonaria), seus membros arquitetaram numerosos complôs, entre 1818 e 1822, contra os Bourbons que haviam voltado ao trono. Todos fracassaram. A causa da Revolução deve ter seduzido a esses homens, habituados aos atentados, complôs e lutas. E cerca de cinqüenta italianos - provavelmente em sua maior parte carbonários - participaram da Guerra dos Farrapos. Alguns se destacaram, como o Conde Tito Lívio Zambiccari, que era ajudante de campo e secretário do presidente farroupilha, e que foi preso em 1836, no combate do Fanfa, junto com Bento Gonçalves. A captura de Zambiccari, a princípio lamentável, terminou por trazer benefícios para a Revolução. Transferido para uma prisão no Rio de Janeiro, entrou em contato com Garibaldi e Luigi Rosseti que, animados pelo que ele contava, alistaram-se nas tropas farroupilhas. Luigi Rosseti veio a ser co-editor do jornal farroupilha "O Povo", e também foi secretário-geral da República Juliana (em Laguna). Garibaldi, por sua vez, teria uma trajetória rica em aventuras. Nasceu em Nice (que então era italiana), em 1807. Antes de vir para o Brasil, participou do movimento Jovem Itália, de idéias republicanas, coordenado pelo general Mazzini. Comprometido em uma tentativa de ataque a Gênova, fugiu para o Brasil em 1836. Logo conheceu Zambiccari, e decidiu vir lutar no Rio Grande. Aqui, recebeu em 14 de dezembro do mesmo ano a autorização do governo farroupilha para realizar o corso, isto é, para atacar, de barco, navios e propriedades inimigas, apossando-se de seus bens. Para poder executar essa tarefa, recebeu o posto de capitão-tenente, e foi-lhe determinado que coordenasse o armamento de dois lanchões que estavam sendo construídos no estaleiro farroupilha, no rio Camaquã. Cada um desses barcos, quando pronto, tinha duas peças de bronze e uma tripulação de 35 homens. Um deles foi comandado por Garibaldi, outro por John Griggs, um americano que também havia sido seduzido pela causa farroupilha. Com esses dois barcos, Garibaldi iniciaria sua guerra de corso na Lagoa dos Patos. Aproveitando-se do fato de suas embarcações serem pequenas, e portanto poderem transpor os bancos de areia que dificultavam a navegação dos navios - de maior porte - da Marinha Imperial, Garibaldi atacava as estâncias de legalistas que estavam nas margens da lagoa, apossando-se de cavalos, mantimentos etc. Em julho de 1839, após coordenar a epopéia de transporte dos lanchões por terra, participou do ataque a Laguna, em Santa Catarina. Ali, conheceu Ana Maria Ribeiro da Silva, que passou à história como Anita Garibaldi, e que iria acompanhá-lo por toda a sua vida. Quando Garibaldi a encontrou em Laguna, Anita era casada com Manuel Aguiar, a quem deixou para seguir Garibaldi. Desde o início, revelou-se a companheira ideal para o revolucionário, participando com extrema bravura dos combates de defesa de Laguna contra os imperiais. Em 15 de novembro de

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1839 foi presa, no combate de Curitibanos, mas fugiu atravessando o rio Canoas a nado, agarrada à crina de seu cavalo, indo assim se reencontrar com Garibaldi em Vacaria. No Rio Grande deu à luz a seu primeiro filho, Menotti, e continuou a combater ao lado de Garibaldi até que este, em 1842, deixou as tropas farrapas, indo para Montevidéu. Anita iria acompanhá-lo, mesmo quando voltou para a Itália, em 1848, e iria estar ao seu lado nas lutas em que participou contra os austríacos naquele ano e no seguinte, quando morreu, durante uma fuga após um combate. Garibaldi, por sua vez, continuou a sua vida de revolucionário, sendo um dos líderes do movimento que resultou na unificação da Itália (concluída em 1870), e falecendo em 1882.

A epopéia dos lanchões pelos campos gaúchos Muito tempo antes do desenvolvimento dos veículos anfíbios, Garibaldi demonstrou que um barco construído para se movimentar na água também podia andar na terra. Graças a isso as tropas farroupilhas puderam conquistar o porto catarinense de Laguna e proclamar a República Rio-Grandense. Para chegar lá, o chamado "herói de dois mundos" teve que colocar em execução um dos mais arrojados planos militares já idealizados em qualquer época: estando as embarcações dos farroupilhas cercadas na Lagoa dos Patos, onde as forças do Império dominavam a entrada e saída, ele mandou deslocar por terra seus lanchões mais leves, o Farroupilha e o Seival. Foi uma epopéia digna de figurar com destaque na história dos conflitos mundiais. "Não existe a menor dificuldade na expedição por mar a Laguna. Mande-me o general alguns carpinteiros e a madeira necessária para a construção de quatro grandes rodados e cem juntas de bois carreiros para a tração das rodas, e eu farei transportar os Lanchões até Tramandaí, se Deus quiser", disse Garibaldi numa reunião do alto comando farroupilha. Ele levou os dois lanchões até o rio Capivari cerca de dois quilômetros adentro antes de sua foz na Lagoa dos Patos, e em menos de sete dias comandou a montagem dos rodados e das pranchas sobre as quais os lanchões foram colocados, para serem movimentados por terra até Tramandaí. Eles foram puxados cada um por juntas de cem bois. Em Tramandaí, após reparos rápidos que não levaram três dias, os lanchões foram lançados no rio Tramandaí e dali seguiram para o mar e para o ataque às forças imperiais que estavam acantonadas em Laguna. Entre o rio Capivari e o rio Tramandaí, através de campos, areais e banhados, foram percorridos cerca de cem quilômetros entre os dias 5 de junho pela manhã e a tardinha do dia 11 desse mês, sem que as forças imperiais tivessem a mínima suspeita do que estava acontecendo. Em Laguna, enquanto os "patos" de Garibaldi atacavam por mar, os homens do general David Canabarro investiam por terra, conseguindo dominar rapidamente a cidade e conquistando um importante porto para os farroupilhas, que nunca conseguiram se apoderar de Rio Grande e São José do Norte. Os lanchões Seival e Farroupilha deixaram o rio Capivari no ponto onde esse rio é cruzado, no momento, pela RS-040, cerca de mil metros antes do posto da Polícia Rodoviária em Capivari, que está no cruzamento dessa rodovia com o início da chamada Estrada do Inferno. Para quem vai de Porto Alegre em direção a Capivari, há um marco logo depois da ponte sobre o rio Capivari, à esquerda, indicando o local considerado como o início da movimentação terrestre das embarcações do grupo comandado por Garibaldi. Já no rio Tramandaí os lanchões voltaram a ser colocados na água nas proximidades da ponte antiga que liga Tramandaí a Imbé, onde na temporada de veraneio centenas de pessoas passam o dia pescando sardinhas e bagres. Na passarela para pedestres entre as duas pistas da avenida Fernandes Bastos, no lado do município de Tramandaí, há um marco indicativo do feito de Garibaldi, colocado, juntamente com o de Capivari, quando da comemoração do sesquicentenário da Revolução Farroupilha. Uma réplica do Seival ainda pode ser vista em Tramandaí, no Parque Histórico General Manuel Luiz Osório.

Bento Manoel Ribeiro, uma figura muito polêmica Uma das figuras mais polêmicas da Revolução Farroupilha, Bento Manoel Ribeiro, poderia ser considerado o protótipo do vira-casaca. Começou ao lado da Revolução, passou a apoiar o Império, voltou para a Revolução e terminou defendendo o Império e ajudando Caxias a acabar com a guerra. No entanto, não obstante as falhas de caráter que os adversários (sempre temporários, pois nunca se sabia seu movimento seguinte) pudessem lhe apontar, um mérito seu sempre foi reconhecido por todos: era um ótimo combatente. Nascido em Sorocaba (São Paulo) em 1783, Bento Manoel veio para o Rio Grande com cinco anos. No final do século XVIII alistou-se como soldado no regimento de milícias de Rio Pardo, e em 1823

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chegou a coronel. Como recompensa de seus feitos, recebeu grandes extensões de terra na região de Alegrete. Quando começou a Revolução, tomou parte ativa na derrubada do governo da província, em setembro de 1835. Mas, em dezembro desse mesmo ano, aderiu à causa legalista, quando seu primo Araújo Ribeiro foi indicado para presidente da província pelo governo central. Tornou-se então o primeiro herói legalista, ao vencer a batalha de Fanfa e prender Bento Gonçalves e outros líderes farrapos em outubro de 1836. Em 1837, depois que seu primo foi exonerado pela segunda vez da presidência da província, voltou a ser farrapo. E, entre outras façanhas, chegou a prender, próximo de Caçapva, o novo presidente da província, Antero José Ferreira de Brito, que mais tarde foi trocado pelo coronel farrapo Sarmento Mena. Também derrotou os legalistas em Rio Pardo, dando condições para que os farrapos voltassem a sitiar Porto Alegre. Depois de dois anos, Bento Manoel pediu demissão de seu posto, segundo alguns seduzido pelo governo imperial, que lhe propôs conservar as terras que havia adquirido dos legalistas desde que se mantivesse neutro. E assim permaneceu até 1842, quando, a convite do Barão de Caxias, voltou a lutar nas tropas imperiais, ajudando a pôr fim à Revolução.

Duque de Caxias O declínio da Revolução Farroupilha começou com a chegada do Barão de Caxias ao Rio Grande do Sul. Com cerca de 12 mil homens ao seu dispor, equipamento e dinheiro à vontade e sua experiência em situações semelhantes em outras províncias, Caxias dispunha das condições ideais para obrigar os farrapos à rendição. Para isto, entretanto, foram precisos mais de dois anos, e a paz assinada entre o Império e os revoltosos dificilmente poderia ser classificada como uma capitulação, uma vez que todas as exigências destes foram atendidas. Caxias, cujo nome completo era Luís Alves de Lima e Silva, tomou posse da presidência e do comando militar do Rio Grande do Sul em 9 de novembro de 1842. Suas estratégias para enfraquecer os farrapos: predispor os ânimos na província para a pacificação; privar os rebeldes de auxílio e de refúgio nas repúblicas vizinhas do Prata; obter cavalhada para o exército. Para bloquear os recursos que viessem de Montevidéu para os farrapos, o governo brasileiro buscou um acordo com Rosas na Argentina e com Oribe no Uruguai. Como o uso dos cavalos era vital para a guerra na província, não só por sua topografia mas também porque essa era a principal força dos farroupilhas, Caxias tratou de juntar o máximo possível de cavalos, reunindo todos os que conseguiu aqui e chegando a comprá-los no Paraguai. Também passou a atacar as cavalhadas farrapas. Conhecedor da capacidade de Bento Manoel como general, atraiu-o para a causa legalista. Paralelamente, procurou dividir o inimigo, provocando intrigas entre os farrapos. Procurava vencer pelo cansaço, cortando as fontes de abastecimento e fazendo perseguições permanentes. Outra providência tática foi restabelecer as relações comerciais do interior com a capital, visando obter a simpatia da população e facilitar o abastecimento do exército. Havia uma proibição de abastecer as forças farrapas. Paralelamente às medidas de Caxias, na Corte o governo decretou um imposto de 25% sobre o charque estrangeiro, como medida de proteção ao charque gaúcho. Além dessas medidas, Caxias procurou entrar em contato com os líderes farrapos, para estabelecer um acordo de paz. Em 28 de agosto de 1844, Bento Gonçalves colocava, entre as condições necessárias para a pacificação, a federação: o Rio Grande deveria ser um estado federado ao Brasil. Caxias não aceitou. Ao ver que o seu sonho de um Rio Grande do Sul independente não era possível, Bento apresentou a Caxias os pontos que considerava indispensáveis para a paz: reconhecimento da dívida interna e externa do Rio Grande; garantia de liberdade para os escravos que haviam lutado nas tropas farrapas; e reconhecimento dos oficiais farroupilhas em seus respectivos postos no Exército Imperial. No entanto, as divisões que medravam entre os farrapos terminaram por fazer com que Bento abandonasse as negociações, passando o governo da República Rio-Grandense para José Gomes de Vasconcelos Jardim, e se retirasse da vida política. Depois da Revolução Após o fim de sua missão no Rio Grande, Caxias continuou sua ascendente carreira militar. Foi comandante em 1851 do Exército do Sul, dirigindo a campanha contra Oribe no Uruguai e Rosas na Argentina (1852), recebendo então o título de marquês. Nos anos de 1855 e 1856 foi ministro da Guerra, posto que voltou a ocupar em 1861-1862, quando chegou a marechal de exército.

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No final de 1866, na Guerra do Paraguai, recebeu o comando geral das forças brasileiras em operação, e três meses depois o comando geral dos exércitos da Tríplice Aliança. Deixou esse comando em março de 1869, por estar doente, e recebeu o título de duque. Em 1875 Caxias retornou, pela terceira vez, ao ministério da Guerra, onde permaneceu até 1878, falecendo dois anos depois.

As condições da pacificação Não houve um tratado de paz e os farrapos escolheram Caxias como presidente da província. A população conheceu as condições da pacificação através de impressos. Na época em que acabou a Revolução Farroupilha, o documento intitulado "Convenção de paz entre o Brasil e os Republicanos", assinado pelo Barão de Caxias, não foi divulgado. As condições da paz chegaram ao conhecimento da população através de impressos, que tinham o título de "Concessões obtidas", e eram assinados por Antonio Vicente da Fontoura. Todos os itens da convenção e desse documento eram idênticos, com exceção de um - que não constava da convenção - que estabelecia que seriam resolvidos os problemas de fronteira com o Uruguai. Na convenção constavam, resumidamente, os seguintes tópicos: • Os republicanos escolheriam o presidente da província (foi escolhido Caxias); • Anistia geral para todos os farrapos; • Libertação de todos os prisioneiros; • Pagamento da dívida pública farroupilha (com viúvas, ex-soldados, inválidos e outros) pelo

Império; • Os atos das autoridades civis republicanas seriam revalidados sempre que neles se

observassem as leis então vigentes; • Os atos do vigário apostólico da República seriam revalidados; • Ficava garantida a liberdade dos escravos que serviram nas tropas republicanas; • Os oficiais republicanos não estavam constrangidos ao serviço militar; mas os que quisessem

servir seriam aceitos no Exército em seus respectivos postos; • Os soldados republicanos estavam dispensados do recrutamento; • Só os generais deixavam de ser admitidos em seus postos, mas gozariam de todas as

imunidades concedidas aos oficiais; • O direito de propriedade era garantido em toda a sua plenitude; • Ficavam perdoados os desertores do exército imperial.

Não chegou a ser assinado um tratado de paz, porque o Rio Grande jamais foi reconhecido como um Estado autônomo pelo governo brasileiro. Do lado dos rebeldes houve uma ata assinada em 25 de fevereiro de 1845, com a assinatura dos generais, coronéis e majores farroupilhas, reunidos em Ponche Verde para analisar as condições da pacificação. No dia 28 do mesmo mês, David Canabarro, como chefe do exército, foi autorizado pelo presidente da República a declarar a guerra acabada. E, no dia seguinte, proclamou a pacificação da província.

Os primórdios A importância das Missões Situado fora do eixo de comércio do Brasil com a metrópole, o Rio Grande do Sul foi, durante o seu processo de formação, uma área de maior valor político do que econômico. Embora não contasse com produtos de exportação de grande interesse, como o Norte e Nordeste (com as especiarias e o açúcar) e, mais tarde, as Minas Gerais (com o ouro), o Rio Grande atraía portugueses e espanhóis pela possibilidade de controle do sul do continente que sua ocupação abria. Isto fez com que fosse, desde o princípio, uma região em constante conflito, onde as duas potências ibéricas lutavam pelo domínio da terra, provocando constantes alterações de seus limites fronteiriços -- que só se fixariam definitivamente em 1909, quando a última questão de demarcação de limites entre o Brasil e o Uruguai foi resolvida. Inicialmente, o Rio Grande era uma "terra de ninguém", de difícil acesso e muito pouco povoada. Vagavam por suas pradarias os índios guarani, charrua, tapes; e, vez por outra, aventureiros que penetravam em seu território em busca de índios para apresar. Esse quadro foi modificado com a chegada dos padres jesuítas, que, no início do século XVII, na região formada pelos atuais estados do Rio Grande do Sul e Paraná, e pela Argentina e Paraguai, fundaram o que ficou conhecido como "Missões Jesuíticas". Nelas se reuniam em torno de pequenos grupos de religiosos, grandes levas de indios guarani convertidos, que levavam uma vida regida por regras ditadas pelos padres.

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Procurando garantir a alimentação dos índios convertidos, os jesuítas introduziram o gado nas suas reduções, onde o clima e a vegetação propícios fizeram com que se multiplicasse rapidamente. Ao agirem assim, os missionários criaram dois atrativos para aqueles que apresavam índios: agora, além de encontrarem índios já "civilizados" -- graças ao trabalho dos jesuítas -- achariam também o gado, que seria, a partir de sua proliferação, a principal fonte das atividades econômicas do Sul. Os ataques às reduções jesuíticas passaram a ser feitos de forma organizada, e até 1640 diversas bandeiras paulistas estiveram no Rio Grande do Sul para capturar índios e gado, provocando o desmantelamento de algumas das reduções, e a migração das populações nelas residentes para áreas consideradas mais seguras. Muitas vezes, ao partirem, os habitantes deixavam atrás de si o gado, que, solto, continuava a se multiplicar.

Início dos Sete Povos das Missões Ao final do século XVII, devido aos constantes conflitos de fronteira entre Portugal e Espanha, os jesuítas resolveram concentrar a população indígena convertida numa área onde estivesse mais segura, e escolheram, para isto, a zona localizada na região noroeste do Rio Grande do Sul. Os habitantes das diversas reduções jesuíticas foram transferidos para essa região, dando origem aos "Sete Povos das Missões": São Francisco de Borja (fundado em 1682), São Nicolau (1687), São Luiz Gonzaga (1687), São Miguel Arcanjo (1687), São Lourenço Mártir (1690), São João Batista (1697) e Santo Angelo Custódio (1796). Algumas dessas povoações situavam-se em locais que haviam sido anteriormente ocupados por reduções jesuíticas, mas que tinham sido abandonadas devido aos ataques de bandeirantes. Com a formação dos Sete Povos, a obra dos jesuítas atingiu o seu apogeu. A agricultura e a pecuária desenvolveram-se e, em 1691, um missionário informava que "tantos bois, vacas, terneiros e cavalos (há) em nossos campos que tu em muitos lugares, nada mais vês, de tanto gado gordo e bonito". Mais adiante, comentava que "dentro dos aldeamentos o Padre Missionário distribui, gratuitamente, duas vezes ao dia, a carne que os índios precisam", deixando claro que os animais eram criados para abate. Não era apenas com a conversão e alimentação dos índios que os jesuítas se preocupavam. Vindos da Europa, onde havia um considerável desenvolvimento do artesanato, os padres procuraram incutir nos indígenas uma mentalidade que valorizasse o trabalho manual. O aprendizado de uma profissão era constantemente incentivado e, desde a infância, os índios eram orientados para a escolha de uma atividade agrícola ou artesanal. Além de habituarem os nativos ao trabalho, os jesuítas procuravam com isto tornar as missões auto-suficientes, independentes das possessões portuguesas e espanholas que as cercavam, e que sempre olhavam com cobiça seus índios e seu gado. É difícil, porém, estabelecer o grau de relacionamento comercial entre as missões e as possessões espanholas (a que estavam legalmente vinculadas). Segundo Lugon, autor da obra de maior fôlego sobre o assunto, as reduções exportavam diversos artigos, dentre os quais peles, couros curtidos e arreios, para Buenos Aires, Corrientes, Santa Fé, Assunção e Vila Rica; e importavam produtos manufaturados e metais. Ainda de acordo com Lugon, a importação de manufaturados quase cessou, assim que as oficinas das missões foram convenientemente aparelhadas, permanecendo somente a importação de metais.

O início do aproveitamento do couro As oficinas eram várias, e entre as profissões manufatureiras encontravam-se aquelas que faziam o processamento dos despojos do gado abatido, em especial do couro. Existiam curtumes -- localizados à margem dos rios --, oficinas de sapateiros, correeiros, etc. Os artesãos organizavam-se em corporações, e havia alcaides responsáveis pelo bom andamento dos trabalhos em cada uma das oficinas. A estrutura assemelhava-se à existente na Europa Medieval, onde os profissionais se reuniam em corporações ou guildas. Esse florescimento, entretanto, causaria constantes atritos com espanhóis e portugueses, que viam com maus olhos a proteção que os jesuítas davam aos índios. Para os colonizadores brancos, as reduções representavam um empecilho à escravização dos índios, e sua independência relativa era considerada uma afronta aos conquistadores. Além disto, as Missões contavam com imensos rebanhos, que atraíam portugueses e espanhóis e, desde a sua formação, eles atacavam-nas periodicamente em busca de índios, gado e couros. A cobiça dos portugueses e espanhóis, unida aos interesses políticos das duas coroas ibéricas acabariam por decretar o fim das Missões. Em 1750, através de um tratado firmado entre os dois

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países, a região das Missões passou à posse de Portugal, em troca da Colônia de Sacramento (que só foi entregue definitivamente à Espanha em 1777). A ocupação da região missioneira pelos portugueses não se faria, porém, sem resistência por parte dos indígenas. Uma página singular da história do sul do continente se encerraria de forma violenta, com a dizimação de grande parte dos índios e a expulsão dos jesuítas. Suas cidades, obras de arte, livros -- toda a estrutura montada, enfim -- seriam quase que totalmente arrasados, ficando poucos traços para servirem de documento vivo de uma cultura inigualável por muito tempo. Mas, apesar disto, as Missões deixaram uma herança preciosa para o Rio Grande do Sul: os rebanhos de bovinos e cavalos. Esses animais, soltos, iriam se multiplicar cada vez mais, tornando o Rio Grande uma área ideal para o desenvolvimento da pecuária. Isto atraiu o colonizador branco, que passou a se instalar na região, de forma sistemática, a partir de 1726, quando chegaram os primeiros lagunistas com o fito de se estabelecerem em caráter definitivo.

O povoamento e a integração do Rio Grande do Sul à economia do Brasil A presença do gado foi, portanto, o principal atrativo para a fixação no solo do Rio Grande. Embora houvesse, de parte do governo colonial, o interesse de povoar a terra e, dessa forma, garantir a sua posse, foi principalmente devido à iniciativa privada dos que procuravam o Rio Grande, e graças à abundância de gado, que o povoamento se tornou possível. A coroa garantia, aos interessados, a propriedade de um terreno (de dimensões sempre avultadas), mas a dificuldade de subsistência seria problema exclusivo daqueles que se dispusessem a colonizá-lo. A existência de gado, porém, compensava os prováveis problemas: garantia a alimentação e permitia algum lucro, com sua exportação e a venda de couros. A descrição que Sebastião da Veiga Cabral fez, em 1713, da abundância de gado nas proximidades da Colônia de Sacramento, mostrava a atração que o gado exercia sobre os que se dispunham a mudar-se para o extremo sul do país: "A inumerabilid'e de gado maior q' produzem aquelas terras, só pode bem explicarse com o dizer-se q' todo aquelle continente está coberto de gado em tal forma q' tirando-se-lhe todos os annos nas vizinhanças mais de 40$ rezes, tanto para a fabrica de couros, q:to p.a o sustento dos povos, se não percebia nunca naq.la parte diminuição alguma". Essa quantidade enorme de gado interessava também à coroa, como constatava o próprio Sebastião da Veiga, ao afirmar que: "A fabrica dos couros e cebos, administrada por contracto ou por conta da Real Fazenda lhe dará m.t. gr. de utilidade, sem mais dificuldade q'a amizade dos Charruas facil, como tenho dito, de conseguir e milhor de conservar: com esta se conseguiria abund.a de cavallos, comq' fabricarão os couros q'quizerem, deq'podera perceber 500$ cruzados de renda cada anno, fazendo-se a fabrica como deve ser. Assim o reconheço o Snr. Rey D. Pedro 2º e havia exprimentar, se os acidentes com q' nos uzurpou a Collonia não sustarão a execução, porq'o mesmo Snr. mandava erigir a fabrica referida". A procura do gado do Rio Grande, entretanto, não surgiu só da necessidade de garantir a posse do solo e das vantagens econômicas do aproveitamento e exportação de couros. Um outro motivo, de grande importância, foi a principal mola propulsora para a busca de gado na região e o povoamento que disto resultou. Tratava-se da descoberta das minas de ouro de Minas Gerais, que precisavam, com urgência, de gado muar e cavalar para o transporte, e de gado vacum para a alimentação de sua população, que aumentava rapidamente. A região aurífera se encontrava distante da zona de povoamento do Nordeste, onde, em função dos engenhos e plantações de cana, havia se desenvolvido, principalmente no sertão, a pecuária. Foi por isto que se estabeleceu um crescente comércio de gado entre o Rio Grande do Sul e Minas. Assim, o Rio Grande passou a participar, de forma secundária, da economia da colônia, integrando-se a ela como "fornecedor" das regiões voltadas para atividades de caráter exportador. Este papel seria desempenhado durante uma parte significativa de sua história.

