a promessa - parte ii

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A PROMESSA

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A PROMESSA

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PARTE II – Para lá de outeiros e levadas

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XIV – Depois dos Franceses

A guerra durou sete longos, cruéis e violentos anos.

Nada de anterior se comparava. Portugal ficou ermo de homens válidos,

arrebanhados à força para as fileiras da guerra, por ingleses e franceses. Todos os

bens de valor foram confiscados por Napoleão, que precisava de sustentar as

batalhas. Os aliados ingleses destruíram tudo o que sobrava ou tudo aquilo que

ainda não tinha sido confiscado. Na derrota dos franceses e na sua retirada, a

chacina e o número de mortos duplicou o dos que tinham morrido em combate,

pela resistência inexperiente e impossível ao saque e ao vandalismo das tropas

napoleónicas, de conventos, igrejas, palácios, solares, cidades, vilas e aldeias.

Enfim, de tudo. A população portuguesa viu-se reduzida em mais de oitenta por

cento, vitimada pelos combates, a fome e as doenças consequentes e pela fuga

angustiante e desesperada para a Espanha, a Inglaterra e o Brasil.

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A perda do “Pacto Colonial”, extinto por decreto de 28 de Janeiro de 1808, abriu

os portos brasileiros aos navios estrangeiros, como havia sido pedido por todos os

comerciantes de São Salvador da Baía e exigências inglesas de 1807, juntando-lhe o

resultado da guerra, um governo, uma economia e um exército dominado por

britânicos, fazia com que tudo fosse de mal a pior.

Depois da guerra, os barcos que saiam com vinho do Porto para a Grã-Bretanha

passaram a ostentar em conjunto e orgulhosamente as Quinas e a Union Jack. A

tripulação dos barcos era uma mistura de gente de Vila do Conde, de Londres,

Unhais da Serra, de Hull, Paúl, Plymouth, Valezim, Topsham, Póvoa de Varzim,

Southampton , Viana do Castelo, Alvoco da Serra, Dublin e Loriga.

Homens, como o “Mosca”, morador inicialmente da quelha de São Bento, moço de

mulas do “Malha-Pão”, que se viria a notabilizar por heroicamente conseguir

várias vezes enganar barcos franceses, acabariam por constituir família nas

Caxinas e por lá ficar.

Era também grande a comunidade de Unhais da Serra nos portos do Norte de

Portugal.

Muitos homens começaram com o carrego da lã inglesa, escocesa e australiana,

mas no final da guerra, as famílias inglesas do Porto, diversificaram a importação,

que também já existira antes.

Os ingleses gozavam de uma série longa de isenções de impostos, poupando

milhões e em troca davam muita paz, muita amizade e apenas essas.

O primeiro inglês a vender vinho do Porto para o Reino Unido da Grã Bretanha,

foi um mercador de Vinho Verde que provou o vinho em Lamego, em 1651.

Chamava-se Richard Peres ou Pevis, pois assinava das duas formas e era quase

analfabeto.

A importância da cidade do Porto e de Vila Nova de Gaia foi crescendo para os

ingleses graças a tratados comerciais, como os de 1642, de 1654 e Methuen,

trazendo benefícios à comunidade britânica superiores a outros estrangeiros e

nacionais. Com a criação da Feitoria, por John Maynard e a colocação de Samuel

Barton, como capelão anglicano no Porto, nunca mais a cidade Invicta deixou de

ter uma marca inglesa.

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Famílias com as de Peter Dowker, Croft, Jackson, Warre, Taylor ou Offley,

sentiam-se tão inglesas como portuguesas.

O vinho do Porto recuperou fama e ampliou-a também graças ao facto de

Wellington acompanhar sempre as batalhas na companhia de uma garrafa de

Porto Croft, mas a produção diminuiu, sobretudo por falta de mão-de-obra e de

campos abandonados.

A persistência e a astúcia dos britânicos do Douro fez com que só quatro por cento

do vinho acima do Douro ficasse em Portugal e mesmo esse era de restos e vendido

nas tabernas do Norte. Importando lã, em troca de vinho, durante a guerra, os

ingleses do Douro contribuíram para que a Serra da Estrela não ficasse sem lã

para trabalhar, pois não devemos esquecer que foi em Alvoco da Serra que nasceu

o primeiro cobertor de Portugal.

Os Warre foram a família britânica mais forte e importante do Douro no Século

XIX. Sucederam-lhe os Symingthon, descendentes de um empregado dos Warre.

No Século XXI, a grandeza dos Symingthon não é vaidosa ou orgulhosa, mas

necessária à sobrevivência do Vinho do Porto.

Hoje, grandes cadeias de distribuição esforçam-se por vender o Vinho do Porto a

preços insustentáveis de forma a obrigar os produtores a reduzir o nível de

qualidade do produto e colocando em perigo a sua própria sobrevivência, para que

possam tomar conta do Douro, comprar quintas produtoras ao desbarato ou

arrasá-lo e substituí-lo pelos vinhos de Napa ou argentinos. Os governos Português

e Britânico, actualmente, fazem-se esquecidos ou esforçam-se por esquecer essa

realidade, desculpando-se com as leis comunitárias e do mercado.

Mas como eu escrevi, depois da guerra, o lucro da lã para os ingleses diminuiu

imenso e estes começaram a variar as mercadorias, mesmo que a família Warre

tivesse durante algum tempo aguentado o prejuízo da margem de lucro curto da

lã, como sinal de amizade e agradecimento à gente de Loriga. Por fim, os lucros

emagreceram muito e a família viu-se obrigada a trocar a lã por outras

mercadorias.

Por exemplo, os Croft largaram a importação da lã para se dedicaram ao

bacalhau, ao arroz, o camarão, a manteiga e expandirem-se para o Norte da

Europa, as Canárias, as colónias americanas e a própria Austrália.

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Muitos homens e miúdos da Serra da Estrela que guardavam o vinho do Porto e

que eram pagos com a lã importada, trocaram de ofício e ficaram ligados a

actividades marítimas para o resto das suas vidas.

Desde 1816 que Portugal tinha um novo monarca, D. João VI, rei do Reino Unido

de Portugal, Brasil e Algarves. A capital de tão vasto reino que ocupava cinco

continentes era o Rio de Janeiro. Para o cidadão português medianamente lógico e

inteligente, a noção da grandeza de tão vasto Império era um pouco irreal e

despropositada, da mesma forma que o era certamente para muitos, mais de um

século depois, com a Ditadura de António de Oliveira Salazar. Pois, se por um

lado, Portugal era enorme e acabava os seus territórios junto à Austrália, terra que

seguramente descobrimos; por outro lado, esse mesmo cidadão via Portugal em

ruínas, miserável, descalço, analfabeto na maioria e quase sem ter para comer.

Era uma ironia diabólica, que infelizmente nos acompanhou várias vezes na

História.

Um simples exemplo dessa grandeza patega, estava na forma como regíamos a

Justiça. A legislação principal em vigor era a contida nas “Ordenações Filipinas”

de 1603, por sua vez já eram uma reforma simples, confusa e pouco clara, das

“Obrigações Manuelinas” de 1521, que se completavam com legislação avulsa,

incerta e muitas vezes avocada por advogados, sem que juízes soubessem ou

pudessem confirmar a sua legalidade e existência, após a destruição de tanto nas

Invasões Francesas, por invasores e aliados.

Chegados a 1819, os portugueses de Portugal continental pouco ou nada tinham e

menos podiam esperar de quem quer que fosse. William Carr Beresford mandava

como um vice-rei, não do rei João, mas do rei George do Reino Unido da Grã-

Bretanha.

Beresford aprendera português, anos antes, em 1807 na Madeira, que os ingleses

tiveram sob domínio durante os vários anos da guerra. Homem corpulento, calvo e

com uma aparência assustadora graças a um olho vazado que não se acanhava de

exibir, evitando qualquer pala.

A perda do “Pacto Colonial”, extinto por decreto de 28 de Janeiro de 1808, que

abriu os portos brasileiros aos navios estrangeiros, foi o começo da queda, uma

após outra, de todas as limitações e sujeições do Brasil a Portugal. Revogaram-se

todos os alvarás que proibiam a criação de indústrias e a construção de fábricas.

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Instituiu-se a Junta do Comércio, a Casa da Moeda, estaleiros, a Academia Militar

e até o Banco do Brasil, quando ainda não existia um Banco de Portugal.

Decididamente, Portugal virara colónia e o Brasil era agora a Metrópole.

Em 1815, o Brasil foi elevado à categoria de reino e se o sentimento de

independência era grande, maior ficou com as revoltas de que ouviam falar, nos

territórios dos futuros Estados Unidos da América. Os cariocas não queriam

qualquer ligação a Portugal. Achavam-na ridícula, como achavam ridículos os

nobres portugueses que chegaram na comitiva real. Eram, todos, uma chusma de

chulos da fazenda pública e que se haviam instalado nas melhores casas do Rio de

Janeiro, despejando os legítimos proprietários.

Quando a família real portuguesa e a alta nobreza chegaram ao Brasil, cuidaram

de enviar militares às melhores casas do Rio de Janeiro. Em cada uma das casas,

mandaram pintar na porta um “Pê” e um “Rê” ou “Erre” maiúsculo e de

informar o proprietário de que deveria sair o mais depressa possível. Esses colonos

não gostaram nada, mas o povo carioca em vez de ler “P.R.” como “Príncipe

Regente”, leu “Ponha-se na Rua”.

A emulação entre os colonos antigos e os que foram chegando, foi crescendo.

Por essa altura, surgiram as primeiras piadas e anedotas sobre portugueses, que

mais do que humilharem os habitantes de Portugal, visavam ofender e insultar a

comitiva real.

Em 1817, rebentou a revolta sangrenta do Recife, severamente esmagada pela

coroa, que influenciada pelas ideias norte-americanas, visava proclamar a

República e boicotar todos os produtos portugueses, por exemplo, substituindo o

vinho pela cachaça e o trigo pela mandioca. Enquanto em Portugal, se esmagava a

revolta de Gomes Freire.

Entretanto, em 1819, na Serra da Estrela, Monteiro, pai da menina Francisca, via

agora a filha como uma mulher que ultrapassara os vinte anos e que todos

perguntavam porque não casava.

Quantas vezes, em Alvoco da Serra, chegava ele, bem-disposto a um dos lados da

ponte romana Beirô, que unia a Praça ao Vinhô e acabava mal-disposto, quando

ouvia uma velha, sobre a ponte, a perguntar se a menina Francisca já tinha noivo.

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Francisca era uma menina doce e cheia de educação quando chegou a Alvoco da

Serra, mas depressa se habituou a montar cavalo e a usar calças como qualquer

homem. Subia à Malhada do Chão do Cetra, por cima do Penedo Gordo, a

caminho da Fonte da Pedra, onde se falava da lenda dos figos de ouro, mais

depressa do que muitos homens valentes da terra.

A sua determinação, coragem e atrevimento, afastava qualquer moço que se

quisesse apaixonar e o uso de calças e os modos de Maria-rapaz cuidavam de

afastar os que só procuram casamento por interesse.

Falava o que queria, quando queria e a quem queria. O pai achava-lhe piada no

início, mas com o tempo, Monteiro foi colhendo conversas que o instigavam a ter

pulso sobre a rapariga e a impor um matrimónio.

A coisa não era fácil, pois se os pobres não queriam ter uma mulher a mandar, os

ricos ainda menos a queriam. Por sua vez, Francisca que já era uma mulher, não

pensava em criar família. Estava bem com a que tinha. Também ela era muitas

vezes chefe de comitiva das caravanas que iam para o Douro, para o Alentejo e

Espanha, montando cavalo e usando chapéu como qualquer homem.

Do outro lado da Selada e do Cabrum, para cá e para lá do Gemuro, Laurinda

colhia cardo e secava chás e ervas. Cuidava do pai e dos irmãos. Ia de vez em

quando a Loriga e a outras terras distribuir um pouco de leite e ovos. Tentava

ganhar para sobreviver. A afeição a Sebastião, que vira nascer, era enorme, mas

constava em Loriga que o mesmo tinha uma queda pela menina Francisca, o que

lhe parecia insultuoso e falso, pois a menina era rica e mais velha do que Sebastião.

Laurinda, um dia, perguntou a Sebastião e ele riu por vários minutos.

Ele não pensava em casar. Sonhava apenas com lã e em pagar a Vicente Calheiros

o que devia. Para além disso, não tinha dinheiro para casar. Era conhecida a

aversão de ricos a pobres e vice-versa. Tanta ou maior era a aversão de Monteiro a

Sebastião, por isso, qualquer ideia dessa era pura ficção. Mas, com o casamento da

filha mais nova de Monteiro com o filho do Senhor Manuel Luís Fernandes, do

qual descendeu António Fernandes Camello, industrial de lanifícios de uma mais

velhas fábricas de São Romão.

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Monteiro sonhava com um genro aprumado e com guita, de uma família

tradicional e trabalhadora. Tinha vários debaixo de olho, mas as mães destes não

gostavam da liberdade e irreverência de Francisca.

Dos moços pobres, Monteiro só admirava um, o Zé da Cabeça, que era incansável,

trabalhador e a pessoa mais educada da região. Mesmo o Zé da Cabeça, como não

tinha onde cair morto, foi afastado da lista dos pretendentes noivos de Francisca.

Por outro lado, o Zé da Cabeça não pensava em casar, mesmo que fosse muito

desejado por todas as moças da Cabeça, de Loriga, de Alvoco da Serra, de Sazes

da Beira, Valezim e por ali afora…

O Zé da Cabeça, já se tinha esquecido de que fora José Benedito da Veiga. Passava

os dias como moço do Senhor Manuel Luís. Conhecia agora bem a Serra da

Estrela e, um a um, cada Monte Hermínio.

Compusera a sua casinha e cada dinheiro a mais, ao contrário de Sebastião que

gastava em lã, ele comprava terra. Juntava courelas e cuidava delas, sempre que

podia. A aldeia de Cabeça é boa para a agricultura e nela nasce talvez a melhor

maçã de Portugal.

Sobre o seu passado, todos ignoravam e ele fazia por isso. Evitava igualmente ir a

Arganil, onde Manuel Fernandes Tomás fora juiz e lá voltava constantemente.

João Fernandes Tomás, o pai de Manuel, ficou rico a trabalhar para D. Miguel da

Veiga. Entre o pai empregado e homem rico, Manuel nasceu, cresceu e licenciou-se

em Coimbra. Inteligente, seria sempre o orgulho dos pais. A família era da

Figueira da Foz e ajudaram bastante o exército anglo-luso na guerra e por isso

foram bem recompensados.

Um dia, pai e filho foram a Arganil, à feira. Estavam muito bem a trocar uma

conversa com amigos, quando João Fernandes Tomás jurou ter visto o neto

desaparecido de D. Miguel da Veiga. Com o poder e influência que tinha, Manuel

chamou uns militares que estavam por perto para agarrarem o Zé da Cabeça. Os

homens montaram a cavalo, mas o rapaz era rápido e primeiro escondeu-se na

capela do Senhor da Ladeira e ainda assustado refugiou-se na capela de Nossa

Senhora do Mont’Alto. Os tios do Zé da Cabeça tinham inventado uma série de

mentiras sobre o sobrinho, sendo que da principal constava uma série de joias e

ouro roubado, que ele nunca roubou. João Fernandes Tomás conhecendo bem a

família Veiga e a honra de D. Miguel da Veiga, de nada desconfiou e convenceu-se

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que José Benedito fosse o pior dos gatunos. Manuel Fernandes Tomás conhecia a

história pelo pai e nunca mais apagou da memória a cara de José Benedito.

Nesse dia de susto, o Zé abrigado na capela da Senhora do Mont’Alto, pediu a

Deus e a todos os santinhos que o protegessem de tal gente. A corrida para a capela

tinha sido rápida, ao ponto do Zé ter deixado cair o chapéu. Era um dia de imenso

vento e a porta da capela abriu-se deixando que o chapéu voltasse aos pés do dono.

O Zé apanhou o chapéu e sentindo-se abandonado por todos, viu na entrada do

chapéu, um sinal da Nossa Senhora do Mont’Alto, que como mãe talvez o estivesse

a acarinhar. Esse dia nunca mais foi esquecido.

Também Francisca talvez fosse a única rapariga de Portugal que, ao chegar à

porta da igreja, tirava o chapéu coberto de pó ou de lama e colocava o véu sobre a

cabeça, entrando com calças e botas com esporas. Isso não caía bem no goto do

padre e muito menos nas beatas e senhoras que iam à missa.

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XV – O Emergir do Medo

Em Março de 1818, proibiram-se as sociedades secretas, mas como o que é

proibido apetece mais, nasceu assim, no Porto, o Sinédrio, por iniciativa de Manuel

Fernandes Tomás e José da Silva Carvalho, que só assume importância e cariz

revolucionário depois do triunfo das ideias liberais em Espanha.

Em 1819, Almeida Garrett vê finalmente representada a sua obra “Lucrécia”.

E Digam o que quiserem, Professores, Doutores, engenheiros e outros mais, mas as

elites do ‘Ancien Régime’, não despareceram com a partida da família real

portuguesa para o Brasil. Foram apenas substituídas. Digamos assim… Digamos

que o ‘Ancien Régime’ apenas é substituído muito tempo depois pelo Estado Novo,

com as características particulares que lhe são conhecidas.

Com a partida de D. Maria I, a nobreza que importava ou que se julgava valer

muito, partiu também, mas foi substituída pela baixa nobreza que ficou mais

altaneira que nunca. Aliados aos franceses, na sua maioria, tomaram os lugares-

chave e finalmente brilharam.

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O brilho durou pouco, porque por mais vaidoso que se seja, tem que se ter para

comer. Quem não tem terras ou as tem ao abandono, tem de comprar comida a

quem a produz ou vende.

Assim, em período de guerra, o dinheiro passou facilmente da nobreza para a

burguesia.

A burguesia no Norte estava com os britânicos e a burguesia de Lisboa estava com

os franceses.

Da guerra ninguém gosta, tirando o que podem ganhar com ela. Os exércitos de

Napoleão eram compostos com gente muito variada e de muitos lugares. Gente que

só se movia a troco de saque e recompensa. O mesmo acontecia do lado do exército

aliado.

As milícias que inicialmente surgiram no Norte eram movidas pelo espírito

patriótico de quem não quer ser roubado em terra sua. Os levantamentos eram um

protesto contra isso e um grito contra a fome que grassava. Invadiam quintas e

propriedades, desconhecendo os donos, mas fazendo desses traidores ou judeus,

para poderem pilhar e alimentar famílias famintas.

Depois a paz surgiu e os que a conseguiram, ficaram no posto ou ocuparam os

melhores lugares, correndo com aqueles que pactuaram com o inimigo.

No entanto, os britânicos que vieram em auxílio, não partiram. Ficaram no mesmo

lugar e não permitam que nenhum português, militar ou civil, alcançasse os seus

lugares. O simples facto de os colocarem em causa resultava em prisão ou

condenação à morte por traição.

Muitos dos elementos das milícias eram jovens ou miúdos que não tinha qualquer

tarefa ou profissão nas suas terras e que foram arrebanhados à força para lutarem

contra os franceses, pelo simples facto de terem idade e físico para tal. Os chefes

das milícias pediam ajuda às povoações para combaterem o inimigo e essa ajuda é

prestada de boa-vontade ou à força. Os bens eram divididos de acordo com a

vontade dos chefes, que guardam para eles a melhor parte, pois quem parte e

reparte tem que ter arte.

Finda a guerra, os elementos das milícias voltaram às suas terras. Inicialmente

eram vistos como heróis, mas depois como não tinham profissão e pouco ou nada

sabiam fazer, começaram a ser vistos com desconfiança. Eles próprios não se

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sentiam úteis em tempo de paz e nem conseguiam ter o mesmo nível de

rendimentos, para além de uma vida parada, no mesmo sítio.

Os mercadores continuavam mercadores. Os agricultores continuavam a ser

agricultores. As cardadeiras continuavam a cardar. Mas, os milicianos agora não

faziam nada, nada, absolutamente nada.

No exército, o extermínio dos conjurados de Gomes Freire, apenas serviu como

semente de mau estar e outras revoltas. Os próprios ingleses tinham fortes

suspeitas e suficientes provas que demonstravam que os mais fiéis colaboradores

portugueses eram apoiantes de Gomes Freire ou que de propósito o traíram para

terem o seu mártir herói e exemplar.

A antipatia com os ingleses era tanta, que os próprios ingleses do Douro, sonhavam

e viviam esperançados com a partida de Beresford para o Reino Unido da Grã-

Bretanha. Em Julho, Beresford faz uma segunda viagem ao Brasil, para obter de

D. João VI poderes políticos e militares mais amplos, de modo a travar algumas

supostas intrigas dos outros membros da regência e a controlar os partidários do

perigoso liberalismo.

A paz vivida entre 1814 e 1820, por um lado, fez perder muito dinheiro aos

mercadores da Serra da Estrela, mas, por outro lado, serviu para ‘compor’ o

negócio e descobrir novos mercados, ampliando o comércio de lã para Espanha e

para Portalegre. Os caminhos tornaram-se menos perigosos. As populações

temiam menos e eram mais solidárias. Procurava-se com orgulho e patriotismo

reconstruir o país, depois de tanta destruição.

Homens como o “Arranca-Muros”, o “Malha-Pão”, o “Sabanico”, o “Patas-de-

Lacrau”, o “Lisboa”, o “Barriga”, o “Beja”, o “Garoupa”, o “Pau-de-Cera”, o

“Abrólio”, o padre Costa e mais outros tantos, menos famosos ou conhecidos,

deixaram de andar a guardar o vinho do Porto ou em milícias, dedicando-se aos

seus ofícios ou crenças.

Para Sebastião, Fernandes, Monteiro, Britos, Cabrais, Leitões, Freires, Pinas, Reis,

Guimarães, Nunes e Zé da Cabeça, a concorrência intensificou-se e ficou mais

desafiante. Por vezes, ajudavam-se e criavam sociedade. Outras vezes, roubavam

clientela, uns aos outros. Mas tudo, mais ou menos, se foi compondo e crescendo.

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Com a paz, as feiras e praças reergueram-se com menos força, mas reergueram-se

e isso era o que importava. Por outro lado, a Covilhã e Portalegre cresciam

depressa, graças ao capricho e orgulho da sua gente, bem como, aos políticos de

Lisboa.

A 24 de Agosto de 1820, dá-se o pronunciamento militar na cidade do Porto,

contado com a larga participação da burguesia e dos magistrados, fartos das

interferências britânicas na sociedade portuguesa. Nascia a Junta Provisional do

Governo Supremo do Reino, contando com figuras como o brigadeiro António da

Silveira, os coronéis Sebastião Cabreira e Bernardo Sepúlveda e outros muitos

mais, valendo citar ainda Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges e José

da Silva Carvalho.

De seguida, todos marcham em direcção a Lisboa, tentando provocar a queda da

regência e fazer da revolução liberal, uma revolução nacional.

Entretanto, “Chalaça” vai sabendo de tudo e preparando cenários.

Sebastião e o Zé da Cabeça tinham vinte anos em 1820, enquanto Laurinda e

Francisca estavam perto dos vinte cinco anos de idade.

Nessa época e mesmo depois, comummente os rapazes e as raparigas chegavam a

casar e a tinham filhos antes dos dezoito anos. Quem passasse essa idade e não

fosse casado, tinha sobejamente uma explicação clara e compreensível para o facto.

Sebastião, o Zé da Cabeça e Francisca, eram mercadores, passavam fora um mês

ou mais, tomavam conta dos negócios, de moços, machos e bestas. Não tinham

vagar para namoros. À Laurinda, de tão independente, pouco dada e com fama de

bruxa, ninguém a queria, mesmo que bonita e com vagar.

Laurinda pensava casar e ter uma casinha sua, mas não sonhava casar com

Sebastião ou com o Zé da Cabeça. Ambos lhe pareciam miúdos e Sebastião era

como que o filho que não tivera. Só a ideia de hipoteticamente casar com Sebastião

lhe causava mau estar e repulsa. No entanto, era muito chegado a ele, perguntando

sempre se estava bem e se precisava de algo. Os homens e as mulheres de Loriga é

que não gostavam nada daquela ligação e estavam sempre a avisar o Sebastião

para se afastar de tal gente. Por sinal, muitas dessa mulheres eram as que

procuravam a Laurinda por causa de um preparado com hortelã que tinha

poderes analgésicos sobre o desconforto da menstruação.

