a ótica da complexidade - edgar morin

Upload: sergiogartner01

Post on 30-May-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/9/2019 A tica da complexidade - Edgar Morin

    1/4

    EDGAR MORIN: A TICA DA COMPLEXIDADE E A ARTICULAO DOS SABERESNelly Novaes Coelho

    Professora de ps-graduao de Literatura Brasileira e Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letrase Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (USP).

    http://www.geocities.com/complexidade/nelly.html

    H uma inadequao cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes separados,fragmentados, compartimentados entre disciplinas e, por outro lado, realidades e problemas cada vez maispolidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetrios. (...) Ahiperespecializao impede de ver o global ( que ela dilui). (...) O retalhamento das disciplinas (no ensino)torna impossvel apreender "o que tecido junto", isto , o complexo, segundo o sentido original do termo.(Edgar Morin, 2000)

    Nessa lcida sntese da atual realidade, no campo do saber institucionalizado, Edgar Morin toca noverdadeiro "nervo" da mutao em processo no mundo: a urgncia de uma reforma do pensamento que sesintonize com a nova tica, por meio da qual o mundo vem sendo redescoberto pelas cincias e

    transformado pela informtica.Pensador dos mais fecundos entre os intelectuais que, desde meados do sculo XX, vm

    analisando as transformaes do conhecimento no mundo atual, o socilogo Edgar Morin, neste ltimo meiosculo de estudos e polmicas, tem se dedicado essencialmente s pesquisas que podemos chamar de"sondagens de limiar", ou melhor, sondagem dos "pontos de encontro/ desencontro" entre as vrias reasdo conhecimento (cientficas, culturais, filosficas, literrias, etc.), em busca das novas respostas (ou deuma nova ordem), que s uma nova conscincia de mundo poder dar.

    Tarefa difcil e desafiante que, a esta altura dos tempos, j extrapolou as fronteiras dos "estudosavanados" ou da "esfera dos iniciados", essa que vem sendo exercida por E. Morin (e outros guiasiluminadores) comea a ser exigida a cada um de ns que, bem ou mal, fazemos parte do mundo pensante.

    Abrir caminho para um nmero cada vez maior de "pensantes" (professores, educadores, psiclogos eoutros) que assumam essa tarefa seminal, vem sendo sem dvida o grande alvo perseguido pelo socilogofrancs em suas constantes viagens, seminrios e colquios pelas "sete partidas do mundo".

    Da imensa rede de fenmenos ou de temas que vm sendo pesquisados por Morin (e concretizadosem dezenas de textos e livros), destacamos um que , inegavelmente, basilar em seu pensamento: oconfronto que vem sendo feito entre o mundo das certezas, herdado da tradio (fundado na concepocartesiano-newtoniana, racionalmente explicvel por leis naturais, simples e imutveis), e o mundo dasincertezas, gerado pelo nosso tempo de transformaes (mundo complexo, desvendado pela fsicaeinsteniana que pe em xeque as leis simples e imutveis em que se apoiava o conhecimento herdado).

    Lembremos que umas das revolucionrias descobertas de nosso tempo que a cincia j no o

    reino da certeza. Se, por um lado, o conhecimento cientfico se constri sobre mltiplas certezas, por outrodeixou de ser o domnio da certeza absoluta, no plano terico. Pode-se dizer que o principal "nervo" dopensamento complexo proposto por Morin a busca de uma nova percepo de mundo, a partir de umanova tica: a da complexidade. Em lugar da antiga percepo reducionista, cartesiana, prope-se aconquista de uma nova percepo sistmica, ps-cartesiana, ainda em gestao. Claro est que o conflitoentre essas duas percepes ainda est longe de ser resolvido. Sua soluo, como sabemos, depende dastransformaes em processo no mundo. Mas, ao mesmo tempo (como alerta Morin) essas transformaesdependem da crescente conscientizao dos homens, em relao a elas e ao novo lugar que cabe a cadaum de ns no novo universo.

    http://www.geocities.com/complexidade/nelly.htmlhttp://www.geocities.com/complexidade/nelly.html
  • 8/9/2019 A tica da complexidade - Edgar Morin

    2/4

    Complexidade e Transdisciplinaridade

    A complexidade de novo mundo em processo pois a nova perspectiva, por meio da qual o novoconhecimento deve ser procurado. essa a grande bandeira que Morin vem levantando em sua cruzadapelo mundo, instigando as pesquisas de um novo saber e apontando o pensamento complexo e o mtodo

    transdisciplinar como possveis caminhos de busca.No h dvida de que esse o grande problema do ensino e da pesquisa, em nossos dias: o do

    conhecimento a ser descoberto, no mais isolado como algo-em-si, mas em suas complexas relaes como contexto a que pertence. esse um dos impactos do pensamento proposto por Morin. O tentarmosassumi-lo resulta em um verdadeiro desafio nossa capacidade de elaborar o nosso conhecimento, seja nosentido de organizar, em "snteses provisrias", a avalanche de informaes que nos assaltam por todos oslados; seja nas incertezas, que nos lanam em dvida, quanto validade ou no do prprio processo deconhecer, que a nova tica (imposta pela complexidade dos fenmenos) veio pr em questo.