As faces do Rio Grande Falar em um Rio Grande do Sul como um estado único é quase que uma força de expressão. Porque aqui existem muitos Rio Grandes diferentes, cada qual com sua cultura, com seus rostos e falas. São as faces do Rio Grande - que são muitas. Há um Rio Grande açoriano, nas pequenas cidades do vale do Jacuí, que atualmente vivem suas pacatas vidinhas de interior, mas que já formaram a linha de defesa deste continente de São Pedro.

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Há um Rio Grande também português, mas com um rosto diferente, na região da Fronteira, conquistada a ferro e fogo pelos milicianos. Esses dois Rio Grandes, um de bombacha e outro em meio a procissões, têm em comum a origem - portuguesa - e a linguagem. Mas existe outro, em que as exclamações de "tche" se misturam aos "porca miseria". É o dos italianos, nas terras quebradas, com seus parreirais subindo e descendo pelas pirambeiras. Perto dali, tanto em zonas mais baixas - do vale do rio dos Sinos e outros próximos -, como mais altas, no Planalto, está o Rio Grande dos kerbs, das oktoberfests, dos alemães. Esse mesmo Rio Grande, de gente clara e fala arrevesada, tem uma pequena "ilha" em uma região tipicamente portuguesa - são os pomeranos da região de São Lourenço, que formam uma ilha dentro de uma ilha, uma vez que se trata de uma cultura de origem alemã, mas inteiramente diferente desta. Espalhado por todo o estado está também o testemunho de um Rio Grande sofrido. São os descendentes de negros, trazidos contra a vontade, oprimidos, e que, apesar disso, conseguiram manter traços de sua cultura. Assim como no passado não tinham propriedade, atualmente não têm sua região definida. Estão entre todos, mas com uma história construída de lágrimas que é só deles. Também de lágrimas é a história de um outro Rio Grande, o dos judeus. Concentrados em Porto Alegre - especialmente no Bom Fim -, vieram para cá fugindo da fome, da discriminação e, a partir do final da década de trinta, da exterminação pura e simples. Fugindo da dominação de outros países, vieram os poloneses, que entre 1795 e o final da Primeira Guerra Mundial não existiam como nação: tiveram sua pátria dividida entre a Rússia, a Prússia e a Áustria. Assim, muitos desses imigrantes chegaram aqui sob outras nacionalidades. Mas, com a teimosia dos povos que não perdem sua identidade, sempre fizeram questão de frisar que eram poloneses - o povo da pátria retalhada. Se a Primeira Guerra devolveu aos poloneses o direito de serem nação, a Segunda criou as condições para que o Rio Grande recebesse um novo fluxo migratório. Dessa vez, vinham de uma cultura totalmente diversa, tão diversa que provocava espanto inicialmente. Mas, calados e trabalhadores, esses novos gaúchos de olhos puxados marcaram sua presença na economia do estado: em 1956 começaram a chegar os japoneses. Esses são alguns dos que vieram. Outros povos, outros sangues, também estão presentes, embora em contingentes não tão significativos. Como se vê, não há um único Rio Grande, mas muitos Rio Grandes. Só que, assim como as pessoas, que são diferentes ao longo do dia, ao longo da vida, esse Rio Grande político, que é a soma de todos os Rio Grandes concretos, existe como unidade. Durante os séculos XVII e XVIII, o Rio Grande do Sul tinha uma importância estratégica para a Coroa Portuguesa - era uma zona de permanente disputa com a Espanha. Por isto, já no século XVII, houve a preocupação de assegurar a presença de portugueses na área, com várias iniciativas que, a longo prazo, resultaram na formação do atual estado do Rio Grande. O primeiro passo, mais avançado, foi a fundação da Colônia de Sacramento, em 1680, à esquerda do estuário do Prata, quase em frente a Buenos Aires. Paralelamente os portugueses trataram de garantir o acesso à Colônia, fundando, em 1686, o povoado de Laguna (em Santa Catarina0. Mas mesmo esse posto avançado entre São Paulo e a Colônia ainda estava muito distante. Era necessário ocupar a área mais ao sul, as atuais terras gaúchas, o que foi feito a partir de Laguna. Por volta de 1723, os lagunenses começaram a fazer invernadas na área entre São José do Norte e Laguna. O filho do fundador de Laguna realizou várias incursões na região, e seu genro, João de Magalhães, instalou-se em 1725 no local em que atualmente está São José do Norte. Estava assim estabelecida - pelo menos parcialmente - uma via de contato entre São Paulo e Sacramento, passando pelo litoral. E, para assegurar militarmente a presença portuguesa, foi criado em 1737 o presídio de Jesus, Maria, José, que deu origem à cidade de Rio Grande. E que também é o marco oficial do início da formação do atual estado do Rio Grande do Sul. Mas a então Província de São Pedro não interessava apenas pela posição estratégica. Também existiam os rebanhos bovinos - que tinham se formado a partir do gado das reduções jesuíticas - que andavam soltos pelos campos, sendo arrebanhados para serem mandados para outras áreas do Brasil, principalmente para Minas Gerais, onde a procura do ouro fazia com que a população crescesse rapidamente. Durante o século XVII o comércio de gado se intensificou e, em função dele, abriu-se um outro caminho que, a partir do morro dos Conventos, seguia para Curitiba e de lá para Sorocaba e Minas Gerais. Logo depois abriu-se um novo caminho que seguia para o norte na região de Santo Antonio da Patrulha (antiga Guarda Velha de Viamão), subindo a Serra Geral e cortando os atuais municípios de São Francisco de Paula e Bom Jesus. Esse caminho se encontrava então com o que existia a partir de Lages, em Santa Catarina. Essas rotas determinaram, inicialmente, o fluxo de povoamento do Rio Grande. Em 1733, os primeiros lagunenses começaram a receber sesmarias na região, nas zonas próximas aos caminhos

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de gado: Viamão e Santo Antonio da Patrulha. A partir daí também foram ocupadas as áreas dos cursos inferiores do rio dos Sinos e do Caí. Com essas iniciativas, Portugal assegurou a sua presença nas terras do sul. Mas isto não era suficiente. Era preciso garantir o povoamento dessas terras, o que só poderia ser feito através de uma imigração organizada. Entenda o que é colonização e imigração Quando se fala em imigração, muitas vezes se pensa em colonização e vice-versa. No entanto, trata-se de aspectos diferentes de um mesmo processo de transferência (voluntária, na maior parte das vezes) de grupos humanos de um país para o outro. A imigração é a mudança pura e simples. O imigrante sai, por exemplo, da Itália, e vem para o Brasil. Aqui pode se fixar em uma cidade, ou no campo. Já na colonização o imigrante vem para ocupar a terra, seja ela doada - como aconteceu nas primeiras colônias alemãs -, seja comprada. A colonização tem o intuito de fixação do homem ao solo, de ocupação definitiva de uma área, e pode ser feita por particulares ou pelo estado ou governo central. No Brasil houve as duas coisas. Exemplo disto é a vinda dos italianos para o nosso país. Eles começaram a chegar a partir da década de setenta do século passado. Muitos foram para São Paulo, onde alguns ficaram nas cidades enquanto que outros iriam trabalhar nas lavouras de café em sistema de parceria. Isto interessava aos proprietários das lavouras, que queriam garantir mão-de-obra que substituísse os escravos. Já a imensa maioria dos imigrantes que vieram para o Rio Grande foram para colônias. Isto é, compravam (ou recebiam) lotes rurais, mediante condições previamente estipuladas, que determinavam um tempo para a quitação da dívida e para a permanência no lote antes que pudesse ser vendido. O Rio Grande do Sul foi o estado em que a colonização obteve maior sucesso durante o século passado. Em diferentes épocas a colonização esteve sob direção do governo central ou do governo gaúcho. Estes criavam colônias nas terras devolutas da união, que eram doadas (até a década de cinquenta do século passado) ou vendidas. Também existiram colônias particulares, geralmente surgidas em áreas próximas às das colônias oficiais, em que a terra era vendida por companhias particulares. A grosso modo, a política brasileira de colonização pode ser dividida em três fases. Na primeira, que foi de 1808 a 1830 o governo brasileiro estimulou a colonização e tomou iniciativas para promovê-la, dirigindo-a e organizando-a. Na segunda, de 1830 a 1848, a colonização foi suprimida. A partir da lei do orçamento de 15 de dezembro de 1830 foi anulado todo e qualquer crédito para a colonização estrangeira. No Rio Grande do Sul esse período coincide com a Revolução Farroupilha (1835-1845), que paralisaria a vida econômica da Província. A última fase - dentro do período do Império - vai de 1848 a 1889, e nela o governo central procura incentivar apenas a imigração e não a colonização. O objetivo, nessa fase, era substituir a mão-de-obra escrava pela livre. No caso do Rio Grande do Sul, é possível traçar uma delimitação mais exata: entre 1848 e 1874 o governo provincial se encarregou da administração das colônias e da introdução de colonos. De 1874 a 1889 o governo provincial abandonou a colonização, que foi parcialmente retomada pelo governo geral. Finalmente, a partir de 1890 até 1914, o governo do estado dirigiu novamente as atenções para a colonização. Foi principalmente nessa fase que se ocupou a região do Planalto. A colônia era uma área de terra que era dividida em lotes. Inicialmente cada lote tinha 77 hectares. A partir de 1851 a área caiu para 48,4 hectares, permanecendo assim até 1889, quando foi novamente reduzida, passando para 25 hectares - medida que foi adotada principalmente pelas empresas particulares de colonização. A área de uma colônia era dividida em léguas. Cada légua, por sua vez, era dividida por travessões (também chamados de linhas ou picadas), que eram estradas ao longo das quais eram demarcados os lotes. Cada lote tinha de 200 a 250 metros de frente, e fundos que atingiam de três mil metros (no início da colonização alemã) a mil metros (na etapa final da colonização do estado). As propriedades confinavam-se, ao fundo, com um outro terreno, que dava frente para outro travessão. Assim, entre um travessão e outro, havia uma distância que variou, nas diferentes épocas, de seis a doze quilômetros. As propriedades se encontravam no meio do mato, apenas com as picadas abertas. Quando chegava a seu lote, o colono providenciava inicialmente a construção de uma cabana rústica, geralmente coberta com folhas e sem paredes, que pudesse abrigar a família. Essa moradia - que mais tarde era substituída por uma casa - ficava na frente do lote, próxima à estrada. O colono ia, aos poucos, ocupando a propriedade, a partir de sua frente. Era preciso derrubar o mato, preparar a terra para o plantio etc. Para isto era usada a queimada - hábito que os imigrantes aprenderam com os brasileiros e que estes, por sua vez, haviam herdado dos índios.

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Vindos de regiões onde moravam em vilas ou propriedades rurais, os colonos estranhavam, de imediato, a solidão em que se encontravam. Por isto, logo surgia uma povoação, onde os imigrantes se encontravam, e onde estava a igreja, a venda e outros serviços. Durante o período de imigração alemã o local da vila não era demarcado. As povoações surgiam espontaneamente e eram chamadas, pelos colonos, de Stadplätze. Mas a partir da década de setenta do século passado, quando começaram a chegar os imigrantes italianos, já era determinado um espaço para a instalação do povoado.

Início do povoamento O povoamento foi sendo feito a partir da chegada dos primeiros lagunistas, que se fixavam para criar gado. A ocupação do solo se adequava às características da criação de gado, e aos padrões de propriedade rural adotados em toda a colônia: eram doadas grandes glebas de terras a um proprietário, que as ocupava com gado. Para o trato dos animais, usavam-se alguns poucos homens, livres ou escravos. A estância consolidava-se, aos poucos, como célula básica da vida gaúcha, e o estancieiro, senhor absoluto dentro de sua área, não era apenas responsável pelo cuidado do gado e dos homens sob suas ordens; também se encarregava da defesa do solo, garantindo sua posse à coroa portuguesa. Numa região permanentemente em conflito, a estância iria desempenhar o papel de defesa, de sobrevivência, de segurança, e seria a marca da presença portuguesa no Rio Grande do Sul. Poucos anos após a chegada dos lagunistas, que organizaram a criação e o comércio de gado com as demais capitanias, uma leva de imigrantes açorianos foi dirigida para o Rio Grande com a intenção de povoar a região que anteriormente havia sido ocupada pelas Missões Jesuíticas. O grupo era formado por casais de pequenos agricultores, enviados a fim de desenvolver a agricultura. A primeira leva, chegada em 1740, iria se fixar na hoje Porto Alegre, devido à dificuldade em alcançar a zona das Missões. Aí, em pequenas propriedades, plantariam principalmente trigo. Apesar das atribulações iniciais, a cultura do trigo acabou por ter sucesso, e durante um certo período da história gaúcha, contribuiu de forma expressiva para a balança de exportações. Porém, o grupo de açorianos formava um enclave de pequenos agricultores no meio de uma província dominada pelas grandes propriedades, onde havia pouco mercado para os produtos de sua lavoura. Além disto, sucessivos ataques de ferrugem, que diminuíam consideravelmente a produção de trigo, fizeram com que os açorianos fossem aos poucos abandonando a agricultura e se integrando à economia baseada na pecuária que regia a vida local. O gado venceu, e o Rio Grande continuou a ser por algum tempo a terra dos conflitos de fronteira e da pecuária. O início da indústria do charque Já na proximidade do final do século XVIII, em 1780, um outro acontecimento marcou, de forma definitiva, a dependência da economia da província em relação à pecuária: criou-se a primeira charqueada de caráter comercial na região de Pelotas. Aos poucos, o charque (seguido do gado vivo e do couro) se tornou o principal produto de exportação do Rio Grande. Usado na alimentação dos escravos e das camadas mais pobres da população, o charque era enviado principalmente para os demais portos brasileiros. O couro, por sua vez, encontrava seu principal mercado nos portos estrangeiros, em especial da Europa, para onde era remetido seco ou salgado, a fim de ser processado. Assim, o século XVIII significou, para o Rio Grande, um período de formação e consolidação de uma estrutura baseada na pecuária, que atendia aos interesses das zonas mais desenvolvidas do país, com a exportação de gado e charque, e de Portugal e outros países europeus, com a exportação de couros. A economia, voltada para o gado, que garantia o fornecimento de outras regiões e a posse do solo por parte da coroa portuguesa, dava também origem a uma elite local, formada por pecuaristas e proprietários de charqueadas, que viveria, ao longo de sua história, uma contradição peculiar: se na província tinha poder e influência, nem sempre o mesmo acontecia em nível nacional, onde os interesses agrícolas, ligados às áreas de grandes lavouras, muitas vezes iriam contra aqueles defendidos pelos grupos de expressão política (e econômica) do Rio Grande do Sul. Dessas diferenças nasceram vários confrontos, fazendo com que, até o século XX, o Rio Grande fosse uma região potencialmente problemática não só pelos conflitos de fronteiras com outros países, mas também pelos problemas de suas elites com os grupos de comando nacionais.

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A produção artesanal de artefatos de couro para o autoconsumo e para o mercado Embora o processamento de couros e a fabricação de seus artefatos, nas Missões, se aproximasse, pela forma de organização do trabalho, das corporações medievais, existiam algumas características especiais. Sua estrutura era "emprestada", adotada pelos jesuítas por ser aquela que mais se adequava ao sistema de controle do trabalho por parte dos religiosos. Ao contrário das corporações da Idade Média, onde a decisão sobre as quantidades de produtos a serem confeccionados, o número de artesãos e aprendizes a exercerem a profissão e os processos de produção a serem seguidos eram tomados pelos artesãos (ou pela fatia mais privilegiada deles), as corporações de ofícios das reduções jesuíticas eram controladas pelos padres, que, ao instalá-las, tinham por objetivo a auto-suficiência dos núcleos missioneiros. Em razão dessa característica, torna-se difícil estabelecer até que ponto os artigos produzidos pelo artesanato missioneiro eram mercadorias. A crer-se nas afirmativas de Lugon, eles tinham, de fato, valor de troca, uma vez que eram comerciados com os espanhóis; mas o mesmo Lugon frisava que "as diversas oficinas trabalhavam para a comunidade e entregavam-lhe os seus produtos", os quais seriam distribuídos, de acordo com a necessidade, para os índios. Nesse caso, os artigos teriam apenas valor de uso, uma vez que atendiam às finalidades a que se destinavam, sem que fossem transferidos a quem iriam servir como valor de uso, por meio de troca. Situação semelhante existia naquelas regiões do Rio Grande onde eram produzidos os artefatos exclusivamente para atender às necessidades de uma unidade, como uma estância. Os artigos eram confeccionados para serem utilizados no próprio local, e não apra troca ou venda. O mesmo não acontecia nas cidades. Nestas, grande parte do artesanato era destinado à venda, sendo, portanto, mercadoria. Quem, nas cidades, produzia os artefatos (em especial os de couro) para serem vendidos? Uma certa quantia deles, consumida pelas camadas mais ricas da população, era importada. Outra porção era feita por artesãos, livres ou escravos. Os escravos de ganho, a quem era ensinada uma profissão, para que depois alugassem seus serviços, foram, de início, mais numerosos do que os artesãos livres. Segundo a descrição de Luccock, viajante inglês que esteve no Rio Grande em 1809, na cidade de Rio Grande havia apenas um sapateiro livre, sendo, os demais, cativos (possivelmente escravos de ganho). No curtimento de couros, a situação era diversa: pelas características do trabalho a ser realizado, que exigia um certo conhecimento técnico e dificilmente podia ser executado por apenas um homem, era provável que o serviço fosse, ao menos, orientado por um técnico livre. A única referência existente sobre a forma de funcionamento dos curtumes antes da chegada dos imigrantes alemães, diz respeito a um estabelecimento localizado na estância de José Egydio, Barão de Santo Amaro, nas proximidades de Porto Alegre. Esse curtume foi montado por volta de 1820, e o relato feito na época dava conta apenas de um técnico francês, o "Sr. Gavet, antigo curtidor em Paris", que seria o responsável pela instalação do curtume. Já na Revista do Archivo Publico, nº 8, de 1922, citavam-se "operários franceses", que trabalhavam sob a orientação do Sr. Gavet. O mais certo é que sob as ordens de operários especializados franceses, trabalhassem escravos de propriedade do dono do curtume.

Portugueses Origem da imigração açoriana Enquanto no Sul do Brasil o Império Português se defrontava com o problema de possuir muita terra para pouca gente, nas ilhas dos Açores a situação era inversa: havia muita gente para pouca terra. Assim, a decisão da coroa portuguesa de promover a imigração de açorianos para a região de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, em meados do século XVII, representou a solução de dois problemas, aliviando a pressão populacional nas ilhas e garantindo ao sul um povoamento mais denso do que o do sistema de sesmarias (uma sesmaria tinha 10.503 hectares), em que enormes glebas de terras ficavam nas mãos de poucos proprietários. A imigração subvencionada de casais açorianos foi feita a partir de 1748. Calcula-se que, entre 1748 e 1756, entraram no Rio Grande aproximadamente 2.300 açorianos - o que representava dois terços da população gaúcha de então. A idéia inicial era utilizá-los para ocupar a região das Missões, que pelo Tratado de Madrid (1750) passaria para Portugal, em troca da Colônia de Sacramento. No entanto, o Tratado foi anulado, Portugal não entregou Sacramento e nem recebeu as Missões, e os açorianos ficaram instalados nas margens do rio Jacuí.

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Com a invasão espanhola (em que foi ocupada a cidade de Rio Grande, em 1763), os comandantes militares portugueses fundaram diversas praças militares ao longo do Jacuí, para garantir o acesso, por via fluvial, a Rio Pardo, que se tornou, após a invasão, o posto mais avançado do domínio português. É nessa época que foram criadas as vilas de Santo Amaro, Triunfo, Taquari e, finalmente, a própria Rio Pardo. Além dos açorianos - que já se encontravam na região - foram concentrados na área os "retirantes" vindos das regiões mais ao sul, como de Rio Grande. Tendo recebido pequenas datas de terra e residindo em vilas, os colonos açorianos introduziram no Rio Grande a policultura, plantando aqueles produtos que lhes garantiam a subsistência e vendendo os excedentes nas vilas. Entre os seus cultivos destacou-se, até o início do século XIX, o trigo. Mas, em uma região de permanentes conflitos, cercados de grandes propriedades, os colonos açorianos terminaram por se incorporar ao meio, e se transformaram, aos poucos, em estancieiros. Essa primeira tentativa de colonização pela pequena propriedade fracassou e seria preciso esperar quase cem anos para que a idéia tivesse sucesso. No entanto, os açorianos deixaram algumas marcas na cultura gaúcha. São tipicamente açorianos os hábitos de se organizar irmandades que se dedicam à manutenção de uma igreja ou de obras de caridade. Aliás, uma das mais antigas irmandades do estado, e uma das poucas que ainda funciona, é a de Santo Amaro, fundada em 1814.

Portugueses Milicianos receberam terras como pagamento Dentro da origem portuguesa do Rio Grande, uma outra corrente, além de lagunenses e açorianos, não pode ser esquecida. Trata-se dos milicianos que, atraídos pelo soldo e pela perspectiva de receber terras ao final do período de engajamento, vinham para cá como membros das tropas portuguesas. Eram, em sua maioria, originários das capitanias de São Paulo e Minas Gerais, e através das sesmarias que lhes foram concedidas, ocuparam uma fatia significativa do Rio Grande. Para responder à pressão espanhola, que cresceu a partir da invasão de 1763, foram concedidas, a militares, terras nas regiões mais ameaçadas. Com isto o povoamento voltou-se para o sul, indo até Camaquã; para o sudeste (seguindo os vales do Camaquã Mirim e do Piratini) e para o oeste a partir de São Sepé, pelos vales dos rios Vacacaí-Cacequi e Santa Bárbara. É dessa época que data a fundação de várias pequenas vilas, que serviam de centros administrativos e religiosos de apoio aos moradores das sesmarias: Pelotas (a partir de 1780 começou seu povoamento); Encruzilhada (1770); Erval (que surgiu ao redor de um acampamento militar, em 1791); Caçapava e Canguçu (em 1880). Esses povoados e as sesmarias que os cercavam, garantiram a presença portuguesa ao sul do Jacuí. A bacia do Vacacaí também foi ocupada de 1790 (ano da fundação de São Gabriel) a 1794 (quando se fundou São Sepé). O mesmo aconteceu com a Depressão Central, onde, em 1727, havia sido estabelecido um acampamento militar que deu origem a Santa Maria. Já a região das Missões foi conquistada em 1801, mas permaneceu com uma densidade de ocupação muito baixa: uma área com cerca de 10 mil quilômetros quadrados até o rio Ibicuí, foi concedida a apenas 14 donatários - entre os quais, naturalmente, estavam os conquistadores da região. Também foi através de milicianos que receberam sesmarias que se ocupou a zona da fronteira, com cidades surgindo a partir de acampamentos e fortificações. É o caso de Bagé, São Gabriel, Alegrete e Livramento. Essas ocupações de milicianos tiveram sucesso onde a colonização de pequenas propriedades com açorianos não teve. Pois a estância, comandada por um militar ou ex-militar e razoavelmente auto-suficiente, tinha condições de resistir aos ataques que porventura sofresse. Já a pequena propriedade açoriana estava totalmente exposta, e não tinha como garantir a defesa do solo. Entretanto, não se pode minimizar a importância da colonização açoriana. Pois foi deles, dos milicianos de Minas e São Paulo e dos lagunenses, que se formaria a corrente luso-brasileira do sangue gaúcho que, mais tarde, se misturaria a muitas outras.

Espanhóis Pecuária, a maior contribuição A influência espanhola se fez sentir no Rio Grande do Sul, desde a sua formação. Pode-se mesmo falar que, sem a participação espanhola, a pecuária - que seria a base da economia gaúcha durante o século XIX e início do XX - não existiria com a importância que tem. Mas não é só isso: no linguajar da fronteira, nas influências culturais, países de língua hispânica desempenharam um importante papel no nosso século.