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Tudo o que conseguia de dinheiro, mesmo que a fome apertasse, Laurinda juntava

para uma casinha, que era o seu sonho maior.

As casas eram compostas normalmente de três divisões, podendo algumas ser

maiores. No entanto, todas obedeciam à mesma arquitectura. Havia um piso térreo

ou ligeiramente desnivelado, com uma única divisão da dimensão do edifício,

iluminado pela luz que entrava pela porta da rua e um pequeno postigo numa

parede lateral. Ao lado dessa porta, surgia uma escadaria em granito, oca, que

arrecadava lenha ou uma pequena capoeira, que levava a um segundo piso,

independente do piso inferior e assente em vigas de pinho ou castanho, traves que

sustêm o soalho. A pequena escadaria é chamada de balcão, pois antes do surgir

das râmbulas, ali era colocada a lã ou as peças de saragoça, surrobeco, baeta e

buréis. Também nos balcões, as pessoas tinham o hábito de sentar e cantar com os

vizinhos ou de executar algumas funções domésticas como cerzir meias ou separar

feijões e grãos de milho.

O piso superior inicialmente só tinha duas divisões, uma para as refeições e outra

para dormir e descansar.

A higiene era feita recorrendo baldes de água colhida nas levadas que organizaram

as nascentes da Serra e que alimentam as courelas e malhadas e as necessidades

atiradas para as quelhas mais inclinadas que a água dos regos haveria de lavar e

levar, pese embora o odor em dias de calor ou de caudal fraco da levada. Era

assim, a vida privada da maioria da sociedade portuguesa durante o século XIX e

XX.

O piso inferior da habitação guardava animais, no Século XVII. Na maior parte

das casas com balcão na vila de Loriga, no Século XVIII e XIX, no piso térreo já

não tinham animais, mas um tear de pau, onde a dona da casa tecia, acompanhada

de outras mulheres que fiavam, cardavam, cerziam e ajudavam. O marido da dona

da casa era mercador e passava a maior parte do ano fora.

Uma casa sem balcão significava que nela vivia um agricultor ou um empregado.

Pelo número de balcões em Loriga, vemos o número elevado de famílias que

estavam ligadas à lã.

Em 1820, tinham passado dois anos após a aclamação de D. João VI como

monarca. Sebastião não era casado e a mãe cardava para D. Cândida, por isso, não

tinha teares de pau e só vendia Lã. Quase o mesmo acontecia com o Zé da Cabeça,

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apenas com a diferença que não via a mãe desde que lhe cortaram o cordão

umbilical. Assim, em termos micro-económicos, estar solteiro era uma

desvantagem, pois não se tinha mão-de-obra para gerir uma loja, nome dos pisos

térreos na Beira e possuir teares.

Durante as guerras, a lã e outros bens aumentam muito o valor e os lucros são

significativos. Com o fim da guerra são os bens obtidos após a fiação que

compensam o comércio da lã. Um homem que só vendesse lã dificilmente singrava

na vida, daí urgia que moços solteiros casassem.

Sebastião não pensava em casar, nem namorava. O Zé da Cabeça, com pele

morena, olhos azuis e brincalhão, namorava muito, mas nunca se comprometera

com uma rapariga. Os dois moços eram relativamente bons partidos, pois apesar

de não serem ricos, eram mercadores e tinham moços de mulas a cargo. Aos olhos

de hoje, seriam classe média.

Francisca era da classe média alta, pois já era neta e bisneta de mercadores de

Alvoco da Serra, tendo o pai vários teares de pau. Outros eram mais ricos na

região, mas Monteiro não era pobre. A fama de Maria-rapaz não ajudava a casar e

depois de muito procurar noivo, apenas sobravam a Monteiro para a filha,

Sebastião e o Zé da Cabeça.

As sobras nunca são boas e só se aproveitam se o valor da dose mínima valer

superiormente ao total do bem, pela procura ou demanda da mesma.

O Zé da Cabeça tinha tudo a favor para ser o genro de Monteiro, excepto o facto

de Francisca chamá-lo pejorativamente de “encardido” e o Zé não achar graça

nenhuma a uma Maria-Rapaz. Por outro lado, a fama de mulherengo não ajudava

a que Francisca não se visse preterida em qualquer saída do Zé da Cabeça.

Já Sebastião tinha tudo contra si. Andara à pancada com Leitões, que eram amigos

do Monteiro. Era de gente pobre. Passava a vida fora de casa e tinha sido

empregado de Francisca, o que seria um escândalo, tal ascensão social.

Pesava em tudo, o facto de nenhum deles ser natural ou habitante de Alvoco da

Serra, atendendo às rivalidades entre terras vizinhas.

Assim, Monteiro vivia angustiado e em silêncio com o casamento da filha solteira

encalhada, que tratava tu-cá-tu-lá todos os moços e mercadores, entrando em

tascas e botequins, vestindo e montando como homem.

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Beresford, entretanto, regressa do Brasil e é proibido de entrar em Portugal.

Como em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão, uma só

revolução em 1820 era pouco…. Por isso, em 11 de Novembro do mesmo ano,

eclode a Martinhada, em dia de São Martinho, opondo conservadores absolutistas

aliados e liberais radicais aos liberais moderados da Junta do Governo Supremo

do Reino e da Junta Preparatória das Cortes.

Emergiu de tudo isto um radicalismo mais liberal, tendo sido afastados os

conservadores da Martinhada, restabelecendo-se uma certa ordem interna,

regulando as eleições e elaborando um projecto de Constituição da autoria de Frei

Francisco de São Luís, que ambicionava a criação de duas câmaras governativas.

Em Dezembro de 1820, formou-se uma nova Junta Provisional, presidida pelo

decano da Sé de Lisboa, Freire de Andrade, familiar de Gomes Freire, resultado

da fusão dos movimentos revolucionários de Lisboa e do Porto.

Esta junta promoveu as primeiras eleições indirectas que fizeram ascender às

Cortes Constituintes de uma maioria de comerciantes, proprietários e burocratas.

Depois da guerra, também várias famílias portuguesas que tinham fugido para

Espanha e para a Galiza, voltaram a Portugal, nomeadamente uma que vivia em

Foz Côa, os Marçais. A família Marçal perdeu tudo nas Invasões Francesas.

Também Pina de Aragão depois de regressar a casa, descobre que nada resta e

parte com a família para o Brasil. Por lá, se perderá o rasto.

Ao contrário dos britânicos, que fazem seguros por tudo e por nada, os

portugueses olham para o seguro como algo desnecessário e que lhes leva o

dinheiro, mesmo que de terramotos pouco se fale na Grã-Bretanha e por cá já

tenham existido vários, desde 1143.

Todo o conceito e afins de Segurança Social, surgiu da cabeça de Otto Eduard

Leopold von Bismarck-Schönhausen, que nasceu um ano após a saída dos

franceses de Portugal. Bismarck criou a Segurança Social procurando obter

dinheiro e não o bem-comum. Assim, fez com que ela nascesse para os mineiros.

Como os mineiros tinham uma esperança de vida curta, o montante de descontos

nunca seria reavido por estes através de uma reforma que pouco ou nunca

gozariam, revertendo assim para o Estado.

Page 18: A promessa - Parte II

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Os pobres, que eram muitos em Portugal, depois das Invasões Francesas,

dividiam-se em mendigos e vadios. O conceito de ambos foi evoluindo na sociedade

portuguesa, conforme as condições sociais e económicas foram alterando durante o

Século XIX.

De acordo com o decreto de 4 de novembro de 1755, vadio era “o que não busca

meio de subsistência, e vive na sociedade à custa de terceiro, e que são reprubados

em direito” e, segundo alvará de 15 de dezembro de 1809, “o que não tem

occupação, ou a tem deixado para viver na ociozidade.”

O primeiro Código Administrativo, datado de 1836, conferia à junta de paróquia e

ao regedor competência para organizar o rol “das pessoas que tem direito a ser

sustentados pela beneficência pública” e diligenciar o seu ingresso em hospitais e

casas de asilo. Entre essas pessoas contar-se-iam as crianças, os idosos e os doentes

que não estavam em condições de granjear o seu sustento. Cabia ainda à junta de

paróquia e ao regedor a aplicação de medidas legais contra a mendicidade,

devendo participar aos magistrados os indivíduos que, não padecendo de qualquer

mazela, se escusavam a trabalhar e se faziam passar por pobres (Código

Administrativo Portuguez, 1838, p. 54-55). Por sua vez, ao administrador do

concelho competia fazer cumprir os regulamentos relativos à polícia de viandantes,

bem como os decretos e leis sobre salteadores, vagabundos, contrabandistas e

mendigos (Código Administrativo Portuguez, 1838, p. 64).

O castigo a aplicar aos acusados de vadiagem contemplava o trabalho obrigatório,

que teria não apenas uma finalidade punitiva, mas também moralizadora. Por

ocasião do terramoto de Lisboa, os forçados foram encaminhados para a

desobstrução dos aquedutos da cidade.

Enquanto os verdadeiros mendigos se tornaram alvo de beneficência, a falsa

pobreza, além de censurada, era reprimida, fosse através da punição e sujeição aos

procedimentos judiciais, fosse e ainda através da incorporação nos corpos

militares. Procurava-se, afinal, inculcar o valor do trabalho e a disciplina nos

indivíduos que estavam em condições físicas e mentais para serem úteis à

sociedade.

Se durante a guerra foi difícil prestar auxílio aos mais necessitados, por parte da

organização do Estado, impregnada de simpatizantes de franceses e de britânicos,

Page 19: A promessa - Parte II

19

foi igualmente graças ao belicismo da época que alguns falsos mendigos e vadios,

apelidados pelo Marquês de Pombal de “parasitas”, foram incorporados no

exército e nas milícias, tendo praticados verdadeiros actos corajosos e heróicos, por

um lado; e, por outro, crimes hediondos que jamais foram julgados, em virtude de

tudo valer numa guerra, antes da 1ª Convenção de Genebra de Henri Dunant, em

1863 e que também foi o marco original do nascimento da Cruz Vermelha

Internacional.

Depois das Invasões Francesas, parte desses vadios estava em lugares de destaque

no exército português, em guerrilhas e milícias, mesmo que todos tivessem como

superiores hierárquicos os britânicos e no topo o marechal Beresford. Alguns são

afastados, devido a indisciplina e outros devido a um injustificado número de

soldados em tempo de paz.

A maioria desses homens não encontra função na sociedade civil e sente-se dela,

excluída. Sem trabalho e mal vistos pela sociedade, munidos do armamento que

tiveram no exército ou nas milícias, pouco a pouco, associam-se a indivíduos com o

mesmo passado e origem para criarem bandos de salteadores num Estado débil,

destruído e subserviente ao poder britânico.

Claro que muito se escreveu sobre o assunto, ora de forma patriótica e

aventureira, ora de forma dramática, em Jornais e por autores como Eduardo de

Faria em “A Estrella Brilhante” e Arnaldo Gama em “Paulo, O Montanhês”. Algo

que existiu por toda uma Europa que procurava renascer da guerra e da anarquia.

Igualmente, vê-se isso em “Götz von Berlichigen” de Goethe, em “Die Räuben” de

Schiller e transparece como água em “Cherubino et Celestini”, onde Alexandre

Dumas começa por “C’est une scène de brigands que je vais vous raconter, et pas

autre chose”.

O marco inicial mais significativo de tal período foram as revoluções de 1820,

mesmo que depois da guerra até essa data tivessem existido uns trinta e tais atritos,

mas quase todos partindo de agricultores ou proprietários, relacionados com

cobranças de rendas, dízimos, quartos e oitavos.

A paz na Serra da Estrela termina por esta altura.

Page 20: A promessa - Parte II

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XVI – Em dias atoleimados

1820 foi o ano em que nasceu o primeiro rei de uma Itália unida. Itália é um país

novo com uma cultura de séculos. Portugal é um país com quase nove séculos e que

ainda hoje não tem um registo claro e sério das propriedades privadas, públicas e

baldios, que evitem crimes ou usucapiões falsos para prejudicarem terceiros.

Por Portugal, em 13 de Agosto desse ano, Beresford viaja a Londres. A 24, o

Pronunciamento Militar do Porto marca o início da revolução liberal. Dias depois

acontece o mesmo em Lisboa e até o Cardeal Patriarca … é corrido do país. Será o

último Cardeal com ascendência nobre. A população de Loriga tão chegada ao

Cardeal ficará ligada para sempre, por esse acontecimento, ao Absolutismo e ao

Miguelismo.

Depois da Martinhada, Fernandes Tomás em nome da Junta que governava o país,

marca as primeiras eleições, com base na Constituição Espanhola de 1812.

O Inverno de 1819/1820 foi bastante gelado e de arreganhar todos, mas o pior de

todos os Invernos só chegou em 1829, com temperaturas tão baixas que até a

aguardente e os ovos congelaram. Nunca houve coisa assim e dela não havia,

portanto, lembrança. Não havia tanto pinheiro como hoje há na Serra e tudo

servia para queimar. Só a fogueira de Natal é que ardeu por alguns dias e nessa

altura o frio era tanto que o reitor, como se chamava ao reverendíssimo padre da

Page 21: A promessa - Parte II

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paróquia de Santa Maria Maior de Loriga, disse que não era pecado nenhum

retirar as brasas da fogueira do Adro para as braseiras ou lareiras de casa e assim

se fez.

Na Primavera choveu como só Deus a manda e a ponte romana do Teixeiro ruiu.

Ainda se inventaram histórias de que tinha sido por culpa deste e daquele. Houve

até quem, mais beato, visse um castigo divino, mas foi a chuva e a levada valente

que até deu cabo dos cômbaros ladeiros nas Lamas de Baixo, quando surge a

ribeira da Ponte, depois do casamento da ribeira da Nave com a ribeira do

Cortiçor, na esquina do Coiço do Botelho.

Antigamente as crianças aprendiam na escola, os nomes dos lugares e o exagero

era tanto que até de África tinham de saber os troços das linhas de comboio.

Depois, passámos do oitenta para menos de oito e hoje, dentro das localidades,

muita gente não sabe os nomes dos locais por onde passam diariamente.

Perguntem, por exemplo, a um habitante de Loriga onde fica o Piomal e vão

confirmar se é verdade ou mentira o que afirmei…

O mesmo se passa com o falar e a língua. Nenhum Acordo Ortográfico domestica

uma língua falada em cinco continentes, com povos, cultura e vivência diferentes e

que todos os dias criam uma palavra nova. Qualquer Acordo Ortográfico é

limitativo e para além de tentar aprisionar a realidade é anti-cultural, pois ignora

que cada povo vai construindo à sua maneira a língua de todos. Os falantes do

Inglês, do Alemão e do Francês sabem isso.

Há depois o snobismo limitativo e complexado de alguns em relação à língua e às

palavras correctas a usar. Chifres é algo diferente de cornos. Enquanto um objecto

cai, uma pessoa malha, uma ponte rui, uma cabra rebenta e uma vaca esfeijoa-se.

Tudo em português de sempre e do tempo em que havia mais analfabetos do que

doutores. O povo sabia que uma rua é um caminho a direito e uma quelha é um

caminho inclinado. Da mesma forma, uma ladeira é uma quelha sem casas.

Chamar uma quelha de rua é tão errado como chamar de rua uma quelha, para

além de revelar desconhecimento.

Depois vieram a terrível última semana de Março de 1820. Toda carregadinha de

frio e muita chuva.

Quando a ponte romana do Teixeiro ruiu, o povo uniu-se, pois era por ela, através

do caminho romano, que muitas das coisas chegavam e partiam de Loriga. Por

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essa mesma altura, começou-se a sonhar reconstruir uma outra ponte mais

pequena e igualmente romana que anteriormente ligava a vila ao Porto, mas que

no Século XVI ruiu. Sonhava-se que pelo Porto a vila crescesse, estendendo o

caminho ao resto da calçada romana, depois da isolada capela de São Sebastião e

depois do cruzamento com a ladeira do Gemuro, pouco à frente das Alminhas,

onde um carreiro levava à aldeia de Cabeça, passaria um mais largo pelo Caixão

da Moura e acabaria na portela do Aarão.

A ponte no Porto fez-se, mas as duas estradas nunca ficaram iguais ao que o povo

de Loriga sonhava e Loriga acabou só tendo uma entrada e saída principal, um

século depois, graças ao Senhor Augusto Luís Mendes, que deu o terreno para a

passagem e que é o único industrial de lanifícios que tem nome de rua em Loriga,

numa terra que teve gerações de industriais e mais de meia dúzia de fábricas.

A ponte do Teixeiro ruiu, mas foi reconstruída numa semana, coisa e tal e não mais

do que isso, por ser necessária e porque toda a gente se uniu, mais do que nunca.

Por fim, sem engenheiros e só com a orientação dos bons pedreiros da vila, dos

quais seguramente seriam herdeiros os “Ruas” e os Dias e quando estava

prontinha, um grupo de mulheres lavou as pedras com cal e outros preparados que

puseram as pedras bem branquinhas. Daí, a chamarem-lhe ‘Ponte Nova’ e a

passar a ser tratada como tal, foi uma questão de horas.

Por essa altura, a insistência das mulheres de Alvoco para que Monteiro casasse a

menina Francisca não ajudava o próprio ou a menina, apenas espalhava o boato e

era útil a alguns que passam a vida a falar dos outros, em vez de cuidarem de si

mesmos.

Diante de Monteiro ninguém abria a boca, mas quando a menina Francisca

passava, notavam-se uns sorrisos jocosos e uns burburinhos coscuvilheiros, que a

visada notava, mas não ligava.

Um dia de manhã, daqueles que nem à tarde se pode sair à noite, depois do São

João, na Praça de Loriga, sem a companhia do pai e apenas rodeada de

mercadores e moços de mulas, de Alvoco da Serra, do Outeiro da Vinha e mais um

dos Trigais, numa conversa de provocação que não interessava a ninguém,

Sebastião virou-se para a menina Francisca e disse-lhe:

- Tu gostas é de mulheres!...

Page 23: A promessa - Parte II

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A coisa suou mal e grosseira, pois não era só a alusão à preferência sexual, mas

também o facto de tratar por tu, quem antes tinha sido sua patroa e por não ser

costume tamanho trato vulgar. A própria não gostou e sem palavras deu-lhe uma

bofetada. Os homens que estavam na Praça, riram. Os risos enervaram Sebastião

que sem grande pensar aviou um murro na face alva da menina Francisca, pondo-

a a sangrar do nariz. O riso quebrou-se, enquanto a moça caiu no chão e os

mercadores de Alvoco da Serra, imitados pelos que com eles ali chegaram,

pegaram em armas.

A coisa tornou-se feia, pois os cartagenos sacaram e apontaram igualmente as

armas, enquanto uma ou outra mulher que passava, se juntava a eles ou fugia com

velocidade e um “Ai…Acudem!”, na boca.

A situação não foi fácil de resolver, mas todos acabaram por ter alguma frieza e as

coisas acalmaram. O pior foi depois.

Antigamente, a ofensa a um freguês, da freguesia, era visto como uma ofensa a

todos e todos a sentiam como uma ofensa à família e até a Deus, Nosso Senhor.

Numa terra podiam andar todos em guerra, mas se um vizinho da terra vizinha

entrasse na questão, todos eram capazes de se unirem contra esse homem, com ou

sem razão. Primava o bom nome das terras e dos seus. Eram gente orgulhosa, mas

onde a palavra dada valia tudo.

Assim, naquele dia, a história acalmou, mas no dia seguinte, depois do “Quelhas” e

do “Ronca” terem chegado cansados a Loriga, após terem passado a noite em cima

das selas dos machos, a coisa voltou a azedar. Quando o “Negas” encontrou um

dos “Tapóras”, a conversa começou por ali e entre Loriga para aqui e Alvoco para

acolá, mais um filho disto e um filho daquilo, houve tareia da grossa e só um Dias e

um “Portela” os conseguiram separar.

Entretanto, o Monteiro jurava a ele mesmo, em segredo, vingança da filha. Queria

matar Sebastião. Haveria de encontrar um lugar certo, apanhá-lo a jeito e

despachá-lo para o outro Mundo, sem água-benta, Avé-Marias ou Padre-Nossos.

Até sabia que tinha de ser antes do Dia de Finados, mesmo que lhe fizessem a ele o

mesmo.

Claro que era segredo, mas como ficava tão vermelho, cada vez que ouvia o nome

de Sebastião, já todos tinham adivinhado o dito segredo e muito o comentavam por

Page 24: A promessa - Parte II

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Alvoco da Serra e arredores, tendo chegado facilmente a Loriga, pelas manas

“Firmino”.

Havia compadres ligados por afilhados e famílias unidas por sangue, entre as duas

terras, que não queriam desavenças ou mau ambiente, por causa daquele atrito.

Achavam que era coisa de rapazes e que ambos deveriam esquecer e seguir em

frente. Mas o ar estava pesado e cada povoação tendia para seu lado, mais

fervorosamente que os principais ofendidos.

Dali aqui foi um instante até que cinco dias antes do Dia dos Fiéis Defuntos, num

carreiro que ainda existe e leva a Cortes do Meio, ao mesmo tempo que passava

um pastor e um reles rebanho de churras, de um lado assomou-se Sebastião e do

outro lado, a menina Francisca, cada qual acompanhado de moços de mulas.

A conversa começou por ser cordial, mas depois voltou tudo a azedar e a menina

Francisca não se fez esperar e deu um sopapo valente em Sebastião, que caiu. Os

moços de bestas, de um e de outro, ficaram mais imóveis do que a salgada mulher

de Ló, quando o Senhor fez chover enxofre e fogo, sobre Sodoma e Gomorra.

Naquele momento, Sebastião sangrou, parou e olhou friamente para a menina

Francisca que não pestanejava. Sacudiu em silêncio a terra da roupa e aproximou-

se da moça que estava pronta para bater com mais força. Olhou-a de baixo para

cima e soltou…

- Estamos vingados…

Ela olhou-o. Aproximou a face da cara de Sebastião e pregou-lhe um beijo nos

beiços, sem mais.

Depois?... Depois ele não deu parte de fraco e pregou-lhe um beijo também.

Riram e depois cada um seguiu para seu lado, como se nada fosse ou tivesse

acontecido. Mas as coisas são como são e as bocas não se abrem apenas para

comer. Os moços disseram às mães e às mulheres e uma e outra foram abrindo a

boca e espalhando a palavra, de que se haviam beijado.

Os de Loriga e de Alvoco da Serra não gostaram do que ouviram. Tinham tomado

partido por cada um dos seus conterrâneos e agora que atitudes deveriam tomar?

Page 25: A promessa - Parte II

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Do lado de Loriga, a postura demorou a ser tomada, pois Sebastião esteve uns dias

ausente. Partira com os Matoso, de Coja, para Montemor-o-Novo, onde vários

loriguenses criaram família e iniciaram negócios de lã.

Monteiro ficou a saber da história, no Cabeço da Boiça, pelo Carlos Ano Bom e só

acreditou porque este não era só Bom de nome, mas também leal e franco para

com todos. Depois, algumas beatas deitaram fogo e outras tantas deitaram água na

fervura, pois lembraram ao Monteiro que Sebastião, apesar de ser de Loriga, era

neto da “Cardosa”. Mas, as que deitavam lume, recordavam ao mesmo tempo que

a “Cardosa” fugira para casar com o “Grifo”, que não era dali, mas que na Serra

ganhou má fama, com as mulheres de uns e de outros.

A tudo, Monteiro dizia um “depois se vê!”. Mas, por dentro, andava furioso de ver

a filha e o seu nome na boca do povo. Imaginava-o a rir e a fazerem pouco dele e

dos seus, naquelas horas em que há vagar para falar de tudo o que não tem jeito,

no calor da borralha ou no frio dos lençóis.

Não disse nada a ninguém e muito menos à filha, sobre o que pensava. Sentia-se

gozado pelos da terra e pela própria filha e o Sebastião. Agora quem seria o rico

que capaz de casar com uma rapariga danada e com má fama?

