a prÁtica do assistente social na Área da ...livros01.livrosgratis.com.br/cp138323.pdfprática do...
TRANSCRIPT
MARIA JOSÉ GIRÃO LIMA
A PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL NA ÁREA DA SAÚDE
MENTAL:
uma análise centrada na cidadania dos usuários
MESTRADO EM POLÍTICAS PÚBLICAS
UFPI
TERESINA /2004
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
MARIA JOSÉ GIRÃO LIMA
A PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL NA ÁREA DA SAÚDE
MENTAL:
uma análise centrada na cidadania dos usuários
MESTRADO EM POLÍTICAS PÚBLICAS
UFPI
TERESINA /2004
MARIA JOSÉ GIRÃO LIMA
A PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL NA ÁREA DA SAÚDE MENTAL:
uma análise centrada na cidadania dos usuários
Dissertação apresentada à Banca Examinadora, da
Universidade Federal do Piauí, como exigência parcial
para obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas,
sob orientação da Professora Doutora Simone de Jesus
Guimarães.
UFPI
TERESINA / 2004
A PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL NA ÁREA DA SAÚDE MENTAL:
uma análise centrada na cidadania dos usuários
MARIA JOSÉ GIRÃO LIMA
Dissertação de Mestrado submetida à Coordenação do Curso de Mestrado em Políticas
Públicas do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí, na
área de Concentração de Cultura e Identidade.
BANCA EXAMINADORA
Professora Doutora Simone de Jesus Guimarães
Universidade Federal do Piauí (UFPI)
(Orientadora e Presidente)
Professora Doutora Lúcia Cristina dos Santos Rosa
Universidade Federal do Piauí (UFPI)
Professora Doutora Aglair Alencar Setúbal
Instituto Camilo Filho
TERESINA / 2004
RESUMO
“A prática do assistente social na área da saúde mental: uma análise centrada na cidadania dos
usuários” é uma dissertação de mestrado nascida da preocupação de compreender a inserção
desse profissional nessa área específica, entendendo-se o Serviço Social como uma profissão
inscrita na divisão sóciotécnica do trabalho e o seu exercício uma unidade dialética inscrita na
contraditoriedade, singularidade e totalidade históricas da sociedade. Tem, assim, por objetivo
central, esta investigação, analisar até que ponto a prática profissional do assistente social se
vincula com a defesa da cidadania e dos direitos dos usuários dos serviços de saúde mental,
oferecidos pelo Sanatório Meduna, hospital psiquiátrico da rede privada, em Teresina, no
Piauí, conveniada com o Sistema Único de Saúde (SUS), constituindo-se em sujeitos do
estudo os assistentes sociais, os usuários e seus familiares e demais profissionais da equipe
interdisciplinar do referido hospital. Ademais, busca-se resgatar, nesta pesquisa, a natureza da
prática do assistente social no Sanatório Meduna, examinando seus vínculos com os direitos e
a cidadania dos portadores de transtornos mentais e suas famílias, considerando, para isso, as
múltiplas vivências, falas, discursos, gestos e expressões do cotidiano desses sujeitos. A
pesquisa se fundamenta em aportes da dialética crítica e foi desenvolvida segundo uma
metodologia qualitativa que revela a vinculação do assistente social com a questão da
cidadania e dos direitos dos usuários como uma relação histórica, ampliada e fortalecida no
país a partir das últimas duas décadas do século XX, sendo norteada, no Brasil e no Piauí,
pelo arcabouço legal que ampara o exercício desse profissional nos seus diversos espaços
sócio-ocupacionais. Enfim, a dissertação visa contribuir para o debate reflexivo sobre a
prática do assistente social na sua interlocução com a área da saúde mental, em particular na
direção dos interesses e anseios dos segmentos sociais mais empobrecidos, no caso o dos
portadores de transtornos mentais.
ABSTRACT
“Social Workers‟ Practice in the Area of Mental Health Care: Na Analysis Centered on
Citizenship of Mental Illness Patients” is a Master‟s thesis born out of concern to understand
these professionals‟ insertion in this specific area. Social Service is understood as a profession
inscribed in the socio-technical division of labor, and is practice as a dialectic unity inscribed
in society‟s historic contradictoriness, singularity and totality. As its central objective, this
investigation analyzes to what extent the professional practice of the social worker links itself
to the defense of citizenship and rights of mental illness patient‟s health care offered by
Meduna Sanatorium, a private psychiatric hospital in Teresina, Piauí, which has an accord
with the “SUS”, i.e., the Federal Government Medicare in Brazil. The subjects of this study
are the social workers, mental illness patients and their families, and all other professionals in
the interdisciplinary team at said hospital. Beyond that, this research recovers the nature of the
social workers‟ practice at Meduna Sanatorium, and, considering the multiple life
experiences, utterances, discourses, gestures and expressions in the everyday life of said
subjects, it examines the links of social workers to the rights end citizenships of mental illness
patients and their families. The research is based on approaches of critical dialectic, and was
developed according to a qualitative methodology that reveals the links of the social workers
to the citizenship and the rights of mental illness patients as a historic relationship. In Brazil,
this historic relationship was amplified and made stronger in the last two decades of 20th
century by the legal framework that provides for the practice of said professionals in their
diverse socio-occupational spaces. Therefore, this thesis contributes for the reflexive debate
on the practice of social workers in their interlocution with the mental hearth area, in
particular toward the interests and longings of the more impoverished social segments,
especially the one of mental illness patients.
A todos aqueles que algum dia desenvolveram o
transtorno mental, para que consigam vencer todas as
formas de preconceitos e de exclusão social. E que sejam
respeitados simplesmente, pelo que são, com seus desejos,
vontades, delírios, alucinações e comportamentos.
Às famílias e cuidadores, para que continuem a lutar
incansavelmente, em busca da proteção integral, do
tratamento de qualidade, do respeito e da efetivação dos
direitos e da cidadania do PTM.
Aos assistentes sociais que abraçaram essa causa sem
medo e com obstinação, lutando para compreender e
revitalizar as vivências dos PTM e suas famílias na
esperança de contribuir para o crescimento dessas
pessoas, que tem suas vidas abaladas pela presença do
transtorno mental.
AGRADECIMENTOS
A Deus pelo direito a vida.
Aos meus pais, Felipe e Zildete (Branca) que mesmo distantes sempre me estimularam
a continuar a lutar, entendendo minha ausência, nos últimos dois anos.
À professora Simone Guimarães, minha orientadora, por seu apoio, paciência,
empenho e dedicação na construção deste trabalho.
À CAPES, que me concedeu bolsa de mestrado, durante o período do curso.
Aos meus irmãos, em especial Geane e Adriano, que souberam compreender minhas
ausências constantes, assumindo meus afazeres de forma incondicional.
Às amigas do Sanatório Meduna especialmente as assistentes sociais Rose, pelas
inúmeras conversas que tivemos sobre a implantação do Serviço Social no Meduna,
Cristina (Cris) e Ana Paula, que incondicionalmente, me apoiaram assumindo as
atividades, durante minhas ausências no desenvolvimento do curso.
Ao Dr. Wilson Freitas, pelo incentivo dado a esta pesquisa, sempre atenciosamente
atendendo e orientando-me.
Aos ex-diretores do Sanatório meduna Dr. Lindomar Freitas e Dr. Alberto Mariano,
por conceder minha liberação para freqüentar as aulas do mestrado.
Ao sr. Raimundo Santos, pelo apoio disponibilizando material, indispensável para a
pesquisa.
Ao Dr. Alexandre Parente e sr. Afonso Lima pelo apoio e compreensão, no
desenvolvimento deste estudo.
A todos os usuários e familiares que responderam nosso apelo, aceitando participar da
pesquisa.
A todos os profissionais e funcionários do Sanatório Meduna, em especial aqueles que
participaram da pesquisa.
À professora Lúcia Rosa, pelo apoio dado no desenvolvimento deste estudo.
Aos meus tios Girão e Eneide, que contribuíram substancialmente para a
concretização dos meus estudos e para a minha formação.
À dona Francisca Monteiro (primeira funcionaria do Sanatório), que gentilmente
concedeu-me vários depoimentos para a construção da pesquisa.
À coordenação do Mestrado, na pessoa da Prof. Rosário Silva, a quem tive
oportunidade de reencontrar, após dez anos.
Aos companheiros do mestrado, José Carlos, Aurenice (Aure), Marysol, Marcos
Daniel, Zita Vilar, Miguel, Ana Maria Roberto e Marineves, pela oportunidade de
fazer e construir novas amizades.
Aos professores do mestrado Jesuíta, Francisco Júnior, Fabiano, Dione, Alcides e
Wasghiton Bonfim, pela atenção.
Ao amigo João Filho, pelo apoio nas horas difíceis.
Ao prof. Airton Araújo, pela revisão da dissertação.
Enfim, a todos que direta ou indiretamente contribuíram de alguma forma para a
concretização desta dissertação.