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Não poderia ser de outra forma. Afinal, o Rio Grande representou a principal zona de contato - e conflito - com os vizinhos espanhóis. Atualmente, metade de nossos limites territoriais se encontra com nações de origem hispânica: ao sul está o Uruguai, ao oeste a Argentina. No século XVII todo o atual estado estava em mãos espanholas. No século seguinte os portugueses conquistaram algumas áreas, e boa parte do território gaúcho voltou a ficar em mãos espanholas - suas tropas invadiram o sul do estado, ocupando a cidade de Rio Grande por 13 anos. Já no início do século XIX a situação foi inversa: foi o Brasil que ocupou a área do Uruguai, incorporando-o ao seu território como Província Cisplatina. Mas a maior contribuição espanhola, em termos econômicos, pode ser considerada a introdução de bovinos no Rio Grande do Sul. Durante o século XVII, quando formaram suas reduções com os índios guaranis, os jesuítas se preocuparam em dispor de grandes rebanhos de gado para garantir a alimentação de seus tutelados. Graças a isso e a ameaças de vinganças divinas é que eles mantiveram os índios reunidos. Quando os jesuítas foram expulsos, o gado ficou e se proliferou, tornando-se uma atração para portugueses e espanhóis. Os paulistas das bandeiras e os lagunenses que primeiro penetraram em território gaúcho o faziam em busca de gado. Também em termos culturais a influência espanhola se fez presente, em especial na zona da Campanha. Ali, vivendo situações parecidas e com atividades econômicas idênticas, os gaúchos dos dois lados desenvolveram vestimentas extremamente semelhantes. Também a alimentação é bastante parecida: a carne é a base alimentar de todo o pampa. Na região de Santa Vitória do Palmar, a influência platina se fez sentir até bem entrado o século XX. Isolados do resto do país e do estado antes da pavimentação da BR-471, que liga o município à cidade de Rio Grande, os moradores compartilhavam muito mais das atividades do Uruguai do que das do Brasil. Era com times uruguaios que se jogava futebol, os jornais e revistas vinham daquele país, se escutavam as rádios de lá. E isto se justificava: afinal a cidade uruguaia mais próxima, Castilhos, está a apenas 70 quilômetros, enquanto que Rio Grande fica a 238 quilômetros. A proximidade trouxe influências linguísticas, com vários termos se "acastelhanando". Essa situação também ocorreu em outros pontos da fronteira, onde a mescla de termos castelhanos e portugueses no linguajar cotidiano é freqüente. E, se houve influência na linguagem, também houve na arte: a poesia campeira, com seus poemas gauchescos, é comum aos três países do Cone Sul. No Rio Grande do Sul não existe uma cidade que possa ser considerada espanhola. Nem mesmo um bairro. E, se houver, serão poucas as famílias que, em casa, somente falam espanhol. Ao contrário dos esforços feitos em outras etnias, não existe um trabalho de recuperação e preservação das velhas tradições, procurando mantê-las vivas no dia-a-dia das pessoas. Para um estado que, no passado, teve suas terras pertencentes à Coroa da Espanha, restou, portanto, muito pouca coisa intacta. Mas muita coisa, da indumentária às formas de expressão que ainda prevalecem na fronteira, permaneceu com alterações - mesclada com os costumes dos portugueses que avançaram "a ferro e fogo" para o sul, essa cultura espanhola resultou em algo novo: no homem gaúcho, com uma cultura própria. O gaúcho, segundo historiadores da fronteira, "é mais espanhol que português". Em Santa Vitória do Palmar, por exemplo, alguns termos e formas de expressão deixam isso muito claro. Situada nos antigos Campos Neutrais (que não pertenceriam nem a Portugal e nem à Espanha) estabelecidos pelo Tratado de Santo Ildefonso, de 1777, Santa Vitória não conhece o pássaro joão-de-barro por esse nome mas como ornero. O pardal é corrião. E não se diz "não o viste", mas não lo viste. Algo semelhante acontece em Livramento, como, de resto, em toda a fronteira com o Uruguai. Ali, quando se vai a uma loja comprar um ferro elétrico pede-se uma plancha. Esse verdadeiro dialeto da fronteira é tão forte, que as pessoas, mesmo que se policiem, acabam utilizando termos regionais em sua comunicação habitual. Mas, é claro, isso não se trata de espanhol. O que é uma autêntica tradição espanhola é o velho costume que vem se mantendo no tempo, de empinar pandorgas (papagaios) na sexta-feira santa. As pessoas saem cedo de casa, com um farnel na mão e a pandorga pendurada nas costas, e seguem para os cerros da região, longe dos fios que fazem a transmissão de energia, para dedicar-se ao esporte. Trata-se de um costume muito antigo. A prova de que se trata de uma tradição espanhola foi obtida em Valencia, na Espanha, graças a pesquisa de historiadores da região, segundo a qual o costume foi levado a Livramento pelos espanhóis que chegaram à cidade através do porto de Montevidéu em algum momento do século passado. Como em território uruguaio a ferrovia ia até Rivera (onde foi inaugurada em 1892), espanhóis e italianos chegavam em grandes levas ao Brasil por esse caminho. Quando D. Pedro II visitou Livramento em 1865, o Conde D'Eu registrou em diário que "de duas mil almas, o elemento brasileiro não representa metade". Dentre os europeus, informou ele, predominavam os italianos. Os próprios

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registros da Associação Comercial da cidade indicam que, no final do século passado, a maior parte dos comerciantes locais era composta por espanhóis e italianos. Junto com eles, porém, chegou outro tipo de espanhóis - os anarquistas, que fugiam de seu país. Estes não só consolidaram um numeroso grupo na cidade, como, ali, patrocinaram o que deve ter sido uma das primeiras greves do Rio Grande do Sul, a dos funcionários do Armour, nas primeiras décadas deste século. Existem fotografias de cartazes escritos em espanhol durante a greve dos trabalhadores do frigorífico, que foi fundado na cidade em 1917 e ainda opera, mas como uma unidade de outro grupo empresarial. Não existem mais anarquistas em Livramento, mas os descendentes de espanhóis ainda são ativos, reunindo-se na Sociedade Espanhola de Socorros Mútuos. Seus descendentes continuam presentes no comércio, agora também engrossado por uruguaios voltados para o fornecimento de mercadorias para a população de seu país, que realiza parte de suas compras no lado brasileiro. Esta, aliás, é uma característica de toda a fronteira. Gaúchos se abastecem no Uruguai ou Argentina e vice-versa. Com isto é comum existirem comerciantes brasileiros no lado uruguaio ou argentino e comerciantes uruguaios ou argentinos no lado brasileiro. Em Jaguarão, por exemplo, se acredita que 20% do comércio está em mãos de uruguaios. De outro lado, são moradores de Jaguarão que detêm cerca de 40% da produção uruguaia de arroz. Jaguarão está onde antigamente havia a Guarda da Lagoa e do Cerrito, constituída em 1791 pela Coroa Espanhola, já que as terras do lado de cá do rio Jaguarão estavam dentro de seus domínios. Por isso, dos pouco mais de 200 anos da cidade uruguaia de Rio Branco (separada por um riacho de Jaguarão), dez foram passados em território brasileiro. O ano que marca o início oficial do povoamento de Jaguarão é 1801. A posse da terra nessa faixa da fronteira sempre foi muito conturbada. Os problemas começaram quando Portugal conquistou a Colônia de Sacramento em 1680. Nessa época, todo o Rio Grande do Sul, onde floresciam as reduções jesuíticas, era espanhol. Para apoiar os conflitos permanentes pela posse da Colônia - que trocou de mãos inúmeras vezes -, Portugal criou um núcleo de povoamento em Rio Grande no ano de 1737. De 1763 a 1776 os espanhóis, procurando recuperar terreno perdido, ocuparam Rio Grande. Em 1817 o governo português incorporou todo o atual Uruguai, dando-lhe o nome de Província Cisplatina, o que somente durou até 1828, quando os uruguaios garantiram sua independência. Os conflitos de terra na região, porém, ainda perduram, embora sem maiores problemas diplomáticos - reclamando de uma medição feita em 1856, os uruguaios alegam que uma área de 22 mil hectares que está em território brasileiro (onde foi fundada a Vila Thomaz Albornoz, em Livramento) na verdade lhes pertence. Todavia, não existem mais conflitos. Poucas pessoas ainda sabem que as califórnias da canção, realizadas anualmente em Uruguaiana para cultuar as tradições musicais do estado, derivam de algo não tão pacífico - antigamente, califórnias eram as expedições punitivas que comandantes brasileiros faziam em território uruguaio contra abusos praticados contra brasileiros que lá moravam. Antigamente, quem não conseguia dizer "pauzito" pronunciando o "z" era degolado, já que o castelhano dá a pronúncia do "c" em lugar do "z". Hoje os gaúchos casam com os castelhanos e as cidades fronteiriças são quase uma única comunidade. De tão pacífica que é a fronteira, velhos aposentados que não têm onde morar e que passaram a vida trabalhando como peões nas estâncias, preenchem seus dias vagando entre uma fazenda e outra nos dois lados, sendo abrigados e alimentados gratuitamente com base numa lei não escrita dos pampas. Nas cidades, a colaboração é ainda mais ampla: em Livramento, por exemplo, as redes de água e energia são interligadas com as de Rivera, para que uma cidade socorra a outra em caso de necessidade. Quando se tratar de um assassinato, também está convencionado que a investigação e o inquérito correrão na repartição do país onde for encontrado o corpo. Alemães O começo da colonização maciça do Rio Grande A primeira colonização maciça, após a tentativa feita com os açorianos, ainda no século XVIII, aconteceria, no Rio Grande do Sul, a partir de 1824, quando começaram a chegar os colonos alemães. Nos primeiros cinquenta anos de imigração foram introduzidos entre 20 e 28 mil alemães no Rio Grande, a quase totalidade deles destinados à colonização agrícola. Essa primeira grande colonização alteraria a ocupação de espaços, levando gente para áreas até então desprezadas. Introduziria também outras grandes modificações. Até então, a classe média

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brasileira era insignificante, e se concentrava nas cidades. Os colonos alemães iriam formar uma classe de pequenos proprietários e artesãos livres, em uma sociedade dividida entre senhores e escravos. A história da imigração alemã para o Brasil começou em 1822, quando o major Jorge Antonio Schaffer foi enviado por Dom Pedro para a corte de Viena e demais cortes alemãs, com o objetivo declarado de angariar colonos, e o não declarado de conseguir soldados para o Corpo de Estrangeiros situado no Rio de Janeiro. O segundo objetivo era, inicialmente, mais importante que o primeiro, pois tinha a finalidade de garantir a independência brasileira, ameaçada pelas tropas portuguesas que continuavam na Bahia após a declaração, e pela recusa de Portugal em reconhecer o Brasil como estado independente. Mas a intenção de obter soldados estrangeiros não podia ser revelada nas cortes européias, porque nenhum país do antigo continente concordaria com isto. Após a experiência com Napoleão, a Europa desconfiava de qualquer um que pudesse ser tomado como aventureiro ou golpista. E Portugal procurava justamente fazer com que Dom Pedro fosse visto como o líder de uma rebelião. Por isto, o trabalho de Schaffer foi dificultado. Usando a alegação de convocar colonos, em seus primeiros anos de trabalho von Schaffer convocou principalmente soldados - e uns poucos colonos. Porém, à medida em que o Império brasileiro foi se estabilizando, Schaffer passou, efetivamente, a se preocupar em enviar colonos. Para isto, anunciava aos interessados que, aqui no Brasil, receberiam 50 hectares de terra com vacas, bois e cavalos; auxílio de um franco por pessoa no primeiro ano e de cinquenta cêntimos no segundo; isenção de impostos e serviços nos primeiros dez anos; liberação do serviço militar; nacionalização imediata e liberdade de culto. Daquilo que foi oferecido, ao menos a primeira promessa superou as expectativas: ao invés de 50, os colonos receberam (no início) 77 hectares. Os dois últimos itens não poderiam ser cumpridos, porque contrariavam a constituição brasileira. Dos outros itens, alguns também não foram cumpridos integralmente. Mas o que interessava realmente aos colonos era a posse da terra, e isto, ao menos, obtiveram, se bem que à custa de grandes sacrifícios. Como era o Rio Grande do Sul no início da imigração alemã Apesar dos esforços de ocupação, no início do século XIX o Rio Grande do Sul ainda estava muito isolado, e era enorme a sua área desocupada. Em 1822 existiam em todo o seu território cem mil habitantes (menos de 10% da atual população de Porto Alegre), distribuídos da seguinte maneira: No Planalto Setentrional havia cerca de 10 mil habitantes, sendo 6.750 na região das Missões e o restante nos Campos de Cima da Serra, na região ao redor de Vacaria. Essa região, aliás, só teria uma ocupação maior entre 1828 e 1850, quando riograndenses de origem lusa se estabeleceram no planalto, desenvolvendo ali uma economia pastoril, ligada mais a Santa Catarina e São Paulo do que a Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande, devido às dificuldades do relevo e à floresta. No litoral, entre Torres e Santa Vitória do Palmar estavam 23.960 habitantes (22% da população). Na Depressão Central concentrava-se a maior fatia (36%), graças a Porto Alegre (com 10 mil habitantes) e Rio Pardo (com 3.600). Os restantes 31% estavam espalhados pela Campanha, que contava com 22 mil habitantes. A economia gaúcha centrava-se na pecuária. Portanto, os campos eram as zonas escolhidas para a ocupação luso-brasileira que, no entanto, não era muito intensa na região dos campos do Planalto. O Rio Grande tinha, em zonas desabitadas, quase toda a sua metade setentrional, compreendendo a zona de floresta na planície à margem dos grandes rios que formam o estuário do Guaíba, a encosta nordeste da Serra e os matos do Alto Uruguai. As razões dos alemães Por que os emigrantes alemães pretendiam deixar sua terra? A resposta é simples, e vale também para qualquer outro processo de migração humana: porque esperavam encontrar condições melhores. E, no início do século XIX, não eram boas as condições de vida do camponês alemão. Até o início do século passado a Alemanha era essencialmente rural. Existiam os senhores, que possuíam áreas menores ou maiores, e os servos, que estavam ligados à terra, tendo o direito - que era hereditário - de cultivar uma determinada gleba, mas sem terem a posse da área que cultivavam. Tinham, também, obrigações - que variavam de região para região - relativas ao pagamento de taxas e a prestação de determinado número de dias de serviço ao senhor. No início do século XIX, graças à pressão do aumento populacional que vinha se processando desde o século XVII, ao início do processo industrial e às guerras napoleônicas, a estrutura feudal alemã foi derrubada, embora a região continuasse essencialmente rural. Abriu-se aos camponeses a possibilidade de deixarem de ser servos e se tornarem proprietários. Mas, para isto, tinham que ceder um terço de sua área para o seu senhor. Para o camponês que

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possuía uma área média foi uma solução benéfica: dava um terço de sua gleba e ainda ficava com o suficiente para se sustentar. Mas, para o pequeno camponês, a situação ficou difícil, e ele tinha que se empregar como trabalhador agrícola ou arrendar mais terras para cultivar para poder garantir seu sustento. Quando tinha muitos filhos - e essa era a regra entre os camponeses - a situação piorava. Cada filho herdava uma fração diminuta de terras. Diante desse quadro, a opção era emigrar. Convém lembrar que, quando teve início o processo de emigração para o Brasil, a Alemanha não era ainda um país unificado. Era formada por diversos estados, que só se unifcariam em 1871. Assim, dois fatores iriam resultar na emigração. O primeiro era a determinação - ou não - dos estados em deixarem seus súditos emigrarem. Pelo menos no início do período de emigração para o Brasil, a Áustria proibia a emigração, e a Prússia tratava de impedir ao máximo. Já em Württemberg e Hannover a postura era de liberalidade, enquanto que na Baviera existiam algumas limitações. O segundo fator que determinava a emigração era a situação econômica da região, em especial a situação da propriedade agrária: emigrava-se mais onde a situação era pior. Os primeiros colonos alemães vieram das regiões de Holstein, Hamburgo, Mecklemburgo e Hannover. Logo, porém, a região de Hunsrüch e do Palatinado passaram a fornecer o principal contingente. Houve também grupos de pomeranos (toda a colônia de São Lourenço), de westfalianos, de wurtembergenses e de boemios, além de pequenos grupos de todas as partes da Alemanha. Quanto à religião, predominaram os protestantes, mas por pequena margem. Dezenas de colônias no interior e 50 mil imigrantes A primeira leva de colonos alemães chegou ao Rio Grande do Sul em 1824, tendo desembarcado, em 25 de julho, na colônia de São Leopoldo (antiga Real Feitoria de Linho Cânhamo). A essa leva inicial - composta de 39 pessoas de nove famílias - se seguiram outras e, entre 1824 e 1830 entraram no Rio Grande 5.350 alemães. Depois de 1830 até 1844 a imigração foi interrompida. Entre 1844 e 50 foram introduzidos mais dez mil, e entre 1860 e 1889 outros dez mil. Entre 1890 e 1914 calcula-se que 17 mil alemães chegaram ao estado. A estimativa geralmente aceita é de que, entre 1824 e 1914, entraram no Rio Grande entre 45 e 50 mil alemães, e que, no total, foram criadas 142 colônias alemãs no estado. A partir de São Leopoldo as colônias alemãs se espalharam primeiro pelas áreas mais próximas, atingindo depois zonas mais isoladas. Geralmente as colônias - principalmente as primeiras - se situavam à beira de rios. Isso tinha uma grande importância estratégica: em uma época em que os caminhos eram muito precários, os rios serviam como "estrada fluvial" para o recebimento de equipamentos e escoamento da produção. Na primeira etapa o governo fez duas tentativas de colonização em locais menos acessíveis, mas ambas falharam. A primeira foi ainda em 1824, quando se decidiu reunir os imigrantes considerados indesejáveis em São Leopoldo (aqueles que criavam problemas) e enviá-los para ocupar a região das Missões. Assim, um grupo de 67 indivíduos foi encaminhado para aquela que seria a colônia de São João das Missões. Mas, ao longo da viagem e já na região, vários dos imigrantes adoeceram, ou debandaram, e o grupo começou a se dissolver, com seus remanescentes sendo conduzidos para São Borja. A outra tentativa foi feita no litoral, em Torres. Seu objetivo era povoar a zona de mata entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e lá foram estabelecidos dois núcleos, a partir de 1826: um formado por católicos em São Pedro de Alcântara, outro de protestantes em Três Forquilhas. Isolados, sem poder comercializar sua produção, os dois acabaram por também se dissolver. Os alemães que ficaram na área se integraram à população e cultura da região, enquanto que alguns subiram a serra, indo para a zona de São Francisco de Paula e Bom Jesus. Mas, de maneira geral, a colonização obedeceu a uma ocupação sistemática. Apesar da interrupção da imigração e colonização patrocinadas pelo governo central a partir de 1830 (a prática seria retomada mais tarde), o governo da Província (em alguns períodos) e particulares cuidariam de criar colônias e vender os lotes. A partir de São Leopoldo foram ocupadas - por empreendimentos particulares - as margens do rio dos Sinos, com colônias como Mundo Novo (atual Taquara), de 1847; Padre Eterno, Sapiranga e Picada Verão (todas de 1850). Também foi loteado o médio Caí, onde se criaram Bom Princípio (1846), Caí (1848), Montenegro (1857) e Nova Petrópolis (1858), entre outras. Esta última, colônia provincial, foi o ponto mais alto que a colonização alemã atingiu na serra. Já no vale do Taquari e rio Pardo se instalaram Estrela (1853), Lajeado (1853) e Teutônia (1868), e até o fim do século as terras à venda do lado ocidental do médio Taquari estavam todas ocupadas por alemães. O governo da província, por sua vez, criou em 1849 a colônia de Monte Alverne em Santa Cruz, e em 1855 a de Santo Angelo - atualmente Agudo, nas imediações de Cachoeira.

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No último decênio do século XIX não existiam mais terras à venda nas margens inferiores dos rios, e a serra já estava ocupada pelos italianos (que começaram a chegar na década de setenta). Iniciou-se então a colonização do Alto Uruguai, com colônias que iam desde Marcelino Ramos até o rio Ijuí. Nessa etapa foram criadas quase que exclusivamente colônias particulares, com algumas exceções, como Sobradinho (1901) e Erechim (1908), patrocinadas pelo estado; e Ijuí (1890), criada pela União. Outra característica dessa fase é que, enquanto que nas colônias particulares predominavam grupos de uma mesma etnia, nas oficiais havia a preocupação de misturar elementos de diferentes origens. Isto foi feito, por exemplo, em Ijuí, que desde sua criação recebeu colonos das mais variadas procedências. As novas colônias que surgiram a partir do núcleo inicial de São Leopoldo, não foram, entretanto, ocupadas apenas por imigrantes alemães. Houve um processo a que o historiador Jean Roche - estudioso da imigração alemã no Rio Grande do Sul - deu o nome de "enxamagem". Os filhos de colonos (ou mesmo os colonos) das zonas mais antigas saíam em busca de terra nas novas regiões, e com isto foram ocupando boa parte do Rio Grande. Quando, depois de 1914, não existiam mais áreas disponíveis no estado, esses colonos passaram a migrar para Santa Catarina e Paraná e, de lá, foram - em uma etapa mais atual - para o Mato Grosso. Pomeranos, os plantadores de batata Pomerano significa, literalmente, plantador de batata. A Pomerânia, de onde esse povo veio para o Brasil, está atualmente em território polonês. Descendentes de uma mistura de germanos com eslavos oriundos de regiões antigamente ocupadas pelos celtas, os pomeranos habitavam uma província da forte Prússia do século XVIII. Sua área original foi dividida há algumas centenas de anos, entre prussianos, suecos e poloneses. No século passado, esteve ocupada pela Áustria, Prússia e Rússia. Tentando russificar à força os poloneses e os demais povos que estavam em seu território, o regime czarista forçou a imigração de centenas de milhares de pomeranos. Alguns se refugiaram na Alemanha e muitos procuraram outros países. Os que ficaram se miscigenaram rapidamente para evitar as perseguições. Assim, pode-se dizer que não existem pomeranos em suas áreas de origem. Perseguidos por todos os lados, os que ficaram na Europa perderam todos seus traços culturais, inclusive o dialeto que é considerado oficialmente morto. No momento, o pomerano é falado apenas no Brasil e uma das colônias mais importantes está no Rio Grande do Sul, em Harmonia, próximo a São Lourenço do Sul. Outras estão em Santa Catarina e Espírito Santo. Mas, se falam o dialeto, os pomeranos não podem escrevê-lo corretamente. Desconhece-se a grafia do pomerano. Algumas pessoas apenas conseguem reproduzir os sons, e quando isso acontece somente outro pomerano pode entender alguma coisa. Entre as crianças, nem todas já conseguem falar a língua dos pais. A relação dos pomeranos com os alemães são muito frias, embora sejam apontados como alemães. Mais simples, pobres, e de menor nível cultural, os pomeranos continuam sendo agricultores no Brasil, onde também plantam batatas, entre outras culturas: sua atividade, no momento, está muito diversificada e nos últimos anos tem sido um pouco melhor remunerada desde que começaram a plantar fumo. A mistura racial fez com que, entre os pomeranos, não predominem os louros. Predominam homens e mulheres com cabelos pretos. Com pouco tempo para a diversão, a vida comunitária não é tão rica quanto a dos alemães: não se festeja o kerb (a festa mais importante dos alemães, ocorrida em cada comunidade no aniversário da inauguração da igreja, seja ela católica ou protestante) e não há o tiro-rei (festival de tiro, ao final do qual se escolhe o rei do torneio, fazendo-se um desfile pela cidade, seguido de grande festa). O canto coral é menos disseminado, embora seja importante. A chegada a São Lourenço do Sul A chegada de pomeranos e alguns alemães em São Lourenço do Sul começou trinta e quatro anos após o início de sua imigração para o Rio Grande do Sul, iniciada por São Leopoldo. Esse fluxo de pomeranos para a parte sul do estado se deve ao trabalho de Jacob Rheigantz. Ele era sócio da Casa Comercial de Guilherme Ziegenbein, de Rio Grande, e viajava muito para a região de São Lourenço, que já era ocupada há setenta anos por imigrantes açorianos e portugueses oriundos de Laguna. Conhecendo as potencialidades da área para a produção de alimentos, Rheigantz celebrou um contrato com o Império, comprometendo-se a ocupar a Serra dos Tapes com alemães, suiços ou belgas - ele comprou as terras onde se daria o assentamento e receberia uma ajuda de custo por cada colono que assentasse.