Assim, aquela raiva toda subiu-lhe e num dia infeliz, lá junto ao ribeiro do Porto

Lobo, viu um rapazinho trabalhador e carregado de mato, que viria a ser avô dos

“Pistolas” de Loriga, não pensando, desancou no pobre, pelo simples facto de ser

da terra do Sebastião.

Quando o miúdo chegou a Loriga, mais morto que vivo, de uma sova da qual não

sabia porquê, já Sebastião tinha regressado e não deixou que o povo fosse pedir

contas a Monteiro. Disse que ia ele e que só era responsável. E lá foi.

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XVII – Atizanando troncamaronca entre guieira

Às vezes, a gente acorda com um mau presságio ou com o coração pesado.

Às vezes não é coisa nenhuma e passa. Outras vezes, adivinha-se e acontece, sem a

gente saber porquê.

Maria Mendes Grifo, mãe de Sebastião, acordou assim, no dia de São Bartolomeu.

O filho chegou por volta das 10 da manhã, a Loriga. O tempo estava ameno,

apesar de ser Agosto.

Depois de saber o que se tinha passado por Alvoco da Serra, Sebastião decidiu

esclarecer a vida e prestar contas, doesse o que doesse. Qualquer homem deve

estar sempre disposto e preparado a prestar contas, a si e aos outros ou não é

homem. O homem que é mercador mais depressa deve prestar contas ou então é de

más contas e acaba por ganhar má fama.

Esperou depois pelo almoço. A barriga vazia é má conselheira e causa azias

impensáveis, atritos vergonhosos e arrependimentos incorrigiveis. Para além disso,

Maria Grifo tinha feito uma apetitosa e irrecusável morcela com batatas dos

temporais.

De barriga cheia e ânimo satisfeito, pese embora muitas vezes nisso contrariado em

ditos pela mãe, Sebastião decidiu ir falar com Monteiro. Mudou de camisa e calçou

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as melhores botas. Tinha vinte e três anos e não sabia se no dia seguinte estaria

vivo, portanto, chamou o meio-irmão miúdo e disse-lhe que se morresse tudo era

dele, começando pelas botas.

Sebastião passara anos descalço e por isso achava prazer e valor nas coisas

pequenas, sendo a primeira delas, andar calçado. Naquele tempo, isso era coisa de

rico. Quando, anos depois, os salteadores se tornaram praga e matavam qualquer

inocente, se este fosse calçado, era abandonado morto e descalço, mesmo que

tivesse calçado. Viver calçado era sinal de riqueza e como diz o ditado sânscrito,

quando um ladrão vê um Santo só lhe tem olhos para os bolsos.

Finalmente, entregou um lenço com dinheiro à mãe e retirou o fio de ouro, com a

cruz e o escaravelho egípcio. Fechou-o na mão que beijou e entregou-o à mãe,

dizendo:

- Se eu não voltar até ao bater das seis da tarde, peço-lhe Senhora mãe, que deite o

fio do meu pai para o fundo do Poço Forte. E por favor, não chore por mim…

Uma mãe não consegue evitar as lágrimas pelos filhos e perdoa-lhes tudo, mesmo

quando não merecem. Para Maria Grifo, Sebastião podia ter razão, mas era quele

o filho pelo qual temia a vida.

Quando Sebastião se despediu, Maria abraçou-o e a custo o largou. Os olhos

estavam encarnados e molhados. Sebastião montou o macho e não olhou para trás,

para que a mãe não visse que ele estava na mesma figura.

Lágrimas, só as voltou a chorar quando deixou de ver Loriga, no rego dos

Azeiteiros, pois não sabia se voltava à sua querida terra.

Depois, desceu o Alto de Cabrum, a caminho de Alvoco da Serra, decidido e mais

seguro do que nunca.

Bateu quatro vezes com a mão espalmada na almofada de madeira. E, antes que

Monteiro abrisse a porta, já a “Cardosa”, avisada pela Maria do Carmo da

“Tibornada”, descia a ladeira enrolada na manta-xaile preta para ver o neto.

Deixava para trás a roupa a corar e a celha de madeira numa fisga aberta de um

muro.

Monteiro abriu a porta e quando viu a figura de Sebastião, todo aquele calor e

raiva infernais que nele viviam latentes, gelaram. Nunca lhe passou pela alma que

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alguém se atrevesse a enfrentá-lo e portanto, não sabia minimamente como reagir.

Monteiro prometera matá-lo e isto e mais aquilo, outro tanto, até que já na

sobrasse de Sebastião, mas perante o referido, gelou e até a garganta parecia

colada e mais estreita do que a do pontual galo da alvorada.

Muita razão, teve a pena do sábio padre António Vieira, quando um dia nos

ensinou, que homens de ‘hei-de fazer’ nunca fazem coisa nenhuma.

Sebastião olhou Monteiro no fundo dos olhos e esperou alguma palavra, mas o

dono da casa estava em choque. Entretanto, Monteiro virou-lhe as costas e ao

sentir que não era acompanhado virou-se de novo e disse:

- Então não entras? Queres antes falar na rua?

- Não passo a soleira da porta de uma casa sem ser convidado.

- Agora és fino!?

- Não… Sou educado.

- Deixa-te dessas coisas. Anda daí que estás convidado… Há conversas que não se

podem ter na rua, pois entram logo nos ouvidos dos maldizentes da terra.

Sebastião entrou e seguiu um pequeno corredor até à cozinha, onde quatro

cadeiras e uma mesa quadrada os aguardavam. O ar cheirava à carqueja que

estava na pequena lareira de canto, onde uma panela de três pés cozinhava talvez

uma sopa.

Eram três da tarde e sobre a mesa restava um jarro de barro com vinho, umas

couves acabadas de colher e uma rodinha. Sebastião sentou-se e Monteiro retirou

dois canecos de um aparador.

Monteiro colocou-lhe à frente um dos canecos no qual verteu vinho.

Sorriu nervosamente e gaguejou atacando.

- Então que faz um filho-da-puta dentro de minha casa?

Sebastião nada respondeu, mas rapidamente colocou uma pistola, chamada

garrucha na península Ibérica e de perereca no Brasil, em cima da mesa.

- Mas…Mas que raio vem a ser isso. É assim que tratas o teu futuro sogro?

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- E é assim que trata a minha mãe? Como reagia se eu tratasse a sua mãe da

mesma forma?

- Não te atrevias!...

- Não me atrevo, porque o respeito, mas exijo ser respeitado.

- Vamos lá a ter calminha. Ainda nada se disse e já estás todo nervoso.

- Não estou nadinha nervoso.

Monteiro ficou mais nervoso e gelado com a serenidade de Sebastião. Um

cortinado ao xadrez impedia o Sol de entrar e do lado de fora do postigo,

ajoelhada, a Irene do “Proença” ouvia tudo e ia fazendo caras que ora sossegavam,

ora enervavam as outras vizinhas que ali se deslocavam. “Cardosa” ficou com o

ouvido colado à porta da rua, mas ouvia coisa nenhuma.

Depois de uma hora, mais coisa menos coisa, de conversa. A porta abriu-se.

“Cardosa”, perdeu o equilíbrio e malhou.

- Então, por aqui avó?

- Ia a passar…Ia a passar! Que queres?!

Mas nem Sebastião, nem Monteiro acreditaram e sorriram cumplicemente e com

ironia.

Depois e atrapalhada, “Cardos” ergueu-se, embrulhou-se na manta-xaile e soltou

um…

- Vou-me embora que agora não tenho vagar! Ficai bem!

Monteiro apertou a mão a Sebastião, pela primeira vez, com o carinho e a firmeza

com que só nós damos aos nossos.

Quando Sebastião chegou ao rego dos Azeiteiros, hoje conhecida pela Fonte dos

Azeiteiros, bebeu a pura água que brotava do cômbaro. Respirou fundo e aliviado.

Pensava que aquele seria o último dia da sua vida. Depois, o rosto enrugou-se e

tremeu. Eram seis da tarde. Montou e correu até ao Poço Forte.

Chegou ao fundo da ladeira e ainda correu mais depressa, mas quando chegou lá,

não viu vivalma. Voltou para casa da mãe com a cabeça a mirar os pés.

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Bateu quatro vezes com a mão espalmada, mas à terceira, já os braços da mãe

estavam enrolados à sua cintura e os olhos lavados em lágrimas de contentamento.

Diz a ciência que as lágrimas de alegria são doces e que as lágrimas de dor são

salgadas.

A preocupação de Sebastião não o faziam reparar nisso.

- O fio? Onde está o fio do pai? O meu fio de ouro?

- Está aqui, guardado no bolso da minha saia junto com o terço.

Sebastião aliviou e voltou a respirar fundo.

- Não o aventaste fora, conforme te pedi…

- Não tive vagar.

- A senhora mãe é igual à Senhora avó. Disse-me o mesmo, hoje.

- Viste-a? Como é que estava?

- Estava no chão. Malhou quando eu abri a porta da casa do Monteiro. Estava com

o ouvido colado e lá se desequilibrou…

- Ahahahah… mas não se magoou?!

- Nãoooo…que ela é boa fibra. E fugiu mais envergonhada que o Diabo em frente

da Santa Cruz.

A tarde ia-se aproximando da noite e nesse dia havia novena, por isso comeram

mais cedo.

Ainda nessa tarde, Laurinda soube da história, pelo Zé da Cabeça que padecia,

por esses dias, de papeira ou caxumba. Laurinda fazia uma mistela com a gordura

de várias galinhas e açúcar mascavado e com ela untava o pescoço do Zé da

Cabeça. A imagem não era convidativa, mas o paciente melhorava e em vez de três

semanas de doença, apenas ficava por uma semana com os sintomas da papeira.

Menos sorte teve o António Neves, que nunca mais teve filhos, depois da doença o

ter atacado na Primavera e ainda ficou surdo do ouvido direito. Tudo porque se

negou aos préstimos de Laurinda.

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A surdez tornou-se herança dos descendentes do Neves e quando o povo o via na

rua a perguntar “O quê?”, havia sempre alguém que lhe respondia, “A galinha da

Laurinda acabava-te com o quê!”

E nesse vai que não vai, mas foi, chegou a noite e a menina Francisca chegou a

Alvoco da Serra. Regressara de Sortelha, da casa de uma família judia de

Penamacor e que actualmente alberga o restaurante D. Sancho, no largo do Corro,

da mesma terra.

Cansada, tirou as botas e colocou os pés num alguidar de lata com água morna, sal

e limão. Sentia-se partida e mais partida ficou quando, à beira dela, o pai se

aproximou.

Ele não sabia muito bem por onde começar, mas estava decidido e não havia volta

a dar. Nem que a porca torcesse o rabo.

- Ouve lá, rapariga…

- Diga, Senhor pai.

- Bem, tu sabes como são as coisas.

- Algumas coisas, sei. Outras aprendo e outras não… Há de tudo. Porquê?...

- Bem… Tu sabes como são as coisas. Andam para aí a falar de ti, coisa e tal…

- E o Senhor pai, acredita nelas?

- Tu sabes como são as coisas. Como se ganha fama com coisa nenhuma…

- Então, mais uma razão para o Senhor pai não lhes ligar.

- Sabes que a borralha suja e o carvão custa a tirar. Mancha e custa a lavar.

- E daí? Se nós sabemos a verdade.

- Um dia o meu pai disse a verdade ao meu avô, mas uma tia foi-lhe encher os

ouvidos… Foi uma zanga danada. Estiveram vinte anos sem se falar e o meu pai

com a fama de mentiroso sem o ser. O meu avô chegou a dizer ao filho que era

indigno do nome e até duvidava que fosse, pois era parecido apenas com a mãe. O

meu pai tinha a honra e a verdade como valores máximos e foi ali que o meu avô o

feriu, assim decidiu mudar de nome e retirar os apelidos do pai, por muito que o

amasse. Se era indigno de ser filho do pai, seria sempre digo de ser filho da mãe.

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Um pai pode ter sempre dúvidas, mas uma mãe nunca dúvidas de quem são os seus

filhos.

- Já percebi, mas aonde é que quer chegar com essa conversa, Senhor pai?

- Tu sabes como são as coisas. E diz-se por aí que beijaste o neto da “Cardosa”. O

que trabalhou para ti. Tu sabes como são as coisas. É uma vergonha que te

mistures com quem é menos que tu… A avó dele faz chinelos.

- E depois? É menos honrada por isso, Senhor pai?

- Não é isso que estou a dizer! Não desconverses!

- Eu!?

- Tu sabes como são as coisas. E hoje o rapaz apareceu aqui.

- E então?

- E então falámos de ti. Da tua vida…

- Nas minhas costas!

- Viesses mais cedo…

- E depois. Diga…

- Então, que é que queres que te diga? O moço esteve cá a pedir a tua mão em

casamento.

- E o Senhor pai, o que lhe disse?

- Que é que querias que lhe dissesse? Sabes como é o povo. És conhecida por ‘Cepa

Rija’. Que nenhum rapaz te pega. Que afugentas qualquer um.

A menina Francisca ia ficando nervosa e corada de raiva. O próprio pai a dizer-lhe

aquilo.

- Que é que querias que lhe dissesse, rapariga?

- Que não tinha nada a dizer-lhe!

- Que não tinha nada a dizer-lhe!? …Então o rapaz vem lá de Loriga e levava de

volta uma resposta dessas. Isso não era coisa minha. Ou sim ou sopas!... Agora,

que não tinha nada a dizer-lhe! Tu às vezes pareces que não tens o juízo todo.

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- E o Senhor pai, o que lhe disse?

- Que é que querias que lhe dissesse, rapariga?

- Ai…Outra vez a mesma pergunta!?

- Então, disse-lhe o que havia de dizer… Ele também me pôs a par da situação. De

como és falada. Que és uma Maria-Rapaz e que não tens paria. Que nenhum rico

te vai querer sabendo que o beijaste…

- E o Senhor pai defendeu-me e bateu-lhe!?

- Lá ia bater a quem falou com razão!?

- Com razão!?... Com razão!?... Ainda nem há uma semana o queria pôr sete

palmos de terra por cima e agora fala com razão…

- Sim, com razão!

A menina Francisca levantou-se e descalça e de pés molhados, fervia mais do que a

água no alguidar.

- Então e depois?

- Depois lá falei com o rapaz…

- Já estava a falar…

- Sim, mas… cheguei à conclusão que ele tinha razão e que não é tão burro como

parecia…

- Não tarda nada, na sua boca é um doutor!

- Não sejas assim. Não é doutor nenhum, mas disse tudo com razão…

- E o Senhor pai, o que lhe disse, afinal?... Está para aí todo engasgado e não há

meio de o dizer?

- Disse o que lhe disse!

- E que foi, homem? Canudo que não desembucha!

- Olha o respeito e as maneiras! Foi o que foi e mais seria se fosse…

- Está difícil…

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- Então disse-lhe… Disse-lhe que sim.

- Que sim a quê?

- Que casavas com ele e que até levavas um bom dote e enxoval. Que as coisas vão

ser diferentes, mas que depois de casados, vão viver aqui em Alvoco da Serra.

- Ai! Anda o Mundo todo atoleimado e Senhor pai também…

- Ai! Olha o respeito ou dou-te com a fivela do cinto…

- Vende-me a filha e acha que a filha se importa com a dor da fivela… Tenha mas é

juízo… Mas isto não fica assim…

- Mas rapariga, que é que querias que eu dissesse? Estás queimada aos olhos do

Mundo! Ninguém te pega…

A menina Francisca nada mais disse ou respondeu. Fechou-se no quarto. Deitou-se

na cama de ferro e chorrou até adormecer.

Monteiro tinha o seu feitio, mas não era má pessoa. Naquela altura, os pais faziam

os casamentos por tamanho da riqueza e pelo grau de parentesco. Sebastião não

tinha nada a ver com ambas as condições. Valia-lhe o facto de a rapariga ser

‘falada’ e da necessidade de acabar com o falatório.

Francisca acordou calada. Não se imaginava a ser vista como produto e negociada

às escondidas. Sentia-se como se fosse coisa nenhuma, sem vontade ou voto

nenhum sobre o seu destino. Não é que não simpatizasse com Sebastião, mas era

rude, violente e insultuoso aquele trato nupcial. Ao longo do dia, mentalizou-se e

até ficou feliz por saber que era desejada por Sebastião. Depois, ficou triste, pois

sabia que teria de deixar de andar à rédea solta e ser uma boa dona de casa. Teria

que dar filhos e ser uma boa esposa.

Abandonar a vida de mercadora, de negociar lã e panos, de combinar preços e

entregas, de conhecer terras e gentes, deixava-a triste e sem razão para viver.

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XVIII– De volta

Ainda o padre Alfredo não tinha dado o nome à lagoa do Covão do Ferro, já

Sebastião e Francisca tinham casado.

Um casamento igual a tantos outros dos que se fizeram na Serra por esse tempo.

Um casamento com mais mulheres do que homens, pois muitos deles estavam para

fora e apenas tinham na festa como representantes, as esposas. Um casamento com

grão-de-bico e bacalhau, cozinhado pelas melhores cozinheiras de Loriga e de

Alvoco da Serra. Uma tradição que se prolongou quase até ao Século XXI e que

deixou saudades em todos, dessas Senhoras que com talento, carinho, sabedoria e

muito amor à sua terra, organizavam festas, bodas e participavam alegremente em

tudo o que lhes pediam. Há para aí tanta rua com gente estranha a dar-lhe nome,

que bom seria lembrar aqueles que tanto bem fizeram e nunca pediram nada em

troca, a não ser a felicidade de todos…

Davam o que tinham e não tinham pelos noivos e os convidados, porque o amor

não se mostra por palavras, mas por actos.

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A terra do noivo uniu-se à terra da noiva e só se distinguiam na forma como

comiam o arroz-doce e o leite-creme, pois a gente de Loriga gosta de fazer um

vulcão de arroz-doce branco que enche o meio com leite-creme, onde uma pá em

brasa queima o açúcar. No interior de Portugal, o arroz-doce é sempre branco e no

Norte a aletria manda mais do que o arroz-doce. Gostos e prazeres de cada qual.

Tudo em pratos de louça que eram pedidos de empréstimo a quem mais tinha,

marcados com fita, apontados com o nome do dono na tal fita, cuidados com

estima e devolvidos no fim das festas.

O povo ajudava e embora as prendas fossem escassas, todos juravam a si e aos

outros, ajudar com o que podiam. Na Lapa dos Dinheiros quando alguém casava o

povo até se empenhava a construir uma casa para os noivos, pois quem casa quer

casa… Era uma união de gente normal feita forte por uma vontade de aço.

Nesse mesmo dia em que casavam e em que ainda o padre Alfredo não tinha dado

o nome à lagoa do Covão do Ferro, já “Patas-de-Lacrau” tinha cavalgado em

direcção ao Porto, depois de na Régua ter estado em casa de “Pouca” Rosa.

“Pouca” Rosa nasceu em Póvoa de Varzim filha de um moço de Loriga e de uma

rapariga de Chamozinhos. O pai foi para lá em criança, arrastado por um

padrasto que lhe batia, a torto e a direito, pondo mais negro que carvão. Por lá

casou, mas voltou a Loriga as vezes que lhe foram possíveis. Assim, a filha ganhou

amor à Serra e a cada um dos Montes Hermínios que conheceu. Depois encantou-

se com um sobrinho da “Tia Taleiga” e também casou. Mas a vida é como é. O

moço apanhou tuberculose e morreu no mesmo dia em que os Franceses se

atreveram a passar o Douro. Nessa altura, o marido da Rosa guardava a

Cavadinha e os Warre não deixaram a viúva partir. Aconchegaram-na como se

aconchega a família.

Os Warre chegaram a Portugal por volta de 1670 para venderem vinho Verde e só

compraram terras no Douro quando enriqueceram. Depois de analfabetos e rudes,

aprenderam a ler e serviram da melhor forma, Inglaterra e Portugal. Sentiam-se

carne de ambos os países. Warre protegeu muitas vezes os portugueses e quando

um dia foi repreendido pelo Duque de Wellington, sem nenhum receio disse-lhe

olhos-nos-olhos que o sangue dele podia ser inglês, mas que a sua alma seria

sempre portuguesa. Por feitos para lá de heroicos e de um humanismo sem par, foi

agraciado com a medalha da Ordem de São Bento d’Aviz, mas ele não ligava a

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medalhas. Ele não queria era ver tanta fome, sofrimento e pobreza nos caminhos

da terra que amava e chamava sua.

Rosa cuidou dos sobrinhos desse Warre que, tão disciplinadora e autoritária, lhe

deram a alcunha de “Pouca” Rosa. Começou por ser moça de copa, depois

cozinheira e quando deu por cabelos brancos e rugas nos lábios, já mandava em

quase tudo. Os Warre protegeram a sua família o melhor que puderam e deram o

que podiam em valentia para afastarem os franceses da nossa Península Ibérica.

Deixaram apenas James a cuidar do vinho e foi James que vendo passar

mercadores de Loriga, os chamou para guardarem o vinho do Porto. A amizade

tornou-se franca e fraterna. Tratavam-se todos por tu e a coisa singrou mesmo

com todos os percalços. Foi graças a James que a Serra da Estrela se encheu de lã,

vinda por mar. Muitos bons negócios se fizeram para que os serranos

sobrevivessem e ainda ajudassem alentejanos e espanhóis.

Quando o “Patas-de-Lacrau” chegou ao Porto, já Warre tinha sido avisado. Um

pombo mensageiro saíra da Cavadinha com um papel manuscrito que dizia, “O

Lacrau vai a caminho”. Foi assim recebido como um velho e bom amigo. As

roupas e os modos separavam-nos, mas as agruras faziam deles carne da mesma

carne e por isso, só aos da Serra é que Warre permitia os piores modos e as mais

rijas palavras. Dizia que eram vides de uma só videira, a sua. A melhor lenha para

queimar e a mais resistente para partir.

Adivinhava-se coisa ruim. Uma paz podre. As revoltas liberais de 1820 faziam

lembrar zangas antigas. Teriam que proteger os ingleses do Douro. Ninguém o

pedira, mas logo todos na Serra se lembraram dos amigos ingleses.

A lã escasseava principalmente em Espanha e comprada pelos ingleses, rendia

quinze por cento a estes, vinte por cento aos mercadores da Serra se vendessem a

lã em Portugal e trinta e cinco por cento se fosse vendê-la a Carceres e arredores.

O ambiente era avesso aos ingleses do Douro e muitos eram os portugueses que por

inveja, cobiça e ódios velhos, desejava tirar-lhes tudo, esquecendo o muito que

tinham feito durante as Invasões Napoleónicas. Os ingleses consideravam-se e

consideram-se justamente portugueses, pois sempre deram o melhor pelo Douro e

foi nele onde muitos nasceram e cresceram, pese embora raramente terem

misturado o seu sangue com sangue português.

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Os ingleses do Douro fizeram tudo por tudo para que as tropas aliadas não

destruíssem Portugal e protegeram ao máximo, do que lhes foi possível, as

populações. Agiram pelo povo, protegendo o povo, mas o ódio do povo contra o

aliado, depois do martírio de Gomes Freire, cegava quase todos e os ingleses eram

ingleses. Fossem bons ou maus, haveria que correr com eles.

A Warre preocupava-o sobretudo a segurança dos seus, mais do que o lucro. Não

sabia se a Serra da Estrela teria homens suficientes para guardaram as famílias, os

vinhedos e as casas. O povo estava pobre, falido e desamparado. Os que não viviam

da caridade, viviam do furto revoltado. Tentava-se sobreviver a todo custo, num

país que tinha colónias em todos os continentes e mares, mas que de tão mal

governado, deixava os seus habitantes entre revoltas e fomes. Um reino que tinha

agora a capital do outro lado do Atlântico e cujo rei vivia ocupado com tudo e

coisa nenhuma e a rainha padecia de ninfomania, temendo-se que nenhum dos seus

filhos fosse filho do hesitante monarca.