LISTA DE SIGLAS
ACSM – PI Associação Comunitária de Saúde Mental do Piauí
AFDM – Associação de Familiares de Doentes Mentais
AIS – Ação Integrada de Saúde
AIH – Autorização de Internação Hospitalar
APL – Academia Piauiense de Letras
ALMOPISA – Alkool Motor de Piauí
APM – Associação Piauiense de Medicina
APP – Associação Piauiense de Psiquiatria
CAPS – Centro de Atenção Psicossocial
CAPs – Caixa de Aposentadoria e Pensões
CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
COI – Centros de Orientação Infantil
COJ – Centros de Orientação Juvenil
CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas
CNS – Conferência Nacional de Saúde
CNSM – Conferência Nacional de Saúde Mental
DATASUS – Departamento de Informática do SUS
DNS – Departamento Nacional de Saúde
DINSAM – Divisão Nacional de Saúde Mental
EUA – Estados Unidos da América
FMI – Fundo Monetário Internacional
FMS – Fundação Municipal de Saúde
FUNRURAL – Fundo de Amparo ao Trabalhador Rural
HAA – Hospital Areolino de Abreu
HGV – Hospital Getúlio Vargas
HPAA – Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu
IAH – Instituto de Assistência Hospitalar
IAPAS – Instituto de Administração da Previdência e Assistência Social
IAPM – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos
IAPEP – Instituto de Assistência e Previdência do Estado do Piauí
IAPs – Instituto de Aposentadoria e Pensões
IAPFESP – Instituto de Assistência Previdência dos Ferroviários
IAPB – Instituto de Assistência Previdenciária dos Bancários
IAPC – Instituto de Assistência Previdenciária dos Comerciários
IAPI – Instituto de Assistência do Industriário
IAPETC – Instituto de Assistência dos Trabalhadores dos Transportes e Cargas
INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
INPS – Instituto Nacional da Previdência Social
IPASE – Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado
IPUB – Instituto de Psiquiatria
LBA – Legião Brasileira de Assistência
LBHM – Liga Brasileira de Higiene Mental
LOPS – Lei Orgânica da Previdência Social
MPOS – Movimento Popular de Saúde
MRP – Movimento da Reforma Psiquiátrica
MRSS – Movimento de Reconceituação do Serviço Social
MRS – Movimento da Reforma Sanitária
MS – Ministério da Saúde
NAPS – Núcleo de Atenção Psicossocial
OMS – Organização Mundial de Saúde
OPAS – Organização Panamericana de Saúde
SENAC – Serviço Nacional do Comércio
SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
SESI – Serviço Social da Indústria
SINDESPI – Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Saúde do Estado do Piauí
SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social
SNDM – Serviço Nacional de Doenças Mentais
SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
PIASS – Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento no Nordeste
PISAM – Programa Integrado de Saúde Mental
PFL – Partido da Frente Liberal
PLAMTA – Plano Médico de Tratamento e Assistência
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PPA – Programa de Pronta Ação
PSMC – Programa de Saúde Mental Comunitária
PTM – Portador de Transtorno Mental
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
SESAPI – Secretaria de Saúde do Piauí
UI – Unidade de Internação
UIF – Unidade de Internação Feminina
UIM – Unidade de Internação Masculina
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 12
CAPÍTULO I
DOENÇA MENTAL E ASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL .................... 24
1.1 As Políticas de Saúde no Brasil ................................................................................ 24
1.2 A Assistência Psiquiátrica no Brasil ......................................................................... 36
1.3 A Assistência Psiquiátrica no Piauí ........................................................................... 57
CAPÍTULO II
SANATÓRIO MEDUNA: FUNDAÇÃO DO HOSPITAL E ESTRUTURA
FUNCIONAL ................................................................................................................. 78
2.1 Avanço da Psiquiatria Piauiense: Clidenor de Freitas Santos e o Sanatório
Meduna .................................................................................................................... 78
2.2 Os Serviços do Sanatório Meduna e o trajeto do Portador de Transtorno Mental
e de sua Família ....................................................................................................... 91
2.3 O Serviço pavilhonar do Sanatório Meduna e sua rotina ............................................ 95
2.4 O Serviço de Hospital-Dia do Sanatório Meduna ....................................................... 99
CAPÍTULO III
O SERVIÇO SOCIAL COMO PRÁTICA PROFISSIONAL....................................... 104
3.1 O Serviço Social no Brasil ........................................................................................ 104
3.2 O Serviço Social na Saúde Mental ............................................................................ 121
3.3 A prática do assistente social no Sanatório Meduna .................................................. 134
3.3.1 O Serviço Social e a preparação da alta Médico-Hospitalar do PTM ........................ 153
CAPÍTULO IV
O SERVIÇO SOCIAL E A CIDADANIA DO PORTADOR DE
TRANSTORNO MENTAL ............................................................................................ 162
4.1 Cidadania e Serviço Social: bases para a compreensão da prática profissional
junto ao portador de transtorno mental ...................................................................... 162
4.2 Representações da prática do assistente social no Sanatório Meduna ........................ 184
4.2.1 A compreensão do Serviço Social pelos assistentes sociais ...................................... 185
4.2.2 Representação dos usuários e de suas famílias para os assistentes sociais ................. 193
4.2.3 Representação da prática do assistente social para os usuários e seus familiares ....... 198
4.2.4 Os assistentes sociais na visão dos outros profissionais ............................................. 207
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 212
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 218
ANEXOS 227
Lima, Maria José Girão
L 732 p. A prática do assistente social na área da saúde
mental: uma análise centrada na cidadania dos usuários / Maria José Girão
Lima. – Teresina: 2004.
233 p.
Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas) UFPI, 2004
1. Serviço Social – Prática. 2. Saúde Mental – Serviço Social. I
Título
13
INTRODUÇÃO
O presente estudo aborda a prática do assistente social na aérea da Saúde Mental e
tem por objetivos centrais identificar, analisar e refletir sobre essa prática, numa perspectiva
centrada na cidadania e nos direitos sociais dos usuários. É, assim, uma investigação que
busca imprimir um sentido reflexivo e analítico ao processo de inserção e interlocução do
assistente social na saúde mental, em particular no Sanatório Meduna, instituição psiquiátrica
privada da cidade de Teresina, no Estado do Piauí, estabelecendo vínculos e relações com a
cidadania e os direitos dos usuários desse serviço, a partir das experiências concretas, vividas
e experimentadas por esses sujeitos sociais nos nexos cotidianos com esses profissionais.
Dessa forma, o tema proposto e analisado neste estudo teve como objeto central a
prática do assistente social na área da saúde mental, interligando-a à cidadania e aos direitos
dos usuários. A escolha e o interesse por tal temática se fundamentaram no entendimento de
que o trabalho do assistente social, no âmbito institucional do Sanatório Meduna, vem se
desenvolvendo sob a preocupação de se engendrar novos rumos e significados a uma prática
profissional que no, cotidiano, elabora e responde ao conjunto de questões e problemas postos
pelos indivíduos e grupos sociais. Nesse viés, o profissional é a todo o momento solicitado a
intervir nas mais diversas situações, marcadas pelos movimentos, contradições e dilemas
presentes na sociedade em geral e na vida dos indivíduos e grupos com os quais mantêm
relações profissionais, pelo que dele se exige um posicionamento teórico e metodológico,
resolutivo e capaz de redirecionar os conflitos e tensões inerentes aos seus espaços
ocupacionais, na perspectiva dos direitos e da cidadania dos usuários.
O impulso à pesquisa se deu, então, pelo desejo de compreensão mais clara sobre
a prática do assistente social na instituição psiquiátrica, observando e analisando até que
ponto ela está comprometida com a cidadania e os direitos dos usuários, uma vez que leva em
conta um contexto multidimensional em que estão inseridos a história, a sociedade, a
instituição psiquiátrica e os sujeitos participantes da investigação, na conjuntura da realidade
brasileira e piauiense. Na verdade, refletir acerca da prática do assistente social no espaço da
referida instituição psiquiátrica, observando sua vinculação com a cidadania e os direitos dos
usuários, mostrou-se uma fonte de motivação que desafia e encanta. Desafia porque se
14
pretende analisar um processo que envolve os próprios sujeitos sociais dessa prática,
captando, apreendendo e recolhendo as suas falas, discursos, opiniões e vivências objetivas e
subjetivas, em dados momentos e situações. E encanta porque moveu a pesquisadora a trilhar
um caminho que se configura como o próprio campo de sua atuação como assistente social,
há alguns anos como membro da equipe interdisciplinar na área da saúde mental, vivenciando,
no cotidiano, os movimentos que permeiam a prática profissional dentro de um universo
social, em contínua transformação e acomodação.
Assim, a vivência cotidiana na área determinou a escolha da temática, que se vem
constituindo em interesse da pesquisadora desde as primeiras incursões e experiências, na
condição de estagiária do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Piauí, no
Hospital Areolino de Abreu, no início da década de 1990, e depois como assistente social e
como cidadã que, ao longo desses anos, tem experienciado um conjunto de múltiplas
situações, ainda pouco trabalhadas, pelo que algumas indagações se firmaram, a exigir
respostas. Quais têm sido de fato as preocupações centrais da prática do assistente social no
Sanatório Meduna, em termos de demandas e necessidades dos indivíduos e grupos sociais
com os quais mantêm relações e vínculos profissionais? Que direções têm tomado essa prática
na atualidade? Até que ponto a prática do assistente social está mesmo voltada para a
cidadania e os direitos dos usuários desse serviço de saúde? Quais os limites dessa prática no
Meduna? De que modo tem ela contribuído no tratamento e recuperação do portador de
transtorno mental (PTM)? Que representações se constroem entre os sujeitos no Sanatório,
sobretudo sobre os assistentes sociais, os usuários e as famílias dos usuários?
Essas e outras interpretações dão um sentido social à reflexão da prática
profissional do assistente social no Sanatório Meduna, levando em consideração as relações
sociais tanto no que se refere ao contexto imediato, singular e particular dessa prática
profissional, quanto às com o contexto mais global da sociedade, pois é na vida cotidiana que
“se consolidam, se perpetuam ou se transformam, no mundo moderno, as condições de vida
mais amplas [posto que] [...] é nela e sobre ela que realizamos nossa prática” (CARVALHO,
1996, p.51). Desse modo, este estudo leva em conta que a profissão de Serviço Social é “aqui
compreendida como um produto histórico, e, como tal, adquire seu sentido e inteligibilidade
na história da sociedade da qual é expressão” (IAMAMOTO, 1998, p.203). Disso decorre
que, historicamente, no contexto da sociedade brasileira, o Serviço Social insere-se e se
concretiza a partir da divisão social e técnica do trabalho e do conjunto das necessidades dos
indivíduos e grupos que a ela compõem, sendo uma profissão social e contraditoriamente
15
determinada por múltiplas relações, afirmando-se como especialidade do trabalho em íntima
vinculação com o processo de formação da questão social, que no Brasil emergiu no final do
século XIX. Para Cerqueira Filho (1982), nesse período, a questão social que era tratada com
todo o rigor pela polícia, era ocultada pelas elites oligárquicas da época, que a viam como
irreal, ilegal e subversiva, em síntese um „caso de polícia‟, cujo tratamento severo ocorria no
interior dos aparelhos estatais. É que a questão social não sensibilizava os dirigentes desse
poder oligárquico, encarada que era como fato pontual e excepcional.