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Os primeiros imigrantes - todos alemães e principalmente pomeranos - chegaram em outubro de 1857 e cinco anos após já havia mais de três mil instalados. Como algumas terras compradas não foram entregues por Rheingantz, em pouco tempo se estabeleceu o descontentamento na colônia. Em 1867 um destacamente policial que se instalou na área proibiu a realização de bailes públicos, ajuntamentos de mais de três pessoas, jogos nas vendas e, entre outras coisas, que os colonos andassem armados. Apesar disso, no final desse ano os colonos, revoltados, invadiram a sede do destacamente e a casa de Rheingantz, obrigando-o a fugir. Com a colônia pacificada, ele voltou anos depois e começou a adquirir terras lindeiras e instalou novos colonos. Quando viajou à Alemanha para selecionar um novo grupo morreu no porto de Hamburgo. A administração da colônia foi então assumida por seu filho, Carlos Rheingantz, que, em 1873, também fundou em Rio Grande uma das primeiras indústrias do estado, a Companhia União Fabril, cujas instalações ainda são preservadas na cidade. Por este motivo, abandonou a direção e os interesses da família na área foram vendidos em 1898 para João Batista Scholl, que terminou a implantação do empreendimento. Harmonia é a área mais pomerana da região. Calcula-se que 99% dos moradores sejam pomeranos. É uma região composta por pequenas propriedades, onde trabalham as próprias famílias. A carroça puxada por juntas de bois, a aração manual da terra e a associação da pequena agricultura com a pecuária de leite e criação de porcos, são algumas das marcas registradas dessa área.

Italianos Os homens do vinho ficaram nas terras altas Embora tenham encontrado um Rio Grande mais organizado economicamente, os italianos tiveram de enfrentar dificuldades semelhantes às vividas pelos alemães. Mas, embora ambas as colonizações tenham sido feitas em zonas de mato, as áreas de ocupação italiana eram mais altas e mais acidentadas. Enquanto a colonização alemã atingiu seu ponto máximo em Nova Petrópolis (597 metros de altitude), a italiana se faria em altitudes que variavam entre 600 e 900 metros. Isto porque a colonização alemã seguira os vales dos rios de parte da Depressão Central, interrompendo-se nas encostas inferiores da Serra Geral. A região da Encosta superior estava desocupada, e a colonização italiana começaria ali - entre os vales dos rios Caí e das Antas, limitando-se ao norte com os campos de Cima da Serra, e ao sul com as colônias alemãs do vale dos rios das Antas e Caí. As primeiras colônias na Encosta Superior foram as de Conde dÉu e Dona Isabel (atualmente Garibaldi e Bento Gonçalves, respectivamente), criadas pela presidência da província em 1870, antes que se iniciasse o processo de imigração italiana no estado. Para ocupá-las, o governo provincial firmou contrato com duas empresas privadas, que deveriam introduzir 40 mil colonos em um prazo de dez anos. Mas, como normalmente acontecia com esse tipo de contrato - que também foi adotado em alguns momentos pelo governo central - o sucesso foi pouco. Em 1872 chegaram 1.354 imigrantes, no ano seguinte 1.607, no de 1874 foram 580 e no de 1875 só 315. Os motivos para isto foram vários. Na Europa Central, e em especial na Alemanha, havia uma prevenção generalizada contra o Brasil - que era visto como um local onde os imigrantes sofriam privações. Além disso, o governo provincial pagava menos para os transportadores do que o governo central, o que os desestimulava. Quanto aos próprios imigrantes, preferiam ficar no sopé da serra, nas áreas já colonizadas, do que se arriscarem mato adentro. Por isto em 1874 só 19 lotes de Conde d'Eu estavam sendo cultivados, com apenas 74 pessoas vivendo no local. Desestimulado por esse quadro de insucesso, o governo provincial desistiu de administrar a colonização da área, e repassou-a para o governo central. É a partir de 1875 - sob a administração da União - que chegam as primeiras levas de italianos para Conde D'Eu e Dona Isabel. A área dessas colônias encontrava-se limitada pelo rio Caí, os campos de Vacaria e o município de Triunfo, sendo divididas entre si pelo caminho de tropeiros que seguia do local chamado de Maratá em direção ao rio das Antas (Conde d'Eu ficava à esquerda, Dona Isabel à direita). No mesmo ano - 1875 - foi criada a colônia Caxias, no local chamado pelos tropeiros que subiam a serra em direção a Bom Jesus de "Campo dos Bugres". Esta colônia limitava-se com Nova Petrópolis, São Francisco de Paula, o rio das Antas e Conde d'Eu e Dona Isabel. Dois anos depois, em 1877, foi criada uma nova colônia para imigrantes italianos, a de Silveira Martins, em terras de mato próximas de Santa Maria. Essas quatro colônias oficiais foram o núcleo básico da colonização italiana que, a partir dali, em uma primeira etapa, transbordaria para regiões próximas, que foram ocupadas por colônias particulares, e

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mais tarde atingiria o planalto. Foi assim que, em 1884, os colonos começaram a atravessar o rio das Antas e foi criada Alfredo Chaves; São Marcos e Antonio Prado (1885) foram, por sua vez, um prolongamento natural de Caxias. Também o governo imperial (pouco depois federal) criou as colônias italianas de Mariana Pimentel (1888), Barão do Triunfo (1888), Vila Nova de Santo Antonio (1888), Jaguari (1889), Ernesto Alves (1890) e Marquês do Herval (1891). A partir da Proclamação da República houve a preocupação de que as colônias criadas fossem mistas, com membros de várias etnias. Mas a idéia teve sucesso apenas parcial, pois geralmente os colonos se remanejavam, reagrupando-se, por iniciativa própria, segundo seus grupos étnicos. Da mesma forma que os alemães, os italianos tinham que desbravar a terra que adquiriam. Mas, agora, os lotes eram bem menores, tendo uma média que ficava entre 15 e 35 hectares. Ali plantavam produtos de subsistência, como o milho e o trigo. Mas o cultivo que marcou sua presença no Rio Grande do Sul foi a videira. Antes de sua chegada, a produção vinícola do Rio Grande era considerada de qualidade inferior. Mas os primeiros colonos trouxeram novas variedades de uvas e isto ajudou a aperfeiçoar a qualidade do vinho gaúcho. A partir do início deste século começavam a ser formadas cooperativas vinícolas e a produção foi crescendo e melhorando, transformando o estado no principal produtor de vinhos finos do país. Italianos Fome e caos estão na origem da emigração A emigração italiana, como a alemã, foi provocada por fatores eminentemente econômicos. Mas, embora a base das duas tenha sido semelhante - alterações da economia que impossibilitaram a subsistência do pequeno proprietário - o processo que resultou na emigração diferiu nos dois países. Entre as semelhanças, entretanto, convém destacar duas: a primeira, comum a toda a Europa, foi o grande crescimento demográfico, experimentado entre 1815 e 1914, que fez com que, nesse período, a população do velho continente saltasse de 180 para 450 milhões de habitantes, o que provocou a emigração para outros continentes de 40 milhões de pessoas - 85% das quais para as Américas. A segunda foi o processo de unificação, que em ambos os países foi tardia: em 1870 na Itália, em 1871 na Alemanha. Mas a Itália de 1870 - época em que começa a emigração maciça - apresentava suas peculiaridades. Ainda na década de 60, antes de concluída a unificação, a supressão das alfândegas regionais, a oferta de produtos industriais a preços reduzidos e o desenvolvimento das comunicações haviam destruído a produção artesanal, atingindo os pequenos agricultores - que complementavam a sua renda com o trabalho em indústrias artesanais existentes no campo. A unificação alfandegária - que impôs a toda a Itália o sistema alfandegário da Sardenha, que tinha as taxas mais baixas - fez com que as economias regionais, que até então, mais ou menos fechadas, conseguiam manter um certo equilíbrio, sofressem um violento baque. Também a disparidade econômica do Norte - que se industrializou mais cedo - e do sul (mais agrícola) agravou o quadro econômico do país. Preocupado em obter recursos para a realização de obras públicas, como ferrovias, o governo italiano tomava medidas impopulares, como o imposto sobre a farinha, que atingia duramente os pobres. Nas décadas de 70 e 80 várias decisões dessa ordem aumentariam os problemas. Exemplo disto foi a de controlar a entrada dos cereais vindos das Américas, que eram vendidos mais barato do que os produzidos localmente. Essa medida beneficiava apenas os grandes produtores, que vendiam o produto, já que os pequenos produziam apenas para seu uso. Mas, ao mesmo tempo, prejudicava toda a população, que era obrigada a comprar farinha por um preço mais caro. Também a indústria vinícola foi atingida por medidas desse tipo. O governo italiano resolveu unilateralmente decretar uma taxa alfandegária sobre a entrada de produtos. A França, como resposta, tomou atitude semelhante: decretou uma taxa para produtos italianos. Com isto, a exportação de vinho da Itália para a França caiu de 300 milhões de litros em 1887 para 1,9 milhão em 1890. A situação, do ponto de vista do pequeno agricultor, era caótica. A pequena indústria artesanal, que complementava a sua renda, tinha sido destruída. Os impostos estavam elevados. Os minifúndios eram cada vez menores e a solução era apelar para a passarinhada - caçar passarinhos se tornou a única alternativa para ingerir proteínas de origem animal. Aumentou também o consumo de pratos à base de milho, como a polenta. Com um dieta alimentar desequilibrada, os camponeses se tornaram subnutridos e fracos, e começaram a sentir o peso da visitante que sempre acompanha a miséria: a doença. Cresceu o número de casos de malária e de pelagra (avitaminose causada pelo consumo quase que exclusivo de milho). A alternativa foi emigrar.

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A maior parte veio do Vêneto Embora a situação econômica de toda a Itália tenha se deteriorado durante o período final do século passado, a crise não abalou igualmente todas as regiões. O Norte foi a primeira área a ser atingida, pois ali começou a se desenvolver a industrialização, deixando os agricultores que complementavam sua renda com o trabalho artesanal sem emprego e sem ter mercado para colocar seus produtos - que não podiam competir com os feitos pelas fábricas locais ou com os importados. Por isto, o norte da Itália forneceria as primeiras grandes levas de emigrantes, e o Sul só viveria o processo de emigração mais tarde, principalmente a partir do início deste século. O Rio Grande receberia parte dessas primeiras levas, a partir de 1875, vindos primeiro do Piemonte e Lombardia, e depois do Vêneto. Quando começou a imigração do Sul, em 1901, as terras disponíveis no estado já estavam quase que totalmente ocupadas e, por isso, no Rio Grande predominaram os italianos vindos do norte. Os primeiros colonos que chegaram aqui escreviam para suas famílias e amigos, contando as vantagens que encontraram na nova terra - e muitas vezes omitindo as dificuldades. Assim, atraíram novos imigrantes, e por isto muitos dos que vieram para cá são das mesmas localidades e até das mesmas famílias. A principal área de emigração para o Rio Grande, na Itália, foi o Vêneto, onde a crise era maior por volta de 1875, sobretudo nas províncias de Vicenza, Treviso e Verona. Também vieram muitos de Cremona, Mântua e parte da Bréscia, regiões próximas do Vêneto, e do Bérgamo, província no sopé dos Alpes. A região de Trento, especificamente na área de Trentino Alto Ágide (que só foi anexada à Itália após a Primeira Guerra Mundial) e de Friuli-Venécia Julia (principalmente nas montanhas próximas ao Vêneto) também forneceram emigrantes para o Rio Grande. Em um cálculo aproximado, estima-se que do total de imigrantes que veio para o estado, 54% era de vênetos, 33% de lombardos, 7% de trentinos, 4,5% de friulinos e as outras regiões forneceram os restantes 1,5%. Calcula-se que, entre 1875 e 1914, entraram no estado entre 80 e 100 mil italianos. A grande predominância de vênetos fez com que aqui os dialetos da região prevalecessem, e que, da fusão dos diversos dialetos, surgisse uma "língua geral", que é chamada de vêneto. Mas essa "língua" foi enriquecida com expressões locais, para designar hábitos e objetos inexistentes na Itália, tais como o churrasco (sorasco), bombacha (bombassa) e cangalha (gringaia). O Rio Grande do Sul na época da imigração italiana O Rio Grande do Sul encontrado pelos italianos era muito diferente daquele que os alemães viram ao chegar. De 110 mil habitantes em 1824 havia saltado para 440 mil. Dessa população, um sexto se achava concentrada na zona de colonização alemã, e o restante se reunia principalmente na depressão central. Já não existiam somente os cinco municípios de 1824 (Porto Alegre, Rio Grande, Santo Antonio da Patrulha, Rio Pardo e São João da Cachoeira). Eram agora 28, incluindo Porto Alegre, Alegrete, Bagé, Cachoeira, Caçapava, Canguçú, Conceição do Arroio, Cruz Alta, Dores de Camaquã, Encruzilhada, Itaqui, Jaguarão, Passo Fundo, Pelotas, Piratini, Rio Grande, Rio Pardo, Santa Maria, Sant'Ana do Livramento, Santo Antonio da Patrulha, São Borja, São Gabriel, São Jerônimo, São José do Norte, São Leopoldo, Taquari, Triunfo e Uruguaiana. A ferrovia já era uma realidade, existia rede telegráfica, sistema bancário organizado e a navegação fluvial a vapor encontrava-se bastante desenvolvida. Todos esses elementos facilitavam a comunicação entre os diferentes pontos da província, e permitiam uma atividade econômica mais sólida e organizada - não obstante ainda estivesse centrada na pecuária e na agroindústria do charque, couro e outros derivados. Além disto, a província estava mais "pacífica". A Guerra do Paraguai acabara há pouco tempo, as campanhas do Prata tinham ficado para trás, a Revolução Farroupilha - que havia atingido em cheio a colônia alemã de São Leopoldo em seus primeiros anos - era coisa do passado. Isto não significava que as coisas fossem permanecer assim: haveria a Revolução Federalista de 1893, a de 1923, a Revolução de 1930. Mas isto pertencia, então, ao futuro. Entretanto, uma coisa - e que era a motivação básica da imigração - permanecia igual. Ainda existia muita terra para ocupar, principalmente nas serras na encosta nordeste e no Alto Uruguai, em um total, na província, de 87 mil quilômetros quadrados de terras devolutas.

Negros A história dos gaúchos sem história Os negros entraram na história do Rio Grande do Sul desde seu início. Mas o fizeram como personagens secundários, pouco lembrados, pouco citados - não obstante sua atuação tenha sido, provavelmente, decisiva para a própria formação do estado. Porque para o português branco, o negro

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era um complemento indispensável de sua atividade: na terra, na casa, na luta, ele se assemelhava à argamassa que, escondida entre os tijolos, mantinha a estrutura, mas que não era nunca levado em conta. Não é à toa que em um texto escrito em 1807 por Manoel Antonio de Magalhães, em que faz reflexões sobre a situação da capital do Rio Grande, os negros sejam equiparados, literalmente, a equipamentos. O autor defende que deva ser proibida a exportação de escravos do Brasil para as colônias espanholas, pois os escravos são de importância militar "como os artigos de guerra: pólvora, balas, armas, chumbo, ferro, cobre, aço, estanho, salitre e toda a sorte de massames náuticos". Quando a bandeira de Raposo Tavares explorou os vales dos rios Taquari e Jacuí, no final de 1635, existiam escravos negros entre seus membros. Também em 1680, na fundação da Colônia de Sacramento, a expedição comandada por Manoel Lobo trazia escravos negros. Eram 200 militares, três padres e 60 negros, dos quais 41 escravos do comandante, seis mulheres índias e uma branca e índios. Os negros representavam, portanto, mais de 20% da expedição - sem se considerar os soldados negros e mulatos livres que eram usados pelos exércitos daquela época. Também as expedições posteriores que se dirigiram à Colônia de Sacramento levavam mais negros. Outro ponto fundamental para a história da ocupação do Rio Grande foi a fundação de Laguna, em Santa Catarina. Afinal, de lá sairiam várias expedições destinadas primeiro a prear gados, segundo a ocupar o Continente de São Pedro. E na fundação de Laguna também o negro estava presente, bem como nas expedições que os lagunenses fizeram ao Rio Grande, em que constituíam a maioria dos membros. Mas foi a partir do desenvolvimento das charqueadas - que começa em 1780, com ocupação da área de Pelotas - que o tráfico negreiro começa a tomar volume. Naquele ano, os escravos - calculados em 3.280 - representavam 29% da população total do Rio Grande do Sul, e se encontravam concentrados em duas áreas principais. A primeira era ao longo da estrada dos tropeiros, que ligava o extremo sul do Rio Grande ao resto do país, pelo roteiro Rio Grande-Mostardas-Porto Alegre-Gravataí-Santo Antônio da Patrulha-Vacaria, ao longo do qual se localizavam as maiores estâncias. Nessa região estavam cerca de 65% dos escravos. A outra área de grande concentração estava no eixo Porto Alegre-Caí-Taquari-São Jerônimo-Santo Amaro-Rio Pardo-Cachoeira, ao longo do Jacuí, onde se concentravam 35% dos escravos, especialmente em São Jerônimo. Esses números seriam grandemente aumentados com as charqueadas, saltando para 50% da população gaúcha em 1822, quando José Antonio Gonçalves Chaves, estancieiro e charqueador de Pelotas, calculou que dos 106.196 habitantes da província metade fosse de escravos. Esses números talvez estivessem exagerados - afinal, Gonçalves Chaves era contra a escravidão, e usou de todos os argumentos para combatê-la em sua obra "Memórias Economo-políticas sobre a administração pública do Brasil". Um deles era justamente o de que "o excessivo número de escravos faz com que não o possamos tratar como temos obrigação". Mas, de qualquer forma, sabe-se atualmente que seu número era expressivo, e calcula-se que em 1858 alcançava quase 25% da populaçào riograndense. No entanto, a história desse povo sem história tem de ser procurada em dois tipos de fontes: ou nas notas que acompanham as narrativas, em que aparecem geralmente como "e uma grande quantidade de homens negros", ou em alguns episódios mais marcantes - que, por suas características singulares, são registrados. É esse o caso dos dois corpos de lanceiros que participaram das tropas farroupilhas durante a Revolução, que entraram para a história mais por terem sido vítimas de uma ainda não bem esclarecida traição (na Batalha de Porongos), que fez com que fossem eliminados para não comprometerem as negociações de paz entre farrapos e o Império. Negros Os angolas, minas, congos e moçambiques É difícil estabelecer de que região da África vieram os negros que aportaram, ao longo do século passado, no Rio Grande do Sul. Sabe-se que vieram do porto do Rio de Janeiro, mas não existem detalhes precisos quanto aos portos de origem da África, e menos ainda quanto às regiões em que foram capturados para serem levados para os portos de embarque. Isto porque os africanos muitas vezes eram caputados a centenas de quilômetros do porto onde seriam embarcados para o cativeiro. E, geralmente, na chegada ao Rio - ou aos outros portos - registrava-se como origem o porto de embarque. Mas, de maneira bastante imprecisa, é possível falar em três regiões principais de origem, com especial destaque para uma delas. A região que se destaca é a da costa angolana, que mantinha maior contato com o porto do Rio de Janeiro. Dali vieram os escravos de cultura banto e congo. Outra região que também foi fonte de abastecimento de escravos para o Brasil foi a de Moçambique e adjacências. Os africanos vindos dessa área eram denominados genericamente de moçambiques. Por último também vieram grupos de cultura sudanesa, na região da Costa do Ouro, entre os quais se destacavam os minas.

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No Rio Grande os grupos de africanos aqui introduzidos recebiam geralmente a denominação de angolas, congos, minas e moçambiques. Isto, entretanto, não significa que fossem efetivamente dessas áreas.

Judeus Fugindo da miséria e querendo viver em paz A principal causa das imigrações açoriana, alemã e italiana para o Rio Grande do Sul foi a oportunidade de fugir de uma situação econômica difícil, e de reiniciar a vida em um local onde fosse possível sobreviver com dignidade. Nesse quadro a terra - escassa na Europa - se apresentou como um fator de atração. Aqui havia terra mais do que suficiente para todos. Mas um grupo de imigrantes teve uma outra motivação, além da miséria e falta de terras, para vir para cá. Foram os judeus, que fugiram da discriminação existente em seus países de origem, e buscavam a oportunidade de viver em paz. A imigração judaica pode ser dividida em duas correntes: uma rural, a outra urbana. A corrente rural foi composta por imigrantes que vieram para se instalar em lotes coloniais. A urbana, posterior, foi formada por aqueles que vieram diretamente para as cidades, em especial para Porto Alegre, principalmente nas décadas de vinte a quarenta deste século, e que tornaram o Bom Fim o bairro judeu por excelência. A história da imigração rural começou graças à iniciativa de um homem, o Barão Maurício de Hirsch, francês de origem judaica que era banqueiro em Bruxelas. Preocupado com a situação dos judeus russos - que eram altamente discriminados e sujeitos a perseguições periódicas - Hirsch resolveu criar, em 1891, uma organização para a instalação de colônias agrícolas em diversos países, para as quais pudessem emigrar os judeus oprimidos da Europa. Assim, fundou a Jewish Colonization Association (conhecida como JCA ou ICA), que criou colônias agrícolas tanto na Argentina como no Brasil. Com esse objetivo foi adquirida, em 1903, uma área de 5.767 hectares em Santa Maria, para estabelecer a primeira colônia brasileira. Essa colônia recebeu o nome de Philippson, em homenagem a Franz Philippson, vice-diretor da ICA e presidente da Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au Brésil, que atuava no Rio Grande. Ali, a partir de 1904, começaram a chegar os primeiros imigrantes, vindos da Bessarábia - região russa entre os rios Pruth e Dniester, banhada pelo mar Negro. Mais tarde, vieram outros também da Rússia, da Argentina e dos Estados Unidos. Na nova terra, os imigrantes receberam lotes de 25 a 30 hectares, com uma residência, instrumentos agrícolas, duas juntas de bois, duas vacas, carroça, cavalo e sementes, a um preço de cerca de cinco contos de réis, a serem pagos em prazos de 10 a 15 anos. Pouco mais tarde, em 1909, a ICA adquiriu a fazenda Quatro Irmãos, de mais de 93 mil hectares, que ficava no então município de Passo Fundo (atualmente em Erechim e Getúlio Vargas). Parte da fazenda foi dividida em lotes de 50 hectares que, em condições semelhantes às de Philippson, foram entregues aos colonos vindos da Argentina, Bessarábia e outras áreas. Com a vinda de novas levas de imigrantes, foram criados outros núcleos de colonização, na região de Quatro Irmãos: Barão Hirsch (1926), Baronesa Clara (1927) e, mais tarde, Rio Padre e Pampa. No entanto, a enorme maioria dos colonos não permaneceu nesses lugares, mudando-se mais tarde para cidades próximas (Santa Maria, Erechim e Passo Fundo) ou para Porto Alegre. Para isto, contribuíram dois fatores. O primeiro foi a Revolução de 1923. Após o seu término, grupos de revolucionários e de tropas governamentais ficaram vagando pelo estado, ameaçando e assaltando a população. Um desses grupos, em 1925, invadiu a vila de Quatro Irmãos, saqueando casas e agredindo colonos. Um deles chegou a ser assassinado. Esses fatos assustaram os colonos, que decidiram buscar maior segurança nas cidades. Outro fato, de ordem inteiramente diversa, foi a preocupação que os imigrantes tinham com a educação dos filhos. Como nas colônias só havia ensino primário, tinham que enviar seus filhos para estudar nas cidades. Isto, para muitos, criava um problema: era difícil sustentá-los, tendo que pagar pensões para que morassem, roupas, estudo, etc. Assim, terminaram optando por irem, eles também, morar em cidades. Judeus As três correntes de Porto Alegre Com o fim da colonização rural, iniciou-se uma outra etapa do processo de imigração judaica. Nessa segunda fase, predominou a imigração diretamente para cidades, em especial Porto Alegre, sempre fugindo de situações adversas em seus países de origem.