“Patas-de-Lacrau” esboçou com Warre a rota da lã, pelos caminhos antigos

romanos, a chegada da lã merina a Vila do Conde e Póvoa de Varzim, a sua

entrega, em Gouveia, São Romão, Loriga, em Alvoco da Serra, no Paúl, Unhais da

Serra, Fundão, na Covilhã, em Portalegre, em Tajo-Salor-Almonte, Malpartida de

Cáceres e outras terras. Em Cáceres era lavada e urdida, para ser distribuída pela

Europa, regressando parte dela a Portugal, pelos mesmos caminhos.

Havia que conseguir homens e armas. Depois, quando regressou a Loriga, na

Praça, a história começou por parecer impossível a cartagenos, mas a recordação

dos anos difíceis e vencidos do período das Invasões Napoleónicas, deu fé e

esperança de dias iguais ou melhores.

Foi por esses dias, que em casa de Leitões, com muitos reunidos e apenas uma

mulher, Francisca lembrou que Alvoco da Serra era a terra com mais pastores e

gado de toda a Serra e que só havia uma coisa que protegia os homens na Serra.

Essa coisa era o cão da Serra.

Os cães cheiravam a proximidade das alcateias, subindo às partes mais altas, da

mesma forma que os lobos alfa quando vão orar. Todos recordavam os conselhos

de Pina de Aragão e do Senhor Manuel Luís que fardara os seus homens para os

proteger.

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As armas eram poucas e os homens também, pelo menos, para a grandiosidade das

façanhas que “Pata-de-Lacrau” propunha.

“Patas-de-Lacrau” e “Lamparinas” eram irmãos gémeos, nascidos em Casal do

Rei e criados sem mãe, ao Deus dará. Rudes, mas inteligentes, souberam sempre

distinguir o bem do mal e assim pautaram a vida pelo caminho certo,

alcandorando-se em patrões sérios, calados e humildes, como eles eram.

“Patas-de-Lacrau” ganhou a alcunha quando pertenceu às milícias e defendeu as

propriedades do Douro. Era calado e quando batia, batia com tanta força que

nunca mais ninguém se atrevia a tocar-lhe ou fazer mal. Depois tornou-se

mercador e coitados daqueles salteadores que o atacaram, pois a façanha saía

sempre frustrada e ainda os perseguia, só descansando depois de uma valente sova,

daquelas que levam à cama ou ao hospital.

“Lamparinas” tinha uma atitude semelhante no Verão, mas com o sacho na mão a

perseguir cobras e cobrões, depois do Pero Negro, quando as ribeiras de Loriga se

tornam numa só. Escolheu ser agricultor e trabalhava de Sol a Sol e de noite

também. Com candeias a óleo ia para o topo dos montes fazer sinal aos mercadores

e também, tapando e destapando a chama e avisava-os de bandos de salteadores.

“Lamparinas” teve uma vida mais difícil que o “Patas-de-Lacrau” e por isso, tinha

mais mechas brancas no cabelo e usava barba e bigode.

Foi também o Zé da Teresa que, por aquela altura, juntamente com o “Influenza”,

arrebanhou todos os cães da Serra que encontrou. Calheiros, de Valezim,

emprestou o dinheiro para os cães, mas mesmo assim, todos puseram ainda

dinheiro seu para o efeito.

“Influenza” era de Seia e dedicava-se a fazer pequenos biscates e negócios para

sobreviver. Era fanhoso e um dia, um médico de Mangualde, ‘baptizou-o’ de

“Influenza” e a alcunha nunca mais o largou.

Juntaram-se cães suficientes, um por cada homem. E cada cão com uma coleira de

picos. As armas chegaram a Póvoa de Varzim, por mar e foram entregues ao

“Ronca”, ao Sebastião e “Patas-de-Lacrau” que juntamente com o “Lisboa”, o

“Sabanico”, o Quim da Aurora, as transportaram em mulas até à Serra. A roupa

dos cartagenos voltou a ser toda preta, como a dos ciganos viúvos, enquanto a dos

mercadores de Alvoco da Serra era castanha escura, por homenagem aos moços do

Senhor Manuel Luís.

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Depois, tratou-se do que parecia mais difícil, conseguir dinheiro para os cavalos.

“Patas-de-Lacrau” e o “Malha-Pão” não entravam, nem era bem vistos, no solar

de Calheiros e Sebastião e o Zé da Cabeça eram ‘miúdos’ para saberem negociar

bem, sem que os juros se tornassem incomportáveis. Assim e depois de muitas

falas, o “Ronca”, o Brito, o Monteiro e Teresa acompanharam o Zé da Cabeça ao

solar de Valezim.

Ao ver a cunhada, Calheiros não sabia como se comportar. Sentiu-se mesmo mal,

pois para ele era absurdo que a mulher tratasse com tanto desprezo a própria

irmã. Para Calheiros, a família era tudo e a pior ofensa que se podia fazer era à

família. Assim, o desconforto era enorme perante a cunhada. Tratar por estranha

alguém que lhe era tão próximo, chocava com tudo o que acreditava e com tudo o

que lhe tinham ensinado, os que mais amara.

Monteiro e “Ronca” falaram e disseram ao que iam, mas Calheiros estava nervoso,

acedeu a tudo e até se esqueceu de falar nos juros. A simples imagem de Teresa

resolvera tudo.

Nessa noite, em Valezim, Calheiros teve a pior das discussões do matrimónio,

passando a dormir separado de Maria que não mais vergou. Ver Teresa afastar-se

do portão da propriedade sem que antes lhe pudesse chamar “irmã”, revirou-lhe

as tripas. A crueldade do tratamento não era para ele. A partir desse dia passou a

tratar a esposa com a mesma deferência que tratava os estranhos. Maria

permaneceu gelada, como o canto mais sombrio da Serra, mas as criadas sentiam-

na chorar no escuro do quarto. Quando avisavam o patrão, Calheiros apenas dizia,

“Deixai estar. Os egoístas morrem sós!”

Duas semanas depois, mais uma dúzia de homens desceu a terras ribatejanas, para

que se comprassem cavalos. Durante todo esse tempo, Sebastião foi notando que o

Zé da Cabeça tratava os animais como bichos irmãos, no entanto, transmitia

também um nervosismo tremido que nunca lhe sentira.

O Zé evitava olhar nos olhos e inclinava a aba do chapéu de forma a esconder a

face. Deixou até crescer o bigode, para parecer mais velho e diferente. Queria

escolher depressa os animais e voltar para a Serra o quanto antes. Sebastião

desconfiava de tudo aquilo.

Um Sábado quente, daqueles que só Santarém conhece, Sebastião andou de camisa

desabotoada e a coisa correu mal, quando entrou numa taberna e dois militares de

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patente alta, lhe viram um escaravelho verde, num fio de ouro. Agarraram-no e

levaram-no para o quartel. Foi colocado numa cela. Horas depois, foi presente a

um oficial fardado que lhe perguntou o nome, a morada e a idade. Mais nada lhe

disse, até que um homem todo aperaltado entrou na sala. Olhou para Sebastião e

virou-se depois para o oficial fardado dizendo, “não é este o gatuno, meu sobrinho

bastardo”. E conforme apareceu, rapidamente partiu. Após isso, Sebastião foi

posto fora do quartel sem nenhuma explicação. Fez perguntas, mas de ninguém

recebeu respostas. No Domingo que se seguiu, encontrou o meu oficial numa rua e

voltou a perguntar. O oficial apenas lhe disse que procurava um José com um fio

igual e seguiu caminho.

Dois dias depois, já na Serra, entre Montes Hermínios, o Zé tomou banho de

‘inqueiro’ na ribeira de São Bento e Sebastião pode comprovar que o Zé tinha um

fio igual ao dele. Juntou todas as pontas dos momentos passados no Ribatejo e atou

tudo sem lhe encontrar fio-oco.

Olhou-o com olhos de ver, fixos e sem mexerem, largando o que atrapalhava a

garganta…

- Sabes que mais…

- O quê? Diz!

- Tu és o bandido que roubou um tio no Ribatejo.

O Zé olhou a berma da ribeira e procurou com os olhos o punhal e arma que

sempre o acompanhavam.

- Eu, quê?…

- Sim, tu és o bandido que roubou um tio no Ribatejo. Estive por horas preso, pois

julgaram que eu fosse vossemecê. Temos um fio igual ao pescoço…

- Não sei de que falas!

- Falo e tu sabes bem. Vi-te nervoso naquelas terras.

- Vais-me entregar às autoridades?

- Tudo depende da história que contares.

- É uma história velha que não merece ser contada.

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- Mas, eu quero que a contes!

- Em tempos pertenci a uma família rica. Tive tudo, excepto carinho. Um dia, o

meu avô morreu e deixou-me o que os filhos dele queriam, por isso trataram-me

mal e eu fugi.

- Mas não fugiste sem nada…

- Fugi com dois cavalos, prata, ouro e o fio que trago ao peito.

- Um fio igual ao meu e ao de vários. Com um escaravelho…

- Sim. Um fio igual ao teu e que foi do meu pai.

- E o teu pai? Tratou-te mal? Que é feito dele?

- Não sei se é vivo ou morto. Procurei saber tudo sobre ele, mas só fiquei a saber

que era de Cabeça e para esta Serra vim.

- E a tua mãe?

- Contaram-me que morreu após me ter.

- Bem… Fiquemos assim, pois os teus olhos não mentem. Só espero que não

tenhamos problemas por causa desse teu passado…

- Nada posso fazer. Apenas sei nunca fiz mal a ninguém.

A vida ia-se compondo. Sebastião não partilhou com ninguém aquela história. Zé

da Cabeça não era da Serra e pouco ou nada se sabia. Começavam-se a ouvir falar

em salteadores. A vida começava a ser menos segura e certa.

Em finais de Setembro, o “Malha-Pão” ofereceu ao “Bimbecas” e ao “Ronca” dois

punhais com cabo em osso e duas cruzes negras embutidas. Ficou “Bimbecas”

desde pequeno, porque deitava a língua de fora a todos e outras caretas fazia. O

“Roncas” era chamado assim, pois de noite, quando acompanhava a caravana de

mercadores, não deixava dormir ninguém. Ressonava.

O “Bimbecas” era filho do “Ronca” e acompanhava-o para todo o lado, até que

ambos foram surpreendidos por salteadores num vale da Serra. Num dia em que o

filho foi estudar para Coimbra, o pai foi atado, roubado e queimado vivo em cima

de um pedregulho. Ninguém o esqueceu e o pedregulho passou a ser conhecido

pelo ‘Lapão do Ronca’, porque lapas e lapões, são os granitos grandes e

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arredondados que sobressaem na Serra, como aquele que caracteriza a praia

fluvial de Loriga.

Esse fim macabro, magoou e entristeceu tudo e todos. O “Bimbecas” foi baptizado

em Gouveia e era afilhado do “Malha-Pão”. Os dias foram correndo e um dia, no

Fundão, o padrinho voltou a ver o punhal que dera ao compadre, na mão de um

fulano mal-encarado. A ira tomou-o. Espalhou a palavra pelos que conheceram o

“Ronca” e sonhavam vingança.

Os homens uniram-se e perseguiram dois homens apontados pelo “Malha-Pão”,

mas até hoje nunca mais ninguém soube deles.

Quanto ao “Bimbecas”, estudou em Coimbra, mas também teve má sorte. Ele e o

grupo de lentes, do qual fazia parte, foram assassinados perto de Condeixa, por

um grupo de estudantes liberais que integravam a associação secreta dos

Divodignos, quando em Março de 1828, se dirigiam para Lisboa a fim de felicitar

D. Miguel, em representação da Universidade.

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XIX– O exército da lã e os heróis do mar

Rinchau era filho de uma portuguesa e de um francês. Estudou na Universidade de

Paris. Sonhava ser arquitecto paisagista e construir jardins como o de Versailles,

mas o espírito de Liberdade fê-lo abandonar os estudos e engrossar as fileiras do

exército de Napoleão. Como falava bem português, foi feito espião. Conheceu a

cultura, os homens certos, as rotas e não hesitou em transmitir tudo aos franceses.

Precisamente a Loison, o ‘Maneta’. Esteve com ele na tomada da cidade da

Guarda e chegou à patente de major. Depois, com as Invasões, viu que a

Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade era só para os franceses. O exército

gaulês albergou todo o tipo de bandido e de mercenário, independentemente, na

nacionalidade, valendo tudo.

Assim, um dia, porque tudo lhe parecia cruel e destituído de sentido e porque se

apaixonou por uma portuguesa de Castelo Melhor, largou tudo e fugiu. Usou

nomes falsos, rapou o cabelo, mudou de terra várias vezes. Enfim, nunca mais foi o

mesmo.

Quando Warre falou do negócio da lã a Guimaraens, viu que a coisa era capaz de

morrer por ali. O velho e baixinho guarda-livros, viúvo, calvo, todos os dias

madrugava e controlava vigilante e rapozamente muitos dos armazém de Gaia,

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puxando arreganhado com as mãos a camisola de malha por baixo do casaco. Ele

sabia que uma coisa é que se pensa fazer e outra coisa é o que se pode fazer. Posto

isto, ouviu tudo e a tudo ia acenando um ‘não’ com a cabeça. Apesar de

empregado, a vontade dele era sempre a última, pois era ele que mexia no dinheiro

e era ele que vira crescer a família Warre por três gerações. A tudo disse não e

Warre pediu-lhe para elaborar um plano para retirar a família de Portugal e

vender tudo.

Depois de uma noite mal dormida, Guimaraens acedeu, mas impôs condições.

Lembrou o que se contava sobre o Cônsul Walter Maynard e as trinta e nove pipas

exportadas de vinho do Porto, antes da existência de qualquer empresa e do

Tratado de Methuen. Estavam apontadas trinta e nove, mas teriam sido muitas

mais. Guimaraens estipularia as regras, começando com uma contabilidade

paralela, de dois livros de escrita. Um dos livros seria para o vinho e o outro,

sempre escondido, seria para a lã. Os barcos, os marinheiros, os desembarques, os

mercadores, os moços, os caminhos, os compradores, tudo…teria de ter o seu aval

ou nada feito.

Warre acedeu a tudo, mas quase que se arrependeu, quando o guarda-livros lhe

apareceu com Rinchau. Como poderia ele aceitar um filho de uma senhora de

pouca virtude, sem ofensa para a mãe do referido, que era culpado por tanta

morte e que, depois tudo, ainda traíra a mão que o alimentou? Mas fê-lo,

desconfiando de cada frase, passo e olhar do francês.

Depois, os três foram a Vila do Conde, falar com o “Mosca”, parente do “Malha-

Pão” e que crescera nas Caxinas. A lã teria de entrar de noite, em Portugal. Poucos

o poderiam saber e só uma fogueira poderia ser feita, para que não desse nas

vistas. Escolheu-se a parte traseira da capela da Senhora da Guia para improvisar

um farol. Descobriram-se os nomes dos guardas vigias do forte e arranjou-se

maneira de os comprar. A margem de lucro reduziu, mas os hermínios cederam

em prescindir também de algum lucro.

As caravanas teriam cinquenta homens cada uma e seriam três. Cada caravana

seria constituída por brigadas. Cada brigada teria dez homens. Cada chefe de

brigada teria de saber ler e escrever. O padre Costa ensinou alguns, na Praça de

Loriga. Três homens iriam à frente para vigiar o caminho. Outros três homens

protegiam a traseira. Quatro homens seriam responsáveis pela mercadoria. Cada

brigada partiria com uma hora de diferença.

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A primeira caravana deveria estar em Cárceres, quando a segunda caravana

estivesse na Covilhã e a terceira estivesse a partir de Vila do Conde.

Guimaraens, com o apoio do “Malha-Pão” e do “Patas-de-Lacrau”, criou seis

caminhos diferentes para cada percurso, com mais três alternativos, mas só cinco

lugares eram locais obrigatórios de passagem: Vila do Conde, Loriga, Alvoco da

Serra, Covilhã e Cárceres. Os homens deveriam saber o menos possível, uns sobre

os outros. Cada brigada deveria ser constituída por homens da mesma terra,

sabendo-se à partida que era natural que Loriga, o Fundão e a Covilhã tivessem

mais brigadas, pois tinham mais mercadores, mas também havia um ou outro

homem do Minho e do Douro, entre as brigadas, pois esses conheciam melhor o

Norte e como sair dele em caso de aflição.

Chamou-se o “Bispo” que vivia, por essa altura, em Portalegre. O tempo passara

depressa, pois como dizia Benjamin Disraeli, a vida é demasiado curta para ser

pequena. Tornara-se pai de família e latifundiário. Matilde viu com tristeza a

partida do marido, mas sabia que a vida de mercador era única e que o cheiro da

lã é mais viciante que o tabaco ou o vinho.

Juntou-se o Paiva, de Monsanto, alcunhado de “Cara-de-Mofo”, que anos mais

tarde inventaria o queijo de Azeitão, com saudades da Serra da Estrela e do tão

saboroso queijo que os serranos criaram.

Depois, havia que resolver casos bicudos, como o do “Abrólio”. O “Abrólio” tinha

tudo para dar cabo do negócio, por isso, foi feito chefe de várias brigadas.

Controlaria o caminho entre Viseu e a Covilhã ou entre Gouveia e a Covilhã,

consoante a rota traçada para o mês. Não lhe diriam de onde vinham e para onde

iriam, mas fariam dele chefe da brigada. Dar-lhe-iam comissão, mas ele nunca se

aperceberia que a chefia era uma brincadeira. Não sabia ler e escrever, mas para o

efeito não era preciso. Ele ficaria inchado, ufano de orgulho e só diria o essencial.

Poderia até servir para enganar salteadores, espalhando boatos que julgava

verdadeiros. Deixá-lo de fora, seria cheque-mate no xadrez. Seria alinhavar mal ou

não coser a bainha da fazenda.

“Patas-de-Lacrau” chefiou uma caravana, Sebastião outra e finalmente, a última

sobrava para Rinchau, que passou a ser tratado por todos por “Major”,

desconhecendo todos que Rinchau tinha servido no exército de Napoleão. Poucos o

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sabiam e olhavam-no sempre com desconfiança, pois há feridas e mágoas que

ninguém esquece ou perdoa.

O “Malha-Pão” e o Senhor Manuel Luís, conjuntamente com Guimaraens

traçaram tudo, até os lugares onde dormir e uma ou outra casa-de-pasto onde

poderiam comer. Mas todos deveriam evitar as populações e mostrarem-se o

menos possível. Deveriam viajar pela noite e de dia, revezarem-se a descansar.

Encontrar sítios escondidos, abrigados, mas de onde fosse possível sair com

facilidade em caso de perigo.

Durante esse tempo, que foi longo, a vida não foi fácil e vários moços

abandonaram as caravanas e ficaram-se por Vila do Conde, onde casaram,

criaram raízes e abraçaram a vida dura do mar. Por sua vez, os que achavam a

vida ruim no mar, abraçaram a vida aventureira das caravanas. Chegaram a

constituir família na Serra, em Loriga e Unhais da Serra, Paúl e até a serem dos

primeiros tecelões da segunda metade do Século XIX, na Covilhã e em Portalegre.

A vida era dura e perigosa dos dois lados, na Serra e no mar, mas trocando dava

esperança a uns e a outros. Muitos o fizeram.

Cada chefe de brigada tinha a seu cargo também as refeições, para lá de guiá-los.

Cada chefe de brigada tinha um caldeiro em cobre, onde fazia as refeições.

Quando o 1º Barão de São Domingos, depois 1º Barão de Alvoco da Serra, atingiu

a maioridade, o pai perguntou-lhe o que queria de prenda e ele apenas quis o

caldeiro do pai. Subiu muitas vezes à Serra com o caldeiro e com ele fez refeições

na companhia de pastores e mercadores. Nunca esqueceu as suas origens e tinha

sempre em sua casa, uma lareira acesa, uma refeição quente e vários quartos

disponíveis para mercadores que passassem por Alvoco da Serra.

Antes, entre e mesmo depois dos anos oitenta e tantos ou noventa e muitos do

Século XIX, o Senhor Barão sentia-se em dívida para com o pai e com todos os que

fizeram parte de caravanas, sabendo bem os sacrifícios que fizeram.

Mas em 1821, ainda o 1º Barão de Alvoco da Serra não sonhava nascer e o ano foi

gasto a organizar o plano, as rotas, os homens e os meios. Nesse ano, Francisca teve

vários desmanchos. Laurinda fez vários preparos, mas dizia que talvez fosse da

qualidade do sangue. Francisca descendia de uma família em que muitos eram

parentes entre si, para que o dinheiro não saísse da família, da mesma classe social

e outros costumes. De cada vez que Francisca engravidava, Sebastião ia a Melo, no

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sopé da Serra, pedir ao Senhor Bispo da Guarda e de Pinhel que baptizasse a

criança e fosse seu padrinho. D. Mendonça Arrais dizia que sim e sempre esperou

ser padrinho de um dos filhos de Sebastião, mas não viveu o suficiente para tanto.

Mas o essencial era vender lã e proteger as quintas dos ingleses do Douro, por isso,

as brigadas descansavam no Douro entre idas e vindas das caravanas,

obrigatoriamente vigiando os vinhedos e o rio, por uma a duas semanas, cada

brigada. Foi esse mesmo tipo de gente que assegurou e salvou a Ferreirinha,

quando anos depois, o neto do Marquês de Pombal e futuro Duque de Saldanha

sonhou casar o filho com a filha dessa lenda do vinho do Porto e a dita Senhora

fugiu com a filha para Inglaterra. Muito tempo depois do Combate de Pernes.

Sebastião ficou a saber que ia ser pai, pelo sogro, no cruzamento das Pedras

Lavradas, no mesmo dia em que com tanta felicidade, encomendou umas luvas

tricotadas à “Cardosa” para oferecer ao “Abrólio”. Mas a alegria tornava-se

pesadelo e tristeza, quando sabia que Francisca perdera muito sangue. Laurinda e

a “Cardosa” de tudo faziam nesse tempo, para que tudo fizesse bem, ora afastando

a arruda para que ninguém a misturasse, por maldade na comida da rapariga, ora

plantando-a em vaso e trazendo-a para a beira da Francisca, para que afastasse os

maus-olhados.

Quando a primeira brigada de cartagenos, da caravana de Sebastião, chegou a

Cárceres, um espanhol endinheirado impressionado com o feito dos loriguenses e

sabendo que se denominavam de cartagenos, ofereceu-lhes as imagens dos quatro

santos cartagineros, Isidro, Fulgêncio, Leandro e Florentina, que hoje talvez façam

parte do espólio do museu de Arte Sacra de Alvoco da Serra ou das imagens

protegidas e guardadas pela Irmandade do Santíssimo Sacramento e das Almas de

Loriga … ou se tenham perdido.

Do lado da Covilhã, de trás-de-Serra, foram muitos os voluntários que em segredo

ingressaram nas brigadas, graças ao papel fundamental do “Arranca-Muros” e

fama granjeada nas Invasões Napoleónicas, que os escolhia a olho e ao pormenor.

Lembravam-se como a Covilhã tinha sido valente e destemida sempre que

ameaçada por franceses. Era essencial fazê-la crescer e a lã podia dar novo folgo à

vila, bem como a sua ligação a Portalegre e a Cárceres.

Seia, por seu turno, sonhava ser ponto de passagem para vários caminhos e mesmo

que nada nela se criasse para lá da agricultura e um ou outro afazer, tinha a

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geografia perfeita para ser tudo o que fosse de grande e a sua esperta gente saberia

de cuidar de si e de tudo tirar o melhor proveito. Tinham capacidade suficiente

para isso e muito mais.

O mesmo se passava com Manteigas, Gouveia e outras terras do alto e do sopé da

Serra. Via-se mais lã. Sentia-se mais movimento. Sonhava-se com trabalho.

Ganhava-se esperança em dias melhores.

Inicialmente, perderam-se várias cargas no mar pois, os marinheiros temendo

algumas tempestades, tentavam a todo o custo salvar a vida e só atiravam a carga

ao mar, quando já nada restava de esperança. Muitas vezes se morreu em silêncio

nas águas de Vila do Conde e todas as famílias das Caxinas têm dores caladas de

vidas ceifadas que o mar engoliu. O mar tornou todos mais chegados e unidos e é a

saudade só nossa que os faz ficar ali. Qualquer português tem o coração na terra e

a alma no mar, talvez por isso Cabral tenha nascido em Belmonte e um dia partido

ou talvez porque era filho da Serra e quem vê o mundo do topo, sabe que o limite

perde-se para lá do horizonte.

