a principal mÍdia escolar e os direitos humanos: uma anÁlise do livro didÁtico vontade de saber...

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A PRINCIPAL MÍDIA ESCOLAR E OS DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE DO LIVRO DIDÁTICO VONTADE DE SABER PORTUGUÊS - 6 º ANO. Sandra de Mesquita Resumo: O livro didático é a principal mídia da escola brasileira. Movimentando recursos públicos bilionários, essa mídia coloca-se não apenas como um suporte didático, mas substancialmente como uma representação do mundo, dos homens, de suas sociedades e de seus valores, agindo decisivamente na forma como crianças e jovens farão a construção simbólica do mundo, do outro, de si mesmos e do exercício da cidadania. Neste trabalho, observa-se como a obra Vontade de Saber Português, do 6º ano, das autoras Rosemeire Tavares e Tatiane Brugnerotto (2012), dialoga com a realidade, com as questões sociais, especialmente no que tange aos direitos das crianças e dos(as) adolescentes. O mais importante referencial do presente estudo é a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, atualizado até a Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009). Palavras-chave: Livro didático; Mídia e Cidadania; Educação e Direitos Humanos. INTRODUÇÃO O livro didático é a principal mídia escolar brasileira, mesmo em um momento histórico marcado pela internet. Destinado ao uso individual de alunos e professores, e material permanente das escolas, sua aquisição pelo poder público é marcada por um Professora Efetiva da Secretaria Estadual de Educação de Goiás e da rede particular de Goiânia. Graduada em Letras-Português pela Universidade Federal de Goiás (UFG), cursando a Especialização em Educação para a Diversidade e Cidadania (Direitos Humanos), sob orientação da Profª. Drª Rosana Maria Ribeiro Borges. O artigo em questão, da linha de pesquisa “Direitos Humanos, Mídia e Cidadania”, é exigência parcial para obtenção do título de Especialista. E-mail: [email protected].

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A PRINCIPAL MÍDIA ESCOLAR E OS DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE DO LIVRO DIDÁTICO VONTADE DE SABER PORTUGUÊS - 6 º ANO. autora: Sandra de Mesquita.

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A PRINCIPAL MDIA ESCOLAR E OS DIREITOS HUMANOS: UMA ANLISE DO LIVRO DIDTICO VONTADE DE SABER PORTUGUS - 6 ANO.

Sandra de Mesquita[footnoteRef:1] [1: Professora Efetiva da Secretaria Estadual de Educao de Gois e da rede particular de Goinia. Graduada em Letras-Portugus pela Universidade Federal de Gois (UFG), cursando a Especializao em Educao para a Diversidade e Cidadania (Direitos Humanos), sob orientao da Prof. Dr Rosana Maria Ribeiro Borges. O artigo em questo, da linha de pesquisa Direitos Humanos, Mdia e Cidadania, exigncia parcial para obteno do ttulo de Especialista. E-mail: [email protected].]

Resumo: O livro didtico a principal mdia da escola brasileira. Movimentando recursos pblicos bilionrios, essa mdia coloca-se no apenas como um suporte didtico, mas substancialmente como uma representao do mundo, dos homens, de suas sociedades e de seus valores, agindo decisivamente na forma como crianas e jovens faro a construo simblica do mundo, do outro, de si mesmos e do exerccio da cidadania. Neste trabalho, observa-se como a obra Vontade de Saber Portugus, do 6 ano, das autoras Rosemeire Tavares e Tatiane Brugnerotto (2012), dialoga com a realidade, com as questes sociais, especialmente no que tange aos direitos das crianas e dos(as) adolescentes. O mais importante referencial do presente estudo a Declarao Universal dos Direitos Humanos e o Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei n 8.069, de 13 de julho de 1990, atualizado at a Lei n 12.010, de 03 de agosto de 2009).

Palavras-chave: Livro didtico; Mdia e Cidadania; Educao e Direitos Humanos.

INTRODUO

O livro didtico a principal mdia escolar brasileira, mesmo em um momento histrico marcado pela internet. Destinado ao uso individual de alunos e professores, e material permanente das escolas, sua aquisio pelo poder pblico marcada por um gigantismo descomunal: o Programa Nacional do Livro Didtico (PNLD)[footnoteRef:2], em 2012, utilizou a cifra de R$1,3 bilho em compra, avaliao e distribuio, tendo sido entregue mais de 162 milhes de livros didticos por todo o pas (CASSIANO, 2013, p.26-27). Por esses nmeros, no h como refutar a primazia dessas obras a qualquer outra mdia na escola. [2: Segundo o stio do prprio Ministrio da Educao (MEC), o Programa Nacional do Livro Didtico (PNLD) tem como principal objetivo subsidiar o trabalho pedaggico dos professores por meio da distribuio de colees de livros didticos aos alunos da educao bsica. Aps a avaliao das obras, o Ministrio da Educao (MEC) publica o Guia de Livros Didticos com resenhas das colees consideradas aprovadas. O guia encaminhado s escolas, que escolhem, entre os ttulos disponveis, aqueles que melhor atendem ao seu projeto poltico pedaggico. O programa executado em ciclos trienais alternados. Assim, a cada ano o MEC adquire e distribui livros para todos os alunos de um segmento, que pode ser: anos iniciais do ensino fundamental, anos finais do ensino fundamental ou ensino mdio. exceo dos livros consumveis, os livros distribudos devero ser conservados e devolvidos para utilizao por outros alunos nos anos subsequentes. ]