Somente nas três décadas iniciais do século XX, em meio à implantação e o
fortalecimento do capitalismo, a questão social ganhou um novo significado político,
tornando-se premente e requerendo do Estado um outro tipo de enfrentamento, que não
apenas a repressão. Essa época é marcada por intensos processos de urbanização e
complexificação das relações sociais e da intensificação de protestos, por melhorias urgentes,
da classe trabalhadora. Em tal contexto, a realidade social passava por fortes mudanças nos
aspectos econômico, político, social e cultural em razão dos quais o Estado implementava
medidas estratégicas sob um aparato legal.
É assim, nesse contexto de adversidades, que, surgirá, na década de 1930, o
Serviço Social, no seio do bloco católico, como desdobramento da união de setores da Igreja e
de grupos estatais ligados a ela, tendo como objetivo principal propagar os ideários da
Doutrina Social da Igreja e intervir na realidade social para enfrentar a questão social,
humanizando-a. O Serviço Social nasce, então, para atender a um conjunto de exigências e
necessidades do processo de industrialização, devendo intervir na questão social sob o
princípio da visão cristã, embora as medidas levadas a efeitos pela Igreja Católica, baseadas
na caridade e na filantropia, já não mais davam conta de responder à problemática, que se
complexificava, sob a égide do desenvolvimento capitalista. Nesse âmbito, serão criadas
diversas instituições estatais e não estatais onde atuará o assistente social, um profissional
munido de instrumentos e métodos que o auxiliariam no gerenciamento dos conflitos sociais e
na “suavização” da questão social.
Nessa conjuntura de mudança, a profissão de Serviço Social se institucionalizará
no país, no seio da sociedade brasileira e no interior das grandes instituições, como parte
constitutiva e constituinte dessa sociedade. Aliás, a ação social do Serviço Social fica
fortemente atrelada ao Estado, posto que o assistente social atua em face das políticas sociais
implementadas pelas instituições assistenciais estatais e não-estatais, imprimindo à prática
profissional uma racionalidade e uma sistematização dentro da lógica prevista por essas
16
entidades, que era a de impor à sociedade, sobretudo à classe trabalhadora, o estímulo e a
cooperação entre as classes, estabelecendo o consenso para a aceitação das relações sociais
em vigor.
Vale ressaltar que em consonância com os objetivos delineados para este estudo,
interessa uma análise o mais profunda possível do Serviço Social, sobretudo a partir do
Movimento de Reconceituação (MRSS), ocorrido na categoria na década de 1960, tanto no
continente latino-americano quanto no Brasil, significando um marco histórico e “decisivo no
desencadeamento do processo de revisão crítica do Serviço Social no continente”
(IAMAMOTO, 1998, p.205). Nesses termos, o Movimento de Reconceituação acontece num
contexto econômico, político, social e histórico das sociedades latino-americana e brasileira,
marcado por amplos questionamentos e críticas às formas tradicionais e conservadoras de
intervenção da profissão, tendo como base, até então, os fundamentos do positivismo e do
funcionalismo. Foi esse um momento fértil, quando se problematizaram a prática profissional
e os princípios teóricos e metodológicos que a embasavam até então, buscando-se um novo
posicionamento e imprimindo a ela rumos, direções e práticas que rompessem e superassem a
postura conservadora que lhe vincava.
Esse processo amadureceu na década de 1980, quando são fomentadas novas
discussões e posturas profissionais. Isso se dá num cenário de efervescência política e social
balizado por uma ampla transformação social e pela redemocratização do país, com a
superação da ditadura militar e a reorganização dos movimentos sociais, o que culmina na
promulgação da Constituição Federal de 1988, que reconhece a todos os brasileiros como
cidadãos e por isso consolida e alarga os direitos sociais dos trabalhadores,
independentemente de contribuição, raça, cor, sexo, religião ou credo. Nesse contexto, sob
uma nova perspectiva e uma atmosfera democrática, nos anos de 1990 o Serviço Social
engendra novos rumos e direções para a sua prática profissional, balizando-se na defesa dos
direitos e da cidadania da população e dos grupos sociais mais empobrecidos e destituídos da
riqueza produzida socialmente. Por isso que a profissão de Serviço Social, como um elemento
constituinte e constituído pelo conjunto dos vínculos, nexos e processos contraditórios que se
estabelecem no interior da sociedade capitalista e das relações humanas e sociais, entra no
novo milênio, postulando novas propostas e assumindo e fortalecendo novos compromissos
ético-políticos, quer como categoria, quer como um dos protagonistas desse elenco de
mudanças, no sentido de garantir os direitos e a cidadania dos usuários dos serviços e das
políticas sociais.
17
É, assim, em sintonia com o conjunto dessas transformações, ocorridas na
sociedade brasileira e na profissão, que o tema aqui analisado brotou e se desenvolveu, tendo
como referência a prática do assistente social na área da saúde mental, centrada na cidadania e
nos direitos dos usuários desse serviço especializado. Na verdade, a procura se dá pela
apreensão de que a profissão de Serviço Social é um produto de múltiplas determinações, não
estando determinada aprioristicamente, pois o sentido que os profissionais imprimirão à sua
prática sofre os reflexos das lutas, contradições e dilemas de uma conjuntura mais ampla, num
movimento contínuo, dinâmico e contraditório que envolve a sociedade, os indivíduos e os
grupos sociais. Significa dizer que os processos de inserção do profissional de Serviço Social
no universo das diversas instituições se faz de acordo com a historicidade e dinamicidade da
sociedade e de suas relações sociais, podendo assumir diferentes posições, segundo a maneira
de ver e conceber a realidade social e o agir sobre ela.
Nessa direção, o estudo busca analisar, os diversos processos que envolvem a
dialeticidade e historicidade que marcam a profissão de assistente social, ao inserir-se, em
dadas circunstâncias, nas várias instâncias da sociedade, como o Estado, as instituições, os
grupos e as classes sociais, que se encontram em permanente movimento de luta,
estabelecendo múltiplas relações, significados e rumos. Assim, o objetivo é mesmo
compreender a prática profissional do assistente social na área da saúde mental, dentro de um
movimento dinâmico em que se estabelecem vínculos e relações com os grupos sociais,
sobretudo com os mais empobrecidos, tomando como referência uma perspectiva ampla, que
envolve os nexos, ligações, vínculos e processos que perpassam esse fazer, na concretude de
cada realidade, evidenciando-se na totalidade e na historicidade de uma dada realidade social,
institucional e profissional, sob os aportes da dialética crítica.
A adoção de um percurso metodológico ancorado na dialética crítica se justifica
na medida em que esta aborda o real no contexto das múltiplas relações sociais e na
perspectiva dos movimentos da totalidade histórica e da contraditoriedade dos problemas,
necessidades, lutas e reivindicações sociais, que envolvem práticas e sujeitos concretos. Nessa
ótica, a sociedade é uma estrutura complexa, multidimensional, contraditória e em
permanente movimento, na qual os sujeitos que a compõem vivenciam múltiplas experiências
e sentimentos diversos e dilemáticos, como atores protagonistas da história, de sorte que
através da dialética crítica é possível adquirir o suporte para se compreender de modo mais
amplo a totalidade e as nuances da realidade complexa da prática do assistente social em
dadas instituições e espaços de atuação profissional. Nessa perspectiva, leva-se em
18
consideração, de forma articulada, contraditória e dinâmica, elementos de análises como
objetividade, subjetividade, totalidade, particularidade, singularidade, transitoriedade,
historicidade, cultura, ideologia, etc. Aliás, diz Michael Löwy (1985, p.14) que
a hipótese fundamental da dialética é de que não existe nada eterno, nada
fixo, nada absoluto. Não existem idéias, princípios, categorias, entidades absolutas, estabelecidas de uma vez por todas. Tudo o que existe na vida
humana e social está em perpétua transformação, tudo é perecível, tudo está
sujeito ao fluxo da história.
Enfim, a dialética leva a pensar a realidade e o sujeitos sociais em permanente
contradição e dinamicidade, num movimento contínuo de acomodação e transformação.
Como método de investigação da realidade, insere-se no quadro das abordagens qualitativas
de estudo, que tentam analisar os objetos investigados numa dimensão de totalidade e
dinamicidade históricas. Nesse sentido, a escolha por essa abordagem é explicável por
Minayo (2002, p.21-2) quando diz que
a pesquisa qualitativa responde a questões muitas particulares. Ela se
preocupa nas ciências sociais com um nível de realidade que não pode ser
quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais
profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis.