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Historicamente, essa etapa iniciou-se antes da rural - no final do século passado alguns imigrantes alsacianos vieram para Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas. Mas é a partir da década de vinte que se acentua a imigração, e na década de trinta toma força o processo. Em 1910 foi fundada a mais antiga sinagoga ainda em funcionamento no estado, a da União Israelita Porto-Alegrense. Em 1917, criou-se uma segunda instituição, o Centro Israelita. No início da década de vinte, foi a vez dos judeus sefaraditas fundarem o Centro Hebraico Rio Grandense. Os sefaraditas - ou sefaradins - haviam começado a chegar a Porto Alegre já no início do século. Eles pertencem a um dos dois principais ramos do judaismo. São judens de origem espanhola que, após a grande expulsão de 1492, se dirigiram para Turquia, Grécia e países do norte da África. Falam o ladino, um espanhol arcaico, do tempo de Cervantes, e seus ritos apresentam pequenas diferenças em relação ao outro grande ramo, o dos asquenazim. A denominação de sefaraditas vem de Sefarad, termo que significa Espanha. Já os asquenazim são de origem germano-eslava, e usam o ídiche (dialeto de origem germânica). Asquenazim vem de Asquenaz, descendente de Noé, e quer dizer germano. Além das diferenças de origem houve, em Porto Alegre, uma diferença "geográfica" entre os dois grupos. Os sefaradim, em sua maioria, se estabeleceram com casas de comércio (especialmente tecidos) no centro da cidade, área em que também residiam. Durante a década de 30 predominou a imigração de um outro grupo, os judeus poloneses. Eram quase todos eles artesãos - alfaiates, marceneiros etc. - e concentravam-se na zona do Bom Fim. Fundaram, eles também, a sua associação, a Poilisher Farband (literalmente associação dos poloneses), que tinha o objetivo de prestar assistência e apoio aos que iam chegando. Essa imigração se interrompeu com a eclosão da Segunda Guerra, sendo retomada no pós-guerra, quando alguns sobreviventes do morticínio vieram para Porto Alegre. Também na década de 30 - a partir de 1933, quando Hitler assumiu o poder na Alemanha - começaram a vir os judeus alemães. Entre eles estavam vários intelectuais e profissionais liberais, que fugiam de seu país preocupados com a escalada nazista. No esforço para encontrar trabalho e criar um espaço para conviverem, os alemães fundaram em 1936 a Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficência (Sibra). Essas associações todas atendiam a objetivos religiosos e também a outros muito práticos. Procuravam permitir, ao recém-chegado, a oportunidade de se instalar condignamente em seu novo país. Para isto, foram criadas instituições como as caixas de empréstimo (Laispar-Casse), que forneciam recursos para seus associados. Muitos desses "bancos informais" funcionavam em um dia específico da semana. É o caso do Poilisher Farband, cuja Laispar-Casse funcionava nas quartas-feiras à noite, e onde o associado poderia receber um empréstimo de 400 mil réis, para ser pago em dez semanas sem juros. A mesma instituiçãso mantinha também a Kranken-Casse (Caixa dos Doentes), cujo funcionamento dá idéia do alto grau de necessidade dos imigrantes. Além de subsidiar consultas médicas, emprestava objetos como termômetros, seringas e agulhas para seus associados. Judeus Os Klienteltshikes e os gravatnikes Um capítulo à parte, na história da imigração judaica, é o das profissões que os que aqui chegaram exerceram inicialmente, e que deixaram traços lembrados até hoje pelos habitantes mais velhos de Porto Alegre. Figuras como o klienteltshik e o gravatnike povoavam não só as ruas do Bom Fim, mas de toda a cidade. O klienteltshik era o homem que batia de porta em porta, vendendo a prestação para a sua clientela. Os judeus foram os primeiros a adotar esse sistema em Porto Alegre. Geralmente ofereciam tecidos e, em alguns casos, roupas feitas. Cada um deles tinha a sua "zona de trabalho", que os demais respeitavam. Organizados, chegaram a ter uma cooperativa, que funcionava na Oswaldo Aranha. Outra atividade comum era a venda, pelas ruas, de miudezas tais como rendas e bordados. Como eram artigos mais baratos, costumavam ser pagos à vista. Já o gravatnike levava, na mão, algumas gravatas, que oferecia aos passantes. Essas atividades eram a alternativa para os que não tinham uma profissão definida, ou para os recém-chegados. Os que praticavam algum trabalho artesanal, tratavam de se estabelecer em seu ramo. Foi o caso de vários marceneiros, que começaram com suas pequenas oficinas e terminaram transformando a Oswaldo Aranha em uma sequência de lojas de móveis. Ou de alfaiates que se tornaram donos de grandes confecções.

Japoneses Apoio oficial

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A alimentação do gaúcho sempre se baseou na carne. Com a chegada dos imigrantes alemães, novos hábitos foram introduzidos: o churrasco ganhou o acompanhamento da cerveja. Com a vinda dos italianos, a polenta entrou na mesa. Mas o consumo sistemático de verduras, as mais variadas e diversificadas, dependeu de uma outra imigração, que atingiu o estado bem mais tarde. Foram os japoneses, que, com exceção de algumas famílias pioneiras, vieram para o Rio Grande só a partir de 1956, e introduziram o hábito do consumo cotidiano de hortigranjeiros. A imigração japonesa para o Rio Grande difere daquela que ocorreu no resto do país em um aspecto essencial: a decisão de permanecer no país. As primeiras levas de imigrantes japoneses que vieram para o Brasil a partir de 1908 tinham a intenção de fazer um "pé de meia", para depois voltarem para o Japão. Com isto, não procuravam estabelecer raízes na nova terra. Já aqueles que vieram no período do pós-guerra pretendiam se estabelecer definitivamente no país. É esse o caso dos japoneses que vieram para o Rio Grande, onde o período de imigração durou de 1956 a 1963, havendo se fixado no nosso estado e em Santa Catarina entre 2 mil e 2,5 mil indivíduos. Além disso esses imigrantes mais recentes contaram com um apoio muito importante. O próprio governo do Japão procurou orientar e apoiar a emigração, fazendo com que os japoneses tivessem condições de se estabelecer satisfatoriamente no Brasil. Exemplo disto foi o núcleo de Ivoti, que foi criado pelo governo japonês no início da década de 70. As terras foram compradas pelo órgão de emigraçào do governo japonês, que as repassou, através de financiamentos, para os imigrantes que estavam dispersos por outras áreas. Inicialmente esses imigrantes começavam a vida no novo país como parceiros ou meeiros agrícolas. Aos poucos procuravam comprar sua propriedade, e se organizavam em núcleos. Isto ocorreu não só em Ivoti, mas também em Itapuã (Viamão) e em Terra de Areia, onde surgiram grupos significativos de agricultores japoneses, dedicados ao cultivo de hortifrutigranjeiros.

A Proclamação da República e o Rio Grande do Sul O movimento republicano, no Rio Grande do Sul, iniciou-se bem antes da Proclamação da República, ocorrida em 15 de novembro de 1889. Na verdade, já estava consolidado no início da década de 80 do século passado, quando foi fundado o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Isso não significou, entretanto, que a implantação do sistema republicano no Estado fosse tranqüila: o confronto entre o PRR e o Partido Liberal, que reunia os remanescentes dos interesses monárquicos se estendeu até 1895, e teve como resultado sangrento a perda de mais de dez mil vidas no Rio Grande do Sul. Surgimento O PRR surgiu por iniciativa do Clube Republicano de Porto Alegre, que em fevereiro de 1882 convocou uma convenção regional para que fosse eleita uma comissão encarregada de organizar o partido. Essa convenção já fixava quais seriam os principais objetivos da propaganda do partido: "demonstrar a superioridade da República Federal sobre a monarquia". O partido teve seu primeiro congresso em 1883, tendo, como líder, Júlio de Castilhos. Estabeleceu-se, então, que teria um jornal partidário — "A Federação". Esse jornal, durante o período republicano e com a ascensão do partido ao governo do Estado, se tornaria o porta voz do ponto de vista governamental. Desde seu início, o PRR teve uma forte influência positivista, seguindo os princípios do filósofo francês Augusto Comte, que defendia uma doutrina de caráter autoritário e que se pretendia baseada em fundamentos científicos. Instabilidade Quando a República foi proclamada, o PRR tentou consolidar seu controle político sobre o Estado. Isso, entretanto, não foi feito sem dificuldade. Em nenhum outro estado houve maior instabilidade política nos anos iniciais da República do que no Rio Grande do Sul: entre a queda do Império e 1893, o governo estadual mudou de mão 18 vezes. Isto ocorreu, em grande parte, devido à força do Partido Liberal. Ao contrário do que acontecia nas demais províncias (transformadas em Estados com a República), no Rio Grande do Sul o Partido Liberal, que representava os defensores da Monarquia, era bem organizado e forte. E, embora tenha aceitado ("a contragosto", segundo manifesto publicado na época por seus líderes) o novo sistema de governo, se apresentou como uma força de resistência à consolidação do PRR no poder. Esse confronto terminaria por levar à Revolução Federalista, que se iniciou em 1893 e se estendeu até 1895 — um conflito que resultaria em uma perda de dez a doze mil vidas, e que terminaria com a vitória das forças oficiais e a consolidação do PRR no poder. (Por Lígia Gomes Carneiro)

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Maragatos e pica-paus Os termos "maragato" e "pica-pau", usados para se referir às duas grandes correntes políticas gaúchas, e identificados, respectivamente, com o uso do lenço vermelho e do lenço branco, surgiu no Rio Grande do Sul em 1893, durante a Revolução Federalista. Os maragatos foram os que iniciaram a revolução, que tinha como justificativa a resistência ao excessivo controle exercido pelo governo central sobre os estados. O objetivo da revolução seria, portanto, garantir um sistema federativo, em que os estados tivessem maior autonomia. O termo "maragato", aplicado aos federalistas, tem uma explicação complexa. No Uruguai eram chamados de maragatos os descendentes de imigrantes espanhóis oriundos da área situada na província de León, na Espanha, conhecida como Maragateria. Os maragatos espanhóis eram eminentemente nômades, e adotavam profissões que lhes permitissem estar em constante deslocamento. Os defensores do governo central passaram a chamar os revolucionários de "maragatos" com o intuito de insinuar que, na verdade, as tropas dos rebeldes eram constituídas por mercenários uruguaios. A realidade oferecia alguma base para essa assertiva — Gumercindo Saraiva, um dos líderes da revolução, havia entrado no Rio Grande do Sul vindo do Uruguai pela fronteira de Aceguá, no Departamento de Cerro Largo, e liderava uma tropa de 400 homens entre os quais estavam uruguaios. No entanto, dar esse apelido aos revolucionários foi um tiro que saiu pela culatra. Os próprios rebeldes passaram a se denominar "maragatos", e chegaram a criar um jornal que levava esse nome, em 1896. Já o termo pica-pau, aplicado aos republicanos que apoiavam o governo central, teria surgido em função das listras brancas do topete do pássaro, pois os governistas usavam chapéus com divisas brancas, que lembravam o topete do pica-pau, enquanto que as dos maragatos eram vermelhas. (Por Lígia Gomes Carneiro)

Os Muckers - Um episódio de fanatismo religioso O que acontece quando fanatismo religioso e intolerância governamental se defrontam? O resultado foi mostrado, não há muito tempo, em um seriado de televisão sobre a Guerra de Canudos: ignorantes e com menos poder, os fanáticos normalmente são dizimados. Essa costuma ser a regra, repetida inúmeras vezes ao longo da história humana. E isso foi, também, o que aconteceu no episódio dos Muckers, um capítulo triste da história gaúcha. Os muckers eram uma pequena comunidade de fanáticos religiosos que se formou no então município de São Leopoldo — atualmente no de Sapiranga — na localidade situada ao pé do morro Ferrabrás. Como todo o município de São Leopoldo, aquela era uma área ocupada por imigrantes alemães católicos e protestantes, que haviam chegado ao Rio Grande do Sul a partir de 1824. Esse grupo de fanáticos era liderado por Jacobina Mentz Maurer — que se julgava uma reencarnação de Cristo e que prometia construir a "cidade de Deus" para seus discípulos. Jacobina, desde criança, passava por "transes" e, quando nesse estado, diagnosticava doenças. Em 1866, se casou com João Maurer, e sua fama começou a crescer. Um grupo de adeptos cada vez maior se reunia na casa do casal nos finais de semana. O movimento foi crescendo, Jacobina foi proclamada "Cristo" e chegou a escolher seus apóstolos. Os seguidores de Jacobina seguiam regras rígidas. Não bebiam, não fumavam, e não iam a festas. Isso provocava uma certa resistência por parte dos demais colonos alemães - resistência que se tornou maior quando os seus seguidores passaram a tirar as crianças das escolas comunitárias. Muckers x Spotters Essa antipatia entre os colonos "normais" e os seguidores de Jacobina fica bem expressa nos apelidos que respectivamente se deram: Mucker - falso religioso, santarrão - era a maneira como eram chamados os "fiéis" da novo "Cristo". E Spotter - debochadores - era como os seguidores de Jacobina chamavam seus adversários. O clima de hostilidade entre os dois grupos foi se tornando cada vez mais intenso, até que o chefe da polícia local resolveu prender Jacobina e seu marido. O presidente da então Província do Rio Grande do Sul, entretanto, achou que houve precipitação - e determinou que fossem soltos. Com isso, ganharam força os fanáticos, que se convenceram, de vez, que Jacobina era mesmo o "Cristo". E os demais colonos acirraram seus ânimos contra os Muckers, atribuindo a eles qualquer coisa que acontecesse de ruim ou errado. Como violência só gera violência, o clima ficava cada vez pior. Os muckers passaram a atacar seus inimigos - a casa de um ex-mucker, Martinho Kassel, foi incendiada, causando a morte de sua mulher e de seus filhos. Logo depois, incendiaram a casa de um comerciante, Carlos Brenner, matando as

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suas crianças. E também atacaram mais duas lojas e duas casas, chegando a executar um tio do marido de Jacobina, que não queria fazer parte da seita. Ataque militar Após esses e outros episódios violentos, houve nova intervenção policial em 28 de junho de 1874, quando 100 soldados cercaram o reduto dos muckers. Mas a luta foi um vexame: com soldados mal treinados e sem nenhuma estratégia, o comandante do grupo, coronel Genuíno Sampaio, viu seu grupo sofrer 39 baixas, enquanto os muckers tiveram apenas 6 baixas. O confronto, mais uma vez, serviu apenas para fortalecer os muckers, pois confirmava uma das "profecias" de Jacobina, que dizia que quem acreditasse nela não morreria. Menos de um mês depois, em 18 de julho, houve um segundo ataque, comandado pelo mesmo coronel. Dessa vez, a casa foi incendiada, mas os muckers que lá se encotravam não se entregaram - preferiram morrer, pois acreditavam nas palavras de Jacobina, que havia lhes dito que iriam ressuscitar. Foram 16 os muckers mortos - mas Jacobina conseguiu escapar, acompanhada de alguns de seus seguidores. E, durante a noite, um dos muckers, provavelmente escondido no morro Ferrabrás, atingiu o coronel, que morreu no dia seguinte devido a uma hemorragia. Novo ataque aconteceu no dia 21 de junho, sem resultados - depois de duas horas de confronto, os soldados se retiraram. A vitória só foi possível no dia 2 de agosto, quando, conduzidos por Carlos Luppa, um mucker que havia decidido se entregar e trair seus companheiros, os soldados puderam chegar até o reduto do morro Ferrabrás. Dessa vez, Jacobina e os 16 seguidores que a acompanhavam foram mortos. Os muckers sobreviventes tiveram que enfrentar duros momentos. Durante oito anos, foram conduzidos de prisão em prisão, sem serem julgados. Finalmente, foram perdoados e soltos, mas tiveram que agüentar a perseguição dos colonos alemães até o final de suas vidas. (Por Lígia Gomes Carneiro)

Síntese da história do Rio Grande do Sul • 1501

Caravelas portuguesas, primeiro e logo depois as espanholas começam a aparecer nas costas gaúchas, mas sem desembarque, porque as praias eram perigosas e não havia portos naturais.

• 1531 Os navegantes portugueses Martim Afonso de Souza e Pero Lopes, sem desembarcar nas praias gaúchas, batizam com o nome de Rio Gande de São Pedro a barra que vai permitir mais tarde a passagem de navios do Oceano Atlântico para a Lagoa dos Patos.

• 1626 O padre jesuíta Roque Gonzalez de Santa Cruz, nascido no Paraguai, atravessa o rio Uruguai e funda o povo de São Nicolau, assinalando oficialmente a chegada o homem branco ao território gaúcho.

• 1634 O padre jesuíta Cristobal de Mendonza Orellana (Cristóvão de Mendonza) introduzo gado nas Missões Orientais, o que vai justificar mais tarde o surgimento do gaúcho.

• 1641 Os jesuítas são expulsos do Rio Grande do Sul pelos bandeirantes, depois de fundarem 18 reduções ou povos. Essas aldeias foram todas arrasadas e o gado, um pouco foi escondido ba Vacara dos Pinhais, outro pouco levaram para a Argentina na sua fuga e a maior parte se esparramou, virando "chimarrão", que quer dizer selvagem. Graças ao padre Cristóvão Mendonza, esse gado, que não tinha marca nem sinal, ficou também chamado "orelhano".

• 1682 Os bandeirantes estão ocupados com o ouro e as pedras preciosas das Gerais, esquecendo os nossos índios. Voltam então os jesuítas espanhóis ao solo gaúcho, fundando primeiro São Francisco de Borja, hoje a cidade de São Borja, o mais antigo núcleo urbano do Rio Grande do Sul. Entre 1682 a 1701 eles fundaram 8 povos em território gaúcho, dos quais 7 prosperaram que se tornaram os 7 povos das Missões: São Francisco de Borja, São Nicolau, São Luiz Gonzaga, São Miguel Arcanjo, São Lourença Martin, São João Batista e Santo Ângelo Custódio.

• 1750 Assinado o Tratado de Madri entre Espanha e Portugal, pelo qual os portugueses dão aos espanhóis a Colônia de Sacramento e recebem em troca os 7 Povos das Missões. Os padres

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jesuítas espanhóis não se conformam com a troca e os índios missioneiros se revoltam. Vai começar a chamada Guerra das Missões.

• 1756 A 7 de fevereiro morre em uma escaramuça o índio José Tiarayu, o Sepé, junto a Sanga da Bica (hoje dentro do perímetro urbano de São Gabriel) morto pelas forças espanholas e portuguesas. Três dias mais tarde ocorre o massacre de Caiboaté (ainda no município de São Gabriel) onde, em uma hora e 10 minutos os exércitos de Espanha e Portugal mataram quase 1.500 índios e tiveram apenas 4 baixas. Em Caiboaté foi vencida a resistência missioneira definitivamente. Ao abandonarem as Missões, os jesuítas carregaram o que puderam e incendiaram lavouras, casas e até igrejas.

• 1763 Tropas espanholas invadem o Brasil, apoderando-se do Forte de Santa Tereza e da cidade de Rio Grande e de São José do Norte. No período de dominação espanhola começa a brilhar um herói autenticamente gaúcho: Rafael Pinto Bandeira.

• 1776 Os espanhóis são expulsos do Rio Grande. Mas o forte de Santa Tereza jamais foi recuperado. Hoje está em território uruguaio.

• 1780 Vindo do Ceará, o português José Pinto Martins funda em Pelotas a primeira charqueada com características empresariais. Logo as charqueadas vão ser decisivas na economia gaúcha. O negro entra maciçamente no RGS, como escravo das charqueadas.

• 1811 Pedro José Vieira, vulgo "Perico, el Bailarín", que era gaúcho de Viamão, acompanhado pelo uruguaio Venâncio Benavidez dá o Grito de Asencio, que é o primeiro grito da independência do Uruguai. Surge o grande herói uruguaio "José Artigas".

• 1815 Tropas brasileiras e portuguesas tomam Montevidéu anexando o Uruguai ao Brasil com o nome de Província Cisplatina.

• 1824 A 18 de julho desembarcam em Porto Alegre os primeiros 39 colonos alemães. A 25 de julho eles se instalam nas margens do rio dos Sinos, na Real Feitoria do Linho Cânhamo, hoje a cidade de São Leopoldo.

• 1835 Explode a Revolução Farroupilha. A 20 de setmbro, os revolucionários comandados por Bento Gonçalves tomam Porto Alegre, capital da Província. As causas são políticas, econômicas, sociais e militares. A Província de São Pedro do Rio Grande do Sul estava arrasada pelas guerras e praticamente abandonada pelo Império do Brasil, meio desgovernado depois da volta de Dom Pedro I a Portugal.

• 1836 A 11 de setembro o coronel farroupilha Antonio de Souza Neto, depois de estrondosa vitória sobre as forças imperiais brasileiras no Seival, proclama a República Rio-Grandense. Nesse mesmo ano Bento Gonçalves da Silva é aprisionado após a batalha da ilha do Fanfa e enviado com muitos oficiais farrapOS ao Rio de Janeiro e depois para o Forte do Mar, na Bahia. O governo da nova República se instala em Piratini e Bento Gonçalves da Silva é eleito presidente. Como está preso, assume em seu lugar José Gomes de Vasconcelos Jardim. Piratini é a Capital.

• 1837 Organiza-se o governo republicano. São nomeados Generais Antonio de Souza Neto, João Manoel de Lima e Silva, Bento Gonçalves da Silva e mais tarde David Canabarro, Bento Manoel Ribeiro e João Antonio da Silveira. Enquanto durou, a República Rio-grandense só teve estes seis Generais. Nesse mesmo ano, a maçonaria consegue dar fuga a Bento Gonçalves, que de volta ao Rio Grande assume a Presidência da República.

• 1939 A República parece consolidada, a marinha de guerra está sob o comando efetivo de José Garibaldi, corsário italiano trazido ao Rio Grande pelo Conde Livio Zambeccari, através da maçonaria. Os farrapos decidem levar a república ao Brasil. Um exército comandado por David Canabarro e apoiado pela Marinha de Garibaldi proclama em Santa Catarina e República Juliana. A capital da República Rio-grandense passa a ser Caçapava.

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• 1841 A Capital da República Rio-Grandense passa a ser Alegrete, onde se instala a Assembléia Nacional constituinte.

• 1842 Bento Gonçalves da Silva, no começo deste ano, se bate em duelo com Onofre Pires, que morre em conseqüência dos ferimentos. Após o duelo Bento Gonçalves da Silva entrega o governo e o comando do exército republicano.

• 1845 A 28 de fevereiro os farrapos assinam a paz com o Império do Brasil no acampamento do Ponche Verde, em Dom Pedrito. O Rio Grande do Sul volta a fazer parte do Brasil.

• 1847 Morre Bento Gonçalves da Silva, em Pedras Brancas, hoje Guaíba. O grande herói gaúcho estava pobre e doente quando terminou a Guerra dos Farrapos.

• 1851 Antigos farrapos, ao lado de seus ex-inimigos, agora todos fazendo parte do exército imperial brasileiro, derrotam o ditador Rosas da Argentina.

• 1852 Nesse anos aparece a primeira pesquisa sobre o folclore gaúcho, uma coleção de vocábulos e frases organizados por Antonio Alvares Ferreira Coruja.

• 1857 Intelectuais gaúchos imigrados na Corte, fundam no Rio de Janeiro a primeira entidade tradicionalista gauchesca, a Sociedade Sul-rio-grandense, que existe até hoje.

• 1864 Os gaúchos tomam parte na invasão do Uruguai e na derrota de Oribe.

• 1865 Em conseqüência da guerra no Uruguai, o ditador paraguaio Francisco Solano Lopes, declarando guerra ao Brasil, invade o Rio Grande do Sul, em São Borja. Começa a chamada Guerra do Paraguai. Nesse mesmo ano o Brasil faz aliança com o novo governo uruguaio e com a Argentina e os paraguaios invasores são cercados em Uruguaiana, onde se rendem às tropas da Tríplice Aliança.

• 1868 Funda-se em Porto Alegre a Sociedade Partenon Literário, decisiva para o regionalismo gauchesco. Entre seus grandes nomes Caldre FIão, Apolinário Porto Alegre, Taveira Junior e Múcio Teixeira.

• 1868 Cmeça o movimento messiânico dos Muckers, em Sapiranga, liderado por Jacobina Maurer.

• 1870 Termina a Guerra do Paraguai com a morte de Francisco Solano Lopes. Mais de 1/3 das tropas brasileiras é constituído por gaúchos, inclusive velhor heróis de 35, como David Canabarro e Antonio de Souza Neto.

• 1874 Os Muckers, depois de três ataques do exército brasileiro e da Guarda Nacional, são finalmente afogados em um banho de sangue, vencida a sua resistêcia.

• 1875 Começa a imigração italiana no Rio Grande do Sul. COmo os imigrantes alemães jã tinham ocupado os férteis vales fluviais, os italianos passam a ocupar as encostas da Serra.

• 1880 Começa no Rio Grande do Sul a propaganda republicana brasileira, aproveitando os antigos símbolos do republicanismo farrapo.