Por outro lado, o processo de seleo das colees pelos prprios docentes nem sempre encerra o debate necessrio para tal. Em uma reportagem da revista Gesto Escolar, em 2012, afirma o jornalista de Frances Jones:

Mas o que deveria ser um momento formativo e propiciar uma anlise criteriosa das obras nem sempre recebe a devida importncia. No raro, elas ficam expostas na biblioteca, no corredor ou mesmo no refeitrio, enquanto os professores definem as que querem usar em sala de aula. Dessa forma, corre-se o risco de escolher uma coleo cuja proposta pouco ou nada tem a ver com as expectativas de aprendizagem da comunidade atendida pela escola (Grifos nossos).

Esse risco muitas vezes no apenas se limita ao choque com o Projeto Poltico Pedaggico (PPP) da escola, mas tambm entra em franca dissonncia com as premissas do Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei n 8.069, de 13 de julho de 1990, atualizado at a Lei n 12.010, de 03 de agosto de 2009). A no insero e discusso, na obra didtica, do maior nmero possvel de diversidades sociais (como a religiosa, a sexual, a tnica, etc), aliada a uma escolha tcita de esteretipos a serem seguidos, acaba sendo uma tentativa deliberada de homogeneizao extremamente lesiva para um grupo etrio que est justamente constituindo a sua identidade enquanto ser e enquanto cidado, em desacordo com a Declarao Universal dos Direitos Humanos, em seu Artigo 2: Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declarao, sem distino de qualquer espcie, seja de raa, cor, sexo, lngua, religio, opinio poltica ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condio (ONU, 1998, p. 01-02).

A escola, sendo uma instituio de importncia cabal sociedade, deve ter como finalidade a construo e aplicao de polticas e projetos pedaggicos ligados diretamente ao processo de ensino/aprendizagem que prime pela defesa dos direitos e liberdades expressos pela Declarao Universal dos Direitos Humanos, contribuindo decisivamente para a formao pessoal e social de cada indivduo. Nesse contexto, preciso haver profissionais que desejam planejar aes poltico-pedaggicas que atendam s necessidades de todos os alunos da unidade escolar, expresso tambm no ato da escolha do livro didtico. necessrio tambm que a comunidade esteja disposta a participar dessa escolha e colabore com a construo de estratgias que promovam e, claro, ofeream uma educao de qualidade sempre voltada para uma sociedade mais justa, que verdadeiramente no segregue, mas sim inclua, que respeite as questes de credo, de condio social, de gnero ou de sexualidade de cada um dos seus integrantes. A prpria Constituio Federal de 1988 garante a educao para todos e com o propsito de propiciar um desenvolvimento humano voltado para o exerccio pleno da cidadania:

Art. 205. A educao, direito de todos e dever do Estado e da famlia, ser promovida e incentivada com a colaborao da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho.Art. 206. O ensino ser ministrado com base nos seguintes princpios:I - igualdade de condies para o acesso e permanncia na escola;.II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (BRASIL, 2010, p.136).