    De onde provm o conhecimento? Do objeto, em sua realidade objetiva, sem interferncia dosujeito? Ou produzido no sujeito, que encontra em si prprio os critrios de avaliao e conceituao do

    objeto? (interrogaes que as descobertas da fsica quntica vieram suscitar) . Enfim, nos rastros dopensamento complexo, o que nos importa ressaltar aqui o fato de que, no lugar do sujeito seguro,baseado em certezas absolutas (fundado no pensamento tradicional: positivista, empirista, determinista),est hoje um sujeito interrogante que (tal qual o aprendiz de feiticeiro), diante desse mundo belo/ horrvel,em acelerada transformao (e que ele mesmo criou), tenta encontrar um novo centro ou novo ponto deapoio, para uma nova ordem (mesmo que seja provisria), em meio ao oceano de dvidas e incertezas queo assaltam.

    O Eu Novo Centro do Mundo

    em torno desse "sujeito interrogante" e do poder formalizador de sua "palavra" (ou forma deexpresso), que gira hoje o interesse maior das pesquisas, nos vrios campos do saber, visando descobrirnovas prticas que substituam as antigas, j superadas.

    Em um mundo descentrado como o nosso, cada um de ns se torna um centro responsvel pelaexperimentao de novas prticas, sintonizadas com o novo pensamento sistmico. o que vem sendofeito por pequenos grupos, em vrios campos da pesquisa e do ensino, pelas mil veredas desse "serto"ps-formal. No h caminho principal, nem centro orientador. Todos os caminhos so vlidos. Tudodepende do sujeito que est no centro da busca e do objetivo-alvo. Essa uma das idias bsicas do

    pensamento complexo: em meio multiplicidade de caminhos que se abrem investigao, fundamentala existncia de um centro comum a todas as reas interligadas: a presena de um eu pensante e do projeto(de vida e de busca do saber) que ele ponha em ao.

    Sem dvida, uma das reas em que o pensamento complexo (ou pensamento ps-formal) vemcausando maior impacto o da educao e do ensino. rea que, por natureza, deve ser a"cpula" ou asntese da sociedade (cujos valores e conhecimentos de base ela tem a tarefa de transmitir s novasgeraes), nestes tempos de mudanas estruturais, est sendo obrigada a exercer uma tarefaaparentemente oposta: a de questionar tais "valores e conhecimentos de base" e propor outros emsubstituio, sem traumatizar o sistema. esse um dos ns grdios a serem desatados neste sculo que seinicia. Em A Cabea Bem Feita, Morin dedica especial ateno ao impasse sociedade-escola e ao "buraconegro" que vem engolindo as sucessivas tentativas de reforma.

    ...esse buraco negro que lhes invisvel, s seria visvel se as mentes fossem reformadas. E aquichegamos a um impasse: no se pode reformar uma instituio, sem uma prvia reforma das mentes, mas

  • 8/9/2019 A tica da complexidade - Edgar Morin

    3/4

    no se pode reformar as mentes sem uma prvia reforma das instituies. Essa uma impossibilidadelgica que produz um duplo bloqueio. H resistncias inacreditveis a essa reforma, a um tempo una edupla. A imensa mquina da educao rgida e inflexvel, fechada, burocratizada. Muitos professoresesto instalados em seus hbitos e autonomia disciplinares. (...) Para eles o desafio invisvel. (...) Mas preciso comear e o comeo pode ser desviante e marginal. (...) Como sempre, a iniciativa s pode partir deuma minoria, a princpio incompreendida, s vezes perseguida. Depois a idia disseminada e, quando se

    difunde, torna-se fora atuante." (Op.cit. p. 100- grifos do autor.)Eis o "buraco negro" que preciso neutralizar. Por um lado, pergunta-se: "Quem vai educar os

    educadores para esse novo ensino?" Por outro, sabe-se que a resposta depende da multiplicao dosestudos experimentais, pelos pequenos grupos e pelo envolvimento dos professores. Todas asexperincias, no sentido de "articular os saberes" em torno de projetos que dinamizem o conhecimento demodo fecundo, so positivas. Mas principalmente aquelas que se desenvolvem no mbito das cinciashumanas. a imagem do homem que, afinal, est em jogo, como sempre esteve em todas as crises dacultura pelas quais o mundo j passou. No sculo 18, na crise da passagem do mundo clssico para omundo romntico, Rousseau j dizia: "Nosso verdadeiro estudo o da condio humana". Afirmao queEdgar Morin retoma, ao defender o papel que as cincias humanas devem desempenhar no processo dearticulao dos saberes. Diz ele:

    Paradoxalmente, so as cincias humanas que, no momento atual, oferecem a mais fracacontribuio ao estudo da condio humana, precisamente porque esto desligadas, fragmentadas ecompartimentadas. Essa situao esconde inteiramente a relao indivduo/ espcie/ sociedade, e escondeo prprio ser humano. (...) Seria preciso conceber uma cincia antropossocial religada. (...) espera dessareligao desejada pelas cincias, mas ainda fora de seu alcance , seria importante que o ensino decada uma delas fosse orientado para a condio humana. Assim, a psicologia, tendo como diretriz o destinoindividual e subjetivo do ser humano, deveria mostrar que Homo sapiens tambm , indissoluvelmente,Homo demens; que Homo faber , ao mesmo tempo, Homo ludens; que Homo economicus , ao mesmotempo, Homo mythologicus; que Homo prosaicus , ao mesmo tempo, Homo poeticus. A sociologia seriaorientada para nosso destino social; a economia para nosso destino econmico; um ensino sobre os mitos e

    as religies seria orientado para o destino mtico-religioso do ser humano. (...) Quanto contribuio dahistria para o conhecimento da condio humana, deve incluir o destino, a um s tempo determinado ealeatrio da humanidade (...) Todas as disciplinas, tanto das cincias naturais como das cincias humanas,podem ser mobilizadas, hoje, de modo a convergir para a condio humana." (Op. cit. p. 42).

    nessa ordem de idias que se insere a sugesto de Morin, de que a literatura seja escolhida comoum dos possveis eixos transdisciplinares, nos futuros currculos. urgente a re-humanizao e arearticulao interativa do ensino. Em suas palavras:

    A literatura teria certa superioridade sobre a histria e a sociologia, na medida em que ela consideraos indivduos inseridos em um meio, uma sociedade, uma histria pessoal. (...) Ela trata os seres comosujeitos com suas paixes, seus sentimentos, seus amores coisas que, falando do singular, do concreto

    das individualidades, se tornam, na maior parte das vezes, apagadas pela sociologia. (Morin, Journes,1998).

    Pela nossa longa experincia docente no mbito da literatura, iramos mais longe em sua defesacomo possvel elo para "religar os saberes" num currculo transdisciplinar. Todos os atuais problemas aindaem aberto na esfera do conhecimento (o eu como centro privilegiado ou como mero satlite do processo deconhecer; as relaes sujeito-objeto; a relatividade do conhecimento; a dialtica reducionismo/ holismo,etc.) podem ser descobertos e melhor compreendidos, por meio da transfigurao literria. Inclusive, urgente que os "distrados" descubram que a literatura (a autntica, a grande), longe de ser meroentretenimento, um testemunho da incrvel aventura humana, desde suas origens mticas ou histricas,at o limiar desta era em gestao, de que somos personagens-construtoras (ou inconscientes

    espectadores).Ainda nesse sentido lembramos que, atravs dos tempos, a literatura e as artes em geral tm sido

    os primeiros arautos do "novo" ou de uma nova cultura em germinao. Isso, evidentemente, porque esse

  • 8/9/2019 A tica da complexidade - Edgar Morin

    4/4

    "novo" surge sempre na esfera da intuio e das emoes e, de imediato, s pode ser expresso pelalinguagem emotiva, metafrica. Sua manifestao racional, por meio de cdigos ou linguagensconvencionais, organizadas pela lgica comum, s possvel mais tarde, quando o novo fenmeno comeaa amadurecer. Tal como acontece no plano biolgico, com o vulo fecundado, que leva tempo para adquirira forma do ser, do qual semente, e surge inicialmente como algo informe.

    nesse ponto de emergncia do "informe", em busca de uma nova forma, que est hoje o mundo.

    E tambm estamos ns, aprisionados no ciberespao sem limites em que o mundo se transformou, e quetanto pode levar-nos a uma nova e esplendorosa civilizao quanto lanar-nos em uma nova barbrie.Edgar Morin est entre os que nos alertam para o fato de que tudo depende de ns. E que a principal via deao a busca do novo conhecimento o da complexidade , a a partir da auto-conscientizao do eucomo fora atuante no contexto em que lhe cumpre viver. Observa ele:

    Uma cultura cyber est em vias de se expandir, mesmo que s possa ser alcanada por algunsprivilegiados. Trata-se de uma revoluo radical que marca o surgimento da sociedade ps-industrial e queimplica no nascimento de um novo pensamento. (...) A cultura cyber simultaneamente destruio egnese. (Articuler..., 1998).

    Cabe a cada um de ns a escolha: ficarmos margem da correnteza ou mergulharmos nela.

    Bibliografia

    MORIN, Edgar. A cabea bem-feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.MORIN, Edgar. Journes Thmatiques. Paris: M. de l' ducation, 1998.MORIN, Edgar. Articuler les Savoirs. Paris: M. de lducation, 1999.MORIN, Edgar. Complexidade e Transdisciplinaridade. Natal: EDUFRN, 1999.MORIN, Edgar, LE MOIGNE, Jean-Louis. A Inteligncia da Complexidade. So Paulo: Peirpolis, 2000.