Em 1821, a Inquisição acabou em Portugal e D. João VI, o Clemente, regressou.

Jurou fidelidade a uma Constituição que não conhecia, tentando salvaguardar um

trono de um país que não o amava e o achava culpado de muitos males que

tocavam a pátria. O Brasil, por seu turno, era um país novo que crescia vários

metros por cada dia e que via em cada membro da Corte, um parasita.

Antes, na véspera de Natal de 1820, sob um frio que cortava e um mar que gelava,

numa noite que ninguém sonhava sair à rua, chegaram à Praia dos Ladrões, em

Arnosa de Pampelido, no limite das freguesias de Lavra e Perafita, com os nomes

de código “Bandarra” e “Túrdulo”, respectivamente Eduardo, neto de Tomé

Simão e Luís de Mendonça Arrais, sobrinho do Bispo da Guarda e de Pinhel.

Muito se havia passado com os dois, por terras do Brasil. Eduardo deixou para

trás o irmão gémeo, Augusto, que sucedeu por vontade de ambos ao avô, nos

negócios. Deixou-lhe também a ele e à esposa, uma filha que tivera de uma

portuguesa chamada Urbana, que falecera de parto, enquanto Eduardo, Augusto e

Luís combatiam sob as ordens de Bento Manuel Ribeiro, na Batalha de Arroyo

Grande, nas margens do Rio Negro. Tinham lutado lá com a mesma valentia com

que lutaram em Santa Ana, Carumbé , Chapicuy e Tacuarembó. A vida tinha-os

envelhecido e martirizado, mas não desistiam de sonhar com um Mundo novo,

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onde o mérito fosse a razão dos privilégios. Falavam o necessário. Tinham sido

marcados pelo tempo e pela história. Eduardo estava decidido a voltar. Claro que

Portugal cabia num canto do Rio de Janeiro, mas podia ser uma vida nova, mais

calma.

Sebastião esperou-os na praia. Algumas cartas tinham sido trocadas com o

padrinho e pelo padrinho esperava ao vento e à chuva, naquela noite escura.

Outros homens lá estavam. Notavam-se pela qualidade das roupas e a

desconfiança dos olhares. Esperavam também por eles.

Sebastião, Zé da Cabeça e outros preparam-se para o pior e até morrer na praia.

Depois três botes tocaram a areia e desembarcaram vários homens, entre eles,

Eduardo e Luís. O atraso tinha sido de três horas, atendendo ao combinado. As

mãos estavam geladas. O sal do mar parecia entranhar-se nos joelhos. Tinham as

armas escondidas, mas o dedo no gatilho. Os que os esperavam, aproximaram-se e

um dos que pisou a areia perguntou ao homem que se chegou à frente,

- O teu pai vive entre duas colunas e tu és cavaleiro da espada?

- Sim!... Usa luvas brancas e tem cabeça de águia bicéfala! E tu que trazes?

- Trago azeite!

Abraçaram-se todos, trataram-se por irmãos e dali partiram para o Porto.

Sebastião viu o padrinho por poucos minutos e só o voltaria a rever depois do

famoso desembarque do Mindelo. Achou toda aquela conversa estranha e confusa,

mas confiava no padrinho, nos seus valores e o bem que queria a todos.

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XX– Vintistas

A 26 de Janeiro de 1821, as Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da

Nação Portuguesa, escolhidas em eleições por sufrágio indirecto reúnem, tendo

como prioridade a criação da 1ª Constituição portuguesa, consolidando o

movimento liberal de 1820.

Em Fevereiro, D. João VI, sem saber do teor do documento, jurou-lhe fidelidade e

apesar de toda a polémica, tão comum à sua corte, decidiu voltar a Portugal.

A 20 de Março de 1821, um decreto liberal suprimia e abolia os “direitos banais”,

que mais não eram do que tributos e imposições que remontavam ao período

senhorial e que agora permitiriam o acesso ao povo dos meios de produção,

essencialmente a terra. Extinguiu-se o Tribunal do Santo Ofício e Fernandes

Tomás e Ferreira Borges citaram várias vezes Cristo, berrando aqui e acolá, a

quem os ouviu, “ A Deus o que é de Deus e a César o que é de César!”

Nasceu o Banco de Lisboa, que fundir-se-á em 1846 com a Companhia Confiança

Nacional, dando origem ao Banco de Portugal.

A 5 de Maio do mesmo ano, surgiu o decreto da ira católica, o Estado

desmantelava corporações laicas e religiosas, obrigando a nacionalização dos bens

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pela Fazenda Nacional e depois a sua venda em hasta pública, para a domínio

privado.

Coincidência ou talvez não, muitos dos bens religiosos foram comprados por vários

deputados das Cortes, por valores irrisórios. Na consequência de várias mudanças

de relacionamento entre o Estado e a Igreja, com o encerramento de todos os

conventos de Portugal, em 1834, nasceriam os famosos pastéis de Belém, em 1837.

Em 4 de Julho de 1821, a família real e 4000 pessoas regressaram a Lisboa,

desembarcando na Praça do Comércio. O rei foi literalmente ‘raptado’ e levado

para o Convento das Necessidades onde novamente jurou ser fiel à Constituição.

Nascia assim a monarquia constitucional.

Entre os regressados, estava Luís de Mendonça Arrais que, meses antes, voltou ao

Brasil para trazer a filha de Eduardo, Maria dos Anjos.

Por esses dias, Soares Franco seria o pai da liberdade de imprensa e da abolição da

censura, legislando e vendo a sua lei aprovada pelas cortes vintistas.

Portugal crescia em esperança, por um lado e por outro, muitos julgavam ser o fim

do Mundo, pois em muitos lugares, Nosso Senhor e a sua Santa Cruz tinham sido

retirados, vendidos e até queimados.

1821 foi também o ano em que se iniciou a aplicação da máquina a vapor na

navegação do Tejo. Assim, chegou a Portugal a Revolução Industrial que começara

em 1698, em Staffordshire, com Thomas Newcomen. Apesar disso, só mais tarde

com Mouzinho da Silveira seriam dados avanços visíveis. Em 1823, efectuou-se a

ligação por ’vapor’ entre Lisboa e Porto, mas uma estrada de ligação digna desse

nome, entre as duas principais cidades portuguesas só foi completada no final do

Século XX.

Entretanto e entre 1816 e 1820, deu-se a integração do território brasileiro da

banda oriental do Uruguai, permitindo a navegação pela bacia do rio da Prata e o

acesso fácil à província de Mato Grosso. Esse território foi integrado no Reino

Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1821, com o nome de Província

Cisplatina, mas em 1828 declarou a independência denominando-se República

Oriental do Uruguai.

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Ainda nesse ano de 1821, João Leitão da Silva, posteriormente João Batista da

Silva Leitão e finalmente conhecido por João Batista da Silva Leitão de Almeida

Garrett, publicou “Retrato de Vénus”.

O Entrudo de 1821 era bem diferente do que é agora o Carnaval.

O Entrudo era um boneco de dimensões grandes que cada terra fazia e que

desfilava antes do grande período de abstinência e jejum da Quaresma, numa festa

que todos diziam “adeus à carne” ou em latim, "carnis levale".

Na Serra, faziam-se mais do que um Entrudo por aldeia e vila e que eram depois

queimados à meia-noite de Terça-Feira. Na Guarda julgava-se e queimava-se o

galo. Depois o povo reunia-se e cozinhava uma saborosa canja de galinha,

partilhada por todos, independentemente do frio que fizesse. Felizmente, essa tão

velha tradição ainda se mantém.

Coincidiam com algumas partidas, como roubar ou esconder milho, coser roupa de

vizinhos que se encontrava a secar, trocar vasos… e que mais a Norte, se

caracterizava pelos diabólicos e recalcitrantes Caretos.

Cento e poucos anos depois, em 1944, também numa Terça-Feira de Carnaval, em

que o meu tio Eduardo foi pai, caiu na Penha do Gato, um avião Hudson EW 906

da Royal Air Force, com seis militares a bordo. Sem sobreviventes, a população de

Loriga sepultou-os no cemitério novo e trata-os com o respeito e o carinho como

trata os seus.

Enquanto Marx iria descrever como uma terrível Revolução Burguesa, a brigada

do Zé da Cabeça, procurando clientes em Lisboa, maravilhava-se, de queixo caído,

com o barco a vapor.

Até ao Natal tudo correu bem para as caravanas, apesar de terem sido anos de

muito frio e chuva. As pessoas estavam esperançadas num certo regresso ao

passado de glória, que muitos não tinham vivido, mas que ouviam contar aos mais

velhos e aos avós.

O regresso do rei e o fim da inquisição, aliados a progressos tecnológicos criaram

confiança. O povo sentia agora que tinha uma cabeça reinante e não várias cabeças

a pensarem ao mesmo tempo e nem sempre da melhor forma.

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A Igreja, o cardeal e os bispos passaram para um plano secundário, mas o mesmo

não acontecia com a ascendente burguesia, que passara do balcão da tasca ou da

mercearia para a Universidade de Coimbra, de onde os seus filhos saíram com

ideias novas e a quererem a mesma justiça que assistia à nobreza e aos padres.

O dinheiro começou a ser mais e a rudimentar indústria dos lanifícios cresceu de

forma visível, principalmente em Alvoco da Serra, na Covilhã e em Portalegre.

Em 1822, embora debruçando-se apenas sobre as terras cujos direitos estavam

regulamentados por carta foral, uma grande mudança legislativa na agricultura

sobre a lei dos foros reduziu para metade as rações e para a quarentena os

laudémios.

Laudémio era uma antiga pensão ou prémio no acto da venda que o enfiteuta

pagava ao senhorio e que mais tarde passou a estar integrada no foro.

Essa mudança ocorrida por decreto regulamentar, a 3 de Junho de 1822,

integrava-se num ambicioso plano de modernização da agricultura, libertando a

terra de excessivas cargas tributárias que ascendiam ao regime agrícola senhorial e

que veio ao encontro das aspirações dos camponeses. Hoje em dia, o Estado faz o

inverso.

Embora o clima fosse bastante frio, durante a década de vinte do Século XIX, a

ambição política de uns e a indefinição política de outros, conduziu a acérrimas

lutas internas entre uma burguesia que tinha ascendido e uma nobreza que fugira

e que agora chegada reclamava o que deixara para trás, nomeadamente, terras,

direitos e privilégios.

Empoleirada pelo regresso do monarca e dotada de um espírito sebastianista

pateta, a corte constituída por muitos que desconheciam de todo o que se passava

para lá da ponta de Sagres ou do cabo da Roca, exigiram e impuseram, ainda que

só por palavras em papel, medidas extemporâneas e desastrosas sobre uma

realidade que ignoravam e decretaram o retrocesso à condição de simples colónia,

o vasto território do Brasil.

Desde que Pero de Góis, ao desembarcar na barra de Icapara, em Iguape, foi

recebido sob o fogo de artilharia, que os colonos brasileiros ambicionavam a

independência, mas naturalmente que a mesma ambição cresceu

significativamente lá em Sete Povos, com a Guerra Guaranítica, de 1751 a 1758,

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em que espanhóis e portugueses, estes apoiados pelos ingleses, entraram em

conflito com os índios guaranis catequizados pelos jesuítas, e inspiraram o filme “A

Missão”, de Roland Joffé.

Depois, com Filipe dos Santos Freire, os irmãos Beckman, o famoso “Tira-Dentes”

e a marcante "Revolta dos Alfaiates" conjugados com mil histórias sobre a vida

devassa da corte consolidou-se o sentimento nacional e patriótico de aversão a tudo

o que fosse português. Para além disso, muitos dos que emigravam não guardaram

boas memórias de Portugal, porque tinham vivido pior ou porque apesar de terem

conseguido habilitações literárias para singrarem na vida, depressa perceberam

que valia mais a cunha, o apelido ou até o poder da igreja do que o mérito.

Foram aliás portugueses de segunda e terceira geração, que já não se identificando

em nada com a terra lusa, inventaram as primeiras piadas e anedotas sobre os

portugueses.

Claro que traumatizado pela morte de um varão, da qual culpabilizava o próprio

pai, aliado a todo um espírito liberal autonomista que deambulava por toda a

América Latina e o sentimento de humilhação, sabendo que tinham sido a salvação

da coroa, o príncipe D. Pedro de Alcântara, como príncipe-regente viu-se entalado

entre os que consideravam D. João e toda a corte como uma chusma de cobardes e

traidores ao Brasil e a corte da metrópole que lhe retirava o poder e lhe impunha o

regresso.

Assim e segundo alguma fantasia pelo meio, D. Pedro declarou nas margens do rio

Ipiranga a independência gritante do Brasil. Uma revolta agridoce e familiar se

lembrarmo-nos que também Portugal nasceu de uma zanga de um filho com uma

mãe.

A guerra da independência não durou demasiado tempo e só foi sustentada por

Portugal graças ao esforço do resto das colónias lusas, pois Portugal continental

estava bastante pobre e devastado. Pelo meio, encontraríamos episódios de

lealdade, coragem ou alguma irrealidade em homens como o general Jorge Avillez,

José Bonifácio, Gonçalves Ledo e outros mais. Mas, como escreveu Richelieu, “a

traição é uma questão de datas”. Se ganharmos, somos heróis e se perdermos,

somos traidores.

Quanto ao famoso quadro de Pedro Américo, por mais belo e entusiasmante que

seja, trata-se de pura imaginação e embora o dia 7 de Setembro seja o dia oficial,

na realidade, a independência do Brasil ocorreu no dia 12 de Outubro de 1822.

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Qualquer guerra faz encarecer e escassear os bens. Aconteceu também com a lã. A

lã escasseou, mas continuou a chegar muita lã a Portugal, através de Warre,

transportada e negociada pelos mercadores da Serra da Estrela. Em menos de

cinco ou seis anos, os mercadores tornaram-se, no meio de muito sacrifício, perigo

e esforço, gente rica que não podia mostrar sinais de riqueza, sob pena de ser alvo

de roubo, assassinato ou simples inveja, num país devassado e abandonado por

todos.

Por esses dias, Laurinda juntou-se a um mercador do Fundão, viúvo e pai de sete

filhos, todos miúdos, ranhosos e malcriados. Passou a viver no Outeiro da Vinha,

mas a distância não era limite à vontade. Andava, como tantas e tantas mulheres

da Serra, quilómetros para chegar a qualquer local, nem que isso significasse ficar

menos de meia hora nesse sítio. Acho que parte da valentia que hoje sobra na

Serra, ainda é fruto genético dessa gente antiga, esforçada, sacrificada e que não

conhecia limites.

Entre 1821 e 1825, data em que Portugal reconheceu a independência do Brasil, os

mercadores de lã fizeram mais de cem viagens entre Vila do Conde e Cárceres, de

forma encoberta. Os homens dormiam uma noite em casa e partiam logo pela

manhã, podendo chegar a estar um mês sem voltar à mesma cama. Dormindo de

dia, escondidos e viajando de noite.

Quando a 1 de Outubro de 1822, o rei jura a Constituição, a rainha nega-se a fazer

o mesmo, tendo do seu lado o então poderoso Cardeal D. Carlos da Cunha e

Menezes, discípulo de D. Mendonça de Arrais, mas se para muitos isso era de

somenos importância, para outros, tal acto foi visto como um sinal de esperança e

de salvação de uma velha concepção do Mundo e das realidades circundantes.

Algum desses, que combinaram, ainda que amadoramente, uma conspiração de

realistas para dissolver as cortes liberais e implantar o regime absolutista, numa

velha tipografia da rua Formosa de Lisboa, foram presos no mesmo dia em que D.

Pedro foi coroado Imperador do Brasil. Visavam substituir o rei pelo infante D.

Miguel e tinham uma lista de vintista a abater.

Grande parte do país e em particular, os grandes proprietários de terras, via no

regresso do rei e na importância da corte “burguesa”, um enorme perigo para o

país, nomeadamente para eles. Igualmente, assustava-os a máquina a vapor.

Falavam no fim do Mundo. Era pecado viajar em barcos a vapor, pois provocavam

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o desemprego e o fim das famílias. Era uma coisa que os ingleses e os brasileiros

desenvolviam para o macabro fim de Portugal.

A qualquer mercador que chegasse a uma terra era-lhe perguntado se estava por

Portugal, pelo rei ou pela rainha. Ao contrário da maioria da igreja de Portugal,

alguns, como o padre Costa de Loriga, estavam pelos liberais. Loriga era uma ilha

de Absolutismo na Serra da Estrela e por isso, esse período foi bem conturbado

com o reverendíssimo reitor.

A missa começava bem, mas logo que o padre deixava de se regrar pelas leituras e

começava a tecer considerações, o povo calado começava no silêncio a bater com os

tamancos, socas e tudo o que servisse para fazer barulho e interromper o padre. O

padre começava por falar mais alto, até que dizia “Esta casa é de Deus e

vossemecês não a sabem respeitar! Ponham-se na rua!” E os paroquianos lá saiam

da igreja de Santa Maria Maior de Loriga.

Uns iam zangados com o padre. Outros pediam a sua substituição e outros vinham

de lá a fazer pouco do padre Costa e das suas ideias liberais. O padre corria com

todos e chegava a ir até à soleira das portas da igreja para confirmar de que não

tinha ficado ninguém. Foi um período bastante tenso. A população estava do lado

de D. Carlos da Cunha e Menezes que conhecia bem e do qual guardavam boas

memórias e nunca gostaram muito que o padre Costa os tivesse abandonado para

integrar as milícias.

Diziam que não era algo próprio de padre. Só perdoavam tal coisa ao Senhor Bispo

da Guarda e de Pinhel, pelo facto de ter sido um valente militar.

D. Mendonça Arrais morreu sozinho no seu paço em Melo, em 1823. Deixou

muitos órfãos e todos o admiravam. Dividia com todos o que tinha e escondeu, no

final da vida, muita fome, para matar a fome a outros. Nunca ninguém uniu tanta

gente como D. Mendonça Arrais e quando morreu, muito do seu tempo e das

concepções do Mundo, morreram com ele também.

O reverendíssimo padre de Seia, Quelhas Bigotte, foi o único no Século XX que

não se esqueceu de lembrar a grandeza e a lenda que foi D. Mendonça Arrais.

Pena é que a Serra da Estrela e o distrito da Guarda, para lá do nome de ruas, se

tenha esquecido de tão grande personagem, mas a Serra da Estrela é demasiado

grande para se lembrar de todos os que a fizeram grande.

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XXI – Pesadelos que acordaram

‘Tique-Taque’ tinha jeito para ser cão, melhor do que outros cães. O nome devia-o

ao relógio de bolso que Vicente Calheiros ofereceu ao Zé da Cabeça, por este lhe

ter feito um favor. O relógio não tinha marca, mas funcionava excelentemente e só

parou de trabalhar em 1865, quando assaltado por salteadores, uma bala perdida

furou o relógio. Nessa altura ou pouco tempo mais tarde, o Garrett de Unhais da

Serra ofereceu um Zenith ao Zé da Cabeça, mas já não era a mesma coisa, faltava-

lhe história. Depois, um dia, o segundo guarda-livros da fábrica de lanifícios da

Redondinha, em Loriga, fez um pequeno favor ao Zé da Cabeça e este deu-lhe o

Zenith. O guarda-livros deu-o ao filho mais velho e este ao neto mais velho. Esse

Zenith ainda trabalha.

‘Tique-Taque’ era um excelente cão da Serra, sempre vigilante. Nisso, o Zé da

Cabeça teve mais sorte do que o Sebastião. ‘Montanelas’ era o nome do cão de

Sebastião, que como o próprio nome diz, não era animal muito sério, digno de

respeito ou dedicado ao seu dono, mas o dono divertia-se muito com ele.

Em Outubro de 1822, um grupo de capitalistas, industriais, comerciantes e

intelectuais fundaram a Sociedade Promotora da Indústria Nacional, tentando

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chamar a atenção para uma nova realidade, mas a corte vintista andava mais

interessada em dividir os bens da Igreja e em consolidar a riqueza rápida e recente

de alguns deputados.

Para Guimaraens, homem vivido e atento, o país preparava-se para coisa pior, pois

ouvia de muita gente o descontentamento. Sentia a muitos uma vontade de revolta,

que começava no pobre povo descalço, passava pelos militares e acabava no

púlpito de muitas igrejas. Sentia-se essa vontade em todas as classes e via-se gente,

que pouco ou nada fizera do que tomar um partido, mais rica do que nunca.

Foi nessa altura também, que uma família inglesa com pouco jeito para os negócios

do vinho, fundou talvez a primeira loja de decoração de Portugal e deu origem a

uma palavra que só existe em Portugal, “maple”, que lemos como “meiple”.

Os Maple meteram-se em vários negócios, sendo que nenhum singrou. O patriarca

da família tinha muitas ideias e já se sabe que animal que puxa várias carroças,

alguma fica para trás. No caso dos Maple ficaram todas as carroças para trás e

eles acabaram por regressar a Inglaterra.

Era boa gente, mas faziam contas na palma da mão e fiavam muito, por isso

faliram várias vezes. No entanto, um dos seus negócios foi muito notado, pois

importaram os primeiros cadeirões e sofás estofados. Ter em casa um cadeirão

estufado era sinal de riqueza, fineza e história familiar, aliada à modernidade do

século.

Os tais móveis eram importados de Inglaterra e havia uma lista enorme de espera,

da qual constavam o rei, duques, condes, marqueses, viscondes, industriais e

outros tais. Quando se recebia uma visita em casa, mostrava-se logo o “maple”,

com mais velocidade do que agora se exibe a “Bimbi”.

Também por essa altura, um industrial italiano de nome Cimbali vendeu a

primeira máquina de café, em Portugal e exactamente no Porto, de onde surgiu o

“cimbalino” para se juntar a outras palavras e expressões que são típicas do Porto,

mas que também de lá saíram. São palavras como aguça, em vez de afia, estrugido

em vez de refugado, sertã em vez de frigideira, sameira em vez de carica ou “à

minha beira” para substituir “ao pé de mim”.

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Voltando ao que interessa, foi o ‘Tique-Taque’ que deu sinal à brigada do Zé da

Cabeça, na manhã de 23 de Fevereiro de 1823. As brigadas e as caravanas de

mercadores comportavam-se da mesma forma como as alcateias se deslocam.

As alcateias de lobos levam à frente os mais fracos seguidos por lobos fortes, no

meio vão as fêmeas que são seguidas por outro grupo de lobos fortes e por fim o

lobo alfa que vigia a retaguarda. A alcateia nunca avança sem que o lobo alfa vá

sozinho, umas horas antes, reconhecer o caminho. Assim acontecia com as

caravanas, que colocavam a lã no lugar ocupado pelas fêmeas na caminhada das

alcateias e guardada pelos mercadores mais valentes. Os chefes das brigadas e o

chefe da caravana combinavam semanalmente assobios diferentes que serviam de

comunicação à distância.

Nos anos seguintes, em que as caravanas começaram a ser assaltadas por bandos

de salteadores, o chefe da caravana ‘apalpava’ as povoações pelas quais iriam

passar, para saber da existência de salteadores e da geografia, em caso de fuga.

Tentava arranjar amizade com pessoas da terra e nos sítios mais difíceis trocava

tecidos e peças de lã pelo sossego dos salteadores. Por vezes, essa paz ‘podre’ com

os salteadores era impossível de fazer e portanto, os mercadores agiam da mesma

forma como as alcateias agem ao atacarem rebanhos, enviando uns tantos à frente

como isco dos bandidos para que outros pudessem passar com a lã.

Naquela época, mais do que agora, um gesto tinha um papel essencial, que podia

significar, estar vivo ou ir desta para pior… o aperto de mão ou passou-bem. Tal

gesto era a primeira coisa a fazer entre dois homens montados, como um gesto de

boa vontade para com o estranho que viam. Um dos homens estendia a mão vazia,

para demostrar ao outro que não segurava nenhuma arma e que desejava uma

conversa e um relacionamento pacífico. Esse gesto ainda tem o mesmo peso

significativo entre colegas de vários corpos de polícia.