A garantia de uma plena efetivao desses direitos e liberdades passa por vrios momentos: desde a participao da comunidade nas atividades escolares dentre elas o debate sobre o currculo e da escolha do livro didtico , pelo engajamento profissional, no cedendo s ferozes aes de marketing das editoras e considerando a utilizao de outros recursos miditicos escolares aqui entendidos como qualquer veculo de informao que possa ter uma finalidade didtica: livros, jornais, revistas, data-shows, tablets, etc. Por outro lado, o que parece acontecer em nossas escolas, de uma forma geral, justamente o oposto: pais ou responsveis que no participam do cotidiano escolar, ou quando o fazem no com a assiduidade e/ou comprometimento necessrios; programas de governo que, em prol de padronizao do currculo, no o debate com a comunidade, ou quando o fazem com uma parcela mnima dos docentes[footnoteRef:3], e, alm disso, atrela o cumprimento desse currculo a programas de meritocracia; professores desmotivados, com uma carga de trabalho excessiva e baixa remunerao, pressionados ainda pela prpria comunidade escolar a utilizar o livro didtico no como ferramenta de apoio, mas sim como material obrigatrio, de uso dirio na escola. Retoma-se, tambm o fato de esses profissionais estarem sujeitos quelas aes de marketing das editoras e, por fim, escolas com uma infraestrutura inadequada, com laboratrios de informtica com aparelhos obsoletos, quando no esto por longos perodos em manuteno, em nmero insuficiente para todos os discentes de uma mesma sala, ou dispondo de precrias bibliotecas. Nesse sentido, efetivar plenamente esses direitos e liberdades se transforma em uma quimera distante. [3: Refiro-me especificamente a elaborao do Currculo Referncia da Rede Estadual de Educao de Gois, em 2012. Afirma o prprio material: Para a construo de um currculo que refletisse o pensamento e os anseios da Rede aconteceram espaos que oportunizaram a participao dos educadores. Em outubro e novembro de 2011 foi elaborado o documento base no qual fomentou as discusses por todo o perodo da bimestralizao, resultando, com a participao de 500 professores, na apreciao e validao prvia do documento. Em 2012, foram realizadas formaes nas 40 regionais do estado com a participao de mais de 4 mil professores , que avaliaram e replanejaram os contedos da proposta encaminhada e definiram-se Representantes de Componentes curriculares RCCs - para cada Subsecretaria Regional de Educao - SRE do estado de Gois (GOIS, 2012, p.09). No contabilizando a ausncia dos demais integrantes da sociedade e, considerando que participaram 4.500 professores, esse nmero equivale a apenas 15% do quadro docente da SEDUCE (Secretaria de Estado de Educao, Cultura e Esporte de Gois).]

Neste artigo, observar-se- como o livro didtico Vontade de Saber Portugus 6 ano, das autoras Rosemeire Tavares e Tatiane Brugnerotto, Editora FTD, de 2012, toma como ponto de partida a realidade da criana e do(a) adolescente, a Declarao Universal dos Direitos Humanos e o Estatuto da Criana e do Adolescente. Especificamente, objetivou-se analisar como ele trabalha para garantir os direitos e liberdades mencionados nos textos legais ou se escamoteia a discusso da realidade por meio de textos ou atividades que no debatem efetivamente questes de fato pertinentes aos alunos, no contribuindo para a formao de leitores-crticos do mundo em que vivemos.

O CONCEITO DE MDIA E O LIVRO DIDTICO

A democracia pode ser entendida como um sistema de governo que h, ou ao menos se espera que haja, a participao do povo na vida poltica do Estado. importante que se compreenda o verdadeiro papel social de cada cidado para ressaltar que em uma democracia o exerccio vai alm dos pleitos eleitorais, sendo na liberdade de expresso e na pluralidade de opinies que ela de fato acontece. Segundo Juan E. Das Bordenave (1982, p. 27):

Quanto mais democrtica for a sociedade, mais democrticos sero os processos comunicacionais e os contedos da comunicao dirigida e do jornalismo; do mesmo modo, quanto menos democrtica a sociedade, menos democrticos sero os processos e contedos comunicacionais. Partindo da construo do vocbulo comunicao, bem como do seu significado, tem-se uma palavra de origem latina communicatio, formada a partir dos seguintes elementos mrficos: a raiz munis, prefixo co e a terminao tio. Sendo que o primeiro significa estar carregado de; o segundo expressa simultaneidade; e o terceiro refora o sentido de atividade. Nota-se, a partir do prprio termo, que seu valor s pode ser compreendido enquanto uma prtica social, de construo compartilhada de sentidos. Para Rosana Maria Ribeiro Borges, (2014?), Na essncia dessa conceituao, a maior preocupao no est em quem emite, em quem recebe e nem na estrutura ou contedo da mensagem ou do meio/veculo utilizado para dissemin-lo. O que se prima pela ateno atribuda s questes ligadas ao sujeito da comunicao e suas mltiplas mediaes que funcionam como filtros para a atribuio de sentidos aos processos comunicacionais, em contraponto mera decodificao ou absoro passiva de mensagens. Dessarte, a produo de um ato elocutivo implica no mais a dicotmica relao emissor/receptor. Trata-se, na verdade, de sujeitos sociais que passam a intervir no mundo por meio de suas diversas experincias de vida para a produo de sentido, colocando em jogo a mistura, a pluralidade, o fato de que vivemos em muitas esferas ao mesmo tempo, de que circulamos de uma para outra (SHANGLER apud CHARAUDEAU, 2013, p. 16). Para construir essa produo, abrange-se os aspectos econmicos, tecnolgicos ou de classes sociais, assim como os de cunhos tnicos, religiosos e culturais como um todo. Nas palavras de Patrick Charaudeau (2013, p. 16), trata-se da maneira pela qual os indivduos regulam as trocas sociais, constroem as representaes dos valores que subjazem as suas prticas, criando e manipulando signos e, por conseguinte, produzindo sentido. Essa produo de sentido, essencialmente dialgica, imbricada e correlacionada com enunciaes pretritas e vindouras, marcada por mltiplas vozes, provindas e tambm provedoras dos mais diversos fatores e discursos sociais. Nas palavras de Mikhail Bakhtin (2010, p. 27),

A verdadeira substncia da lngua no constituda por um sistema abstrato de formas lingusticas nem pela enunciao monolgica isolada, nem pelo ato psicofisiolgico de sua produo, mas pelo fenmeno social da interao verbal, realizada atravs da enunciao ou das enunciaes (Grifos do autor).