• 1888 A abolição da escravatura é proclamada no Brasil quando já no Rio Grande do Sul não existiam mais escravos. O negro veio para o pampa em 1726, com a frota de João de Magalhães. O escravo foi mão-de-obra indispensável nas charqueadas. Como voluntário e liberto lutou com grande bravura na Revolução Farroupilha. Como escravo e bucha de canhão lutou galhardamente na Guerra do Paraguai. Um ds maiores heróis da marinha brasileira foi um fuzileiro negro, gaúcho de Rio Grande, chamado Marcílio Dias.

• 1889 É proclamada a República no Brasil. No Rio Grande do Sul o homem do momento é Júlio de

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Castilhos. O Partido Republicano Rio-grandense, que não esperava a proclamação tão cedo, não estava preparado para assumir o poder. O Rio Grande do Sul, com a República, deixa de ser Província e passa a ser Estado.

• 1893 Começa a Revolução Federalista contra o Governo Republicano chefiado por Júlio de Castilhos. Do lado dos revolucionários tomaram parte na Revolução de 93 muitos uruguaios, alguns dos quais do Departamento de San José, os chamados "Maragatos". Aos poucos este termo foi sendo usado para designar todos os revolcionários que usavam como símbolo o lenço vermelho ao pescoço. Os guerrilheiros que lutaram a favor do governo usavam o lenço branco (mais raramente o verde) e usavam às vezes uma farda azul com gorro da mesma cor encimado por uma borla vermelha. Por isso, foram chamados de Pica-paus.

• 1894 Funda-se em Montevidéu, no circo dos irmãos Podestá, a Sociedade La Criolla, entidade tradicionalista que existe até hoje.

• 1895 Assinada a paz entre Pica-paus e Maragatos e termina a chamada Revolução de 93, que foi sangrenta e brutal, com muitas degolas.

• 1897 É finalmente vencida a resistência de Canudos, na Bahia, onde Antonio Conselheiro, com seus jagunços, estava enfrentando com êxito o exército brasileiro. A vitória só é alcançada com uma carga de lança dos cavalarianos gaúchos do Coronel Carlos Teles, de Bagé.

• 1898 Funda-se em Porto Alegre, a 22 de maio, o Grêmio Gaúcho, cujo grande líder é o Major João Cezimbra Jacques, que buscou a inspiração na Sociedade "La Criolla" de Montevidéu. O Grêmio foi a primeira entidade tradicionalista no Rio Grande do Sul. Existe até hoje, embora tenha perdido o seu caráter tradicionalista. Graças a seu pioneirismo, o Major João Cezimbra Jacques é hoje o Patrono do Tradicionalismo do Rio Grande do Sul.

• 1899 A 10 de setembro é fundada em Pelotas e União Gaúcha. Seu grande líder é o genial escritor Simões Lopes Neto. Depois de muitos anos a União paralizou as suas atividades e ressurgiu com atual surto tradicionalista adotando o nome União Gaúcha J. Simões Lopes.

• 1901 A 19 de outubro funda-se em Santa Maria o Grêmio Gaúcho, inspirado na entidade de mesmo nome fundada em Porto Alegre pelo santamariense Cezimbra Jacques.

• 1902 O movimento messiânico conhecido como "Os Monges do Pinheirinho", em Encantado é massacrado pela Brigada Militar.

• 1917 Funda-se o primeiro frigorífico no Rio Grande do Sul, aproveitando a oportunidade econômica aberta pela I Guerra Mundial Os frigoríficos, a rigor, vieram substituir as antigas charqueadas.

• 1923 No começo do ano a Aliança Liberal, chefiada por Assis Brasil, deflagra uma revolução contra o Governo Republicano de Borges de Medeiros. Novamente lutam nas coxilhas gaúchas maragatos e governistas, mas estes, agora, são chamads "chimangos". A paz só é alcançada no fim do ano no Castelo de Assis Brasil, em Pedras Altas, Pelotas.

• 1924 Jovens tenentes liderados pelo Capitão Luiz Carlos Prestes levantam mas Missões militares e civis contra o governo brasileiro, de Artur Bernardes. Vai começar a odisséia da Coluna Prestes. Poucos anos depois a Brigada Militar viajará até de navio para o nordeste brasileiro a fim de ajudar na caçada da "Coluna Prestes".

• 1926 A Coluna Prestes continua sua marca invicta pelos sertões brasileiros. Em Santa Maria, no RGS, os rimãos Etchegoyen levantam militares e civis em armas contra o governo. Apesar de vitórias iniciais o movimento se dissolve sem maiores conseqüências.

• 1928 Registram-se movimentos armados em Bom Jesus.

• 1930 Chimangos e maragatos marcham lado a lado na revolução que derruba o presidente

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brasileiro Washington Luiz e coloca no poder Getúlio Vargas. Os gaúchos amarram os cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, Capital da República.

Origem dos Termos Chimangos e Maragatos História do Rio Grande do Sul Telmo Remião Moure Editora FTD S.A. MARAGATO O termo tinha uma conotação pejorativa atribuída pelos legalistas aos revoltosos liderados por Gaspar Silveira Martins, que deixaram o exílio, no Uruguai, e entraram no RS à frente de um exército. Como o exílio havia ocorrido em região do Uruguai colonizada por pessoas originárias da Maragateria (na Espanha), os republicanos apelidaram-nos de "maragatos", buscando caracterizar uma identidade "estrangeira" aos federalistas. Com o tempo, o termo perdeu a conotação pejorativa e assumiu significado positivo, aceito e defendido pelos federalistas e seus sucessores políticos. O lenço VERMELHO identificava o maragato. CHIMANGO A grafia pode ser ximango. Ave de rapina, falconídea, semelhante ao carcará. Epíteto depreciativo dado aos liberais moderados pelos conservadores, no início da Monarquia brasileira. No RS, nos anos de 1920, foi a alcunha dada pelos federalistas ao governistas do PRR. O lenço de cor BRANCA identificava os chimangos.

Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul Zeno Cardoso Nunes Rui Cardoso Nunes MARAGATO Denominação dada ao revolucionário ou partidário da revolução rio-grandense de 1893, adepto do credo político pregado por Gaspar da Silveira Martins e adversário do partido então dominante, chefiado por Júlio Prates de Castilhos. || Revolucionário ou partidário da revolução rio-grandense de 1923, adepto do partido liderado por Joaquim Francisco de Assis Brasil e contrário a Antônio Augusto Borges de Medeiros, governador do Estado. || Federalista. "Na província de León, Espanha, existe uma comarca denominada Maragateria, cujos habitantes têm o nome de maragatos, e, que, segundo alguns, é um povo de costumes condenáveis; pois, vivendo a vagabundear de um ponto a outro, com cargueiros, vendendo e comprando roubos e por sua vez roubando principalmente animais; são uma espécie de ciganos. Aos naturais da cidade de São José, no Estado Oriental do Uruguai, dão neste país o nome de maragatos, talvez porque os seus primeiros habitantes fossem descendentes de maragatos espanhóis. Pelo fato de os rebeldes em suas excursões irem levantando e conduzindo todos os animais que encontravam, tendo apenas bagagens ligeiras, cargueiros, etc. Como os da Maragateria e porque (com exceções) suspendiam com o que encontravam em suas correrias, aplicou-se-lhes aquela denominação, que aliás eles retribuíram com outras não menos delicadas aos republicanos, a despeito da correção em geral observada por estes em toda a luta." (Romaguera). "Ainda hoje (l 897), que 11 séculos são decorridos, os maragatos constituem um nódulo distinto no meio da população lionesa. São ainda os bérberes antigos: usam a cabeça raspada, com uma mecha de cabelo na parte posterior; falam uma linguagem que não é bem castelhana, a qual apresenta uma pronúncia arrastada, dura e lenta, e são geralmente arredios." (Oliveira Martins, apud Vocabulo Sul-RioGrandense, P.A., Globo, 1964, p. 289). "Trouxera consigo, além do irmão Aparício, um grupo de maragatos do Departamento de S. José, nome por que eram conhecidos os imigrantes de certa região da Espanha, e, que, pelo prestígio do chefe, se extendeu a todos os rebeldes da Revolução Federalista e até, posteriormente, a qualquer adversário da situação castilhista do Rio Grande." (Arthur Ferreira Filho, Revoluções e Caudilhos, 2a ed., Passo Fundo, p. 34). "J. F. de Assis Brasil, o velho líder político maragato, lança "A Atitude do Partido Democrático Nacional na Crise da Sucesso Presidencial do Brasil", um trabalho que merece ser lido e meditado" (Pedro Leite Villas-Bôas, Um Quarto de Século de Literatura Rio-Grandense - 1929-1954", in Revista da Academia Rio-Grandense de Letras, n9 I, P.A., 1980, p. 125). "Velho tropeiro Vicente, que amas tuas origens . . fibra de velhas raizes, em solo duro e ingrato.

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Teimoso remanescente duma raça em extinção . . . És caudilho maragato sem armas nem munição, peleando valentemente na defesa deste chão!" (Cardo Bravo, Rebeldia, poema). CHIMANGO Alcunha dada no Rio Grande do Sul aos partidários do governo na revolução de 1923|| Ave de rapina muito comum na campanha riograndense, parecida com o carcará, porém menor do que este.

Revolução Farroupilha História do Rio Grande do Sul Telmo Remião Moure Editora FTD S.A. Um dos temas mais comuns nos livros de História do Brasil é a Guerra dos Farrapos. Observado a partir da perspectiva central agro-exportadora brasileira, o movimento farroupilha riograndense perde qualidade, veracidade e atinge o prosaico. Mesmo na historiografia e na literatura produzidas no Rio Grande do Sul há distorções que confundem os fatos. Alguns fazem apologia dos heróis e condenam os traidores. Outros tentam desmistificar, mas pouco acrescentam ao conhecimento do contexto, às motivações e conseqüências do movimento dos farrapos. Colocam-se como discussões o caráter separatista ou não do movimento, gerando posições apaixonadas ou constrangedoras para a problemática da identidade regional e nacional. Estudos históricos e produções literárias mais recentes têm sido mais objetivos. O movimento farroupilha rio-grandense fez parte de exigências locais e esteve inserido no jogo das questões nacionais e internacionais típicas da primeira metade do século XIX. Com base nessa historiografia mais recente, pretende-se compreender as relações do movimento farroupilha no contexto brasileiro, platino e do mundo ocidental. Além disso, responder a indagações como: quem fez e por que fez a guerra? Quais os interesses em jogo na eclosão e duração do movimento? De que forma foi realizada a paz e por que ela apresenta um certo espírito de "comemoração" entre os legalistas e insurretos? Finalmente, criticar as reivindicações dos farrapos a partir da constatação dos limites da pecuária rio-grandense. A época e suas relações com a revolta farroupilha Naquela época, o liberalismo econômico estava derrubando estruturas antigas, calcadas nos monopólios e regimes políticos autoritários e absolutistas. O constitucionalismo surgia como fundamental à história da humanidade. No entanto, os processos de emancipação política e de formação do Estado Nacional brasileiro foram centralizadores e autoritários. Os regionalismos não foram respeitados. Não ocorreram autonomias tanto para interferirem na indicação dos administradores provinciais como na capacidade de legislar em assembléias regionais. As elites regionais se ressentiram com a dissolução da Assembléia Constituinte de 1823, a outorga da Carta de 1824, as políticas tarifárias não protecionistas, a censura e as perseguições políticas aos inimigos da corte do Rio de Janeiro. Algumas dessas elites recorreram à insurreição armada, sempre reprimidas e vencidas pelo centralismo monárquico. Foram as classes dominantes do Pará e do Amazonas que iniciaram a Cabanagem. O mesmo ocorreu na deflagração da Balaiada, no Maranhão. Nessa e em outras revoltas os setores dominantes foram surpreendidos pela participação crescente dos segmentos dominados. A emergência dessas camadas preocupava as elites porque elas extrapolavam os objetivos iniciais dos movimentos, voltando-se contra a estrutura de dominação social. Outras revoltas, como a dos farrapos, não permitiram que setores mais populares, e dominados socialmente, extrapolassem os objetivos estabelecidos pelas elites locais. A Guerra dos Farrapos foi um movimento da classe dominante rio-grandense, em oposição ao centralismo exercido pela corte do Rio de Janeiro, e só. Participação de grupos sociais A maior parte dos criadores e charqueadores engajaram-se como militantes ou financiando a insurreição. Os comerciantes, em sua maioria, assumiram posição defensiva ao lado do governo monárquico, chamados de legalistas. Intrigas entre os chefes políticos pecuaristas produziram deserções ou posicionamentos opostos ao longo do movimento. Os habitantes de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande, na época as principais cidades do Rio Grande do Sul, nunca aderiram, em sua totalidade, ao movimento. Cabe destacar que Porto Alegre, a principal base de sustentação dos legalistas, ganhou o título de "mui leal e valorosa" do monarca

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brasileiro. A República Rio-Grandense criada no dia 11 de setembro de 1836, teve como sedes administrativas as cidades de Piratini, Caçapava e Alegrete, expressando nas mudanças a fragilidade estratégico-militar do movimento. A revolta teve mais apoio no meio rural (junto a pecuária extensiva). O movimento não foi acolhido pelos imigrantes germânicos que já iniciavam a ocupação da encosta do planalto meridional (São Leopoldo, Montenegro, Caí e arredores). Nas cidades, os comerciantes e os segmentos sociais, em geral, dividiram-se, mas pouco fizeram a favor ou contra. O movimento farroupilha rio-grandense nunca dominou um porto, por tempo razoável, para escoar produtos e, assim, garantir a sobrevivência imediata dos insurretos. Realizaram a tomada de Laguna, buscando alcançar um porto mais permanente, mas foram derrotados e expulsos, em pouco mais de três meses. A questão dos "heróis" A Guerra dos Farrapos tem garantido à historiografia oficial e à ideologia dominante extensa "galeria de heróis", muitas vezes equiparados aos semideuses, e a guerra equiparada a uma "epopéia". Outras vezes, os personagens são denunciados como "oportunistas", "contrabandistas", etc. Certamente os episódios históricos de 1835 a 1845 podem ensejar referenciais importantes à problemática de símbolos e identidades sociais e nacionais. Mas é necessário compreender que o movimento dos farroupilhas passou por análises teóricas relacionadas ao republicanismo, constitucionalismo e cidadania. Vários foram os pensadores que se ativeram aos temas, deixando registros dessas discussões. Mais do que isso, os "heróis" não podem ofuscar o que os farrapos não visualizavam: uma sociedade entravada, com uma pecuária debilitada, sem perspectivas de avanços no mercado altamente competitivo que se desenvolvia a partir do século XIX. Além disso, o movimento farroupilha lutou pelos interesses da classe dominante pecuarista rio-grandense, descaracterizando-se, portanto, uma visão mais abrangente, com justiça distributiva. Bento Gonçalves da Silva, Bento Manuel Ribeiro, Davi Canabarro, Antônio de Souza Neto e muitos outros eram pecuaristas ou estavam envolvidos com a pecuária. Todos lutaram nas guerras empreendidas por lusos-brasileiros na bacia Platina, desde a conquista militar dos Sete Povos das Missões, passando pela Guerra Cisplatina. Depois de 1845, muitos continuaram lutando com os vizinhos platinos. Merece destaque a figura de um mercenário, Guiseppe Garibaldi, que também lutou ao lado de Rivera, no Uruguai, e participou das guerras pela unificação da Itália. Outros mercenários participaram da Guerra dos Farrapos ou estiveram engajados nas tropas inimigas (legalistas). Insurreição ou Revolução? A insurreição que os farrapos preferiam chamar de revolução durou dez anos. Fazer revolução significava avançar na História, mesmo para os segmentos dominantes doinício do século XIX. Aliás, a revolução implicava o uso da força, legitimando o movimento. Os exemplos das elites dominantes da América do Norte, França e Inglaterra estimulavam processos revolucionários com objetivos de destruir o arcaico, o antigo, o ultrapassado. Só que os farroupilhas não questionaram a escravidão em seu sistema produtivo nem ao menos tiveram condições de ensaiar planos de liberdade e crescimento econômico. Identificaram-se mais com o conflito centro versus periferia. Por isso, é incorreto chamar o movimento de revolução. Foi uma guerra civil entre segmentos sociais dominantes. Além disso, a escravidão era a "doença" que o paciente não aceitava ter. Preferia dirigir suas críticas à falta de protecionismo alfandegário. Esquecia-se ou não queria entender que a estrutura produtiva da charqueada rio-grandense retraía a capacidade de competir com os similares platinos. Este sim era o principal problema da pecuária rio-grandense, que só teve espaço no mercado enquanto os concorrentes platinos estavam envolvidos em guerras contra o domínio espanhol ou na disputa pelo controle do Estado Nacional. Foi sintomático: de 1831 em diante, os platinos entraram em período de relativa paz, voltaram a criar gado e produzir charque sem os inconvenientes das guerras. Com isso, o charque rio-grandense entrou em colapso. Em 1835 eclodia o movimento farroupilha. Resultados do Movimento Por dez anos, a guerra civil prejudicou o setor pecuarista. As perdas foram muito maiores do que os lucros políticos e econômicos do movimento. Os pecuaristas saíram mais endividados junto aos comerciantes e banqueiros. Propriedades rurais, gado e escravos foram perdidos e tornou-se muito difícil repô-los posteriormente. A paz honrosa de Poncho Verde, em 1845, acomodou as crescentes dificuldades dos farrapos, pois não interessava ao governo monárquico reprimir uma elite econômica. Aos oficiais do Exército farroupilha foram oferecidas possibilidades de se incorporarem aos quadros do Exército nacional. Líderes presos foram libertados e a anistia foi geral e imediata. Antes e depois da Guerra dos Farrapos, os rio-grandenses lutaram contra os platinos, defendendo militarmente os interesses da coroa portuguesa e, a partir de 7 de setembro de 1822, os da corte brasileira. Ou seja, interessava ao governo do Rio de Janeiro assinar o acordo de Poncho Verde

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porque a política externa brasileira ainda necessitaria dos serviços militares (sempre disponíveis) da Guarda Nacional formada por estancieiros e peões rio-grandenses. Quanto à política tarifária, medidas sem expressividade e pouco duradouras tentaram transparecer um melhor tratamento dado ao produto nacional. A estrutura produtiva ultrapassada (baseada na escravidão) não foi alvo de preocupações. A sensação que existe hoje, passado um século e meio, é a de que as motivações daquele movimento não foram superadas. Por um lado, o Rio Grande do Sul continua em situação de mando político dependente, com uma economia pouco beneficiada no processo de acumulação capitalista que se reproduz no Brasil. Por outro, o Rio Grande do Sul não consegue "enxergar o próprio umbigo" e compreender que suas dificuldades resultam da forma como tem sido realiada sua inserção como sócio menor no sistema capitalista brasileiro. Expressando-se de forma figurativa, o Rio Grande do Sul continua produzindo e vendendo charque, subsidiando (perifericamente) o funcionamento do mercado exportador brasileiro e sem cacife no processo político-decisório nacional. Manifestos de Bento Gonçalves "Compatriotas! O amor à ordem e à liberdade, a que me consagrei desde minha infância, arrancaram-me do gozo do prazer da vida privada para correr covosco à salvação de nossa querida pátria. Via a arbitrariedade entronizada e não pude ser mais tempo surdo a vossos justos clamores; pedistes a cooperação de meu braço e dos braços que me acompanham, e voei à capital a fim de ajudar-vos a sacudir o jugo que com a mão de um inepto administrador vos tinha imposto uma facção retrógrada e antinacional." "A inaptidão que desde logo mostrou para tão elevado cargo e a versatilidade de caráter do Sr. Braga favoreceram os desígnios dos perversos, que nele acharam o instrumento de seu rancor contra os livres; e no poder anexo a presidência o meio de saciar suas ignóbeis vinganças." "O Governo de sua Majestade Imperial, o Imperador do Brasil, tem consentido que se avilte o Pavilhão Brasileiro, por uma covardia repreensível, pela má escola dos seus diplomatas e pela política falsária e indecorosa de que usa para com as nações estrangeiras. Tem feito tratados com potências estrangeiras, contrários aos interesses e dignidade da Nação. Faz pesar sobre o povo gravosos impostos e não zela os dinheiros públicoos... Faz leis sem utilidades públicas e deixa de fazer outras de vital interesse para o povo... Não administra as províncias imparcialmente... Tem conservado cidadão longo tempo presos, sem processo de que constem seus crimes." Proclamação Sala das sessões da Asembléia Constituinte e Legislativa (Alegrete, 1843) RIO-GRANDENSES! Está satisfeito o voto nacional. Chegou finalmente a época em que vossos Representantes reunidos em Assembléia Geral vão formar a Constituição Política, ou a Lei fundamental do Estado. Desde o primeiro período de nossa Revolução, desde o primeiro grito de nossa Independência, é este sem dúvida um dos sucessos mais memoráveis, que deve ocupar um dia as páginas da história. Dentro em pouco tempo o edifício social será levantado sobre bases certas e inalteráveis. ...Concidadãos! Os destinos da Pátria dependem principalmente de vossa constância e valor. Nesta luta de liberdade contra a tirania vós tendes dado um exemplo heróico do mais nobre, desinteressado patriotismo, e vossos dolorosos sacrifícios assaz provam, quanto pode uma Nação generosa, e magnâmica, que jurou não ser escrava.

A Guerra do Paraguai O Paraguai Antes da Guerra Durante anos a historiografia considerou que nos governos de José Gaspar Rodríguez de Francia (1813-1840) e de Carlos Antonio López (1841-1862), o Paraguai teve um desenvolvimento bastante original em relação ao dos outros países sul-americanos. Esta tese afirmava que a política de Francia e de Carlos López foi sempre a de incentivar um desenvolvimento econômico auto-suficiente, graças ao isolamento imposto pelos países vizinhos. Nos últimos anos tal visão tem sido abandonada em virtude de investigações profundas de autores como Francisco Doratioto e Ricardo Salles. O regime de Francisco Solano López caracterizava-se por um centralismo total sem qualquer espaço para o surgimento de uma verdadeira sociedade civil. Não havia distinção entre o público e o privado e a família López governava o país como se de uma grande propriedade se tratasse. O governo controlava todo o comércio exterior. O mate, o fumo e as madeiras raras exportados mantinham a balança comercial com saldo. O Paraguai nunca havia feito um empréstimo no exterior e adotava uma política protecionista, isto é, de evitar a entrada de produtos estrangeiros, por meio de impostos elevados. Francisco Solano López, filho de Carlos Antonio López, substituiu o pai no governo em 1862, e deu prosseguimento à política de seus antecessores.