Na manhã de 23 de Fevereiro de 1823, chovia valentemente e o frio acompanhava a

diversão da água que caía.

A brigada do Zé da Cabeça estava perto de Rebordões e junto a uma das margens

do rio Ave. ‘Tique-Taque’ tinha ficado com a brigada e guardava com outros cães

a lã. O Zé da Cabeça, como chefe da Brigada estava distante da mesma. Tinha ido

apalpar terreno e ver se não existiam perigos. Estava em Ancide quando o cão

começou a ladrar ferozmente e os homens pegaram nas armas, mas de pouco lhes

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61

serviu, pois depressa se viram cercados por muitos militares armados e muitos

deles a cavalo. O ‘Tique-Taque’ fugiu e correu buscando o rasto do dono.

De entre o exército, um homem sobressaiu do meio de todos, aloirado de cara

comprida e de olhos claros, embrulhado numa capa preta que deixava espreitar

uma farda cheia de medalhas. Depressa souberam tratar-se do Conde de

Amarante, o general Manuel da Silveira que anos antes tinha sido um dos que

resistiram aos franceses, naquele valente forte até onde Portugal estica a alma,

Almeida.

A brigada de mercadores poderia dar sinal a outros sobre a passagem daquelas

tropas e colocar em perigo o plano do general, que era de erigir uma revolução que

acabasse com as reformas liberais, colocando D. Miguel no trono de Portugal.

O Zé da Cabeça encontrou-se com o cão, meia hora depois. Depois, procurou a

brigada da frente, que tinha acabado de desmontar em Vila do Conde e na altura

procurava descansar um pouco.

Tinham passado dois dias sob uma chuva que não parava e o frio entranhava, mas

era preciso salvar os homens do perigo que os ameaçava e todos montaram

rapidamente para os auxiliar.

O chefe dessa outra brigada era o Lemos, homem de Mortágua, com quem todos

de vez em quando brincavam, lembrando-lhe a morte do Juiz de Fora, em tempos

remotos assassinado pelo povo de Mortágua.

Quando o queriam provocar, diziam-lhe, “Ó Lemos, quem matou o juiz?”. E o

Lemos como filho de boa gente que se sente, pegava num pau ou num calhau e

fazia-se respeitar. Quanto à história do juiz, reza a lenda relatada pelo poeta

Tomás da Fonseca, que por volta de 1365, um Juiz de Fora, chamado João Menga

era dado à parcialidade e aos abusos no exercício do poder de juiz, que tal teriam

levado os vizinhos de Mortágua a fazer justiça com as próprias mãos e quando

inquiridos sobre quem praticara o crime, responderam em uníssono, “Mortágua!”.

Naquele tempo, Os fidalgos da terra, que podiam caçar à vontade, por toda a

parte, invadir as terras municipais, eram os privilegiados, mas também o Clero

podia lançar as derramas que julgasse necessárias e, quanto à côngrua, o pároco

podia confiscar os bens àquele que a não pagasse. Choveram vários casos de

reclamações de populares não atendidas, de espoliações de bens perante a

Page 62: A promessa - Parte II

62

passividade ou parcialidade do juiz, de muitas condenações a trabalho gratuito nas

terras dos nobres, à mínima falta.

As injustiças foram sendo narradas em crescendo ao juiz que nada fazia em favor

do povo e da gente que trabalhava, até que uma sentença desproporcionada, de

condenação a dois anos de prisão e confisco de um terço dos bens de um pequeno

proprietário, por ter espancado uma matilha de cães de um fidalgo que lhe tinha

invadido as hortas e ferido um deles numa pata que gangrenou, de que resultou a

morte do animal, acendeu o rastilho da conspiração que cresceu e esticou a todas

as aldeias do termo de Mortágua, acabando no assassinato do mencionado juiz.

A lenda do Juiz de Fora, foi sempre motivo de conflitos e vitupérios entre os

habitantes de Mortágua e os de fora, sendo que já nos finais do Século XIX e

durante todo o Século XX, das janelas do comboio ou quando a ocasião se

proporcionava, os que passavam por Mortágua e provocatoriamente

perguntavam, “quem matou o juiz?”, obtinham normalmente como resposta, “foi

o teu pai com os cornos”, acompanhado do lançamento de tudo o que tivessem à

mão. Hoje tais ditos e história são considerados património cultural e imaterial de

Mortágua. No início dos anos noventa foi pela primeira vez dramatizada e levada à

cena, tendo como protagonistas centena e meia de mortaguenses. Mas voltemos ao

passado…

Enquanto o Zé da Cabeça convenceu os homens da brigado do Lemos a voltarem

para trás, pediu ao Lemos para que este fosse solicitar ajuda e socorro ao exército.

Quando este relatou que algo de estranho se passava com os mercadores da Serra

da Estrela, ao soldado que estava à porta do Forte, logo este o levou ao encontro do

general Luís do Rego, de passagem por ali e que anos antes derrotara uma

insurreição republicana federalista em Pernambuco, conhecida por Revolução

Pernambucana, tendo sido depois governador desse território ultramarino e que

achou tudo muito estranho e preocupante, mas que esperou por mais elementos.

A brigada do Lemos, comandada pelo Zé da Cabeça era bem mais fraca do que a

sua brigada e ao desmontar foi cercada por homens do Conde de Amarante,

levando esses mercadores ao general.

O general desenhava planos e ensaiava cenários. Parecia irritado e por isso olhou

friamente para todos os mercadores e sem demoras ou perguntas mandou executar

todos.

Page 63: A promessa - Parte II

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Os mercadores foram atados a pinheiros, mas um coronel de apelido Fonseca ao

sentir barulho, avisou o general que prontamente deu ordens para seguirem e para

deixarem em paz os mercadores da Serra da Estrela, pois a pressa era muita, o

tempo era pouco e barulho de pólvora ou cadáveres abandonados seriam rastilho

fácil para que qualquer plano fracassasse.

Nesses dias, contra tudo e todos, Francisca procurava a companhia de

“Lamparinas” e ambos sentados sobre lapas, bem gelados, no sítio chamado de

“Olho de Loriga”, pelas noites adentro, procuravam com olhos de águias, no

entrelaçado das montanhas, entre cumes e vales, claridade, movimentos e barulhos

que lhes sossegasse o coração e lhes mostrasse que a sua gente estava mais perto de

casa.

Ali em cima, muitas vezes grávida, embrulhada numa manta xaile, entre duas

côdeas de broa, uma caneca de chá ou de café, Francisca falava para a própria

barriga e dizia, “Tem calma, que o teu pai está de volta”. Esteve ali, em todas as

gravidezes e até quase ao rebentar das águas. Esperava por Sebastião e várias

vezes confessou que muitas das crianças sentiram o aproximar do pai, como tantos

animais o fazem quando sentem a presença do dono.

Pouco tempo depois de o Conde de Amarante ter libertado os mercadores, o

general Luís do Rego apareceu com alguns tropas e pediu informações que alguns

temeram em dar, temendo seguir às mãos deste militar o destino que lhes havia

traçado o Conde. Outros temiam igualmente o regresso do Conde e das suas

tropas. Todos queriam fugir rapidamente do lugar, no entanto, o Zé da Cabeça e o

‘Tique-Taque’ acompanharam o general Luís do Rego e só o deixaram quando

assomaram os homens do Conde de Amarante.

Quando os homens do Zé da Cabeça chegaram vivos a Vila do Conde, foram

direitos à Capela da Senhora da Guia, de joelhos e quase em lágrimas rezaram em

agradecimento à Virgem. A rebelião fracassou. O Conde de Amarante viu todos os

seus bens confiscados e viu-se obrigado a fugir para Espanha, por algum tempo,

para depois voltar e ocupar um lugar de destaque no período Miguelista.

À semelhança do que aconteceu com o gato ‘Romanov’, todos os descendentes de

‘Tique-Taque’ tiveram o mesmo nome, inclusive um pastor alemão que nada tinha

a ver com esse famoso cão Serra da Estrela.

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XXI I – O Refúgio

Depois dos acontecimentos de Fevereiro de 1823, Março foi um mês bom para os

mercadores de lã. Todas as portagens do país foram abolidas, incluindo as que se

encontravam doadas, vendidas ou por qualquer outro meio vinculadas, embora

com algumas excepções ligadas à Alfândega de Lisboa e ao pescado do Algarve.

Os mercadores deixaram de ter de se comportar como contrabandistas dentro do

seu próprio país para escaparem a portagens que existiam entre regiões de

Portugal, mesmo assim, a dureza não diminuiu, pois Warre e os chefes das

caravanas achavam que todo o cuidado era pouco e que as regras se deveriam

manter. Assim se fez, pois parecia que se adivinhava algo de ruim.

Em 27 de Maio desse ano de 1823, D. Miguel sublevou-se em Vila Franca de Xira,

ficando conhecida tal revolta como Vila-Francada. Tal tratou-se de muito mais

uma birra do que propriamente uma revolta. Digamos que foi um ajuntamento de

militares, tentando mostrar que se o país não entrasse ‘nos eixos’, o rei seria

destituído e substituído por D. Miguel que, por sua vez, obedecia a um plano

conspirador a que não era alheia a rainha.

Page 65: A promessa - Parte II

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D. Carlota Joaquina era espanhola, de sangue muito quente e bastante desbocada,

dizendo a todos que o rei era um fantoche nas mãos de um Governo liberal, mais

do que fora nas mãos dos ingleses, o que se estranhava, que pudesse ser ainda

mais…

Do outro lado do Atlântico, oceano que faz de Portugal o maior país da Europa, o

Imperador Pedro I não foi tão liberal quanto isso, pelo menos não tanto quanto

pregam os manuais de História, pois nesse mesmo ano, quando a Assembleia

Constituinte aprovaram um projecto que limitava os poderes de D. Pedro, este

mandou o exército invadir a Assembleia e prender os deputados reunidos. Tal

acontecimento ficou conhecido como “A Noite da Agonia” e levou vários deputados

à prisão e outros tantos à deportação.

Maria, irmã de Teresa e esposa de Vicente Calheiros faleceu nesse ano, num dia

igual ao de hoje, mas num tempo bem diferente do nosso. As hortências acordavam

para a Primavera.

Um mês antes caíra nas escadas do solar dos Calheiros, em Valezim. Nessa manhã,

Vicente esperou que a criada o acordasse com o afastar dos cortinados das janelas,

mas, como tinha o sono disciplinado, acordou e notou a ausência da criada. Vestiu

o ‘robe de chambre’ e calçou os chinelos. Primeiro, foi à janela espreitar a luz do

dia e depois rodou a maçaneta de loiça da porta pesada de castanho, na espectativa

de ver o que de estranho teria acontecido.

Do cimo da escadaria deu com várias criadas a rodear a Senhora da casa, que

tinha tropeçado no primeiro degrau. Várias manchas de sangue bem vermelho

tintavam os aventais alvos, que o Sol antes corara sobre a erva da quinta.

Vicente desceu correndo em socorro. Maria deitava sangue pelo nariz e pela boca,

em quantidades assustadoras. Um empregado disse que iria chamar o dr. Rodrigo,

mas antes que se decidisse a ir, já Vicente montado num macho cortava caminhos

em direcção a Seia, onde diziam que o doutor estava naquela manhã.

O Dr. Rodrigo era de Fronteira. Alto, de mãos grandes e muito seguro de si. Um

alentejano valente, filho de um contrabandista que o pôs a estudar em Coimbra,

mas que o obrigava a trabalhar duro, quando as notas eram más. Formou-se com

uma das melhores notas, no ano em que os franceses partiram.

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Vivia ao lado da casa de Sebastião e D. Francisca em Alvoco da Serra. Foi ele que

ajudou a nascer o primeiro dos filhos do casal, em 1826, o futuro Dr. João

Augusto, conhecido muitos anos pelos pais e pelos manos pela abreviatura de ‘Ju’,

bacharel formado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Deputado da

Nação, Cónego da Sé de Évora e professor no Liceu daquela cidade. Tendo sido o

primeiro filho a sobreviver, de muitos anteriores, o casal fez do Dr. Rodrigo um

bom amigo e ‘Ju’ gostava dele como se fosse seu padrinho.

Um médico, que era muito mais do que um João Semana. Era bom, generoso,

prestável e sapiente como outros médicos, mais recentes, que marcaram a Serra,

nomeadamente os doutores Simões Pereira, Amorim, Andrade, Gomes, Guilherme

e Mineiro. Felizmente não teve que lutar contra o tifo como o barbeiro Farias e os

Doutores Simões Pereira e Amorim ou contra uma sindicância como houve em

Loriga.

O Dr. Rodrigo era amigo do ‘Sábio’ e pago por este. Foi aliás o ‘Sábio’ que o levou

para a Serra da Estrela e também ele começou a acompanhar as caravanas da lã,

depois apaixonou-se por uma rapariguinha de Pinhanços e para lá se mudou por

uns tempos, até que depois de ter tido uma filha, partiu para Coimbra, tendo por

lá falecido, antes de completar os cinquenta anos de vida.

O ‘Sábio’ teve uma história diferente e bem mais feliz. Começou por fugir de casa

em miúdo para não morrer de fome e para não assistir às zangas diárias dos pais.

Quem primeiro lhe deu a mão foi o Senhor Manuel Luís, que engraçou com o

rapaz e o fez seu empregado. Foi muitas vezes a França entregar mercadoria.

Atrevendo-se onde outros fugiam. Viajou depois para Manaus, mas a experiência

foi má e voltou. Dava-se muito mal com o calor e estava sempre doente. Ficou

então, no regresso, com moço do ‘Arranca-Muros’ e foi ele que esteve sempre ao

lado de Gregório Tavares, chefe do 1ºRegimento de milícias da comarca na defesa

da Covilhã.

Organizou gentes, armou mulheres, cavou trincheiras. Correu quilómetros a pé e

montado para vigiar o inimigo e avisar aliados. Incansável, imensas vezes de

estômago vazio e corpo partido. Quiseram dar-lhe uma medalha e tudo, mas disse

que tinha feito o que a consciência lhe ditava e que não queria nada disso. Era

esperto, calado e queria aprender tudo. Depois fez parte de tudo o que era

caravanas e era conhecido por ‘devorar’ livros e citar de cor páginas das obras que

lia. Tinha sempre um ditado na ponta da língua e sendo dez anos mais velho do

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que Sebastião, depressa Sebastião o teve como amigo e exemplo. Após os franceses

incompatibilizou-se com o ‘Arranca-Muros’, devido às intrigas da mulher cigana,

deste último.

O ‘Arranca-Muros’ falou mal do ‘Sábio’ a todos e todos acreditaram nas mentiras

da cigana. Sem trabalho e estima, o ‘Sábio’ esteve à beira de morrer de fome, até

que Vicente Calheiros o apanhou a roubar uma galinha, para não morrer à fome.

Vicente levou-o para casa. Deu-lhe comida, quarto, dinheiro, roupa lavada e fez

com que os cartagenos de Loriga o aceitassem como mais um, pois viviam de

empréstimos do Calheiros. Sem casa ou rumo, viveu no solar dos Calheiros, em

Valezim, como se fosse um deles e com os mesmos direitos. Teve sempre a

humildade de agradecer cada pedaço de côdea de pão ou colher de sopa. Foi

tratado muito melhor do que alguma vez foram tratados, os muito respeitáveis,

juiz Preto da Cunha, Metelo de Matos ou o Fernandes ‘do Adro’.

Vicente sabia que um rapaz que fez tanto por todos, sem nada querer receber em

troca, não podia ter feito o que o ‘Arranca-Muros’ dizia. Vicente julgava os

homens pelos actos e ignorava as suas palavras se não tivessem a ver com dinheiro

ou negócios.

Intrigas ou “diz que disse”, chocavam Vicente. Era coisa baixa, indigna de gente

que é gente. Dizia, “Um homem pode ser pobre e ser homem. Um homem pode ser

rico e não passar de “pé-descalço”. Depois a inteligência do ‘Sábio’ e a ajuda

milagrosa de Calheiros fez o resto e compôs o que a vida tinha levado. Um dia disse

a Vicente que o facto de ter acreditado nele, tinha-lhe dado mais força do que

todos os pratos de sopa, trutas e cabritos comidos no Solar dos Calheiros.

Organizou-se bem e foi ele, muitos anos depois, que um dia recebeu um envelope

lacrado de Sebastião, com uma carta do filho de Calheiros para que o ‘Sábio’

ajudasse o Zé da Teresa a ser homem.

O ‘Sábio’ fez do Zé da Teresa, sobrinho por afinidade de Vicente Calheiros, um

dos melhores guarda-livros de sempre e o melhor da Serra da Estrela, requisitado

por muitos. Nunca esqueceu o bem que qualquer homem lhe fez. Perdoou quem

lhe fez mal, mesmo não esquecendo os seus nomes. Lamentou, mas não rezou por

alma, quando ficou a saber que a cigana matara o ‘Arranca-Muros’.

A vida dá voltas e voltas, por vezes, para não sair do mesmo sítio.

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A alcunha de ‘Sábio’ pertencia a José Mendes da Veiga. Um homem bom que se

fez a pulso. Cultíssimo e que ensinava tudo a quem quisesse aprender. Depressa

chegou a chefe de brigada e a sócio de vários negócios pela Beira Alta, a Beira

Baixa, Alentejo e Espanha. Depois casou com uma professora primária bastante

prendada e sossegou. Deixou-se ficar pelos lados da Covilhã. Construiu fábricas.

Comprou umas terras frente à Quinta da Vaidade, que baptizou de Refúgio e foi

no Palacete do Refúgio que acabou os seus dias. Encontraram-no morto, com um

livro entre as mãos e sentado num ‘maple’.

Nunca teve filhos e acabou por deixar uns dinheiros a Sebastião, ao Zé da Cabeça,

ao “Major” e a outros mercadores que o acompanharam em vida, sem esquecer o

filho do homem rico que lhe emprestou os primeiros tostões, Vicente Calheiros.

Naquela malfadada manhã em que Maria caiu das escadas, Vicente foi rápido e

depressa trouxe o Dr. Rodrigo, mas essa rapidez fez com que o sofrimento e agonia

de Maria se prolongassem por mais de uma semana, em vez de morrer rápido. Em

nenhum momento, Vicente largou Maria. Maria tornou-se mais azeda do que

nunca e até chegou a praguejar.

Exactamente no sentido oposto esteve Vicente, agarrado ao rosário, prometia tudo

a Deus se Ele lhe salvasse Maria. Nunca a criadagem o viu tão aflito, correndo de

um lado para o outro, desesperado. Prometeu tudo a Deus e ao Dr. Rodrigo em

troca da vida de Maria. Até de noite ia rezar o rosário para a igreja de Nossa

Senhora do Rosário, padroeira de Valezim, imponente templo em granito,

constituído por três naves separadas por arcos que assentam em pilares cilíndricos

com capitel. Lá acordou várias vezes pela manhã, estremunhado com o abanar do

sacristão. Amava-a, mesmo que não conseguisse viver com ela. Chocava-lhe tudo,

começando na relação de Maria com Teresa.

Depois, Maria até chegou a correr com o padre. Não quis a extrema-unção. Esse

acto chocou todos, caiu com mais sofrimento do que um pedaço de gelo em água

fervente, pois Maria descendia do famoso e lendário padre e Dr. Cristóvão, médico

de Coja que abraçou a Igreja após ter enviuvado e que foi padre na igreja de Santa

Maria Maior de Loriga e depois vigário de Castelões, no Concelho de Tondela.

Homem muito bom que foi lembrado na Serra da Estrela por mais de cem anos e

onde havia sempre alguém que contava algo de bom sobre o lendário padre e Dr.

Cristóvão. Por curiosidade, tal personagem não foi só antepassado de Maria, avó

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do futuro 1ºConde da Covilhã, mas também antepassado de António de Oliveira

Salazar, que marcou parte do Século XX, em Portugal.

Maria acabou por falecer em agonia, insultando tudo e todos, só mesmo Vicente

não a abandonou. Teresa quis ajudar, mas as filhas e o filho Zé proibiram-na de

auxiliar a irmã. Teresa refugiou-se nas contas do rosário e na força dos joelhos

dobrados na igreja de Santa Maria Maior de Loriga, entre muitas lágrimas. Amou

muito a irmã e nunca percebeu porque a irmã tanto a desprezou. Chegou mesmo,

às escondidas, mandar perguntar a Vicente Calheiros se precisava de ajuda, mas o

cunhado, bastante envergonhado pela maldade da esposa, respondeu que seria

melhor ficar em Loriga, mas que muito lhe agradecia.

Maria foi sepultada sem missa e teve um enterro pequeno e só por respeito a

Vicente Calheiros. Muitos agradeceram em silêncio, por grande pecado que fosse,

a sua partida. Só mesmo Vicente e Teresa gostaram de Maria e muito lhe

aturaram. O próprio filho só se queria com o pai e foi casar longe, mesmo que

muito amasse Valezim.

Vicente não se sentiu menos sozinho do que antes, mas muitas vezes foi encontrado

a chorar pela falta de Maria e das suas inexplicáveis fúrias.

Mas como o Mundo é mais pequeno do que a medida que lhe tiramos, o ‘Sábio’ ao

morrer deixou a maior parte da sua grande fortuna a um rapaz que considerava

família, mesmo não o sendo, chamado Marcelino José Ventura. Este ficou bem

rico, mas manteve-se humilde, pois apesar de ter obtido uma comenda, como o

Veiga, não gostava de ser tratado por Comendador.

Na segunda metade do Século XIX, Cândido, neto de Maria e de Vicente Calheiros

casou com uma prima e a única sobrinha por afinidade do Comendador Ventura,

Ana Cândida, tendo administrado as fábricas Veiga.

Foi Cândido que recebeu magnificamente no Palacete do Refúgio, o Rei Dom

Carlos e a Rainha Dona Amélia, nos dias 6 e 7 de Setembro de 1891, pois o tio

Ventura estava muito doente, para a inauguração do caminho-de-ferro da Beira

Baixa.

Como reconhecimento, o Rei Dom Carlos concedeu a Cândido Calheiros o título

nobiliárquico de "Conde do Refúgio". Sete anos depois, este título foi alterado

para "Conde da Covilhã". O 1º Conde da Covilhã que viria a falecer no ano de

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1904 era reconhecido como sendo muito boa pessoa e muito fiel a sua esposa, algo

de que não gozava fama o seu filho.

O 2º Conde da Covilhã casou com a Senhora do Palácio de Froes, D. Emília

Cândida Froes, tendo uma única filha, mas ainda reconheceu como seus, dois filhos

ilegítimos, mesmo que o povo lhe atribuísse muitíssimos mais…

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XXI I I – A Mudança

Chegavam estoirados ou partidos. Dias e semanas em cima de machos e bestas.

Avessos a quezílias e a políticas. Tendo Deus, a natureza, a terra e a sua gente

como razão de vida.

As noites eram vividas entre o dormir desperto, de olho mal cerrado e o indicador

no gatilho ou o punhal bem agarrado. As refeições mal-alinhavadas em horários

mal-cosidos. Os calos dos pés podiam doer e os ossos estalar, mas nenhum animal

podia sentir dor ou ter fome ou sede, fosse cão ou de carga. Homens pouco

interessavam. A vida é um nada e tendo saúde, com uma côdea e um pontapé todos

se criam e criavam.

Nos anos vinte do Século XIX, a Praça de Loriga, que começava ao lado do forno e

da prisão, onde depois foi a loja e casa do bom e saudoso Senhor Orestes, estendia-

se até às portas do Vinhô e nela vários mercadores, ‘cartagenos’ da terra ou

‘barroqueiros’ de fora, descansavam, vendiam, contratavam, combinavam

‘andanças’ futuras e faziam contas à vida. Os mais estafados, descalçavam-se e

punham os pés em ferida nas levadas, agora compostas, que rodeiam a rua que

desce.

Quando as caravanas chegavam, os cães iam na frente, adiantados muitos metros,

mais sôfregos de água ou ração e a miudagem divertia-se a brincar, acarinhar ou a

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assustar os cães-da-Serra. Ainda hoje, em Loriga, quando um rapaz pede aos pais

para ir ao café, alguém se lembra de dizer que ele vai “correr os cães”, como sinal

de vadiagem.