Uma vez que se deve precipuamente considerar a construo de sentido como um ato decorrente de trocas sociais, perceber o livro didtico como um meio de comunicao acaba por ser uma forma de suscitar o debate sobre as mdias escolares e suas funes na formao do indivduo, no apenas na esfera educacional, mas principalmente na identitria, entendendo como e por que se relacionam com a construo do senso crtico, social e poltico das crianas e adolescentes. Para Isabel Martins (2006, p. 124),

O livro didtico um artefato cultural, isto , suas condies sociais de produo, circulao e recepo esto definidas com referncia a prticas sociais estabelecidas na sociedade. Enquanto tal, ele possui uma histria que no est desvinculada da prpria histria do ensino escolar, do aperfeioamento das tecnologias de produo grfica e dos padres mais gerais de comunicao na sociedade.

Enquanto artefato cultural, sendo a principal ferramenta pedaggica da escola brasileira, o livro didtico se constitui como um elo discursivo entre o mundo e os sujeitos da comunicao, representando uma dada realidade para seu pblico alvo, crianas e adolescentes, em geral. Ainda segundo Isabel Martins (2006, p.125), ele reflete as complexas relaes entre cincias, cultura e sociedade no contexto da formao de cidados e se constitui a partir de interaes situadas em prticas sociais tpicas do ensino na escola. Devido a esse carter de meio, interessante refletir sobre o que diz o termo mdia em si:

Mdia. [Do Ingls (mass) media, meios de comunicao (de massa); o ingls media advm do neutro plural do latim medium, meio, centro, forma substantivada do adjetivo latino medius, a um, que est no meio, inicialmente usado na acepo geral de meio, meio termo.] Substantivo feminino 1. Comum. O conjunto dos meios de comunicao, e que inclui, indistintamente, diferentes veculos, recursos e tcnicas, como, por exemplo, jornal, rdio, televiso, cinema, outdoor, pgina impressa, propaganda, mala-direta, balo inflvel, anncio em site da Internet, etc (FERREIRA, 1999, p.1334. Grifos do autor).

Como a prpria definio dicionarizada ressalta, o termo mdia trata-se de um suporte, um meio, no qual se transmite uma informao, uma mensagem abarcando, de certa forma, as funes do livro didtico na escola. Esse tipo de obra no apenas pode ser englobada nessa definio, como tambm pode ser considerada como a principal mdia escolar, uma vez que so empregados, pela Unio, valores bilionrios para disponibiliz-la aos discentes. Confluem para essa posio hegemnica do livro didtico, as precrias condies das bibliotecas escolares, dos laboratrios de informtica e de seus respectivos acessos web (contrastando inclusive com a facilidade que os prprios alunos a acessam pelos seus celulares), quando no se trata tambm de uma forma de trabalho docente j bastante arraigada. Entender o livro didtico como a principal mdia escolar e como ele concebe a realidade da criana e do adolescente, em desacordo ou no com os preceitos dos Direitos Humanos e do Estatuto da Criana e do Adolescente, pode elucidar que tipos de cidados estamos formando: se inertes frente realidade, considerando-a como acabada, ou agentes transformadores, que ao lerem criticamente determinada realidade, nela possam intervir. Para Paulo Freire (1987, p. 28-29): Na medida em que compreendemos a educao, de um lado, reproduzindo a ideologia dominante, mas, de outro, proporcionando, independentemente da inteno de quem tem o poder, a negao daquela ideologia (ou o seu desvelamento) pela confrontao entre ela e a realidade (como de fato est sendo e no como o discurso oficial diz que ela ), realidade vivida pelos educandos e pelos educadores, percebemos a inviabilidade de uma educao neutra. A partir deste momento, falar da impossvel neutralidade da educao j no nos assusta ou intimida. que o fato de no ser o educador um agente no significa, necessariamente, que deva ser um manipulador. A opo realmente libertadora nem tampouco por meio de uma prtica espontenesta. A manipulao castradora, por isso autoritria. O espontenesmo licencioso, por isso irresponsvel. O que temos de fazer, ento, enquanto educadoras ou educadores, aclarar, assumindo a nossa opo, que poltica, e ser coerentes com ela, na prtica (Grifo nosso).