É por essa perspectiva que se pretende, neste estudo, conceber que a profissão e a
prática profissional do assistente social, que ao assumir rumos e sentidos variados no seu
processo de inserção na dinâmica societária, enfatiza que isso não está determinado a priori. É
que, mesmo sendo, em última instância, socialmente determinado pelas relações e pelo modo
de produção capitalista, o Serviço Social, ao inserir-se historicamente nas sociedades
brasileira e piauiense, na trama das relações sociais, permeia e é permeado por interesses,
conflitos, dificuldades, contradições e dilemas, inerentes à essas sociedades, em permanente
processo de transformação. Dessa forma, é possível que, em dados momentos e circunstâncias
históricas a direção que os profissionais imprimem a sua prática depende do conjunto das
forças sociais em luta, podendo engendrar ações no rumo de corroborar, de alguma forma,
para a defesa e a garantia dos interesses dos grupos mais empobrecidos e excluídos da
sociedade, ou, ao contrário, assumir, na sua intervenção, os pleitos dos setores mais abastados
e detentores do poder econômico e político. No entanto, nesse estudo parte-se do
19
entendimento de que, não existe um Serviço Social que canalize suas ações somente aos
setores mais abastados da sociedade ou que assuma uma posição apenas favorável aos setores
mais empobrecidos, pois, como já se afirmou, a profissão e os profissionais, no seu cotidiano,
influenciam e são influenciados, pelo complexo das múltiplas relações sociais em confronto,
de sorte que, num contexto social mais amplo, os rumos, sentidos e limites que o profissional
de Serviço Social imprime à sua prática estão relacionados a fatores que lhes são internos e
externos e lhes influenciam cotidianamente.
Como exposto anteriormente, a instituição escolhida como lócus é o Sanatório
Meduna, o que se justifica por se constituir ela num dos centros de referência na assistência
em saúde mental no Piauí e mesmo para alguns estados vizinhos, como o Maranhão e por ser
o espaço ocupacional da pesquisadora, onde exerce a prática profissional de assistente social,
despertando-lhe assim, o interesse de melhor conhecer o Serviço Social do hospital, posto que
nele também atuam outros profissionais da área. Ademais, o Sanatório Meduna é uma
instituição ainda pouco explorada por pesquisas acadêmicas, apesar do meio século de
existência prestando serviços de saúde mental à comunidade, sobretudo a piauiense.
No geral, o universo da pesquisa se constitui pelo grupo de profissionais de nível
superior do Sanatório Meduna que compõem a equipe interdisciplinar do setor de Internação
Integral, ou convencional. A escolha desses sujeitos1 está baseada numa amostra intencional,
estabelecida em função dos objetivos a alcançar, de modo que, no que respeita ao quadro de
assistentes sociais, que totaliza quatro profissionais, incluindo a pesquisadora, três delas
foram envolvidas, sem mencionar que dos 16 profissionais que compõem a equipe dos demais
profissionais do Sanatório Meduna, entre psiquiatras, enfermeiros, terapeutas ocupacionais,
educador físico, nutricionista e psicólogos, três destes foram envolvidos na pesquisa.
Participaram também dois diretores (um clínico e um dos fundadores da instituição que atuou,
igualmente, como diretor clínico, por várias décadas). Do universo dos usuários, que
correspondia a 220 na época da realização da pesquisa de campo2, formou-se uma amostra de
pelo menos 5%, o que equivale a onze usuários, com suas respectivas famílias ou
responsáveis, totalizando, assim, 22 pessoas. Essa escolha dos usuários levou em conta
critérios como se achar internado no Sanatório entre os meses de novembro de 2003 a janeiro
de 2004, ter alta médica marcada ou prevista, possuir mais de uma internação no Meduna, o
grau de interesse em participar das atividades efetivadas sob a orientação da assistente social,
1 Neste estudo, os nomes dos sujeitos participantes serão fictícios, como forma de garantir o anonimato das
pessoas entrevistadas. 2 O período da realização da pesquisa de campo compreendeu os meses de novembro de 2003 a janeiro de 2004.
20
como Grupo Informativo, Grupo Terapêutico, Recreação e Festas Comemorativas, e a
condição psíquica ao tempo da pesquisa, em termos de diálogo e orientação no tempo e
espaço, etc. São, no caso, trinta o total de sujeitos entrevistados3, sempre sob o devido
consentimento.
Todos esses sujeitos têm importância e significação no processo de luta, reflexão e
construção da prática profissional do Serviço Social no Sanatório Meduna. São, aliás, estes
sujeitos assistentes sociais, usuários, familiares, demais profissionais da equipe
multiprofissional e representantes da direção que convivem e mantêm uma interação no
mesmo espaço de trabalho e compartilham das ações voltadas para o tratamento especializado
do transtorno mental.
Antes da coleta de dados, realizaram-se junto aos sujeitos envolvidos, inúmeros
contatos formais e informais, com reiteradas explicações sobre os objetivos e a importância da
pesquisa, sendo, nessas ocasiões, solicitados o apoio e a cooperação, de acordo com o
interesse e a possibilidade de cada um. Aproveitou-se principalmente os horários de visitas
dos familiares dos usuários ao Sanatório Meduna para o contato com eles, embora outros se
tenham realizado ora por telefone, ora pessoalmente, já que um levantamento prévio dos
usuários de alta nos meses da realização da pesquisa de campo foi efetivado para um
planejamento das entrevistas. Esse foi, sem dúvida, um momento de maior aproximação com
os sujeitos, em particular com as famílias, sondando-se seu desejo e interesse em participar do
processo de construção do estudo.
Com essas informações preliminares, elaborou-se um roteiro de entrevista semi-
estruturada, que considerou alguns eixos centrais a fim de atingir os objetivos pretendidos.
Nesse sentido, toma-se como referência Triviños (1987, p.146) quando diz que “a entrevista
semi-estruturada [...], ao mesmo tempo em que valoriza a presença do investigador, oferece
todas as perspectivas possíveis para que o informante alcance a liberdade e a espontaneidade
necessária, enriquecendo a investigação”. Esse entendimento deu ao roteiro de entrevista três
eixos principais:
a) A experiência concreta do assistente social (o que faz; como faz; por que faz; quais
as dificuldades, possibilidades e limites da prática profissional);
3 O número de trinta sujeitos entrevistados atendeu aos objetivos planejados para este estudo.
21
b) A relação profissional x usuários e suas famílias (como se dá; qual a visão que o
profissional tem dos usuários e de sua família e que as famílias e os usuários têm
dos assistentes sociais);
c) A relação profissional do Serviço Social x instituição e equipe interprofissional
(como se dá; como a instituição e a equipe vêem o Serviço Social e quais as
dificuldades, limites e possibilidades dessa relação na perspectiva dos direitos dos
usuários).
Sob esses eixos norteadores, em seguida foi feita a formalização das entrevistas
que, mediante o aval dos sujeitos, foram gravadas em fita K7. Essa gravação possibilitou a
análise das questões centrais à prática do assistente social na relação com os usuários e suas
famílias, a instituição e a equipe interdisciplinar, mostrando com mais evidência as lutas,
contradições e dilemas presentes no cotidiano profissional.
As entrevistas realizadas com as assistentes sociais duraram em média de 1h30 a
2h e foram realizadas em novembro de 2003. Na ocasião, as profissionais se mostraram de
imediato interessadas em apoiar e cooperar com a presente pesquisa, sendo que uma delas não
aceitou a gravação. De modo geral, no desenvolvimento das entrevistas, tentou-se colher e
valorizar as falas, as expressões, os gestos, os olhares, enfim, os dados de natureza mais
qualitativa, por serem carregados de múltiplos significados.
No que tange aos outros profissionais, foram entrevistados um psiquiatra, uma
psicóloga e uma enfermeira, tendo-se a preocupação de se escolher aqueles que, além de
interessados em participar da pesquisa, também se mostraram mais próximos às atividades
desenvolvidas pelas assistentes sociais. O tempo de duração das entrevistas foi, em média, de
40 minutos, e foram realizadas no mês de janeiro de 2004.
Com relação aos membros da direção, foram escolhidos, conforme explicado, o
atual diretor técnico e o ex-diretor, um dos fundadores do Sanatório Meduna. O primeiro
representa a possibilidade de se ter uma nova visão na forma de dirigir e administrar o espaço
institucional, dando um redirecionamento à assistência psiquiátrica e um novo olhar sobre a
atuação do assistente social. Já o segundo, como sócio e fundador, apresenta uma larga
experiência, vivência e convívio com a realidade da instituição psiquiátrica, de sorte que,
como um estimulador da criação do Setor de Serviço Social, enquanto esteve na direção,
sempre motivou e valorizou os seus profissionais no desenvolvimento de suas atividades. As
22
entrevistas tiveram o tempo médio de 1 hora de duração e foram realizadas no mês de janeiro
de 2004.
Já os usuários em internação integral e suas respectivas famílias ou responsáveis,
num total de 22 que se mostraram interessados em participar da pesquisa, as entrevistas com
eles duraram em media de 40 minutos a 1 hora e sua realização se deu no período de
novembro de 2003 a janeiro de 2004, sendo que seis famílias foram entrevistadas pela
pesquisadora no próprio Sanatório, pois assim preferiram, enquanto as outras o foram em
casa, após combinados horário e data, de acordo com a disponibilidade de cada uma. No
geral, em todas as entrevistas se tentou enfatizar os aspectos e dados mais qualitativos,
havendo, quando necessário, uma adaptação do roteiro, cujos três eixos foram delineados para
as entrevistas com as assistentes sociais.
Além da entrevista semi-estruturada, realizada com todos os sujeitos, um outro
instrumento foi a observação participante, uma técnica com a qual se pode captar os
fenômenos da realidade social não percebidos através de perguntas. O seu uso requer que o
pesquisador esteja diretamente no campo, no meio das situações em que o objeto de estudo se
manifesta, tendo ocorrido no cotidiano da instituição, onde se observaram as diversas
situações concretas correlatas à prática do assistente social no dia-a-dia de trabalho, bem
como sua importância e riqueza. Ademais, para entender a prática do assistente social no
Sanatório Meduna, mesmo com a escassez de dados documentais, garimparam-se
informações em alguns textos, como os livros de relatórios do Serviço Social, as quais foram
anotadas em diário de campo, sem mencionar que todo o acervo de dados foi subsidiado e
enriquecido, pelo aporte de informações apreendidas sobre Saúde Mental e Serviço Social
constantes nas referências bibliográficas aposta ao final deste estudo.