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Mais de 200 técnicos estrangeiros, contratados pelo governo, trabalhavam na instalação do telégrafo e de estradas de ferro e na assistência às indústrias siderúrgicas, têxteis, de papel, tinta, construção naval e pólvora. A fundição de Ibicuí, instalada em 1850, fabricava canhões, morteiros e balas de todos os calibres. Nos estaleiros de Assunção, construíam-se navios de guerra. O crescimento econômico exigia contatos com o mercado internacional. O Paraguai é um país sem litoral. Seus portos eram fluviais (de rios) e seus navios tinham que descer o rio Paraguai e depois o rio Paraná para chegar ao estuário do rio da Prata e, daí, ao oceano. O governo de Solano López elaborou um projeto para obter um porto no Atlântico. Pretendia criar o chamado Paraguai Maior, com a inclusão de uma faixa do território brasileiro que ligasse o Paraguai ao litoral. Para sustentar suas intenções expansionistas, López começou a preparar-se militarmente. Incentivou a indústria de guerra, mobilizou grande quantidade de homens para o exército (o serviço militar obrigatório já existia no Paraguai), submetendo-os a treinamento militar intensivo, e construiu fortalezas na entrada do rio Paraguai. No plano diplomático, procurou aliar-se, no Uruguai, ao partido dos blancos, que se encontrava no poder, adversário dos colorados, que eram aliados do Brasil e da Argentina. A Política Platina Desde que o Brasil e a Argentina se tornaram independentes, a luta entre os governos de Buenos Aires e do Rio de Janeiro pela hegemonia na bacia do Prata marcou profundamente as relações políticas e diplomáticas entre os países da região. O Brasil chegou a entrar em guerra com a Argentina duas vezes. O governo de Buenos Aires pretendia reconstituir o território do antigo Vice-reinado do Rio da Prata, anexando o Paraguai e o Uruguai. Realizou diversas tentativas nesse sentido durante a primeira metade do século XIX, sem obter êxito, muitas vezes por causa da intervenção brasileira. Temendo o excessivo fortalecimento da Argentina, o Brasil favorecia o equilíbrio de poderes na região, ajudando o Paraguai e o Uruguai a conservarem sua soberania. O Brasil, sob o domínio da família real portuguesa, foi o primeiro país a reconhecer a independência do Paraguai, em 1811. Na época em que a Argentina era governada por Juan Manuel Rosas (1829-1852), inimigo comum do Brasil e do Paraguai, o Brasil contribuiu para o melhoramento das fortificações e do exército paraguaios, enviando oficiais e técnicos a Assunção. Como não havia estradas ligando a província de Mato Grosso ao Rio de Janeiro, os navios brasileiros precisavam atravessar todo o território paraguaio, subindo o rio Paraguai, para chegar a Cuiabá. Muitas vezes, porém, era difícil obter do governo de Assunção permissão para ali navegar. No Uruguai, o Brasil realizou três intervenções político-militares. A primeira, em 1851, contra Manuel Oribe, para combater a influência argentina. A segunda, em 1855, a pedido do governo uruguaio, presidido por Venâncio Flores, líder dos colorados, tradicionalmente apoiados pelo Império brasileiro. A terceira intervenção, contra Atanásio Aguirre, em 1864, seria o estopim da guerra do Paraguai. Essas intervenções atendiam aos interesses ingleses de fragmentação da região do Prata, impedindo, assim, qualquer tentativa de monopólio mineral. A Intervenção Contra Aguirre Em abril de 1864, o Brasil enviou ao Uruguai uma missão chefiada pelo conselheiro José Antônio Saraiva para exigir o pagamento dos prejuízos causados a fazendeiros gaúchos por fazendeiros uruguaios, em conflitos de fronteira. O presidente uruguaio, Atanásio Aguirre, do partido dos blancos, recusou-se a atender as exigências brasileiras. Solano López ofereceu-se como mediador, mas não foi aceito. Rompeu então relações diplomáticas com o Brasil, em agosto de 1864, e divulgou um protesto afirmando que a ocupação do Uruguai por tropas do Império brasileiro seria um atentado ao equilíbrio dos Estados do Prata. Em outubro do mesmo ano, as tropas brasileiras invadiram o Uruguai. Os partidários do colorado Venancio Flores, que contava também com o apoio da Argentina, uniram-se às tropas brasileiras para depor Aguirre. A Guerra Declaração de Guerra No dia 12 de Novembro de 1864, o vapor paraguaio Tacuari apresou o navio brasileiro Marquês de Olinda, que subia o rio Paraguai rumo à então Província de Mato Grosso, levando a bordo o coronel Frederico Carneiro de Campos, recém-nomeado presidente daquela província. No dia 13 de Dezembro, o Paraguai declarou guerra ao Brasil. Três meses mais tarde, em 18 de Março de 1865, declarou guerra à Argentina. O Uruguai, já então governado por Venâncio Flores, solidarizou-se com o Brasil e a Argentina. O Tratado da Tríplice Aliança

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No dia 1°. de maio de 1865, o Brasil, a Argentina e o Uruguai assinaram, em Buenos Aires, o Tratado da Tríplice Aliança, contra o Paraguai. As forças militares da Tríplice Aliança eram, no início da guerra, francamente inferiores às do Paraguai, que contava com mais de 60 mil homens bem treinados e uma esquadra e 23 vapores e cinco navios apropriados à navegação fluvial. Sua artilharia possuía cerca de 400 canhões. As tropas reunidas do Brasil, da Argentina e do Uruguai, prontas a entrar em ação, não chegavam a 1/3 das paraguaias. A Argentina dispunha de aproximadamente 8 mil soldados e de uma esquadra de quatro vapores e uma goleta. O Uruguai entrou na guerra com menos de três mil homens e nenhuma unidade naval. Dos 18 mil soldados com que o Brasil podia contar, apenas 8 mil já se encontravam nas guarnições do sul. A vantagem dos brasileiros estava em sua marinha de guerra: 42 navios com 239 bocas de fogo e cerca de quatro mil homens bem treinados na tripulação. E grande parte da esquadra já se encontrava na bacia do Prata, onde havia atuado, sob o comando do Marquês de Tamandaré, na intervenção contra Aguirre. Na verdade, o Brasil achava-se despreparado para entrar em uma guerra. Seu exército não tinha ainda uma organização bem estruturada. As tropas utilizadas até então nas intervenções feitas no Prata eram constituídas basicamente pelos contingentes armados de chefes políticos gaúchos e por alguns efetivos da Guarda Nacional. A infantaria brasileira que lutou na Guerra do Paraguai não era formada de soldados profissionais, mas pelos chamados Voluntários da Pátria, cidadãos que se apresentavam para lutar. Muitos eram escravos enviados por fazendeiros. A cavalaria era formada pela Guarda Nacional do Rio Grande do Sul. Segundo o Tratado da Tríplice Aliança, o comando supremo das tropas aliadas caberia a Bartolomeu Mitre, presidente da Argentina. E foi assim na primeira fase da guerra. A Ofensiva Paraguaia Durante a primeira fase da guerra a iniciativa esteve com os paraguaios. Os exércitos de López definiram as três frentes de batalha iniciais invadindo Mato Grosso, em dezembro de 1864, e, nos primeiros meses de 1865, o Rio Grande do Sul e a província argentina de Corrientes. Atacando, quase ao mesmo tempo, no norte (Mato Grosso) e no sul (Rio Grande e Corrientes), os paraguaios estabeleceram dois teatros de operações. Numa guerra, chama-se teatro de operações à área em que se concentram as forças militares, as fortificações e as trincheiras, e em que se travam as principais batalhas. O principal objetivo da invasão de Mato Grosso foi distrair a atenção do governo brasileiro para o norte do Paraguai, quando a decisão da guerra se daria no sul (região mais próxima do estuário do Prata). Era o que se chama de uma manobra diversionista, destinada a iludir o inimigo. A invasão de Corrientes e do Rio Grande do Sul foi a segunda etapa da ofensiva paraguaia. Para levar apoio aos blancos, no Uruguai, as forças paraguaias tinham que atravessar território argentino. Em março de 1865, López pediu ao governo argentino autorização para que o exército comandado pelo general Venceslau Robles, com cerca de 25 mil homens, atravessasse a província de Corrientes. O presidente Bartolomeu Mitre, aliado do Brasil na intervenção contra o Uruguai, negou-lhe a permissão. No dia 18 de março de 1865, o Paraguai declarava guerra à Argentina. Uma esquadra paraguaia, descendo o rio Paraná, aprisionou navios argentinos no porto de Corrientes. Em seguida, as tropas do general Robles tomaram a cidade. Ao invadir Corrientes, López pensava obter o apoio do poderoso caudilho argentino Justo José Urquiza, governador das províncias de Corrientes e Entre Ríos, chefe federalista hostil a Mitre e ao governo de Buenos Aires. No entanto, a atitude ambígua assumida por Urquiza manteve estacionadas as tropas paraguaias, que avançaram ainda cerca de 200 km em direção ao sul, mas terminaram por perder a ofensiva. Em ação conjugada com as forças de Robles, uma tropa de dez mil homens sob as ordens do tenente-coronel Antônio de la Cruz Estigarriba cruzava a fronteira argentina ao sul de Encarnación, em maio de 1865, dirigindo-se para o Rio Grande do Sul. Atravessou-o no rio Uruguai na altura da vila de São Borja e a tomou em 12 de junho. Uruguaiana, mais ao sul, foi tomada em 5 de agosto sem apresentar qualquer resistência significativa ao avanço paraguaio. A Primeira Reação Brasileira A primeira reação brasileira foi enviar uma expedição para combater os invasores em Mato Grosso. A coluna de 2.780 homens comandados pelo coronel Manuel Pedro Drago saiu de Uberaba, em Minas Gerais, em abril de 1865, e só chegou a Coxim em dezembro do mesmo ano, após uma difícil marcha de mais de dois mil quilômetros através de quatro províncias do Império. Mas encontrou Coxim já abandonada pelo inimigo. O mesmo aconteceu em Miranda, onde chegou em setembro de 1866. Em janeiro de 1867, o coronel Carlos de Morais Camisão assumiu o comando da coluna, reduzida a

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1.680 homens, e decidiu invadir o território paraguaio, onde penetrou até Laguna, em abril. Esta expedição ficou famosa pela retirada forçada que empreendeu, perseguida pela cavalaria paraguaia. Apesar dos esforços da coluna do coronel Camisão e da resistência organizada pelo presidente da província, que conseguiu libertar Corumbá em junho de 1867, a região invadida permaneceu sob o controle dos paraguaios. Só em abril de 1868 é que os invasores se retiraram, transferindo as tropas para o principal teatro de operações, no sul do Paraguai. A Batalha do Riachuelo Na bacia do Prata as comunicações eram feitas pelos rios; quase não havia estradas. Quem controlasse os rios ganharia a guerra. Todas as fortalezas paraguaias tinham sido construídas nas margens do baixo curso (parte do rio perto de sua foz) do rio Paraguai. Em 11 de junho de 1865, travou-se a Batalha Naval do Riachuelo, na qual a esquadra comandada pelo chefe-de-divisão Francisco Manuel Barroso da Silva derrotou a esquadra paraguaia. Nesta batalha foi destruído o poderio naval paraguaio, tornando-se impossível a permanência dos paraguaios em território argentino. Ela praticamente decidiu a guerra em favor da Tríplice Aliança, que passou a controlar, a partir de então, os rios da bacia platina até a entrada do Paraguai. O Recuo das Tropas Paraguaias Enquanto López ordenava o recuo das forças que haviam ocupado Corrientes, o corpo de tropa paraguaio que invadira São Borja avançava, tomando Itaqui e Uruguaiana. Uma divisão que dele se separara e marchava em direção ao Uruguai, sob o comando do major Pedro Duarte (3.200 homens), foi derrotada por Flores no sangrento combate de Jataí, na margem direita do rio Uruguai. Nessa altura, as tropas aliadas estavam-se reunindo sob o comando de Mitre no acampamento de Concórdia, na província argentina de Entre Ríos, com o marechal-de-campo Manuel Luís Osório à frente das tropas brasileiras. Parte destas deslocou-se para Uruguaiana, onde foi reforçar o cerco a esta cidade pelo exército brasileiro no Rio Grande do Sul, comandado pelo tenente-general Manuel Marques de Sousa, barão de Porto Alegre. Os paraguaios renderam-se no dia 18 de Setembro de 1865. Nos meses seguintes foram reconquistados os últimos redutos paraguaios em território argentino: as cidades de Corrientes e de São Cosme. No final do ano de 1865, a ofensiva era da Tríplice Aliança. Seus exércitos já contavam mais de 50 mil homens e se preparavam para invadir o Paraguai. A Invasão do Paraguai A invasão do Paraguai foi feita seguindo o curso do rio Paraguai, a partir do Passo da Pátria, onde Osório desembarcou à frente de um destacamento brasileiro. De abril de 1866 a julho de 1868, as operações militares concentraram-se na confluência dos rios Paraguai e Paraná, onde estavam os principais pontos fortificados dos paraguaios. Durante mais de dois anos o avanço dos invasores foi bloqueado naquela região, apesar das primeiras vitórias da Tríplice Aliança. Asunción foi ocupada em 1.° de janeiro de 1869 por forças comandadas pelo coronel Hermes Ernesto da Fonseca. No dia 5, Caxias entrou na cidade com o restante do exército e 13 dias depois deixou o comando. O Fim da Guerra O Comando do Conde d'Eu O genro do imperador Dom Pedro II, Luís Filipe Gastão de Orléans, conde d'Eu, foi nomeado para dirigir a fase final das operações militares no Paraguai, pois buscava-se, além da derrota total do Paraguai, o fortalecimento do Império Brasileiro. Em agosto de 1869, a Tríplice Aliança instalou em Assunção um governo provisório encabeçado pelo paraguaio Cirillo Antônio Rivarola. Solano López organizou a resistência nas cordilheiras situadas a nordeste de Assunção. À frente de 21 mil homens, o conde d'Eu chefiou a campanha contra a resistência paraguaia, a chamada Campanha das Cordilheiras, que se prolongou por mais de um ano, desdobrando-se em vários focos. Os combates mais importantes foram os de Peribebuí e de Campo Grande (ou Nhuguaçu), nos quais morreram mais de cinco mil paraguaios. Dois destacamentos foram enviados em perseguição ao presidente paraguaio, que se internara nas matas do norte do país acompanhado de 200 homens. No dia 1.° de março de 1870, as tropas do general José Antônio Correia da Câmara surpreenderam o último acampamento paraguaio em Cerro Corá, onde Solano López foi ferido a lança e depois baleado nas barrancas do arroio Aquidabanigui. Suas últimas palavras foram: "Morro com minha pátria." Era o fim da guerra do Paraguai. Mortalidade O Paraguai sofreu uma violenta redução de sua população, beirando os 70% de perda. A guerra acentou um desequilíbrio entre homens e mulheres pré-existente. Autores da década de 1970 chegaram a defender que o desequilíbrio teria chegado a 28 mulheres para cada homem. Este número é certamente exagerado mas de qualquer maneira é provável que houvesse cerca de 2 mulheres para cada homem no Paraguai em 1870.

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Dos cerca de 123 mil brasileiros que combateram na Guerra do Paraguai as melhores estimativas apontam cerca de 50 mil óbitos e outros mil inválidos. As forças uruguaias contaram com cerca de 5500 homens, dos quais 3100 morreram durante a guerra. Já a Argentina perdeu cerca de 18 mil combatentes dentre os quase 30 mil envolvidos. Entretanto as altas taxas de mortalidade não são decorrentes do conflito armado em si. Doenças decorrentes da má alimentação e péssimas condições de higiene parecem ter sido a causa da maior parte das mortes. Dentre os brasileiros, acredita-se que até 2 terços dos soldados tenham morrido, em hospitais e durante a marcha, antes mesmo de ter enfrentado o inimigo. No início do conflito, a maior parte dos soldados brasileiros vinha das regiões norte e nordeste do país. As mudanças bruscas tanto de um clima quente para frio quanto de alimentação, no teatro de guerra a dieta tinha a carne fresca como base, além do consumo de água dos rios foi fatal, às vezes, para batalhões inteiros de brasileiros. A principal causa mortis durante a guerra parece ter sido o cólera. Conseqüências da Guerra Não houve um tratado de paz em conjunto. O Brasil não aceitava as pretensões da Argentina sobre uma grande parte do Grande Chaco, região paraguaia rica em quebracho (produto usado na industrialização do couro). A questão de limites entre o Paraguai e a Argentina foi resolvida através de longa negociação entre as partes. A única região sob a qual não se atingiu um concenso - a área entre o rio Verde e o braço principal do rio Pilcomayo - foi arbitrada pelo presidente estado-unidense Rutherford Birchard Hayes que declarou-a paraguaia. O Brasil assinou um tratado de paz em separado com o Paraguai, em 9 de janeiro de 1872, obtendo a liberdade de navegação no rio Paraguai. Foram confirmadas as fronteiras reivindicadas pelo Brasil antes da guerra. Estipulou-se também uma dívida de guerra que foi intencionalmente subdimensionada por parte do governo imperial do Brasil mas que só foi efetivamente perdoada em 1943 por Getúlio Vargas em resposta a uma iniciativa idêntica da Argentina. Em dezembro de 1975, quando os presidentes Ernesto Geisel e Alfredo Stroessner assinaram em Assunção um Tratado de Amizade e Cooperação, o governo brasileiro devolveu ao Paraguai troféus da guerra. As aldeias paraguaias destruídas pela guerra foram abandonadas e os camponeses sobreviventes migraram para os arredores de Assunção, dedicando-se à agricultura de subsistência, isto é, para consumo próprio, na região central do país. As terras das outras regiões foram vendidas a estrangeiros, principalmente argentinos, e transformadas em latifúndios. A indústria entrou em decadência. O mercado paraguaio abriu-se para os produtos ingleses e o país viu-se forçado a contrair seu primeiro empréstimo no exterior: um milhão de libras da Inglaterra, que se pode considerar a potência mais beneficiada por esta guerra, pois além de exterminar a ameaça paraguaia na América do Sul como exemplo de desenvolvimento, conseguiu fazer com que o Brasil e a Argentina aumentassem suas dívidas externas, que se arrastam até hoje. A Argentina anexou parte do território paraguaio e tornou-se o mais forte dos países do Prata. Durante todo o tempo da campanha, as províncias de Entre Rios e Corrientes abasteceram as tropas brasileiras com gado, gêneros alimentícios e outros produtos. O Brasil pagou um preço alto pela vitória. A guerra foi financiada pelo Banco de Londres e pelas casas Baring Brothers e Rothschild. Durante os cinco anos de lutas, as despesas do Império chegaram ao dobro de sua receita, provocando uma crise financeira. Por outro lado, o Exército brasileiro passou a ser uma força nova e expressiva dentro da vida nacional. Transformara-se numa instituição forte que, com a guerra, ganhara tradições e coesão interna e estava destinado a representar um papel fundamental no desenvolvimento posterior da história do país.

O Rio Grande Castilhista (1891-1930) O diagnóstico do doutor Protásio Alves foi definitivo. O governador Júlio de Castilhos estava para morrer. Um câncer devorou-lhe a garganta. Sua morte, em 1903, numa mesa de cirurgia improvisada, causou comoção geral. Anos depois o seu sucessor, o doutor Borges de Medeiros, coletou recursos entre o comércio porto-alegrense para erigir-lhe uma imensa estátua, erguida na praça da Matriz, onde o chefe republicano, sentado numa singela cadeira-trono, cercado por toda sorte de ícones positivistas, traz em sua mão a Carta de 1891: a constituição comtista. Castilhos e Comte: Júlio de Castilhos era o protótipo do homem-idéia, o político que tinha uma filosofia, uma causa, uma missão. Autoritário e culto, duro e visionário, acreditava, inspirado em seu mentor ideológico, o pensador francês Auguste Comte, ter a humanidade chegado na era cientifica, positiva. Para implantá-la, necessitava-se de um Estado forte, coeso - uma ditadura republicana -, que estimulasse as ciências, as engenharias, as matemáticas e tudo o mais que dissesse respeito ao

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moderno saber, a fim de garantir a chegada do progresso. E assim se fizeram as nossas primeiras faculdades e nossas primeiras escolas profissionalizantes. Para a gerência futura do novo regime republicano que ele e seu grupo constituíra em 1891, ordenou que se fundasse em 1900 um grande colégio secular movido à energia cívica, a fim de formar a elite política do Estado: o Colégio Júlio de Castilhos. Desconfiado da democracia, de quem só via o lado baderneiro e anárquico, o jovem prócer confiava o destino da sociedade gaúcha a um reduzido número de sábios luminares, os seus companheiros do aguerrido PRR (Partido Republicano Rio-grandense), gente escolada na luta contra a monarquia, contra a escravidão, e contra o maragatismo, a quem decretaram uma guerra de extermínio entre 1893-95, recomendados por Castilhos num telegrama tristemente famoso a que "ao inimigo não se dá trégua nem quartel!" Eram eles, os próceres republicanos, os novos homens do século que se inaugurava. A máquina republicana: morto precocemente, o Patriarca, que é como o chamavam, restou a poderosa máquina política do PRR com seus incontáveis chefes, subchefes e chefetes espalhados pelos mais de cem municípios rio-grandenses. Fora-se o ditador, mas a ditadura republicana perduraria até 1928. Quem herdou-lhe o controle foi o doutor Borges de Medeiros, seco em carnes e em palavras, que encarnava em seu temperamento a frieza das engrenagens partidárias montadas pelo castilhismo e a certeza da doutrina positivista. Sua aparência insípida, de modesto burocrata, inspirou anos depois, a que um dissidente republicano, o dr. Ramiro Barcelos, o comparasse, num mordaz e cruel poema satírico, ao chimango, um desolado e rapineiro pássaro do pampa (ver Antônio Chimango). Porém nos trinta anos que se seguiram (de 1898 a 1928), nenhuma eleição seria perdida por ele. Nada seria deixado à oposição maragata, que ousara em 1893 levar o estado a uma bárbara guerra civil de 12 mil mortos, entre os quais inúmeros degolados. Enquanto em outros estados da federação recém-implantada em 1891, ex-monarquistas compartilhavam do poder com os minoritários republicanos, o exclusivismo do castilhismo impediu que aqui o mesmo ocorresse. O critério do nosso estado sempre foi o ideológico, não o fisiológico. Aos maragatos, a oposição escorraçada, tratada como inimigo vencido desde 1895, só restou-lhes recorrer às armas quando assim desse. Deu só em 1923. Mesmo assim com pouco resultado, quando a dissidência de Assis Brasil aliou-se com os libertadores do caudilho Honório de Lemos. Os neocastilhistas, liderados por Getúlio Vargas, mais conciliadores com a oposição, assumiram então a direção do governo gaúcho, ao final do último mandato do doutor Borges em 1928. O castilhismo domina o Brasil: foi por pouco tempo que eles por cá ficaram porque os acontecimentos extraordinários de outubro de 1930 logo os guindaram ao poder central. O castilhismo dali em diante (na forma de um Estado nacional autoritário, constitucionalmente estribado num centralismo uniforme, com enxertos de justiça social saint-simoniana, e com a base social ampliada pelo voto secreto e o voto feminino), levado ao resto do Brasil pela presença getulista, dominaria o país inteiro, concertando os desacertos do liberalismo, desmontado e estonteado pela crise de 1929. A economia da carne: economicamente, nesse tempo todo, observou-se o enorme esforço do governo gaúcho em dotar-nos de capacidade exportadora. Gradativamente as grandes charqueadas darão lugar em importância aos modernos frigoríficos norte-americanos, o da Swift em Rio Grande, e o da Armour em Livramento, atraídos que foram em 1917 para a fronteira rio-grandense, área das grandes criações de gado. Também travou-se naquela época uma intensa e cara batalha de engenharia contra as bravezas da barra de Rio Grande, para assegurar-lhe o tráfego marítimo, reduzindo-lhe o assoreamento e ampliando-lhe o calado. Por essa época toda, olhando-se assim pelo alto, sem atormentar-se com estatísticas e números, poderia dizer-se que ainda havia um empate entre os dois rio-grandes econômicos: a metade Sul era mais ou menos equivalente à metade Norte. Complementavam-se. O couro do boi, arrancado na charqueada pelotense, embarcava na Lagoa dos Patos, subindo para o curtume do Rio dos Sinos. O latão com banha de porco da pequena propriedade na colônia alemã, por sua vez, descia rumo ao sul para ir derreter-se na vianda do fronteiriço. Pouca diferença nesse aspecto havia ainda entre Pelotas e Caxias, ou entre Livramento e São Leopoldo.

O Divisor de Águas (1930-1945) Em 1938, Getúlio Vargas e sua família quase sucumbiram a um golpe de mão dos fascistas brasileiros, liderado pelo chefe da Ação Integralista, Plínio Salgado. Este acontecimento traumático (foi a primeira vez que um chefe de governo brasileiro foi atacado diretamente num golpe, no qual o Presidente esteve cercado, correndo risco de vida, por várias horas no Palácio da Guanabara no Rio de Janeiro) , teve repercussões enormes na nossa história regional. Sabedor que a embaixada da

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Alemanha nazista fora informada do putsch integralista e nada fizera para avisá-lo, a ditadura Vargas decidiu-se por uma ação radical que, em 1942 culminaria na declaração de guerra ao Eixo. A nacionalização das colônias: em boa parte do Sul do país até então, no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, as colonias alemãs e italianas gozavam de inúmeros privilégios étnicos que lhes permitiam manter a língua, a religião e a cultura. As aulas, na maioria das escolas, eram ainda proferidas no seu idioma materno, tendo eles a sua própria imprensa e toda uma gama de clubes privados que lhes garantiam uma identidade e uma independência étnica quase que total. De certa forma continuavam a viver como se as colonias do Sul fosse uma extensão, ainda que pequena, da Alemanha ou da Itália no Novo Mundo. A ascensão do Fascismo em 1922 e a do Nazismo em 1933, com seu discurso patrioteiro, ufanista e racista, atiçaram nesta parte sul do Brasil algumas ambições separatistas calcadas em argumentos étnicos e raciais: um Brasil-Sul só para brancos, só para caucasianos, dominado pelos ítalo-germanos. Ambições estas, diga-se, francamente expostas na imprensa (por exemplo, em jornais como o "Vaterland", ou o "Deutsche Turnblätter") e cultivada em suas reuniões em clubes e associações comunitárias ou profissionais. Getúlio Vargas resolveu dar um basta nisto. Todas as antigas zonas de imigração foram por assim dizer nacionalizadas, abrasileiradas por decreto-lei do Estado Novo. Depois, durante a Segunda Guerra, chegou-se até a proibir que falassem o alemão ou o italiano. O temor que o afã separatista conduzisse a formação de uma quisto nazi-fascista na parte Sul do nosso continente foi tão preocupante que, recentemente, encontraram-se documentos que mostravam a intenção dos Estados Unidos, em caso de guerra declarada, vir a intervir militarmente no Brasil. A desimportância da política local: enquanto a elite gaúcha, com Vargas, Aranha, Collor, Neves da Fontoura, e tantos outros, desde a Revolução de 1930, enraizava-se no poder, o governo local foi entregue à intervenção do general Flores da Cunha e, depois do rompimento deste com Vargas em 1937, ao general Cordeiro de Farias e, em 1943, ao seu sucessor, o general Ernesto Dornelles (um dos fundadores do PSD gaúcho e mais tarde senador pelo Rio Grande do Sul). Neste divisor de águas de quinze anos, um estranho processo marcou o Rio Grande do Sul. A ascensão dos seus melhores quadros políticos para a governança nacional esvaziou o estado de bons políticos e também da sua magnitude, tornando-o uma espécie de capitania militar do Estado Novo. Ao empalmar o Brasil com sua liderança, o Rio Grande desinflou-se da sua importância.