Logo, no existe livro didtico que na prtica no represente uma forma de ver o mundo, extrapolando a mera transmisso de contedo. Mesmo quando a preocupao seja repassar um conhecimento instrumentalizado, tcnico ou meramente conceitual a opo por exp-lo apartado da realidade dos alunos expressa uma tentativa de no reflexo sobre essa realidade, contribuindo decisivamente para o desinteresse dos discentes, crianas e adolescentes, e o consequente fracasso escolar. Visto por outro ngulo, essa dissociao tambm contribui para corroborar uma opo poltica, na qual o sujeito no detentor de seu prprio destino, no tendo como modific-lo: o que est em jogo uma conceituao e no a viabilidade de aplicao do contedo no cotidiano. Entretanto, o mesmo efeito de alienao ocorre quando a realidade dos alunos a forma como vivem e se relacionam consigo mesmos e com o mundo, nas mais diferentes matizes apenas horizontalizada, vislumbrada, omitindo as reais implicaes de sua conformidade, negligenciando as razes das coisas estarem como esto, no se discutindo coletivamente como um determinado conhecimento utilizado na prtica. Resta, portanto, verificar como se configuram os textos e atividades da obra Vontade de Saber Portugus 6 ano. O LIVRO DIDTICO ENQUANTO CONTRIBUINTE PARA O EXERCCIO PLENO DA CIDADANIA E UMA ANLISE DO LIVRO VONTADE DE SABER PORTUGUS 6 ANO.

Partindo da premissa que o livro didtico a principal mdia escolar, e, por conseguinte, ocupa uma posio privilegiada como fonte de reflexo sobre a realidade do aluno, contribuindo para a formao deste enquanto cidado, seu estudo revela o carter poltico no apenas da obra em si, mas tambm da educao. Para Paulo Freire (2000, p. 77-78),

Toda prtica educativa demanda a existncia de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina, da o seu cunho gnosiolgico; a existncia de objetos, contedos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de mtodos, de tcnicas, de materiais; implica, em funo do seu carter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideais. Da a sua politicidade, qualidade que tem a prtica educativa de ser poltica, de no poder ser neutra (Grifos do autor).

A inexistncia da neutralidade do ato educativo, por seu turno, pode suscitar debates sobre a consonncia (ou no) desse ato com a Declarao Universal dos Direitos Humanos e o Estatuto da Criana e do Adolescente. E, considerando que o trabalho docente , pelas condies aqui j expostas, muitas vezes reduzido mera transmisso de conhecimentos, e que essa reificao consolida o atrelamento desse trabalho ao livro didtico, urge no apenas romper esse entrelaamento, recolocando essa mdia como material de apoio, mas tambm discutir como esse compndio expressa as determinaes desses textos legais. No que concerne instruo, diz a Declarao Universal de Direitos Humanos:

Artigo 26. 1. Todo ser humano tem direito instruo. A instruo ser gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instruo elementar ser obrigatria. A instruo tcnico-profissional ser acessvel a todos, bem como a instruo superior, esta baseada no mrito. 2. A instruo ser orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instruo promover a compreenso, a tolerncia e a amizade entre todas as naes e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvar as atividades das Naes Unidas em prol da manuteno da paz. 3. Os pais tm prioridade de direito na escolha do gnero de instruo que ser ministrada a seus filhos (ONU, 2010, p. 01-02).

O texto bastante assertivo: deve-se garantir o direito educao, promovendo a paz e a tolerncia entre todos. Apesar da objetividade do texto da Declarao, esse direito ainda foi consolidado no mbito internacional, principalmente, pelo Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, nos artigos 13 e 14, pela Conveno Relativa Luta contra a Discriminao no Campo do Ensino, pela Conveno sobre os Direitos da Criana, nos artigos 28 e 29, e pelo Protocolo Adicional Conveno Americana sobre Direitos Humanos em Matria de Direitos Humanos Econmicos, Sociais e Culturais, em seu artigo 13. Para exemplar essa consolidao, diz o primeiro inciso do artigo 13 do Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, de 1966:

Artigo 13 1. Os Estados Signatrios do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa educao. Concordam que a educao deve ser orientada para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deve fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam, ainda, que a educao deve capacitar todas as pessoas para participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreenso, a tolerncia e a amizade entre todas as naes e entre todos os grupos raciais, tnicos ou religiosos e promover as atividades das Naes Unidas em prol da manuteno da paz (apud PLATAFORMA DHESCA BRASIL E AO EDUCATIVA, 2011, p. 19-20).

No basta, portanto apenas ofertar a educao: preciso que ela capacite as pessoas a participar efetivamente da sociedade, nela intervindo, modificando, sempre em prol da paz. Signatrio dos citados pactos legais, o Brasil corrobora tal perspectiva tanto na sua Constituio Federal, de 1988, aqui j citada, quanto na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, (n 9.394, de 20 de dezembro de 1996), que afirma em seu artigo 2 A educao, dever da famlia e do Estado, inspirada nos princpios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho (BRASIL, 1996, p. 01), quanto no Estatuto da Criana e do Adolescente (lei n 8.069, de 13 de julho de 1990), do qual se destacam os artigos 53 e 58:

Artigo 53. A criana e o adolescente tm direito educao, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exerccio da cidadania e qualificao para o trabalho, assegurando-se-lhes:I igualdade de condies para o acesso e permanncia na escola;II direito de ser respeitado por seus educadores;III direito de contestar critrios avaliativos, podendo recorrer s instncias escolares superiores;IV direito de organizao e participao em entidades estudantis;V acesso escola pblica e gratuita prxima de sua residncia.Pargrafo nico. direito dos pais ou responsveis ter cincia do processo pedaggico, bem como participar da definio das propostas educacionais.[...]Artigo 58. No processo educacional respeitar-se-o os valores culturais, artsticos e histricos prprios do contexto social da criana e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criao e o acesso s fontes de cultura (BRASIL, 2011, p. 41-42 e 43). A partir dessa conjuntura legal, todas voltadas para o exerccio pleno da cidadania, espera-se que os livros didticos confluam para esse objetivo. Entretanto, no isso o que se constata integralmente em Vontade de Saber Portugus 6 ano (2012), de Rosemeire Tavares e Tatiane Brugnerotto. Dividido em seis grandes partes de diferentes temticas no conectadas entre si, intituladas A arte de se comunicar, Histrias que divertem e ensinam, H algo de estranho no ar!, Meio ambiente: responsabilidade de todos, Livro: um amigo sempre presente e Heris: fantasia ou realidade?, cada uma delas contendo dois captulos, a obra homogeneza diferenas, omite problemticas presumivelmente concernentes ao cotidiano dos alunos (como o respeito s diversidades de gneros, religiosas, sexuais, tnicas, etc.) e tenta conciliar a transmisso de contedos com certo tom recreativo, como j expresso na prpria Apresentao:

Estudar Lngua Portuguesa uma oportunidade de viajar pelo maravilhoso mundo da literatura, de viver aventuras sem fim e de entrar em contato com uma infinidade de informaes que, certamente, lhes sero imprescindveis no seu desenvolvimento como leitor e escritor proficientes. [...]Alm disso, no dia a dia entramos em contato com uma infinidade de situaes que requerem o emprego de mltiplas linguagens e discursos. [...]Pensando nisso e para tornar seu estudo ainda mais agradvel e interessante, apresentamos a voc esta coleo, que traz uma seleo de textos diversificada e atraente, e contedos que possibilitam um contato envolvente com a informao. [...]Assim, acreditamos que por meio deste material voc encontre o prazer de estudar e, consequentemente, prepare-se para os desafios do presente e do futuro. [...]Bem-vindo a este universo fascinante e repleto de possibilidades (TAVARES; BRUGNEROTTO, 2012, p. 03. Grifos nossos).

A desconexo entre texto e realidade dos alunos, sugerida no texto inicial, corroborada quando, na prpria pgina da apresentao, exposta uma imagem do Cristo Redentor e do Po de Acar, pontos tursticos da cidade do Rio de Janeiro, sem nenhum motivo aparente, totalmente sem sentido nesse contexto. Parece ficar claro que a conciliao entre o carter ldico e a transmisso de conceito simplifica temas pertinentes de uma sociedade, no contribuindo para a reflexo e questionamento do uso prtico desses conceitos, e, consequentemente, para uma interveno nessa realidade. O primeiro exemplo aparece j na primeira pgina do captulo 1:

Figura 1: Discursos extremamente complexos simplificados e no retomados ao longo de toda a obra.

Fonte: TAVARES; BRUGNEROTTO, 2012, p.08.

As quatro imagens (discurso poltico, apresentao musical, apresentao de mmica e pessoas interagindo pela Linguagem Brasileira de Sinais - Libras) so apenas expostas, no levando os alunos a refletirem sobre a estrutura de cada um desses atos comunicacionais, nem to pouco sobre seus contextos e intencionalidades. No caso da Libras, a situao ainda pior: desconsidera-se a insero de milhes de pessoas que fazem uso dessa lngua para associ-la mmica, haja visto que ambas as imagens esto diagramadas uma ao lado da outra. O tratamento dispensado as pessoas portadoras de necessidades especiais segue a mesma superficialidade: ao invs de discutir, propor textos que valorizassem a real incluso, a igualdade de todos e a acessibilidade dentro da sociedade e do espao escolar, o livro, j em seu final, cita em quatro pginas a biografia de Helen Keller, escritora, conferencista e ativista social estadunidense; Clodoaldo Francisco da Silva, medalhista olmpico brasileiro; Antnio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, maior artista do barroco brasileiro e Ludwing van Beethoven, genial compositor alemo. Todos eles portadores de necessidades especiais, so caracterizados como maiores exemplos de como a deficincia no um obstculo para viver (TAVARES; BRUGNEROTTO, 2012, p. 237), sugerindo que cabe ao portador, e no a sociedade como um todo, vencer esses obstculos.No h, em nenhum momento na obra, referncia s diferenas de religio, de gnero e de sexualidade. Ao adotar tal poltica, a sala de aula emerge como um espao onde essas discusses so irrelevantes, apesar de no o serem, ou parece que as questes relacionadas a esse debate, to caras a pessoas em processo de formao devem ser silenciadas. O mesmo ocorre em relao ao preconceito racial: no se faz referncia alguma, no h nenhum texto especfico, passando a impresso que o problema estaria resolvido ao se colocar uma criana negra em destaque na capa e mais algumas espalhadas aleatoriamente pela obra.