Os depoimentos contidos nas entrevistas foram trabalhados numa perspectiva da
dialética crítica, por meio da organização de temas, questões e experiências que destacaram os
movimentos, as lutas, as contradições, enfim, a totalidade histórica dessa prática profissional
na saúde mental, sobretudo do ponto de vista da cidadania e dos direitos sociais dos usuários e
familiares. Deve-se, porém, reafirmar que a pesquisa enfatiza o momento atual da prática do
assistente social no Sanatório Meduna, mas entendeu-se necessário e importante, para se
compreender tal momento, percorrer sinteticamente a prática do assistente social no país
desde a década de 1970, sobretudo aquela relacionada à saúde mental, interrelacionando-a
com o contexto mais amplo da realidade brasileira. Por fim, esse longo caminho em que se
tenta sistematizar e analisar as informações e dados apreendidos, procede-se à análise da
23
inserção do Serviço Social no Sanatório Meduna, tendo-o como um agente construtor e
propulsor de relações e mediações entre o usuário, a família, a instituição e a sociedade, cujos
movimentos estabelecem significados, rumos e dinâmicas variados e múltiplos, que, em
última instância, objetivam estar, cada vez mais, em sintonia com a garantia da cidadania e
dos direitos do PTM.
Em termos gerais, as principais dificuldades e desafios ao desenvolvimento desta
pesquisa foram os concernentes à falta de arquivos documentais acerca da criação do Serviço
Social na instituição, o que levou a ter como fonte principal de informação as falas, discursos
e expressões dos sujeitos entrevistados, na construção e reconstrução do processo de inserção
do profissional de Serviço Social no Meduna. Houve, também, situações em que os usuários
selecionados, no momento de entrevista, não tiveram condições de participar, por se
encontrarem com quadro de desorientação, inquietação e discurso fragmentado, sendo
necessário adiar ou escolher um outro PTM para substituí-lo, sem dizer da escassez de
literatura que aborde a intervenção do assistente social nessa área, tanto no Brasil quanto no
Piauí.
Almejando atender aos objetivos expostos, o resultado do presente estudo
encontra-se estruturado, neste Relatório, em quatro capítulos. No primeiro, “Doença mental e
assistência psiquiátrica no Brasil”, reconstrói-se a trajetória das manifestações da doença
mental no Brasil, em particular no Estado do Piauí, enfatizando as principais medidas
adotadas pelo poder público na direção do processo de institucionalização da assistência
psiquiátrica no estado, observando os seus desdobramentos nas sociedades brasileira e
piauiense. Para isso, desenvolve-se uma análise geral, de caracterização das Políticas de
Saúde em geral e de Saúde Mental no Brasil, ressaltando-lhes os avanços, dilemas,
contradições e recuos, ao longo de seu processo de constituição na sociedade brasileira.
No segundo capítulo, “O Sanatório Meduna: fundação do Hospital e estrutura
funcional”, examina a trajetória histórica do precursor da psiquiatria piauiense, Clidenor de
Freitas Santos, enfatizando as principais medidas adotadas no redirecionamento da assistência
psiquiátrica no Piauí e o processo de fundação e estruturação do Sanatório como uma
instituição privada que, mantêm convênio com o Sistema Único de Saúde (SUS) e há meio
século presta assistência psiquiátrica no Estado do Piauí. Além dos avanços e recuos da
psiquiatria piauiense, enfoca-se ainda, os serviços oferecidos pelo Meduna e o percurso do
PTM e família no seu interior, bem como uma análise do funcionamento e estrutura interna da
instituição.
24
O terceiro capítulo, “Serviço Social como prática profissional”, dedica-se ao um
estudo mais amplo e profundo do processo de constituição do Serviço Social no Brasil, a
partir, sobretudo, do Movimento de Reconceituação do Serviço Social (MRSS), que emergiu,
em 1965, numa conjuntura de inúmeras transformações econômicas, políticas, sociais,
ideológicas e culturais que floresceram nas sociedades brasileira e latino-americana,
Movimento esse que, questionou os aportes teóricos, metodológicos e políticos que até então
sustentavam a profissão. Nesse sentido, faz-se um balanço dos principais aspectos do
surgimento do Serviço Social e seus desdobramentos como sujeito histórico no processo de
enfrentamento da questão social no Brasil, bem como se examina o processo de inserção e
interlocução do assistente social na área da saúde mental na sociedade brasileira, em
particular no Sanatório Meduna, particularizando-a e articulando-a com a viabilização e a
garantia da cidadania e dos direitos do PTM.
O quarto capítulo, “O Serviço Social e a cidadania do portador de transtorno
mental”, dedica-se à análise, reflexão e ampliação do entendimento do significado do
processo de constituição da cidadania no Brasil e da relação do Serviço Social com a
temática. Em sintonia com os capítulos anteriores, a cidadania se demarca pela superação de
seu conceito clássico por uma nova perspectiva, que a abrange como um processo histórico
em constante movimento, mutação, consolidação e aperfeiçoamento. Com base nessas
considerações, discute-se a apreensão das representações construídas acerca da prática
profissional do assistente social pelo conjunto dos diversos sujeitos protagonistas do estudo,
tomando como ponto de partida suas falas, gestos, sentimentos, expressões, saberes, desejos,
vontades, vivências e experiências, evidenciado-se os usuários, a instituição psiquiátrica, a
família, as assistentes sociais, os demais profissionais, pelo elucidamento das inúmeras
representações ou “imagens sociais”, da prática do assistente social no Sanatório Meduna,
notadamente ao estabelecerem relações profissionais.
Em síntese, esta pesquisa pretende contribuir para o enriquecimento das reflexões
acerca dos processos de inserção do assistente social nos diversos espaços ocupacionais na
sociedade brasileira, em especial na área da saúde mental no Sanatório Meduna e no Estado
do Piauí, fomentando-se novos questionamentos nessa área, protagonizada por assistentes
sociais, mas ainda carente de análises. Por último, busca este estudo o fortalecimento das
ações dos assistentes sociais na perspectiva dos direitos e da cidadania dos usuários dos
serviços sociais, particularmente os de saúde mental.
CAPÍTULO I
DOENÇA MENTAL E ASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL
Este capítulo tem por objetivo contextualizar historicamente as manifestações da doença mental no Brasil, sobretudo no Estado do Piauí, ressaltando as principais medidas tomadas pelo poder público na área e seus desdobramentos nas sociedades brasileira e piauiense. Para isso, será feita, primeiramente, uma caracterização geral da trajetória das Políticas de Saúde no Brasil, com seus avanços e recuos.
1.1 As Políticas de Saúde no Brasil
Diferentemente do que ocorreu nos países centrais, as políticas de proteção social
no Brasil, sobretudo as Políticas de Saúde, tiveram, segundo especialistas como Bravo (2000),
Conh (2001), Faleiros (2000) e Draibe (1990), um desenvolvimento lento, frágil e tardio, além
de historicamente manter íntima relação com o processo de acumulação capitalista, no sentido
de que, por um lado, o seu uso e gestão pelo Estado se dá como mecanismo de intervenção na
sociedade brasileira, objetivando, em última instância, garantir a reprodução das relações
sociais fundamentais dessa sociedade. Por outro, as políticas de proteção social, nos diversos
contextos histórico-políticos de constituição da sociedade brasileira, representam também um
processo de luta e conquista de cidadania do povo, em especial dos setores organizados. Não
obstante, a efetivação e consolidação das Políticas Sociais, em particular das Políticas de
Saúde, como conquista da cidadania, não está acabado, pois vem sendo (re) construído e (re)
efetivado ao longo da história do país, apesar dos avanços, recuos, limites e dificuldades de
ordem e natureza variadas ainda não plenamente superados e que convivem, ao mesmo
tempo, com novos desafios e exigências, impostos por uma sociedade em permanente
mudança.
Nesses termos, os diversos problemas relacionados à área de saúde no Brasil, nos
seus diferentes momentos históricos, vêm, desde a década de 1920, sendo postos, pela
sociedade, como uma questão a ser enfrentada pelo poder público de forma mais
sistematizada. Na verdade, os problemas sociais e os da área da saúde se agravam por conta
de um conjunto de alterações nos modos de organização social, econômica e política, tendo,
163
segundo Bravo (2000, p.105), “como indicadores mais visíveis o processo de industrialização,
a redefinição do papel do Estado” e outros requerimentos advindos, principalmente, da classe
trabalhadora, o que fez com que o Estado adotasse medidas mais planejadas para atender aos
reclamos da reestruturação por que passava a sociedade, à época.
Nesse contexto de profundas mudanças na organização econômica, política e
social, as Políticas de Saúde no Brasil se vêem, no decorrer de sua trajetória, transpassada por
dilemas e impasses ainda não superados e, às vezes, agravados, como, por exemplo, a falta de
recursos financeiros próprios para o setor, o incentivo e privilégio aos serviços médicos do
segmento privado em detrimento da valorização do público e a ênfase nas medidas de caráter
mais curativo que preventivo. É que, até então, a saúde era compreendida sob a lógica de
ausência de doenças, deslocada, assim, de uma visão mais ampla, que as vê no interior de um
processo social, histórico e contraditório, em permanente transformação e acomodação.