A 27 de Maio de 1823, D. Miguel fez uma birra valente, apoiado na sombra pela

rainha Carlota Joaquina, no que ficou para a história com o nome de Vila-

Francada. D. João inseguro como sempre, naquilo que deveria ser um contra-

golpe, acabou por abolir a Constituição de 1822, entregar o comando do exército a

D. Miguel e nomear um novo executivo, por isso a vitória de D. João foi de Pirro.

Abolida a Constituição e dada a necessidade de uma Lei fundamental, em 18 de

Junho do mesmo ano, criou-se uma Junta para criar uma nova Constituição,

presidida pelo Marquês de Palmela, mas apesar de a junta ter muitos elementos

conservadores, não singrou, por culpa de manobras de bastidores de absolutistas.

O país, mais uma vez, vivia mais de comentários aos comentários do que de obras e

feitos. O que se fazia, resumia-se a destruir a obras dos que queriam fazer. Por

alguma razão, a última palavra do mais famosa obra de Camões é ‘inveja’.

Em 19 de Junho de 1823, criou-se uma outra Junta para examinar todos os

decretos das Cortes Vintintas e se os referidos decretos estavam de acordo com o

Direito. Os resultados apareceram perto do Natal e só se safou o decreto que criou

o Banco de Lisboa. Vá se lá saber porquê…

Esse ano foi bom para o milho e ele cresceu imenso em Loriga, acompanhado de

muros, ‘cômbaros’, que hoje são fundamentais na imagem da vila.

Ao contrário de Alvoco da Serra, mais agrícola, terra por excelência de pastores

mais dada a cabradas, ovelhas e bois, Loriga era boa nos acabamentos. Tinha as

melhores cerzideiras de Portugal, sem exagero. Mas as courelas ou eram

demasiado pequenas ou as que valiam a pena, eram de meia dúzia ou de menos.

Todos os que saíram de Loriga, para o Porto, Vila do Conde, o Brasil, o Alentejo,

mandavam dinheiro e procuravam levar para lá os que mais amavam. Adoravam

na mesma Loriga, mas conheciam as limitações geográficas e sociais do vale.

Alvoco da Serra sempre foi mais democrática, mas Loriga é livre pela sua natureza

revolucionária e contra-corrente. Há algo tão serrano nos serranos que nem os

serranos entendem muitas vezes o que de forte e valente lhes corre no sangue e na

água das suas ribeiras e levadas.

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Em 16 de Outubro de 1823, D. Miguel tentou outro golpe de Estado, que o exército

ajudou, mas que a polícia frustrou.

As coisas foram-se passando e o rei foi cedendo aqui e ali, para se manter no poder

e quase todos terem a sensação de que se tratava de um fantoche num palco em

que não dominava os atilhos e as muitas cenas.

A 4 de Janeiro de 1824, o rei colocou um ponto final da vigência da Carta

Constitucional de 1822 e a ordem jurídica do Antigo Regime voltou em força, com

todas as personagens do antigamente e respectivas mordomias. O rei tentou

entreter as coisas e atrapalhar o melhor do pouco que podia, dizendo a tudo,

‘Talvez!’. Foi preciso a Abrilada para que, assustado e mal amparado, D. João

decidisse convocar para Junho a reunião dos três estados do reino.

Em Fevereiro, apesar de tantas cedências, o Marquês de Loulé, amigo e confidente

de D. João VI, foi assassinado em Salvaterra. O Conde de Subserra e o Duque de

Palmela foram perseguidos. Era necessário matá-los, mas ambos escaparam.

Na Abrilada, os opositores de D. João VI e em conluio com D. Miguel, inventaram

a história de que o rei e a família real iam ser mortos pela Maçonaria, mas

prenderam os conselheiros do monarca e sequestraram-no no Palácio da

Bemposta. Nessa altura, o embaixador de Inglaterra, neto de uma portuguesa e

falante de português, apercebeu-se da mentira, reuniu gente e conseguiu um

heróico resgaste do rei, digno do melhor filme de aventuras. O rei ficou refugiado

num navio britânico que se encontrava no Tejo e dali, os aliados do rei

conseguiram de forma incrível e corajosa tomar o país. O rei acabaria por

decretar o exílio de D. Miguel em Viena de Áustria e intimar a rainha Carlota

Joaquina a sair de Portugal. D. Miguel partiu em Maio, mais humilhado do que o

pior dos bandidos. Por sinal, muitos dos que cuspiram na sua cara, eram os que

antes lhe haviam jurado lealdade até à morte, mas também os gatos têm sete vidas

e até São Pedro negou conhecer Cristo.

Foram dias muito complicados para os mercadores, pois eles, nada queriam com a

política e só queriam chegar sãos e salvos a casa. Pese embora tudo isso, o Major, o

Zé da Cabeça e Sebastião ajudaram várias vezes as tropas do rei contra algumas

escaramuças miguelistas. Loriga continuava conservadora e miguelista.

O medo ou a insustentável insegurança do rei, fizeram com que apesar de tudo,

tendesse para as pretensões dos que antes haviam sonhado com a sua morte. Em

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Junho, o rei convocou as cortes à maneira antiga, com os três estados, nobreza,

clero e povo. Havia tanta divisão, mesmo dentro destes estados, que as cortes não

se reuniram nem em 1824, nem em 1825 e, muito menos, em 1826, quando o rei

morreu. O rei morreu isolado. Odiado pelos inimigos, abandonado pelos amigos

que se sentiram por este, traídos. Numa palavra, era um homem fraco e cheio de

medos, fruto de uma educação cheia de cerimónias e de cuidados anacrónicos,

onde os santos e os diabos ditavam as missas e os deveres diários, onde só a música

aliviava da realidade e fazia sonhar com a irrealidade que se pretendia viver.

Em 26 de Outubro de 1824, houve uma nova tentativa para que o rei abdicasse e a

humilhação da rainha cessasse com uma preferível regência do reino por esta. A

Fábrica da Vista Alegre, em Ílhavo, surgiu nesse mês pelas mãos de José Ferreira

Pinto Basto que inicialmente se dedicou apenas ao vidro. Almeida Garrett

publicou a obra “Camões”.

A pequena Aurora sempre engraçou com o Zé da Cabeça, mas de nada servia. O

Zé era muito namoradeiro. Estava-lhe no sangue paterno e apesar de se dizer que

homem que passasse os vinte cinco anos já não casava, o rapaz pouco ligava.

Depois com palavras, risos e sorrisos, Aurora lá conseguiu alguma atenção.

Quando o Zé tentou apartá-la pela pequena estatura, a moça disse-lhe que as

mulheres querem-se como as sardinhas. Toda a gente a avisou que era perigoso

envolver-se com aquele homem de olhos azuis e tez escura, que vestia de preto.

Que pouco ou nada se sabia dele. Mas Aurora não ligava. Não eram as más-línguas

que a feriam, mas o desprezo dele, por ela.

Foi só por provocação, implicação e apoucamento é que o Zé começou a reparar na

moça que quase tinha dez anos a menos do que ele. Sentia-se velho para ela e um

criminoso se se tentasse.

Não era por mal, mas ele não lhe achava graça. E por isso, Aurora foi provocando

até ser vista e desejada. Foi crescendo também. E de tanto ser provocado e

reparado, o Zé começou a só ter olhos para a Aurora “Deida”.

Foi com Aurora que o Zé da Cabeça casou num Domingo de chuva grossa, na

igreja de Santa Maria Maior de Loriga, quando o Adro e a igreja eram de outro

formato e o reitor já era outro, Sebastião Mendes de Brito, nascido em Loriga e

depois sepultado sob os degraus que agora levam ao altar.

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Os negócios portugueses no Brasil foram piorando a olhos-vistos e só o

reconhecimento necessário da independência do Brasil, em 15 de Novembro de

1825, é que permitiu que muitos negócios lusos não fossem nacionalizados e os seus

donos mortos ou deportados. Mesmo assim, os portugueses imigravam às centenas

para o Brasil e por Portugal, as mentes bem-pensantes sonhavam por um rei igual

ao Imperador D. Pedro, esquecendo que, dos filhos de D. João VI, este tinha sido o

primeiro a trair o pai. Nem tudo foi mal, pois os que viveram afastados da política,

singraram. A medicina em Portugal evoluiu maravilhosamente, com médicos que

eram muito superiores aos de toda a Europa e que eram requisitados por todas as

cabeças reinantes. A cirurgia teve uma evolução espectacular, dando os

professores de Lisboa, Coimbra e Porto, aulas aos médicos de Oxford, Amsterdão,

Paris, Roma e Moscovo.

Francisca Luiz de Monteiro já vivia na Casa da Nogueira, quando finalmente foi

mãe e um filho vingou, em 13 de Abril de 1826. D. Francisca já tinha tido vários

desmanchos. Os de Loriga atribuíam o facto a algum sangue judeu da mãe; os de

Alvoco da Serra, ao facto de em Loriga todos serem filhos de primos. Ao certo,

ninguém sabia, mas várias mulheres passaram pelo mesmo.

No caso de D. Francisca não era pela higiene. Foram muitas as rezas. Olhos em

louça e ferraduras, pendurados ou pregadas nas portas, para darem sorte e

espantarem o mau-olhado. Mistelas e preparados para fortalecer o sangue. Sal

espalhado à porta. Laurinda preparou muito de tudo. E na noite em que foi mãe, a

cabeça de um galo foi entalada no cimo da porta do quarto. Sebastião estava no

Porto, quando o primeiro filho nasceu. D. Francisca pariu rodeada de mulheres,

com Laurinda a chefiar. Parecia que ia tudo correr bem, até aflita, Laurinda viu-

se obrigada a chamar o Dr. Rodrigo. João Augusto nasceu sem chorar e muito lhe

bateram até que chorou. Uma moeda de prata foi deitada na bacia do primeiro

banho. A coisa pareceu muito estranha e o miúdo foi baptizado a correr, pois não

fosse morrer rapidamente. Depois do baptismo, houve a ordem da mãe, para que

pusessem na boca da criança umas pedras de sal e assim foi feito. Era um bebé

demasiado sossegado e aquilo fazia suspeitar de que algo de errado fosse. Depois

não quis de mamar e o pânico instalou-se na mãe. Cuidava que duraria pouco se

mal se alimentasse.

O Senhor padre Manuel Rocha chegou a rezar rosários e a celebrar missa pela

saúde do menino, mas foi o mel da rainha de uma colmeia trazido pelo Senhor

Page 76: A promessa - Parte II

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Manuel Luís, entregue nas mãos de Laurinda, lá na Cruzinha d’Aventosa, que fez

com que o apetite voltasse. No mesmo dia, em que Sebastião se assomou na

Malhada do Chão da Cetra e um neto do Serrão, que guardava um rebanho dos

Brito, lhe disse que era pai.

Transfigurado e mais parvo do que miúdos em noite de foguetada na festa da

Nossa Senhora da Guia, Sebastião cavalgou rapidamente para casa, esquecendo a

brigada, as bestas de carga e toda a lã que trazia.

Nunca cuidou que fosse assim que ficasse a saber que era pai. Queria uma menina,

mas estava muito feliz pelo rapaz, ao ponto de mandar matar um porco e comê-lo

com os vizinhos. O porco era animal mal querido e até impuro para D. Francisca.

Acresceu o facto de D. Francisca não querer sair da cama durante trinta dias, não

permitindo que Sebastião se aproximasse ou na cama repousasse, para que

Sebastião deixa-se a casa e voltasse zangado e sozinho para Loriga. Era coisa que

não entendia e que chocava com a sua maneira de ser.

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XXIV – Pela Xisneira

A 6 de Março de 1826, D. João VI nomeou um conselho de regência, tendo como

regente a infanta D. Isabel Maria. O monarca definiu ao pormenor os termos da

regência para que jamais a rainha Carlota Joaquina tomasse o poder.

D. Isabel Maria era muito segura de si, mais capaz do que qualquer um dos

irmãos, com a única infelicidade de ser mulher em terra de homens afoitos e ávidos

pelo poder.

Quatro dias depois, D. João VI faleceu e mesmo valendo pouco como rei e pessoa, o

povo sentiu profundamente o vazio. O país parecia caminhar de mal para pior,

sem eira nem beira.

A regente sentia-se isolada e nem de punhos cerrados, olhar frontal e voz forte

conseguia impor fosse o que fosse. Instabilidade, conspiração, indefinição foram as

palavras mais usadas por essa altura. Os conservadores eram ignorados ou

desrespeitados e os liberais não deixavam que alguma coisa se compusesse.

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Todos sabiam que o herdeiro tinha cuspido no prato da sopa e era agora

imperador do Brasil. Mesmo assim, todos viam legitimidade em D. Pedro e mesmo

que o não quisessem como rei, queriam-no ver a pronunciar sobre os factos e a não

desprezar Portugal. Uma espécie de “não falo contigo, mas fala-me por favor!”.

D. Pedro tinha no sangue a mistura dos ingénuos e dos valentes e não ficou quieto.

A consciência e a alma dos egrégios avós não o deixaram sossegado.

A 29 de Abril de 1826, ainda no Brasil, D. Pedro I outorgou a Carta

Constitucional. A Carta, inspirada na Constituição Francesa com fortes influências

do modelo brasileiro, foi a Lei que mais tempo vigorou em Portugal, para além das

Ordenações Filipinas. A Carta Constitucional de D. Pedro vigorou de 1826 a 1828,

de 1834 a 1836 e de 1842 até à implantação da República. Obviamente

acompanhada e servida com confusões, foguetes e barulho.

A Carta de D. Pedro garantiu à nobreza hereditária as velhas regalias de sempre.

Estabeleceu a existência de quatro poderes. O poder legislativo pertencia às

Cortes, estas compostas por duas Câmaras, a dos Deputados e a dos Pares. O

poder moderador estava na posse do rei. O poder executivo era dividido pelo

monarca e o governo. Portanto, o monarca reforçou o seu poder e a nobreza

conservadora e tradicionalista ocupou uma das câmaras, sendo que a outra

câmara ficou preenchida por todos os grandes proprietários e os mais ricos

burgueses, pondo em causa tudo o que foi a Revolução Vintista. Mas não era só o

imperador do Brasil que contrariava a sua veia liberal, também muitos dos

deputados, agora ricos e com palacetes, renegavam tudo o que tinham defendido

quando eram pobres e viviam descansos. Muitos deles, eram agora mais

conservadores do que os que antes atacaram.

Na Serra da Estrela a vida compunha-se, fosse por onde fosse.

Quem conhece a rua do Vinhô, em Loriga, sabe que ele começa na fonte e acaba na

ponte, mas talvez não saiba que antigamente, por de trás da fonte, existiam dois

grandes tanques de água, onde muita gente, a troco de tostões, lavava a roupa e

colhia água. Os tanques pertenciam a uma viúva de um mercador e com esse

dinheiro, sem outros meios ou família, a senhora ia vivendo. Nas primeiras casas

da rua do Vinhô também alugavam quartos aos mercadores de fora e foi ali que

Sebastião ficou por uns tempos. Coisa para dois meses, mas falada por vários anos.

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Nesse Maio quente de 1826, o ‘Patas-de-Lacrau’ fez a sua última viagem até Tajo-

Salor-Almonte, chefiando aquela que era sempre a maior das caravanas de

mercadores. No regresso, sentiu-se mal e com aquela voz que se sentia bem longe,

ainda ecoou um grito que se espanhol do Açôr à Estrela. Estava só naquele

momento, pois seguia avançado da restante comitiva, marcando o chão e

adivinhando perigos para os companheiros. Depois muito se contou e inventou,

mas o tio Garcia jurou que o ‘Patas-de-Lacrau’ tinha a testa ferida de uma queda

e a boca ao lado, quando deram por ele, na metade nascente da Selada.

Ele há coisas que só Deus ou ninguém consegue explicar. O Achadiço era o cavalo

do ‘Patas-de-Lacrau’. O macho ao sentir o dono malhar da sela, deixou-o tombado

no lugar e foi à procura de ajuda. A sério e toda a gente jurou que foi assim que

aconteceu, nem menos nem mais. O animal encontrou o tio Garcia mais dois

rapazes, perto da Eira do Mendes.

Puxou-lhes pelas roupas e não desistiu enquanto não lhe prestaram atenção. Estes,

quando encontraram o corpo e viram a inteligência do animal, persignaram-se e

rezaram um Padre-Nosso de comoção. Quanto ao ‘Patas-de-Lacrau’ não houve

nada a fazer, pois jazia mais frio do que granito. Teve missa e muita gente no

velório da capela de Santo António, mas família não era quase nenhuma. Três

irmãos partiram miúdos para o Brasil e restava-lhe o irmão gémeo, o

‘Lamparinas’. O caixão acabou por ser dado, pois o ‘Lamparinas’ deu a madeira

que o Manuel Augusto talhou sem cobrar.

Por fim, já todos tinham partido, quando o ‘Lamparinas’ baixou-se, agarrou com

a mão direita um torrão de terra e atirou sobre o caixão que descera por cordas à

cova. Vendeu o cavalo e lá foi a pé até Casal do Rei. Não chegou a ser triste,

porque a vida era assim e assim se repetia muitas vezes, em várias casas e famílias.

Podia ser uma das muitas histórias do costume e que acabasse ali, não fosse o

animal do ‘Patas-de-Lacrau’ ter fugido do novo dono e ter ido ter à porta do

‘Lamparinas’, várias vezes, por vários dias e várias noites, ao ponto deste ter

devolvido o dinheiro e ter ficado com o animal. Um cabo dos trabalhos, pois tostão

era coisa que não abundava e o que sobrava ia para a pinguinha.

No final, o animal também sobreviveu ao ‘Lamparinas’ e um dia foi visto morto

sobre a campa dos dois donos, onde agora é o jardim de Santo António, em Loriga.

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Nesse fatídico Maio, começaram-se a fazer sentir presentes uma nova vaga de

salteadores, onde o Douro começa a ser português, ligados à família Marçal.

Chegavam histórias de gente roubada e enterrada viva. Outros mortos e

queimados por coisa pouca ou nenhuma.

Um Symington substitui o falecido Guimaraens e não interessava agora a Warre

continuar o negócio da lã. Mesmo assim, com algum prejuízo e muito sacrifício, o

apoio desses ingleses manteve-se até 1835, por uma amizade que se confundia com

família. Uma amizade que continuou por gerações, mesmo que o apelido fosse

mudando.

A 2 de Maio de 1826, D. Pedro abdicou da coroa de Portugal, a favor da sua filha

D. Maria II que deveria casar com o tio D. Miguel, pacificando o reino e jurando,

também ele, ser fiel à Carta Constitucional. O juramento fez-se no dia 31 de Julho

de 1826 e foi valentemente celebrado em Lisboa e no Porto por muitos liberais e

conservadores. O país parecia unido e assim estava, nem que fosse pelos festejos.

Por essa altura, o ‘Major’ Rechau casou-se pela segunda vez e assentou perto do

Bazágueda. Lá, construiu uma quinta, hoje em ruínas, conhecida pela ‘Quinta do

Major’. Lá, para trás-de-Serra, perto de Penamacor.

Sentia-se velho e queria descansar. Por volta de 1840 ainda regressou à Serra da

Estrela, para ajudar a defender os serranos e os Montes Hermínios dos

salteadores. A ele se deve um dos mais famosos caminhos da Serra, o Trilho do

Major. Mas, meses antes de casar, quase perdeu a vida, na região de Barca d’Alva,

no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo.

Tudo se passou numa propriedade que agora se encontra à venda. Sessenta e tais

hectares de olival e muita terra vazia, onde aqui e acolá, se via uma videira ou uma

amendoeira. Duas casas de xisto isoladas no meio de tudo aquilo. Nenhum bicho se

via e apenas se ouvia, de vez em quando, um melro.

A 2 de Agosto de 1826, os homens desmontaram as bestas e os machos. Esperavam

apenas por um pouco de água dos donos da casa, quando um grupo organizado de

homens montados, vindos do nada, começou a gritar e a disparar. A brigada do

‘Major’, acoitou-se como pode e em pouco tempo, apesar de serem em maior

número, ficou cercada. O Sol tinha-se acabado de pôr e a casa principal estava

vazia.

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Os mercadores acederam lume, com o que encontraram para que vissem os rostos

de cada um e estivessem atentos a qualquer intruso. Os salteadores ameaçaram

deitar fogo a tudo e queimá-los vivos, se não se rendessem. Passaram duas ou três

horas, quando o resto da caravana se aproximou e deparou com a brigada do seu

chefe, em tamanha aflição.

O ‘Sábio’ mandou o ‘Abrólio’ reunir os homens. Enrolaram vários cobertores a

uma oliveira e de seguida, cascaram-lhe o fogo. Puseram-se aos gritos em pontos

distantes da propriedade. O bando dos Marçais ao verem tão bizarro

acontecimento, temeram serem almas do outro mundo e depressa partiram.

A história foi contada, por muito tempo, à garotada de Loriga, que buscavam

sempre os relatos aventureiros das viagens dos mercadores, mas o susto e o medo

de voltar lá, também se prolongou no tempo.

Talvez, velhas arcas esconsas e mal abandonadas escondam entre o granito das

lojas, entre cadernos encadernados e pedaços de papel solto, algumas dessas

histórias, pois que nem os ciscos que se intrometiam na visão sobram nas campas

onde foi sepultada tão simples e valente gente.

Há sempre coisas que ninguém compreende e quando se explica, ainda mais

confusas ficam. Umas, têm compostura. Outras, o tempo remenda. E, ainda outras

há, que nem os anos, nem a melhor das cerzideiras conseguem debruar e disfarçar

o estragado. Aconteceu assim por esses dias na vida de Sebastião e acompanhou-o

até ao último suspiro de vida.

Proibido de entrar em casa e de ver o filho recém-nascido, durante um mês, por

culpa dos costumes estranhos de D. Francisca, Sebastião azedou de dia para dia e

aquilo foi-lhe dando cabo do juízo. Ameaçava trocá-la por outra mulher e mais

nova. Dizia-o a quem fosse de Alvoco da Serra e passasse por Loriga.

A gente de Alvoco da Serra bem o contava a D. Francisca e espalhava pelo

povoado, mas D. Francisca era imune a comentários e ditos. Quando alguma

vizinha insistia na conversa, D. Francisca dizia, “Ele que se atreva e verá!”

Irado e fora de si, Sebastião consumou a ameaça com uma bela e jovem rapariga

de Loriga, chamada Maria. Tudo num dia em que ele quis esquecer para o resto da

vida.

Depois, já se sabe, por mais que se esconda, tudo se descobre, diz e acrescenta.

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De Julho a Outubro desse ano de 1826, os políticos não foram de férias.

Organizou-se um plano contra-revolucionário que juntou portugueses e espanhóis

para a criação de uma união ibérica, num amplo movimento de contestação ao

liberalismo, dinamizado por uma Junta Apostólica Ibérica e que tinha como sua

maior apoiante a rainha Carlota Joaquina.

Em Agosto, a polícia de Lisboa tentou um golpe de Estado para substituir a

regente pela rainha, mas o exército não deixou. Foram muitos os mortos do lado

dos perdedores, em julgamentos sumários e enterrados em valas comuns.

Também os liberais, refugiados em Gibraltar e em Inglaterra, a 14 de Agosto de

1826, elaboram um plano conspirativo com o mesmo intuito de unir a Península

Ibérica e colocando o Imperador do Brasil como dono de meio mundo.

Maria era jovem, bela e podia ter a seus pés qualquer rapaz da vila de Loriga, mas

muitas vezes, é o fruto proibido o mais apetecido. Também ela se arrependeu do

sucedido com Sebastião. O que aconteceu, começou a ser falado e de boca em boca

se acrescentaram coisas que nunca aconteceram. Pese embora a evolução da

sociedade, um homem é admirado ou invejado se andar com muitas mulheres, já

uma mulher se andar com um homem e depois com outro, se não for casada, deixa

facilmente de ser séria e virtuosa, com menos pedras, mas com igual ofensa. É

assim desde que o mundo é mundo e Maria Madalena ter escapado a um selvático

apedrejamento.