Figura 2

Fonte: capa do livro didtico Vontade Saber Portugus 6 ano, de Rosemeire Tavares e Tatiane Brugnerotto.

Outro tema que deveria ser debatido na escola, com aes concretas o bullying, que pode ser alvo de diversas atividades discentes como cartazes, poemas, manifestos, reportagens, caminhadas, etc, nas quais os contedos estariam inseridos. Todavia, a obra opta por abord-lo em apenas dois exerccios:

2 Em algumas escolas, j ocorreram casos de alunos colocarem apelidos agressivos em determinados colegas, causando intimidao e discriminao. A esse tipo de comportamento agressivo d-se o nome de bullying. Em sua opinio, por que esse tipo de atitude acontece?3 Voc j presenciou alguma situao de bullying em sua escola? Como voc acha que a pessoa ofendida se sentiu? (TAVARES; BRUGNEROTTO, 2012, p. 19).

Findados os exerccios, novamente o bullying, um tema muito pertinente para a efetivao da cidadania, bruscamente silenciado. Por vezes, Vontade de Saber Portugus 6 ano opta por exerccios, na maioria das vezes, simplistas, de pouca interveno crtica dos alunos, sendo que alguns chegam a flertar com o nonsense, a exemplo do se segue:

Figura 3: Exerccio totalmente apartado da realidade, visando apenas funo dos dois-pontos e a recorrncia da letra x. Repare como a presena do documento de identidade poderia abarcar outras atividades muito mais integradas realidade dos alunos.

Fonte: TAVARES; BRUGNEROTTO, 2012, p. 46.

Ao se mergulhar no contedo da obra, chega-se a outra constatao: um livro de Lngua Portuguesa que no reflete sobre as contribuies das variedades lingusticas e to pouco sobre o carter cultural-identitrio de um grupo social que faz uso sistematizado das grias. Deve se frisar que essa variedade social da lngua , via de regra, estigmatizada por no adequar aos ditames da norma culta.

Figura 4: notrio o imenso paradoxo existente entre o ttulo da msica e a forma como ela trabalhada no exerccio.

Fonte: TAVARES; BRUGNEROTTO, 2012, p. 30.

A gria, por seu turno, tambm frequentemente associada ao uso da linguagem que os adolescentes fazem. O livro no problematiza as razes para esse fato, to pouco reflete sobre os funcionamentos dessa variedade. Essa postura revela opes polticas pragmticas da escola brasileira: tratar o portugus falado do pas como portador de uma unidade apenas colorida por diferentes sotaques, devido imensido do territrio nacional; no considerar que a negao da linguagem do outro , substancialmente, a excluso das mediaes lingusticas e da possibilidade de interveno que esse outro produziria no contexto escolar e, principalmente, ponderar que o discente partir da sua variedade no padro para adquirir a norma culta. H, com tal poltica, a consolidao dos mitos que regem o preconceito lingustico, todos eles contribuindo para o fracasso escolar, analisados por Marcos Bagno (2006): A lngua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente, Brasileiro no sabe portugus /S em Portugal se fala bem portugus, Portugus muito difcil, As pessoas sem instruo falam tudo errado, O lugar onde melhor se fala portugus no Brasil o Maranho (em razo do uso do tu), O certo falar assim porque se escreve assim, preciso saber gramtica para falar e escrever bem eO domnio da norma culta um instrumento de ascenso social.Por outro lado, deve ser afirmado que, ao longo da obra, h certas tentativas de conexo do ato educacional com uma possvel interveno dos alunos na realidade, em prol de uma efetiva prtica cidad desses. Elas se concentram, sobretudo, na parte Meio ambiente: responsabilidade de todos:

Figura 5: A questo ambiental razoavelmente debatida em Vontade de Saber Portugus.

Fonte: TAVARES; BRUGNEROTTO, 2012, p. 136.