No Brasil, esse entendimento estreito só veio a ser superado, alcançando-se uma
amplitude mais expressiva, com a Constituição de 1988, porquanto “a proteção social, até
então praticamente restrita aos contribuintes do sistema previdenciário, foi estendida à
população em geral [...], bem como se viu afirmada a universalização dos serviços de saúde e
de assistência social” (COHN, 2001, p.55). É, pois, nessa Carta, que há a tentativa de
superação do velho conceito de saúde, relacionado à ausência de doenças, agora tida como um
direito do cidadão e um dever do Estado, que deve gestá-la para todos, sem nenhuma
distinção de raça, sexo, cor ou classe social. Com efeito, com o Texto de 1988 a saúde passa a
definir-se sob uma ótica mais ampla, compreendida no contexto das condições sócio-
econômicas dos indivíduos, grupos e classes sociais, inserindo-se nelas a moradia, a
educação, a alimentação, o trabalho, o lazer e a cultura vivenciados pela população e agora
um direito universal, independentemente de qualquer contribuição prévia, uma vez que se
trata de elemento da cidadania dos homens e mulheres do país. A saúde, por esse ângulo, é
um processo social sempre em construção e maturação e, assim, nunca acabado, podendo-se,
então, dizer que “o sistema de saúde transitou do sanitarismo campanhista (início do século
XX até 1965) para o modelo médico-assistencial privatista, até chegar, no final dos anos 80,
ao modelo plural, hoje vigente, que inclui, como sistema público, o SUS” (MENDES, 1999,
p.58).
Na verdade, um dos primeiros sistemas de Política de Saúde adotados no Brasil,
como forma de enfrentamento da questão social, deu-se no início do século XX, foi o
“Sanitarista Campanhista”, levado a cabo pelo Estado brasileiro sob dois sub-setores: saúde
164
pública e medicina previdenciária. A concepção de saúde do modelo campanhista baseava-se
numa explicação monocausal dos problemas relacionados à área que, segundo Mendes (1999,
p.58), “se explicam por uma relação linear entre agente e hospedeiro”, entendendo-se então
que o combate à doença era possível pelo rompimento dessa relação linear, através de
medidas intervencionistas de cunho repressivo. A adoção do modelo é uma resposta às
adversidades da conjuntura dos anos de 1930, cujos acontecimentos principais se vinculavam
à crise mundial do capital, a chamada “grande depressão”.
Trata-se de uma conjuntura de franca expansão urbano-industrial do país, marcada
por forte crise social, com desemprego, baixos salários e migração do campo, o que agravava
profundamente as condições de vida da população que, nesse momento, organizava-se de
modo crescente e significativamente, reivindicando melhorias e garantias de direitos, como
dentre outros, férias e redução da jornada de trabalho. Tal contexto, se comparado a outros
períodos, conclamava o Estado brasileiro a redirecionar suas ações e a reconhecer os
problemas sociais e seus reflexos na área da saúde como questão política a ser enfrentada e
solucionada sob seu comando e direção. São, por isso, elaborados e implementados pelo
Estado, como resposta, aparatos político-estratégicos de intervenção na saúde, procurando
canalizar as tensões sociais que, à época, se formavam.
Assim, a grande preocupação do governo na área da saúde pública, pelo menos no
início, volta-se para a melhoria das condições sanitárias básicas da população, principalmente
no setor urbano do país, já que, na área rural, as ações foram tímidas e pouco intensas. Por
conseguinte, nas décadas de 1930 e 1940, as medidas centrais se referem ao planejamento de
campanhas sanitárias e à coordenação dos serviços estaduais de saúde, sob o comando do
Departamento Nacional de Saúde (DNS), que leva para as principais cidades e para as áreas
rurais o combate às endemias, como malária, febre amarela, gripe espanhola, varíola, dentre
outras doenças comuns à época. Não obstante, segundo Draibe (1990), Bravo (2000) e
Faleiros (2000), o principal interesse do governo com as campanhas sanitárias era sanear os
portos marítimos e as ruas de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, visando proteger o
comércio e a nascente indústria, de modo a garantir o processo de acumulação do capital.
O governo também agiu, embora com menos ênfase, no campo da medicina
previdenciária, implementando-se em 20 de janeiro de 1923, por lei do deputado paulista Elói
Chaves, as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAP‟s), na verdade a primeira forma de
seguro para os trabalhadores. A CAP‟s pioneira foi a dos ferroviários, criada pelo decreto
federal 4.682, de 24 de janeiro de 1923, que estendia os benefícios para outras empresas com
165
mais de cinqüenta empregados em seus quadros, sendo esse tipo de previdência fortalecido
pelo poder público nos anos de 1960 (COHN, 2001), valendo porém lembrar que, já em 1919,
tinha sido aprovada, por ações do senador paulista Adolpho Gordo, uma lei de seguros de
acidentes de trabalho operados por seguradoras particulares. O principal caráter das CAP‟s era
promover amparo médico assistencial aos formalmente inseridos no mercado de trabalho que
para elas contribuíam, de modo que o acesso a esses serviços era, assim, restrito, com as
CAP‟s organizadas por empresas e administrado e financiado o sistema pelo empresariado e
os trabalhadores.
Em 1933, foram criados, pelo governo brasileiro, os Institutos de Aposentadorias
e Pensões (IAP‟s), que abrangiam serviços diferenciados, como aposentadorias, auxílios-
doença e auxílios-funeral, também não estendidos a todas as categorias de trabalhadores, já
que, num primeiro momento, destinavam-se apenas às ligadas à infra-estrutura de serviços
públicos e, posteriormente, a outros setores, como os ferroviários e os portuários. Para Bravo
(2000 p.106), a criação desse sistema “pretendeu estender para um número maior de
categorias de assalariados urbanos os seus benefícios como forma de antecipar as
reivindicações destas categorias e não proceder a uma cobertura mais ampla”.
Na verdade, só tinham acesso a esses benefícios os trabalhadores reconhecidos,
pelo governo, como integrantes de categorias importantes ao processo de produção que se
encontrassem em situação ocupacional legitimada pelo vínculo contratual contributivo.
Nesses termos, só eram cidadãos os trabalhadores com profissão reconhecida em lei como
atividade laborativa, de modo que homens e mulheres não enquadrados nesse perfil eram
tidos como pré-cidadãos, condição essa que abrangia larga parcela da população brasileira,
como os trabalhadores do campo. A carteira de trabalho passa então a ser o principal
instrumento de exercício e garantia dos direitos sociais, de tal forma que a esse tipo de
cidadania Santos (W., 1979, p.75) atribui o adjetivo “regulada”, devido ao caráter de
obrigatoriedade de vínculo formal ao mercado de trabalho. Mas, a partir dos anos de 1940 e
1950, tem-se um grande desenvolvimento econômico no país e, conseqüentemente, um
expressivo aumento da massa segurada, fase em que o Estado investiu, sobremaneira, no
campo da saúde pública, com medidas de melhoria das condições sanitárias das cidades
(saneamento básico, cobertura vacinal, etc). Embora importantes, tais inversões não
eliminaram, de forma significativa, o quadro de doenças infectocontagiosas e parasitárias, os
grandes índices de mortalidade infantil e a mortalidade em geral.
166
Os anos de 1950, 1956 e 1963 são considerados por alguns estudiosos, como
Draibe (1990) e Bravo (2000), como os de maior aplicação de recursos públicos na área da
saúde. Nesses períodos, os governantes priorizaram os serviços previdenciários e médicos
prestados pelos IAP‟s, deixando em segundo plano a compra dos serviços médicos dos setores
particulares, que por causa disso exerciam uma grande pressão sobre o governo, no sentido de
fortalecer e expandir o seu atendimento hospitalar, não incentivado, naquele momento. Essas
estruturas do setor privado que visavam ao atendimento médico hospitalar, montadas a partir
da década de 1950, foram intensamente valorizadas na década seguinte, já na ditadura militar,
pela ampliação da política assistencial para alcançar, por esse meio, a legitimação do regime
de exceção. Instaurara-se, então, no cenário político brasileiro, um governo militar, que
adotava um discurso desenvolvimentista de integração nacional e propunha a modernização e
o crescimento do país, com investimentos em setores estratégicos, como transportes, estradas
e comunicação, de sorte que esse momento, marcado sobretudo pelo enfoque econômico, não
se refletisse, com a mesma ênfase na esfera social. Mesmo assim, a ditadura, através do golpe
militar, não representou “para a sociedade brasileira a afirmação de uma tendência de
desenvolvimento econômico-social e político que modelou um país novo” (BRAVO, 2000,
p.107), havendo, nessa fase, um profundo agravamento dos conflitos e problemas sociais e
uma desmesurada repressão dos movimentos sociais organizados.
Mas, ainda antes do período ditatorial, havia forte pressão dos trabalhadores, que
cobram do Estado uma maior eficiência do sistema previdenciário. São formuladas, então,
várias normas, entre elas a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS) que, editada em 1960,
propôs a uniformização dos benefícios prestados pelos IAP‟s, os quais assumiram a
assistência médica individual a todos os beneficiários, apesar de a ditadura militar de 1964
adotar o modelo do “privilegiamento do produtor privado” (idem, 2000, p.105), de modo que
a Política de Saúde estatal passa, a partir daí, a ser marcada, de um lado, pela valorização
expressiva da medicina e da previdência privadas, em que a prática médica volta-se mais para
os interesses da lucratividade, em detrimento da saúde pública, e, de outro, pela ênfase no
perfil assistencial, com vistas a aumentar o controle do Estado sobre a sociedade, aliviando as
tensões sociais e assegurando a acumulação do capital e a “paz social”. Nesse sentido, Cohn
(2001, p.45) assevera que
esse processo de privatização da saúde promovido pela política
previdenciária é de tal monta, sobretudo a partir da criação do INSS no início do regime militar, que no interior da própria Previdência Social,
167
enquanto imagem pública, inverte-se a relação beneficio/prestação de
serviços médicos, apesar de os dados orçamentários mostrarem o contrário.
Essa inversão demonstra a crescente importância que a assistência médica vem assumindo no interior da Previdência Social.