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XXV – O Filho

Com a morte de D. João VI, muito se temeu e o próprio rei, antes de falecer,

confiou a regência à Infanta Isabel Maria de Bragança que, contra o disposto nas

leis monárquicas do Reino de Portugal, nomeou o irmão D. Pedro, então

Imperador do Brasil, como sucessor de D. João VI.

Em 1826, contra as leis de Portugal que o excluíam da sucessão e contra

Constituição Brasileira de 1824, D. Pedro ‘reviu’ a Constituição Portuguesa de

1822, aclamou-se rei de Portugal, mas notando a aversão pelos brasileiros e pelos

portugueses a esse atrevimento, em menos de um mês, abdicou o direito que não

tinha, bem como, contra todas as regras de sucessão e de abdicação na filha D.

Maria da Glória, que tinha apenas sete anos, com a obrigação desta casar com o tio

D. Miguel, que, entretanto, com a perda de direitos de D. Pedro, se tinha tornado o

legítimo sucessor de D. João VI e fez dele regente.

Depois das peripécias da Vilafrancada, da Abrilada e de regressar do exílio, D.

Miguel assumiu a regência em nome da sobrinha.

Aos olhos do povo português, liberais e maçons com a venda de bens da Igreja e a

desconsideração que tinham pela velha nobreza, eram o símbolo da opressão, por

mais que lhes falassem em justiça, liberdade e igualdade. O povo português estava

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perdido e sentia-se inseguro, depois de bastante tempo com açaime e trela. Por

outro lado, atribuía todos os seus males à perda do Brasil.

Na Carta Constitucional portuguesa de 1826, D. Pedro tentou reconciliar Deus e o

Diabo, fossem Eles os absolutistas e liberais ou vice-versa, permitindo que

sossegassem se ambas as facções obtivessem postos no Governo. Diferente

da Constituição de 1822, a Carta Constitucional portuguesa de 1826 estabeleceu os

quatro poderes governativos. O poder legislativo foi dividido por uma Câmara dos

Pares, composta pelas classes nobres e clericais, e uma Câmara dos Deputados,

composta por deputados eleitos por voto indireto em assembleias locais, para um

mandato de 4 anos. As Assembleias locais eram eleitas por sufrágio limitado aos

homens. O poder judicial era exercido pelos tribunais e o poder executivo por

ministros do Governo. O rei teria apenas um poder moderador, com direito de

veto sobre qualquer lei. Mas quem faz serve a Deus e ao Diabo nunca se sai bem.

Os defensores do Partido Absolutista, dos latifundiários e da Igreja Católica, não

ficaram satisfeitos com este compromisso e continuaram a ver D. Miguel como o

legítimo sucessor ao trono, pois as leis davam-lhes razão. Por outro lado, muitos

foram os latifundiários portugueses e padres católicos que se juntaram e ajudaram

a restauração do reinado tradicionalista de Fernando VII e a erradicar tudo o que

restava de liberal e napoleónico em Espanha.

Em 23 de Junho de 1828, depois de afastados os principais liberais e maçons, as

Cortes aclamaram finalmente como legítimo sucessor D. Miguel, rei de Portugal,

como herdeiro do trono e ilegítimos todos os factos e actos praticados por D. Pedro

em relação a Portugal após a independência no Brasil, e com grande alegria para o

Povo em geral.

A decisão das Cortes assentava a fundamentação nas Leis Fundamentais do Reino,

estabelecidas nas "Cortes de Lamego" e no costume secular, à luz dos quais D.

Pedro e todos os seus descendentes tinham perdido o direito à Coroa no momento

em que, por um lado, D. Pedro se tornou soberano de um estado estrangeiro e, por

outro lado, levantara armas contra Portugal. Período esse tão genialmente

retratado pelo ‘Shakespeare do pincel’, Francisco Goya.

Já em Loriga, era pela frincha da porta que o vento frio da serra entrava e lhe

arreganhava o corpo e alma. Maria ainda escondeu durante algum tempo a

gravidez dos pais, mas foi ilusão que não durou muito. Embora o pai soubesse que

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era coisa que pudesse acontecer e assim fosse mais condescendente, a mãe não teve

caridade e depressa a correu de casa. Para ela, Maria era uma “desavergonhada”

que tinha sujado tudo e todos.

Posta na rua e sem eira na beira, deambulou perdida e pensou mesmo matar-se.

Que seria dela? As lágrimas corriam e o desespero não deixava pensar. Depois,

Aurora viu-a e percebeu tudo, até porque muito já se sabia e dizia na vila.

Acolheu-a na loja de casa, entre o tear e um postigo que, de vez em quando, se

abria com o vento. Uma cama pequena de ferro e um colchão velho de palha

improvisaram um quarto que todas as manhãs era preciso desfazer, para que o

tear e algumas cerzideiras pudessem trabalhar.

De dia, Maria acartava lenha para os fornos de pão de Loriga, descalça e ferida

como muitos, em troca de uma broa que evitasse passar a hora da refeição a fazer

a santa cruz sobre os lábios. Lavava umas roupas, farrapos e trapos a quem lhe

dava um pedaço de conduto, mas muitas eram as moças da mesma idade, com

mais atrevimento e menos virtude que, ao passarem por ela, lhe cuspiam na cara e

a chamavam de puta.

Dizia-se muito sobre Maria. Muito disso era inventado, mas de pouco servia dizer

que era mentira quando as pessoas só sabem julgar. Uma rapariga grávida e sem

homem sujeitava-se a tudo e aos insultos de todos.

Depois do sétimo mês, o Zé da Cabeça ainda teve uma conversa com Sebastião,

mas que não deu em nada. Ninguém podia provar que a criança que Maria trazia

na barriga era de Sebastião. Aliás, Sebastião enumerou pelos cinco dedos da mão

esquerda, cada um dos anteriores namorados de Maria. Para além de tudo, havia

D. Francisca. Se Sebastião assumisse um filho que não sabia se era seu, teria de

mudar de terra e perderia quase tudo o que juntara na vida. Foi às portas do

Outeiro da Vinha que tiveram essa conversa e quando ela acabou, o Zé não sabia

se estava perante um indivíduo irresponsável ou alguém que tinha sido vítima das

circunstâncias. Isso atazanou-o por muito tempo, pois ele mesmo nunca tinha

conhecido o pai.

De noite, Maria chorava e mesmo baixinho, não deixava de ser ouvida pelo Zé da

Cabeça e pela Aurora. Pensava como seria a vida da criança e que futuro teria.

Ainda saiu várias vezes para se deitar para a ribeira de São Bento, mas a barriga

ia crescendo e a coragem minguando. Para além disso, era pecado mortal cometer

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suicídio e dar cabo de uma outra vida. A alminha nunca sairia do Limbo e ela

arderia para sempre no Inferno.

Depois enquanto o tempo custa a passar ou parece que não passa, voa. O dia de

trazer uma nova vida ao mundo, chegou depressa.

Maria fez força enquanto Aurora não lhe largava a mão.

Laurinda tardava em chegar. Chovia e o Zé da Cabeça temia que a escuridão lhe

trocasse as voltas. Saiu a correr e encontrou facilmente a Laurinda, mas estavam

longe de Loriga e anoitecia. Laurinda tinha medo de montar. Mordia os lábios e

tremia, mas não dizia. Fingia-se forte.

Quando o Sol tocou com os raios no topo do Monte do Colcurinho, entre o pára e o

arranca que não anda nem desanda, o Zé desmontou e agarrou uma corda grossa.

Olhou no fundo dos olhos de Laurinda e sem que esta tivesse tempo de desprender

a língua e abrir a boca, o Zé não esperou e fê-lo por ela.

- Não digas nada mulher! Nem berres! Espera por chegares a Loriga e se achares

com justiça que devo morrer no espeto de uma lâmina, serei que te darei a faca!

Assim, deu-lhe dois valentes murros que a fizeram cair com a velocidade de um

borracho perdido em dia de boa caça. Atou-a como se fosse uma peça de fazenda

ou um cabrito para o Natal. Depois galgou como um louco pelos montes até que o

cheiro a broa dos fornos de Loriga se tornou mais forte e as águas das ribeiras

começaram-se a sentir.

Pelo caminho, o Zé jurou para si mesmo e a Deus se o ouviu, ir rezar um terço à

capela da Nossa Senhora das Necessidades se chegassem com luz a Loriga. Três

semanas depois, cumpriu a promessa.

Quando a noite caiu, já o Zé e a Laurinda estavam em Loriga. Quando chegaram,

Laurinda ainda estava zonza e o zé, com um caneco retirado do alforge, retirou

água de um rego e aventou-o à cara de Laurinda, que despertou.

Depois, Laurinda correu para o fundo da vila de Loriga para ajudar Maria a

parir.

Foram momentos difíceis em que minutos pareciam horas e horas pareciam dias.

Finalmente um sopro de alívio da boca de Maria e um choro que tardou em calar

em quem acabara de nascer. Aurora lavou a criança e Laurinda limpou o sangue e

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cortou o cordão umbilical. Com o polegares e os indicadores deu o nó e compôs o

umbigo.

Estava quase tudo feito, mas faltava uma coisa, o nome.

- Que nome lhe quer dar? – Perguntou Aurora.

- O nome do teu homem. Se não fosse ele, talvez o menino não nascesse –

Respondeu Maria.

Mas Aurora insistiu:

- E o pai?

Maria não hesitou:

- Se quiser o filho, que o venha procurar. Ele é meu filho e isso basta-me.

Horas depois, o Zé da Cabeça conforme prometera, colocou uma faca na mão da

Laurinda, mas avisou:

- Por cada golpe que me deres, aproximo-te mais da tua cova.

E Laurinda nada fez. Não por medo, mas porque não via propósito ou juízo no que

ele dissera. Embrulhou-se na manta-xaile e desapareceu na noite, por uma quelha

qualquer, daquelas que vão dar a qualquer lado.

Quando a manhã chegou, a noite não tinha sido calma. O que seria o futuro de

todos foi conversa que não finou na cama de ferro do Zé e da Aurora, mas se

Aurora muito dizia, o Zé apenas dizia “Isto vai ser como eu quero e aquela criança

nunca será visto como filho da puta. Juro-te mulher!”

Assim, ainda só o Sol tocava no topo da Penha do Gato, já o Zé da Cabeça, Aurora,

Maria e a criança, estavam à porta da casa do padre Brito. Morriam muitos bebés

e aquele não podia ir parar ao Limbo.

O padre estava renitente em baptizar a criança, mas a criança não tinha culpa de

ter vindo ao mundo. Cada vida que nasce significa que Deus ainda não perdeu a fé

na humanidade. Para além de tudo isso, os olhos e o bigode do Zé da Cabeça,

mesmo em silêncio, ao reverendíssimo padre pareciam-lhe dar ordens. Depois da

água correr e dos padrinhos escolhidos, houve a questão mais melindrosa, dar o

nome. Não o nome próprio, mas o apelido.

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O padre assentou o nome da mãe, os nomes dos padrinhos e o pai como ‘incógnito’.

Maria sentiu um ligeiro calafrio e Aurora entristeceu-se, mas José não se conteve:

- Senhor Prior… Se colocou o pai como incógnito, sabemos todos em Loriga,

arredores e arrabaldes quem ele é. Portanto, como Deus é verdade e não

hipocrisia, seja homem e coloque, ao menos, o sobrenome do pai à criança. É

apelido comum por aqui e a criança merece ter um nome.

O padre olhou o Zé de forma a enfrentá-lo, mas a consciência foi mais forte. Sem

que ninguém lho dissesse ou pronunciasse, molhou o aparo e acrescentou ‘Pina’.

E foi assim que tudo ficou naquele dia.

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XXVI – O Princípio da Guerra

Por séculos e durante demasiado tempo, a origem definia o destino e o mérito

era palavra esquecida. Aconteceu assim por todo o mundo, mas em Portugal, fruto

da mentalidade, do medo e da cunha, prolongou-se e institucionalizou-se, tendo

ainda não nos abandonado definitivamente.

A esse ‘Status Quo’ ou melhor, ‘estado de alma’, ofendeu profundamente a

Constituição de 1822. Para muitos, como por exemplo o Marquês de Marialva, a

Constituição de 1822 estava para Portugal como o Inferno está para o Céu, com a

agravante de que a Constituição de 1822, ao contrário do Diabo, vencera.

Tudo o que hoje existe de mais progressivo nos países mais desenvolvidos e

democráticos, já existia na Constituição Portuguesa de 1822. Nela viviam as

palavras mais ofensivas que alguma vez foram escritas contra a nobreza e o clero,

tais como, “ninguém deve ser preso sem culpa formada” ou “a Lei é igual para

todos. Ficam abolidos os privilégios de foro nas causas cíveis ou criminais”.

Até ali os altos cargos do Estado, do reino e das colónias, bem como da Igreja,

estavam apenas confiados à nobreza de sangue. Eram os fidalgos, sem esforço,

prova ou dedicação, muitas vezes sem saberem uma única palavra estrangeira, que

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ocupavam as embaixadas portuguesas pelo mundo. Gente muito diferente do

abade Correia da Serra ou de frei Francisco de São Luís Saraiva. Os nobres era

gente que bastava nascer para ser gente importante. O luxo do Império Português

e das suas colónias, apenas a estes tocava. O povo continuava pobre, roto e inculto.

Dava jeito e, também, por isso Salazar e as altas patentes do exército foram bons

alunos dessa fidalguia, um século depois.

Os nobres cultos e ilustrados, por seu turno, eram vistos como reaccionários.

Acabavam colocados como militares e padres nos locais mais distantes e perdidos

das colónias ou comprados com luxos, comendas e vaidades mundanas. Tudo

muito diferente da nobreza da época e do calibre de um D. Antão Vaz de Almada.

O clero, humilhado pelo Marquês de Pombal, ascendeu imenso durante o

reinado de D. Maria I e depois da partida da família real partir para as terras do

Brasil. Tornou-se a “ciência certa e o poder absoluto”, que antes o Marquês de

Pombal apenas atribuía apenas a D. José I. O clero afirmava e isso passava a ser a

lei de Deus. O nobre pecava, mas com dinheiro e umas obras nas igrejas, tudo era

perdoado, pois Deus ama e perdoa. Se o Marquês de Pombal proibiu a jurisdição

em matéria profana e cerceou os legados pios, os vintistas acabou com os dízimos e

toda a fortuna escondida da igreja, para além de levar a tribunal vários padres por

roubo, violação e por terem mulher e filhos.

Depois da partida da família real e da alta nobreza para o Brasil, os filhos da

burguesia estudaram e viram que Deus ajuda a quem se ajuda e esforça.

Aperceberam-se que muito boa gente tinha muito e nada fizera por isso. Assim,

com dinheiro e saber, depressa impressionaram o povo e colocaram em causa a

verdade de tantas verdades. E, logo na primeira sessão das cortes constituintes, no

dia 24 de Janeiro de 1821, ficou claro que “a lei é igual para todos”. Do grupo de

‘vintistas’, em que brilhavam Fernandes Tomás, Silva Carvalho e Borges

Carneiro, salientaram-se as palavras de quem era conhecido por sério, austero e

claro, o beneditino frade Francisco de São Luís Saraiva. Aquele que depois ficou

conhecido por Cardeal Saraiva, escreveu “O que hoje querem e desejam os

portugueses não é uma inovação, é a restituição de suas antigas e saudáveis

instituições, corrigidas e aplicadas segundo as luzes do século e as circunstâncias

políticas do mundo civilizado, é a restituição dos inalienáveis direitos que a

natureza lhes concedeu, como concede a todos os povos”.

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Essa gente valente, deu por concluída a Constituição de 1822, no dia 29 de

Janeiro desse ano e as cortes juraram-na no dia seguinte. A 1 de Outubro de 1822,

na companhia do infante D. Miguel, o Rei D. João VI, jurou-a na manhã desse dia.

Depois, como em tudo na vida, há os idealistas, os bem-intencionados e os que se

aproveitaram. Estes últimos deram má fama aos liberais, nos abusos e na riqueza

rápida e pouco esforçada.

Em 1826, a 10 de Março, D. João IV morreu. A nobreza e o clero viram em D.

Miguel, entre os seus medos e as suas incertezas, o provável salvador da ‘sua’

pátria, mas D. Pedro, imperador do Brasil, aclamou-se rei e entre várias

causalidades, factos e leis, renunciou ao trono de Portugal, na filha D. Maria da

Glória, princesa do Grão Pará, sem que antes outorgasse uma carta constitucional

à nação portuguesa, datada de 29 de Abril de 1826 e que chegou a terras lusas nas

mãos do embaixador britânico Charles Stuart, na fragata ‘Diamond’.

Para legitimar tudo e pacificar todos, D. Pedro prometeu a mão da filha, com

apenas sete anos, ao irmão D. Miguel, que exilado em Viena de Áustria, facilmente

jurou fidelidade ao futuro sogro e seu irmão. O infante-regente D. Miguel partiu

depois para Paris, passou por Londres e desembarcou em Lisboa, no Tejo, a 22 de

Fevereiro de 1828.

Como todos os heróis, D. Pedro tinha tanto de aventureiro como de ingénuo e

acreditou que o mano, que anos antes traíra o próprio pai na Abrilada, fosse agora

o mais leal dos súbditos. Por outro lado, quando D. Miguel chegou a Lisboa, só se

ouviam aplausos e ‘Viva o Rei!”, por todos os lugares e recantos, dando-lhe

vontade para sonhar mais alto, tendo muitos nobres e bispos dispostos a não

reconhecer ninguém mais importante do que ele, mesmo que ele tivesse jurado

perante todos a lealdade a D. Pedro IV e D. Maria II, no dia 26 de Fevereiro de

1828.

Pouco tempo foi leal, pois com o ódio do povo a tudo o que era brasileiro, a

intriga dos nobres regressados com D. João VII e com os sermões cáusticos dos

bispos e padres, D. Miguel achou coragem para revogar a carta constitucional e

proclamou-se monarca absoluto, com o apoio da maioria dos portugueses, das

irmãs matrimoniadas em Espanha, do seu tio materno Fernando VII de Espanha e

dos governos da Santa Aliança que viam na Revolução Francesa, o princípio do

fim do mundo.

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O problema é que a minoria, quase tão grande como a maioria, não gostou da

traição de D. Miguel. O batalhão de caçadores, em Aveiro, revoltou-se. Seguiram-

se os quarteis do Porto, Penafiel, Braga e Coimbra que se mantinham fieis à carta

constitucional. O resto do exército persegui-os e derrotou-os nas margens do rio

Vouga, dois dias depois de uma caravana de mercadores da Serra da Estrela ter lá

passado e que era chefiada pelo “Mimoso” de Vasco Esteves de Baixo, empregado

de Sebastião.

Os revoltosos apanhados foram sujeitos à flagelação e crucificados para todos

verem que pesada é a mão de Deus para quem ousa pecar. Foram celebradas

missas pelas almas pecadoras e os que fugiram, embarcaram nos navios ‘Belfast’,

‘Ferrol’ e ‘Corunha’ para Inglaterra. Lá, o Governo do Duque de Wellington não

foi propriamente amigo, pois muitos dos portugueses que lá chegaram, foram os

mesmos que tinham corrido com os ingleses de Portugal. Wellington não queria

aqueles conspiradores juntos e por ordenou que fossem exilados separados uns dos

outros por locais distantes. Entre eles estavam Luís de Mendonça Arrais, sobrinho

do lendário Bispo da Guarda e de Pinhel e Eduardo “Bandarra”, padrinho de

Sebastião.

Meses antes da história do nascimento do filho de Maria, já o Zé da Cabeça

tinha escrito várias cartas a Eduardo “Bandarra”, que foram entregues e

transportadas para o Porto pelo Alfredo “Sopas”, loriguense e criado da família

Mendonça Arrais na Casa das Obras, em Seia. Nelas, o Zé da Cabeça, tentando ser

o menos intriguista e verdadeiro, contava as peripécias de Sebastião, a vida de

Maria e tudo o que tinha de ocultar a D. Francisca e demais habitantes de Alvoco

da Serra, para que fundamentalmente a criança nascida pudesse crescer e singrar

na vida.

Toda aquela escrita e novela não caiu em saco-roto e, com o apoio da família

Mendonça Arrais, Maria e a Criança acabaram por ir viver para o Porto. Maria

tornou-se empregada num palacete azul na Cedofeita e a sua vida melhorou

significativamente. Mas, as coisas são como são e não há mentira que sempre dure

e verdade que não se saiba.

Aos ouvidos de D. Francisca depressa chegaram as notícias de que o marido

tivera um filho com uma rapariga de Loriga. Aquilo ferveu e de tanto ferver, D.

Francisca montou um macho e foi a Loriga saber de tudo.

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Umas mulheres diziam que não era bem assim, enquanto outras, a troco de

simpatia e favores futuros, até contavam o que nunca tinha sido. Entre o deve e o

haver, D. Francisca ficou com a certeza de que algo tinha acontecido, mas mais

irada ficou quando soube que havia uma criança pelo meio. Queria saber tudo e

estava preparada para ir ao fundo dos infernos de preciso fosse, mas horas depois

sossegou um pouco. Aurora, a “Deida”, disse-lhe que tanto a criança como a mãe

já tinham partido de Loriga e que dificilmente voltariam, pois tão má fama o povo

criou sobre a rapariga.

D. Francisca queria saber mais e tudo, mas a vontade foi-se, quando nessa

tarde, o “Lombeirão”, filho do Manuel da Agostinha, chegou a Alvoco da Serra

ferido. A caravana chefiada por Sebastião fora atacada por miguelistas na Lousã e

não se sabia de ninguém, pois cada um fugira por onde poderá.

Nesses dias, bandos de caceteiros assaltavam nas ruas e entravam em lares de

Lisboa e de outras terras na busca de todos os que fossem suspeitos opositores ao

regime de D. Miguel. No forte de São Julião da Barra, na torre de Belém, no

Limoeiro e no castelo de São Jorge, homens, mulheres e crianças eram presos,

sovados, não alimentados e depois de alguns dias de tortura, sujeitos a execução,

sem acusação e defesa. Despiam-nos logo que chegavam às prisões e apenas lhes

davam farrapos sujos para cobrirem as partes mais intímas. Sem água,

agonizavam e de sede morriam muitos. No meio de ratos e piolhos, a lepra

depressa se propagou. Dormiam às pilhas uns em cima de outros e até o

canibalismo apareceu. Por fim, muitos sem saberem do que eram acusados, viram

na ponta de uma arma, o chumbo que pôs fim a tão horrível suplício.

Francisca voltou para Alvoco da Serra e se a vontade de bater em Sebastião era

muita, também muito temia pelo filho João se este tivesse de crescer órfão e sem

pai.

Na noite de 3 de Outubro de 1828, Eduardo “Bandarra” desembarcou na ilha

Terceira com outros liberais. Dormiu numa tenda e pela noite, um pequeno gato

amarelo, talvez com poucos dias de vida, encostou-se à sua cara e de tanto o

lamber, acordou-o. Sentiu outros barulhos e alertou os companheiros. Depressa

todos se armaram e no dia seguinte, travou-se a primeira batalha entre liberais e

absolutistas, a batalha do Pico do Seleiro, da qual saíram vencedores, os defensores

de D. Pedro. Quanto ao gato, Eduardo “Bandarra” viu no bicho um sinal de boa

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sorte e, portanto, nunca mais o largou. Com um pouco de vinho e entre o riso de

comparsas, baptizou o gato de Romanov e Romanov ficou.

Dias depois, também Sebastião voltou a casa, ferido num braço e D. Francisca,

preocupada com a família e o futuro de todos, não falou no assunto e tentou

esquecer, pois vários eram os homens com mais endinheirados que tinham feito

filhos fora dos seus lares.

O povo estava muito dividido, mas na Serra apenas uma povoação estava pelo

lado da Santa Igreja e por D. Miguel. Essa terra era Loriga.

A 1 de Março de 1828, os ‘Cartagenos’ armaram-se com tudo o que puderam e

com machos, mulas e cães da Serra, saíram de Loriga com destino a Vila do

Conde, sabendo que eram pelo Governo e que a maioria das terras do Norte

estavam por D. Pedro. Confiavam na vontade de Deus, nos chefes das brigadas e

no chefe da caravana, o Zé da Cabeça.