Apesar de essa problematizao ser de extrema importncia, no se reflete na pgina aqui mostrada - e nem na obra como um todo - uma mudana estrutural em relao utilizao dos recursos naturais e como, quanto e de que forma consumimos, no qual o sujeito no seria visto isoladamente, mas sim em relao ao meio ambiente como um todo, realizando o dilogo entre os saberes, como cientfico, popular, das organizaes da sociedade, empresarial ecologicamente responsvel, educativos e a comunicao miditica (LIMA; MELO, 2008, p. 03). Ao contrrio, prevalece a ideia superficial que preservar o meio ambiente est ligado a ao de no jogar lixo no cho (TAVARES; BRUGNEROTTO, p. 156-158). Vontade de Saber Portugus 6 ano desconecta-se de tal forma da realidade apresentada diariamente pelos jornais que, apesar de usar manchetes em alguns exerccios, limita-se em cobrar dos alunos questes morfolgicas da Lngua Portuguesa; ou ainda, quando fala da Amrica Latina, apenas para cobrar o conceito de tritongo (TAVARES; BRUGNEROTTO, p.229-230 e p. 117). Os exemplos so vrios. O mais emblemtico, entretanto, :

Figura 06: Um menino no lixo encontra um livro e a Vontade de Saber Portugus fala em prazer da leitura.

Fonte: (TAVARES; BRUGNEROTTO, p. 203).

Dentre inmeras possibilidades de atividades escolares que poderiam levar os discentes a refletirem e atuarem para a transformao dessa realidade, o livro didtico opta pela escrita de uma crnica na qual o aluno (presumivelmente uma criana de 11, 12 anos) presencia outra criana lendo no lixo e qualifica isso como prazer, como se esta cena fosse casual, uma fatalidade, e no uma constante em uma sociedade to desigual como a brasileira.

CONCLUSO

Por mais que existam avanos na educao brasileira nas ltimas dcadas a universalizao do Ensino Fundamental e a implantao do Piso Nacional Docente so algumas delas , eles ainda so extremamente tmidos frente s demandas: escolas mal estruturadas, persistente nmero de analfabetos e analfabetos funcionais, remunerao dos professores ainda bastante abaixo da mdia de outras profisses que exigem ensino superior, evaso escolar, etc. O desafio, portanto, resolver (ou minimizar) esses entraves para de fato poder se almejar uma educao de qualidade.Esse desafio, por sua vez, passa pela reconfigurao do livro didtico. Ana Lcia G. de Faria (1996, p. 71-73), partindo de uma concepo marxista, afirma que o livro didtico em geral serve manuteno dos interesses da classe dominante ignorando os interesses da classe operria. No trabalho aqui realizado essa manuteno passa pela escamoteao da realidade circundante dos alunos, homogeneizando diferenas, simplificando debates, se silenciando em relao a temas concernentes ao desenvolvimento humano como a religiosidade, a sexualidade, o gnero ou a etnia, negando, de forma abrangente, valores encontrados principalmente nas classes menos abastadas da populao.Vontade de Saber Portugus 6 ano intenciona o acmulo de conhecimento em um certo tom ldico. Entretanto, ao optar por esse vis, ela minimiza questes extremamente pertinentes sociedade, como a estruturao de um certo status quo nas relaes de ensino, trabalho, familiares, ambientais, etc, como se essas inquietaes, naturais e necessrias para crianas e adolescentes, pblico alvo dessa obra, fossem dissociadas do conhecimento e/ou pontos pacficos, j amplamente discutidos e resolvidos por todos. Considerando que, para Patrick Charaudeau (2013, p. 41), a linguagem nasce, vive e morre na intersubjetividade. falando com o outro - isto , falando o outro e se falando a si mesmo -, que comenta o mundo, ou seja, descreve e estrutura o mundo, os sujeitos da comunicao na referida obra de Rosemeire Tavares e Tatiane Brugnerotto esto apartados das prxis sociais cotidianas e buscam, simplesmente, acumular um conhecimento instrumentalizado pressupondo o mundo como um lugar sem problematizaes mais aprofundadas, no contribuindo, portanto, para um efetivo exerccio da cidadania pelos discentes. O livro didtico, de uma forma geral, precisa ter seu uso repensado em nossas escolas. Consider-lo como mdia foi uma tentativa de mostrar que essa ferramenta escolar ainda ocupa uma posio muito privilegiada no ato educativo. No que ele deva ser abolido, mas sim considerado como um material de apoio no qual, eventualmente, o professor utiliza em sala de aula. Assim como eventualmente o docente deveria usar livros literrios, gibis, revistas, jornais, televiso, rdio, internet para, dentre outras questes ligadas s estratgias de ensino, confrontar essas diferentes mdias em sua estruturao. Essas reformulaes, por seu turno, no apenas auxiliariam ao Brasil, de fato, a seguir na prtica, aos preceitos da Declarao Universal dos Direitos Humanos e da sua prpria legislao nacional, mas, sobretudo, contribuiriam para uma melhora nos ndices educacionais e na formao de leitores-crticos, conferindo a eles efetivamente a possibilidade de serem senhores dos prprios destinos e exercerem plenamente o significado do termo cidadania: Substantivo feminino 1 Qualidade ou condio do cidado 1.1 Condio ou dignidade de que recebe o ttulo honorfico de cidado 2 Condio de pessoa que, como membro de um Estado, se acha no gozo de direitos que lhe permitem participar da vida poltica (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 714. Grifo nosso).

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