Desse modo, o Estado brasileiro, comandado pelos militares, adotou, segundo
Bravo (2000, p.107), medidas baseadas no “binômio repressão-assistência [...], com a
finalidade de aumentar o poder de regulação sobre a sociedade [...] e o alijamento dos
trabalhadores do jogo político, com sua exclusão na gestão da previdência, ficando-lhes
reservado o papel de financiadores [da política previdenciária]”, o que ocorreu
concomitantemente ao processo de unificação da Previdência Social, em 1966, como resposta
ao interesse estatal de incrementar o papel regulador e interventor sobre a sociedade. Aliás,
esse modelo médico-assistencial, valorizador do setor privado, enaltece a “medicalização da
vida social” (BRAVO, 2000, p.107), representada por ações de assistência médica curativa
individual em detrimento das de caráter preventivo, dirigidas à coletividade, por isso que,
doravante, a ênfase na assistência médica privada impossibilitará o acesso de muitos
brasileiros aos serviços de saúde, reforçando a exclusão, aumentando as desigualdades sociais
e agravando a condição de pobreza de expressiva parcela da população. Isso se dava porque
para os governos do período, a saúde necessitava de características capitalistas, devendo
incorporar as modificações tecnológicas ocorridas no mundo e, nesse sentido, nada mais
coerente que a prática médica orientar-se para a lucratividade, favorecendo a capitalização da
saúde e a hegemonia do setor privado.
Com tais marcas, as Políticas de Saúde, no plano nacional, apresentam, no período
da ditadura militar, graves contradições e tensões, como a ampliação dos serviços e a não
disponibilização suficiente de recursos financeiros para o setor, sem mencionar o jogo de
interesses provenientes das conexões burocráticas entre o Estado-gestor das políticas, o
empresariado-médico-executor e as idéias do emergente Movimento Sanitário. Este
movimento originou-se no Brasil ainda nos anos de 1960, ligado aos trabalhadores da saúde
que participavam de lutas que a reivindicavam como um direito de todos, exigindo serviços
descentralizados com qualidade e abrangência a todos os brasileiros, sem distinção, não sendo
possível deixar de sublinhar que o embate incluía a superação do regime autoritário, idéias
essas que se fortaleciam e ganhavam força no Brasil de então (TEIXEIRA, 1989).
A correlação de forças entre os interesses do setor privado e os do Movimento
Sanitário, diferentes e contrários, levou, como estratégia de sobrevivência do autoritarismo
168
burocrático, à formulação de propostas de reforma da estrutura organizacional do Estado que,
ao ter de fazer concessões, não obteve pleno êxito. Na verdade, o Estado não logrou alterar a
direção da saúde naquele momento, caracterizada fortemente por medidas curativas e pela
contratação de serviços do setor privado para executá-las. Ademais, a tentativa do Ministério
da Saúde de adotar medidas de saúde pública, objetivando ampliar e interiorizar as ações,
através da “implantação de estrutura básica de saúde pública e o aumento de cobertura,
viabilizadas por programas pilotos” (BRAVO, 2000, p.108), também não se efetivou, por
serem limitadas e de pouca abrangência. Como exemplo podem-se mencionar os casos do
Fundo de Amparo ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) e o Programa de Interiorização das
Ações de Saúde e Saneamento no Nordeste (PIASS), ambos pouco exitosos. Nessa fase, a
Política de Saúde apresentava-se, dentro desse arcabouço estatal, como eminentemente
assistencialista-clientelista, embasada na concessão e na troca de favores, políticos e pessoais,
estando ausente, assim, qualquer noção de direito ou cidadania.
Somente no final do período militar o Ministério da Saúde amplia as medidas de
saúde pública para fora do circuito urbano, levando, para o interior do país, a atenção primária
e aumentando a cobertura e a estrutura do sistema de saúde, até então frágil e excludente.
Devido ao fato de o Estado ser o maior financiador do sistema, através da Previdência Social,
e por ser o maior prestador de atenção médica, o setor privado devia ter, mas não teve, em
contrapartida, um processo de fiscalização rigoroso da qualidade dos serviços oferecidos à
sociedade, das prestações das contas apresentadas e dos critérios adotados para as compras de
serviços de saúde, o que lhe favoreceu o crescimento vertiginoso (COHN, 2001). Na década
de 1970, acentuou-se a tendência de organização do sistema de saúde, com a cobertura
previdenciária expandindo-se para a população urbana e parte da rural, sem embargo do
aprofundamento do aspecto privatista, sendo elaborado pelo governo o Plano de Pronta Ação
(PPA), que objetivava não só universalizar a atenção às urgências, mas também apresentar um
novo parâmetro assistencial, denominado de medicina de grupo, viabilizada por convênios
com empresas, além de reorganizar as relações da Previdência Social com os prestadores de
serviços, por diferentes formas de pagamento pelos contratos firmados. Outro aspecto
relevante é que, em 1977, o sistema de saúde se baseará no Sistema Nacional da Previdência e
Assistência Social (SINPAS), instituído pela Lei Federal nº 6.439, composto pelos Instituto
Nacional de Assistência Médica de Previdência Social (INAMPS), Instituto Nacional de
Previdência Social (INPS) e Instituto de Administração da Previdência e Assistência Social
(IAPAS).
169
No final dos anos de 1970, o surgimento de novos atores sociais impulsionam e
revigoraram os movimentos da sociedade civil, que requerem uma maior eficiência e a
ampliação da oferta dos serviços sociais, em particular dos serviços de saúde. É nessa
conjuntura que se fortalece, no Brasil, o Movimento de Reforma Sanitária, que defendia
melhores condições para os serviços de saúde, que encampava a luta contra a ditadura militar,
e se aliou aos movimentos mais amplos da sociedade civil, no sentido não só do
restabelecimento da democracia no país, mas também da articulação de um conjunto de forças
políticas canalizadoras das exigências e dos anseios de alteração da Política de Saúde
brasileira. Segundo Bravo (2000, p.113), o Movimento tinha, como idéia central, “assegurar
que o Estado atue em função da sociedade, pautando-se na concepção de Estado democrático
e de direito responsável pelas políticas sociais e, por conseguinte, pela saúde”. Desse modo,
as lutas e movimentos levados a efeito, nesse momento histórico, contribuem para que a
problemática da saúde alcance expressão significativa nos espaços legislativos e na sociedade
civil organizada, passando a ser considerada, consoante Mendes (1994, p.42), como
um direito universal e suportada por um Sistema Único de Saúde,
constituído sob regulação do Estado, que objetive a eficiência, eficácia e
eqüidade e que se construa através do incremento de sua base social, da
ampliação da consciência sanitária dos cidadãos, da implantação de um outro paradigma assistencial, do desenvolvimento de uma nova ética profissional
e da criação de mecanismos de gestão e controle populares sobre o sistema.
Isto, aliás, é fortalecido nos anos de 1980, com a superação, em meio a uma
profunda e duradoura crise econômica que ainda hoje se reflete na conjuntura do país, do
regime ditatorial. Mas, a fim de reorganizar os serviços de saúde acontece, em março de 1986,
em Brasília, a VIII Conferência Nacional de Saúde, na qual “todo o movimento encetado pelo
projeto contra-hegemônico nos campos político, ideológico e institucional, desde o início dos
anos 70, vai confluir para esse acontecimento” (MENDES, 1994, p.41), daí ter essa
Conferência representado um grande avanço em defesa da ampliação e universalização dos
serviços de saúde, até porque promoveu a mobilização maciça da sociedade civil organizada,
pela reunião de diversos setores e segmentos sociais. Para Mendes (1994), as conclusões
dessa Conferência tiveram desdobramentos consideráveis no âmbito da Comissão Nacional da
Reforma Sanitária, uma vez que os ideais nela defendidos foram reconhecidos e acolhidos,
constituindo-se o Evento num forte instrumento político e ideológico, com influência sobre
dois processos que se iniciam em 1987. O primeiro, no âmbito do Executivo, ocorreu em 20
de julho, com a criação, pelo Decreto 94.657, do Sistema Unificado e Descentralizado de
170
Saúde (SUDS), resultado de acordos do Ministério da Saúde com os governos estaduais, em
substituição às Ações Integradas de Saúde (AIS), implantadas na década de 1980 como
medida de contenção de despesas com assistência médica, até então vista como a causa do
déficit orçamentário do governo. O segundo se deu no Congresso Nacional, que elaborava a
nova Carta Magna do país, promulgada no ano seguinte, 1988.
A VIII Conferência difere das demais em dois pontos principais, sendo o primeiro
o seu caráter democrático, já que contou com ampla participação das forças comprometidas
com a temática da saúde. O segundo se expressa na sua dinamicidade processual, pois antes
de sua realização ocorreram encontros preparatórios nos municípios e estados, até alcançar o
plano nacional, tendo sido o relatório final da Conferência aprovado nas comissões técnicas
da Constituinte, em meio a um amplo consenso das forças sociais nela representada. Em
suma, após muitas discussões e embates, a saúde tem o conceito ampliado na Conferência e
reafirmado na Constituição de 1988, passando a definir-se como produto das condições de
habitação, moradia, educação, renda, emprego, lazer e transporte da população, de sorte que
passa a ser vista a partir da realidade histórica e social da sociedade brasileira.
Essa nova concepção de saúde, reorganizada na lógica dos princípios defendidos
pela Reforma Sanitária, foi incorporada na transição do Sistema Unificado Descentralizado de
Saúde (SUDS) para o Sistema Único de Saúde (SUS). É que se visava constituir, de fato, um
sistema de saúde capaz de responder amplamente aos anseios da sociedade brasileira, em sua
histórica luta pela superação de um modelo altamente comprometido com os interesse
privados e imediatos dos grupos dominantes. O SUS, em suas idéias basilares, caracteriza-se
pela descentralização nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal) e tem como
prioridade a universalização e a eqüidade dos serviços de saúde para todos os brasileiros,
independentemente de qualquer contribuição social, com a participação complementar da
iniciativa privada. Nesse contexto, a saúde é considerada como um direito universal e um
dever do Estado, conforme preceitua o artigo 196 da Constituição Federal de 1988. Aliás,
Mendes (1999, p.62) diz que
a saúde na nova Constituição é definida como resultante de políticas sociais
e econômicas, como direito de cidadania e dever do Estado, como parte da
Seguridade Social e cujas ações e serviços devem ser providos por um Sistema Único de Saúde, organizado segundo as seguintes diretrizes:
descentralização, mando único em cada esfera de governo, atendimento
integral e participação comunitária.