Do Rio Grande Populista ao Rio Grande Autoritário (1945-1985) Quando os deputados da constituinte de 1947 reuniram-se pela primeira vez em Porto Alegre, além da excentricidade deles proporem um regime parlamentarista exclusivo ao nosso estado, um fato étnico chamou a atenção: o aumento significativo de representantes da área colonial ítalo-alemã. Eram os primeiros sinais daquilo que mais tarde iria acelerar-se. Alargam-se as diferenças: a metade Sul, de origem luso-açorita, campeira, pastoril, da fazenda, do peão "pêlo-duro", e do estanciero de voz grossa, mandona, estiolava-se, dando lugar em importância à metade Norte, povoada pelos descendentes dos imigrantes com suas pequenas e médias urbes coloniais, dominadas pela propriedade familiar, pelo artesanato e pelo industrial diligente, de fala rústica, com um sotaque de alemão ou de italiano abrasileirado. Desde 1945, conquistada a democracia, Porto Alegre, como uma espécie de zona neutra a ser ganha, será o palco da disputa entre as duas metades do Rio Grande. A isso somou-se a emergência do proletariado urbano, grevista, lutador. O progresso industrial e comercial do estado, a anterior presença de Vargas no poder central(com sua política de proteção ao trabalhador), e a emergência da social-democracia ao poder na Europa atiçaram as lutas sociais. O trabalhismo e seus adversários: um relativamente bem organizado movimento trabalhista, com doutrina, liderança, partido e bandeira, ideologicamente embalado pelo getulismo e pelo laborismo inglês, emergiu para a conquista do do poder. Do outro lado, o conservadorismo iria alinhar-se, com a benção da Igreja Católica, numa amplíssima frente social que ia do colono pequeno proprietário temente a Deus, ao grande proprietário de terras avesso ao discurso de justiça social. Grandes embates eleitorais deram-se entre ambos, entre trabalhistas e conservadores, em 1950, em 1954, em 1958 e, finalmente, o último da república populista, ocorrido em 1962, quando os conservadores, capitaneados pelo insosso Ildo Meneghetti, a personificação do anticaudilho, alijaram um brizolismo dividido do poder. As camadas geológicas: nesta espécie de camadas geológicas das lutas gaúchas: a geográfica, travada entre a metade Sul e a metade Norte; a sócio-política envolvendo trabalhistas e conservadores; mais uma outra deve-se mencionar: a que girava ao redor da funções do Estado, separando o Rio Grande entre os intervencionistas e os não-intervencionistas.

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Neste sentido o governo do polêmico governador Leonel Brizola (1958-1962) foi emblemático. Nacionalizações e estatizações, acompanhadas de volumosos investimentos em educação pública, eletrificação, transporte e demais itens da infra-estrutura, formaram naquele final de década um claro contraponto à política jucelinista, calcada na atração de capital externo, voltado para os bens de consumo (particularmente a indústria automobilística, instalada em São Paulo). E será justamente a instalação do polo automotivo em São Paulo, e tudo o mais que o acompanhou, que acentuará a diferença entre os dois rio grandes econômicos. Como que atraída por um poderoso imã, a metade Norte, que já desenvolvera e adquirira uma certa tradição fabril, especialmente no eixo que vai de Caxias do Sul a Bento Gonçalves, passando por Farroupilha, ligou-se à pujança de São Paulo. Da Serra a São Paulo: não demorou para que para lá enviasse carroçarias, auto-peças e demais complementos para suprir aquele imenso parque que parecia não ter mais limite nem fim. Centenas de fábricas modernas proliferaram pela região da Serra gaúcha para alimentar o gigante de Piratininga. No Vale dos Sinos, entrementes, em Novo Hamburgo, São Leopoldo e arredores, as indústrias de calçados e de couros conseguiram abrir os mercados internacionais aos seus manufaturados. Evidentemente que a maior parte dos investimentos estatais desde então fluíram na sua direção, e outros tantos subiram a Serra. Ao longo dos mais de vinte anos que se seguiram sob o regime militar (1964-1985), o prestígio da antiga área colonial só aumentou, enquanto a Grande Porto Alegre e a metade Norte, perfazendo quase 80% do produto interno bruto, aliavam-se na recepção dos grandes pacotes federais que para cá vieram (Refinaria Alberto Pasqualini em Canoas e Polo Petroquímico de Triunfo) ao qual adicionou-se o erguimento de pontes, de viadutos, e a construção de que excelentes estradas. Durante ao longo dos vinte anos de regime militar, o Rio Grande do Sul voltou a perder sua autonomia política como nos tempos do Estado Novo. Só que de forma diversa. Os vários procônsules do regime militar que aqui assumiram a governadoria (coronel Peracchi Barcelos, Euclides Triches, Sinval Guazelli e Amaral de Souza) o fizeram com respaldo parcial do poder legislativo, dominado pela coligação conservadora formada pelo PSD, UDN e PL, agrupados na sigla da Arena (Aliança Renovadora Nacional). Da chaminé ao Laçador: no século encerrado, observou-se uma curiosa alternância de símbolos. Até os anos 60 o objeto visual mais marcante da capital do estado, e presente em todos os cartões postais que a identificavam, era o chaminé da Usina do Gasômetro (concluída em 1937) , pela simples razão dela ser a primeira avistada de quem vinha da metade Sul, fosse pela Lagoa dos Patos ou pela barca que fazia a travessia do Rio Guaíba. Encerrado aquele decênio, foi a vez da estátua do Laçador assumir sua importância e deslocá-la, a chaminé, dos cartões postais e do imaginário local. Situada na parte Norte da capital, na rótula da entrada da Avenida Farrapos, praticamente à saída do aeroporto Salgado Fº, ela, inspirada no tradicionalista Paixão Côrtes, se encontra à vista dos que aqui chegam vindos da metade Norte, ou do resto do país. Entre esses dois símbolos sintetizou-se, mas as avessas, boa parte da nossa história econômica e social deste século. Se a metade Sul encolheu-se perante a magnitude da metade Norte, fazendo com que a proeminência do boi desse lugar à máquina, a espora recolhia-se frente ao óleo e a ferramenta, se a Serra ensombrava o pampa, no jogo simbólico porém, o Laçador, o homem do gado, substituiu a chaminé, o ícone da Indústria!

Renúncia e Legalidade - 12 dias que abalaram o Brasil Durante 12 dias, metade deles ocorridos em agosto e outra metade em setembro de 1961, o Brasil se viu às portas de uma guerra civil. De um lado o poder estava em mãos de uma junta militar cujos integrantes haviam sido indicados por Jânio Quadros, o presidente que governara apenas por sete meses e que renunciara à faixa presidencial em 25 de agosto. Do outro, ergueu-se o governador Leonel Brizola do Rio Grande do Sul, que mobilizou a força pública e a população civil contra o intento da junta militar de não dar posse ao vice-presidente legítimo, o seu cunhado João Goulart. No cabo-de-força que então se instalou, o País por bem pouco não mergulhou numa contenta de sangue que poderia estender-se pelo território nacional por inteiro.

"Jânio vem aí" Moreno, magro, de óculos de grau e quase sempre despenteado, Jânio da Silva Quadros parecia-se um tanto com o comediante americano Groucho Marx. Ao seu aspecto inusual acrescentava-se o fato de quase sempre andar em mangas de camisa, manifestando o seu horror à gravata e ao paletó, o que ele abertamente expressava num português muito seu, muito próprio, num tom veemente cômico-pedante, carregado de próclises e ênclises, o que fazia dele um tipo original ainda mais popular. O homem era um fenômeno. Fez uma carreira política completa sem jamais ter perdido

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nenhuma eleição: foi vereador, deputado, prefeito, governador do Estado de São Paulo, e, desde 1959, fortíssimo candidato à presidência da república. E tudo isso fora do quadro dos grandes partidos que dominavam o cenário político brasileiro desde 1945 (Jânio costumava-se lançar-se pelo minúsculo PDC, Partido Democrático-Cristão). Ninguém o detinha, ninguém o deteve. O Movimento Janista, (oficialmente chamado Movimento Popular Jânio Quadros, ou MPJQ) massa de gente que espontaneamente, por todo o País, se formou em torno da sua postulação, exultava pelas ruas gritando: "Jânio vem aí!" Tratou-se de um verdadeiro rolo compressor. Apoiado por um coligação de partidários antigetulistas, a candidatura de Jânio Quadros recebeu 48% dos votos de um total de 11,6 milhões de eleitores nas eleições presidenciais de 1960.

Getulistas e antigetulistas Apesar do presidente Getúlio Vargas ter-se suicidado em 24 de agosto de 1954, sua sombra política ainda se fazia sentir. Partidariamente, o Brasil dividia-se entre os getulistas (os partidos PSD e PTB) e os antigetulistas (a UDN e uma constelação de partidos que iam da direita golpista à esquerda comunista). Pareciam-se, os partidos, a três grandes feudos, conduzidos cada um deles por um grêmio partidário. O que estava sempre no poder era o bloco formado pela coligação PSD-PTB, ambos fundados em 1945, ao tempo em que Getúlio Vargas ainda era ditador, cabendo à UDN o papel de uma oposição crescentemente desesperada por suas sucessivas derrotas nas urnas (em 1946, 1950 e 1955). Situação esta que fez com que ela se aproximasse de militares golpistas para tentar chegar ao poder por meio das armas. Quando o nome de Jânio Quadros surgiu no cenário eleitoral nacional, um político desvinculado dos partidos, um líder messiânico, um "salvador do Brasil", a UDN teve esperanças de, por fim, alçar-se ao executivo federal sem precisar dos tanques. Na convenção de 1959, por insistência de Carlos Lacerda, o mais expressivo tribuno do partido, ela concordou em apoiar Jânio Quadros.

O fenômeno Jânio Quadros Revelando-se admirável administrador, cioso da verba pública, puritano e moralizador, e, por conseguinte, sem máculas de corrupção, Jânio Quadros, logo após ter sido prefeito de São Paulo (1953-4), o primeiro a ser eleito desde 1930, conseguiu o feito de praticamente sozinho bater, em 1955, a máquina eleitoral do PSP (Partido Social Popular) de Ademar de Barros, um ex-cacique varguista que controlava politicamente o Estado de São Paulo. O povo paulista o adorava, mesmo com suas costumeiras esquisitices e o seu jeito de falar estrambólico. Ideologicamente, Jânio Quadros era um poço de ambigüidades, oscilando entre os getulistas e os antigetulistas, fazendo sempre questão de aparecer como um homem que estava acima dos partidos, fora da intrigalha que alimenta a rotina de um político convencional. Não era de direita, muito menos de esquerda.

O carisma e a vassoura O símbolo da sua campanha era a vassoura, com a qual ele pretendia varrer a corrupção e a desordem instalada no País. A isso somou-se o seu inquestionável carisma, o que fez dele o mais prestigiado tribuno popular desde o desaparecimento de Getúlio Vargas. Logo, não foi difícil para ele bater o general Henrique Teixeira Lott, o seu principal adversário da coligação PSD-PTB, no pleito de 3 de outubro de 1960.

Eleições de 3 de outubro de 1960 Candidato Coligação Total de votos Jânio Quadros UDN-PDC-PTN 5.636.623 (48%) Henrique T.Lott PSD-PTB 3.846.825 (32%) Ademar de Barros PSP 2.195.709 (20%)

Nota: na mesma eleição, João Goulart, do PTB, concorrendo à vice-presidência, obteve 4.547.010, Milton Campos da UDN conseguiu 4.237.419, e Fernando Ferrari, do MTR, 2.137.382. Como a constituição de 1946 permitia que os vices concorressem em faixa própria, João Goulart, do PTB, assumiu como vice de Jânio Quadros, apoiado pela UDN, opositora do PTB. No Congresso, a situação de Jânio não era boa, visto que a coligação PSD-PTB ficou 55% das cadeiras, além das 8% dadas ao PSP de Ademar de Barros.

A esquizofrenia janista Empossado em 31 de janeiro de 1961, em meio a um mar de esperanças, sucedendo o governo bastante desgastado de Jucelino Kubitschek, que legou-lhe uma expressiva inflação, os sete meses de governo de Jânio Quadros revelaram-se uma autêntica esquizofrenia política. No plano econômico interno, ele aplicou as severas medidas de contenção determinadas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), do qual obteve um empréstimo, removendo subsídios aos combustível e ao trigo, o que encareceu o transporte público e o pão. No plano internacional, porém, advogou uma "política externa independente". Em plena guerra fria, decidiu-se reatar as relações com a URSS e a China comunista (enviando João Goulart em visita oficial a Pequim), apoiou Fidel Castro contra os norte-

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americanos na questão do desembarque da Baía dos Porcos e, para profunda irritação dos militares anticomunistas e próceres da UDN como Carlos Lacerda, condecorou Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul, símbolo da luta antiamericana no continente. Esta confusa mistura de medidas conservadoras, seguindo a cartilha do FMI, com a ação afirmativa na política externa, identificada com o Movimento dos Não-Alinhados, distante dos Estados Unidos, não poderia durar muito. Além disso, esperava-se muito mais dele. Jânio, num surto de idiotice, proibiu o uso de biquínis nas praias brasileiras e suspendeu as brigas de galo em todo o País. A impressão que o país passou a ter é de que a montanha parira um rato, tamanho o despropósito entre as esperanças estimuladas e o resultado obtido até aquele momento. Foi então que deu-se o pior: Jânio Quadros renunciou!

A solução gaullista Líder carismático, autoritário, homem fora dos quadros partidários tradicionais, o presidente revelou-se incapaz de conduzir uma relação harmônica com um Congresso em mãos da oposição. Assim, revelam as fontes, pensou em imitar o presidente da França, Charles de Gaulle, que, em 1958, explorando a situação de crise nacional, conseguiu obter poderes extraordinários de um Legislativo totalmente obediente a ele. Jânio Quadros pensou que se renunciasse, o povo e as forças armadas, em uníssono, o trariam de volta numa solução cesarista. Assim ele teria as condições de governar o País sem controle, independente dos partidos e do Congresso. Porém nada disso se deu. A Carta da Renúncia enviada ao Congresso em 25 de agosto de 1961, logo após um tumulto provocado por Carlos Lacerda, que chegara às manchetes dos jornais, imediatamente foi aceita, e o pretenso golpe de Jânio Quadros caiu no vazio. À tarde do dia 25 de agosto de 1961, o País, perplexo, estonteado, escutou pelo rádio as razões do ex-presidente, num tom que os locutores fizeram lembrar a Carta Testamento de Getúlio Vargas. Trecho "Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, neste sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais ao apetite e às ambições de grupos ou indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me porém esmagado. Forças terríveis levantaram-se e me intrigam ou me difamam, até com a desculpa da colaboração. Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranqüilidade, ora quebradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade."

A junta militar Se constitucionalmente, com a ausência do vice-presidente do País (João Goulart estava em visita à China comunista), a cadeira vacante foi assumida de direito pelo presidente da Câmara, deputado Ranieri Mazzilli, logo o Brasil verificou que o poder de fato passou a ser exercido pela junta militar encabeçada pelo general Odílio Denis, com o apoio do brigadeiro Grün Moss e do almirante Silvio Heck. A primeira medida que os chefes militares tomaram foi anunciar o seu veto ao vice-presidente João Goulart devido ao seu histórico envolvimento com o movimento trabalhista e sindicalista, considerado sob suspeição pelos altos comandos militares. Para eles, dar posse a Jango, o herdeiro do varguismo, era estimular "o caos, a anarquia, a luta civil", como afirmaram a seguir num manifesto à nação, datado de 28 de agosto de 1961. Ato que iria lançar o Brasil às portas de uma guerra civil. Por detrás de tudo havia o medo do alto comando de que o governo de Jango servisse como plataforma para o que chamava-se na época a "cubanização do Brasil", isto é, a formação de uma república sindicalista afinada com Fidel Castro, marcadamente antiamericana e pró-comunista.

O movimento pela legalidade Enquanto a maioria dos governadores dos Estados pareciam conformar-se com a impugnação do vice-presidente, afinal onze deles pertenciam a UDN, sendo, portanto, antijanguistas, o mesmo não se deu com o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Tomando, a partir do dia 26 de agosto, medidas que visavam a mobilização da opinião pública contra o golpe militar que estava em andamento, o governador gaúcho rapidamente formou uma cadeia de rádio - a Cadeia da Legalidade - para, em alto e bom som, anunciar ao Estado e ao País que o seu governo estava disposto a resistir às intenções anticonstitucionais da junta militar que controlava Brasília. Simultaneamente, ordenou a mobilização da Brigada Militar, a força pública estadual, fazendo com que ela, além de reforçar o Palácio Piratini, sede do governo rio-grandense, ocupasse posições-chave que permitissem o controle de uma infra-estrutura capaz de garantir a resistência. Ao mesmo tempo, manifestações populares começaram a se proliferar pelas ruas das principais cidades do Rio Grande do Sul. Na capital, Porto Alegre, uma enorme multidão de trabalhadores, sindicalistas, funcionários e estudantes marchou para a frente do Palácio para hipotecar o seu apoio ao governador Brizola. Nos dias seguintes, a capital entrou em clima de guerra. Alistamentos de civis voluntários, convocação de enfermeiras alternavam-se com desfiles de tropas de cavalarianos vindos do interior do Estado em marchas cívicas pelas principais avenidas de Porto Alegre. No Teatro de Equipe da cidade, os intelectuais e artistas se irmanavam na denúncia do golpe em andamento. No alto dos prédios,

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metralhadoras pesadas eram instaladas enquanto trincheiras de sacos de areia surgiam nos pontos vitais. O povo preparava-se para lutar ao lado do governador Brizola.

Discurso de Leonel Brizola "O Governo do Estado do Rio Grande do Sul cumpre o dever de assumir o papel que lhe cabe nesta hora grave

da vida do País. Cumpre-nos reafirmar nossa inalterável posição ao lado da legalidade constitucional. Não

pactuaremos com golpes ou violências contra a ordem constitucional e contra as liberdades públicas. Se o atual

regime não satisfaz, em muitos de seus aspectos, desejamos é o seu aprimoramento e não sua supressão, o que

representaria uma regressão e o obscurantismo.

A renúncia de Sua Excelência, o Presidente Jânio Quadros, veio surpreender a todos nós. A mensagem que Sua

Excelência dirigiu ao povo brasileiro contém graves denúncias sobre pressões de grupos, inclusive do exterior,

que indispensavelmente precisam ser esclarecidas. Uma Nação que preza a sua soberania não pode conformar-

se passivamente com a renúncia do seu mais alto magistrado sem uma completa elucidação destes fatos. A

comunicação do Sr. Ministro da Justiça apenas notifica o Governo do Estado da renúncia do Sr. Presidente da

República. Por motivo dos acontecimentos, como se propunha, o Governo deste Estado dirigiu-se à Sua

Excelência, o Sr. Vice-Presidente da República, Dr. João Goulart, pedindo seu regresso urgente ao País, o que

deverá ocorrer nas próximas horas.

O ambiente no Estado é de ordem. O Governo do Estado, atento a esta grave emergência, vem tomando todas as

medidas de sua responsabilidade, mantendo-se, inclusive, em permanente contato e entendimento com as

autoridades militares federais. O povo gaúcho tem imorredouras tradições de amor à pátria comum e de defesa

dos direitos humanos. E seu Governo, instituído pelo voto popular - confiem os riograndenses e os nossos

irmãos de todo o Brasil - não desmentirá estas tradições e saberá cumprir o seu dever." (Sacada do Palácio Piratini, madrugada de 27 de agosto de 1961)

O Terceiro Exército adere à Legalidade Enquanto hinos patrióticos eram diariamente colocados no ar pela Cadeia da Legalidade, o comandante do III Exército, a maior guarnição militar do País, general Machado Lopes, depois de alguma hesitação, resolveu emprestar o seu apoio ao governador Brizola. Se assim não fosse, ele seria obrigado a entrar em combate aberto contra a população da capital, que, naquela altura dos acontecimentos, já se movimentara a favor da posse de João Goulart. Ao enviar os carros de combate para dar proteção ao palácio do governo, ameaçado de ser bombardeado pelos aviões da FAB, sediados na base aérea de Gravataí e, depois, possivelmente pelos que decolariam do porta-aviões Minas Gerais, o general Machado Lopes imediatamente passou a ser chamado pelas rádios gaúchas como o "General da Legalidade". Claramente a situação nacional indicava um confronto. De um lado as forças armadas, ainda que divididas com a secessão do III Exército, do outro a opinião pública civil, que, em sua larga maioria, desejava o respeito à ordem constitucional, isto é, que João Goulart, obedecendo ao artigo 79 da constituição de 1946, fosse empossado como o novo presidente do Brasil. A saída do impasse para evitar um desenlace armado foi a alteração da forma do regime político, do presidencialismo para o parlamentarismo.

Hino da Legalidade

Avante brasileiros de pé/ Unidos pela liberdade

Marchemos todos juntos de pé/ Com a bandeira que prega a igualdade

Protesta contra o tirano/ Se recusa a traição

Que um povo só é bem grande/

Se for livre como a Nação (Letra de Lara de Lemos)

A solução negociada A aprovação pelo Congresso de uma Emenda Parlamentarista (264 vs. 10 votos), no dia 30 de agosto de 1961, foi o anticlímax da crise de agosto. Esta solução foi negociada por Tancredo Neves, representando os políticos profissionais, e o general Orlando Geisel, chefe da casa militar de Jânio Quadros. João Goulart, voltando ao País normalmente, assumiria a Presidência, mas com seus poderes podados por um gabinete aprovado pelo Congresso. No dia 1º de setembro João Goulart desembarcou em Porto Alegre. Uma das condições que lhe foi imposta pelos militares para poder retornar era de que ele não discursasse ao povo de Porto Alegre para não excitar a multidão contra as forças armadas. João Goulart, em nome da pacificação dos ânimos, aceitou. Do alto do balcão do Palácio Piratini, João Goulart, assomando-se à sacada, sem dizer uma palavra sequer, apenas abanou para os milhares de manifestantes que estavam em frente à praça e que teriam dado suas vidas pela causa da legalidade. Foi exatamente ali que ele perdeu a batalha. Ao concordar com os termos que lhe foram impostos, que na prática suprimiam com seus direitos constitucionais legítimos, sem sequer esboçar um ânimo de luta, João Goulart mostrou, como os eventos de 1964 viriam corroborar, que não era um homem à altura dos acontecimentos.

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Uma oscilação doida O Brasil, em apenas 12 dias - do dia 25 de agosto ao 7 de setembro de 1961 - , conheceu os extremos de uma perigosa oscilação política. O gesto irresponsável e aventureiro de Jânio Quadros provocou, como resposta, ainda que circunscrita a um só Estado, o Rio Grande do Sul, a maior mobilização cívico-militar que o Brasil conhecera desde a revolução de 1930. Enquanto grande parte da nação aguardava tensa, mas omissa, o desenrolar do enfrentamento do governador Brizola com a Junta Militar, o povo rio-grandense não parou um só momento de agita-se em favor da legalidade e da manutenção da ordem constitucional. Até ver Jango tomar posse no Congresso em Brasília, no dia 7 de setembro de 1961. A atitude de João Goulart, aceitando o acordo que o diminuía, decepcionou grande parte dos ativistas, maiormente o seu cunhado Leonel Brizola, seu companheiro de partido - o PTB. Para os gaúchos em geral, apesar da suas limitações, o Movimento Cívico-Militar da Legalidade foi o último feito épico do Rio Grande do Sul no século XX.