171
O SUS, como sistema de saúde organizado sob essas diretrizes, está amparado
pela Lei Orgânica da Saúde (Lei Federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990), pelas
Constituições Estaduais e pelas Leis Orgânicas Municipais (MENDES, 1994), sem mencionar
a Lei Federal nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990, que dispõem sobre a participação da
comunidade no processo de gestão do SUS e sobre os recursos destinados à área. Para a
sociedade brasileira, essa legislação expressou as conquistas inscritas na Carta Magna de
1988, reafirmando, de forma concreta, os princípios defendidos pela Reforma Sanitária e a
esta incorporados.
As análises anteriores indicam que, a partir dos movimentos da sociedade civil
posteriores à década de 1970 e à promulgação da Constituição de 1988, as noções de direito e
cidadania ganham destaque no debate nacional e no processo de formulação e implementação
das Políticas Públicas, em especial as Políticas de Saúde e, por conseguinte, as de Saúde
Mental. É, aliás, nesse contexto que tais Políticas, a serem viabilizadas nas três esferas de
governo, defendem a saúde como direito do cidadão e dever do Estado, numa definição
eminentemente política, que apregoa a transição para uma cidadania plena4, superando os
aspectos compensatórios, embasadores dos modelos pretéritos.
Nesses anos, o arcabouço teórico-prático do campo da saúde ocorria, conforme
Mendes (1999, p.63), “coetaneamente com o avanço inexorável de uma crise fiscal e política
do Estado, que sinalizava o esgotamento da estratégia nacional-desenvolvimentista e da
coalizão sociopolítica que a sustentou durante os anos de esforço industrializante e de
fracassos sociais”. Assim, o Estado, imerso em crise, adquire novas responsabilidades para
com a sociedade, embora, no final dos anos de 1980, depois da efervescência política da
transição democrática cujo ápice se dá no Governo Sarney, seja notável a retração na
implementação dos ideais da Reforma Sanitária, principalmente na defesa da saúde como
direito, exercido num sistema único e descentralizado que viabilize o atendimento universal.
De forma que se ter, no final de 1980, a saúde como direito de todos e dever do Estado
significa palmilhar um processo não acabado, desafio este a ser enfrentado pela sociedade
brasileira, nos anos de 1990, tendo em vista que essa perspectiva contraria interesses de
grupos privados, que defendem a continuidade do padrão de capitalização desses serviços
que, décadas atrás, tiveram vertiginoso crescimento, estimulado pelo próprio Estado, agora,
4 A cidadania é, nesses termos, concebida como uma construção e reconstrução permanente de conquistas de
direitos, num ambiente democrático, superando as condições de formalidade e legalidade, que assegura a
Constituição Federal de 1988. Assim, será entendida aqui na sua forma mais ampla, como um processo
histórico, político e social em permanente movimento e aperfeiçoamento. Nesse sentido, consultar por
exemplo, Dagnino (1994) e Telles (1994).
172
em face da realidade do SUS, não querem correr os riscos impostos pelo mercado, no qual se
dão disputas por melhores preços e maior qualidade. Ademais, os obstáculos à construção do
SUS, são intensificados, nesta década, em razão do modelo econômico-político do país,
norteado, a partir de então, pelas propostas neoliberais, surgidas por volta dos anos de 1970.
Estas idéias, oriundas da Inglaterra e dos Estados Unidos, espraiaram-se pelo mundo,
sobretudo os de regime capitalista, atingindo fortemente as nações periféricas, como o Brasil,
já que a base ideológica do neoliberalismo finca-se na contenção severa dos gastos estatais, o
que afeta preferencialmente a gestão das políticas sociais e, por conseguinte, a Política de
Saúde Pública.
Presencia-se então no Brasil e no mundo, nos anos de 1990, a hegemonia do
discurso e das práticas neoliberais, na verdade um intenso ataque do grande capital, vinculado
aos grupos dirigentes, às garantias constitucionais, resultando no amplo enfraquecimento e
larga diminuição das conquistas sociais, asseguradas no período anterior. Por isso é que o
projeto da Reforma Sanitária apresenta sinais de desfalecimento, não concretizando
plenamente as metas propostas, que visavam, sobretudo, ao fortalecimento do setor público e
a universalização do atendimento, a redução do papel do setor privado na prestação de
serviços de saúde e a descentralização política e administrativa do processo decisório da
Política de Saúde do país. Com efeito, o sistema público de saúde brasileiro tem sofrido, nos
últimos anos, um sucateamento sem precedentes, o que conduz a um baixo poder de
resolutividade dos serviços prestados à população usuária, além do que outro obstáculo à
implementação do SUS relaciona-se à inversão da lógica do sistema, que até o momento
privilegia os serviços oferecidos pelos segmentos privados, em detrimento da valorização do
setor público. É que para se assegurar serviços públicos de saúde com qualidade faz-se
necessário um investimento maciço do Estado, nas três esferas de governo, tornando suas
ações mais efetivas e politicamente mais comprometidas, a fim de superarem as resistências
consolidadas, historicamente, nas instituições públicas brasileiras (COHN, 2001).
Após uma década da aprovação da lei que rege o SUS, os problemas, relativos à
sua efetivação, como projeto amplo de saúde pública, são de ordem complexa e variada, indo
da falta de recursos financeiros à não concretização do processo de descentralização, o que
põe o sistema sob permanente ameaça de colapso, cujas conseqüências se refletem, de
imediato, no cotidiano da população brasileira, sobretudo nos setores mais empobrecidos. Não
é à toa que Bravo (2000, p.112) diz que
173
a proposta de Política de Saúde construída na década de 80 tem sido
desconstruída. A saúde fica vinculada ao mercado, enfatizando-se as
parcerias com a sociedade civil, responsabilizando a mesma para assumir os custos da crise. A refilantropização é uma de suas manifestações, com a
utilização de agentes comunitários e cuidadores para realizarem atividades
profissionais com o objetivo de reduzir custos.
Isso se dá porque o Estado, na perspectiva neoliberal, deve-se cingir-se ao
mínimo de ações voltadas para as camadas mais vulneráveis da população, sem recursos
financeiros para arcar com a sobrevivência e as despesas na área dos serviços básicos
essenciais, como saúde e educação. Nessa perspectiva, “o Estado deve deixar de ser o
responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social para se tornar o promotor e
regulador, transferindo para o setor privado as atividades que antes eram suas” (BRAVO,
2000, p.112), de modo que, nesse contexto de profundas alterações na estrutura econômica,
política e social do país, “as políticas de proteção social, articuladas pelo neoliberalismo,
transformam-se, assim, numa „espécie de neobeneficência‟, agora não mais a cargo das damas
de caridade, mas do próprio Estado e da sociedade civil por meio das novas solidariedades,
mediadas pelos interesses do mercado” (SIMIONATTO e NOGUEIRA, 2001, p.151).
Estas ações governamentais passam, paradoxalmente, a focalizar-se nos mais
vulneráveis, em contrapartida à ampliação da privatização dos serviços de saúde e ao estímulo
ao seguro privado, o que inviabiliza o processo de universalização dos serviços de saúde, e em
específico os de saúde mental, na medida em que grande parte da população não pode por eles
pagar, até pela piora de suas condições de vida (há, entre expressivas parcelas de brasileiros,
altos índices de desemprego, fome e falta de moradia). Assim, as medidas tomadas pelo
Estado, num contexto neoliberal, não favorecem a plena efetivação do SUS, mas põem
novamente em confronto dois projetos, o da Reforma Sanitária, pautada na concepção de
Estado como responsável pelas Políticas Sociais e de Saúde como direito de todos, e o da
saúde médico-assistencial privatista, a qual, preponderante, se baseia no ajuste de corte
neoliberal e, por isso, defende a forte contenção de gastos na área e o intenso controle da
oferta de serviços pelo setor público, em nome da otimização da economia, o que
desresponsabiliza o Estado de suas obrigações com o social e as transfere para o setor privado
e para a sociedade (BRAVO, 1996). Esses projetos irão, por toda a década de 1990 e ainda
hoje, conviver em confronto, uma vez que de um lado estarão as políticas neoliberais para a
saúde e, de outro, os caminhos preconizados na Reforma Sanitária, que a sublinha como
direito do cidadão e um dever do Estado, sendo inegável os avanços no que tange à
participação popular, ao controle social das Políticas Públicas e à formação de movimentos
174
sociais e conselhos de saúde, apesar dos impasses e barreiras colocados pelos neoliberais e
praticados pelos governantes. Destarte, a luta pela efetivação plena do SUS continua em
discussão, estando em maturação e construção, o que mobiliza os brasileiros que desejam um
serviço público de saúde com qualidade e eficiência.
Nesse quadro, as políticas adotadas até o presente momento atentam contra o
substancial fortalecimento e a valorização do SUS e desrespeitam os direitos constitucionais
de grande parte da população. É que os serviços de saúde básicos, quando existem, são
precários, de baixa qualidade e de pouco poder de resolutividade, expondo-a a situações
vexatórias decorrentes do não asseguramento dos direitos de cidadania principalmente do
descompasso entre oferta e demanda, problema para cujo equacionamento não há empenho
dos governantes, faltando mesmo vontade política para construir uma rede de serviços de
saúde sintonizada com as necessidades e os desejos da sociedade brasileira e que se ponha em
plena sincronia com a Constituição de 1988, que garante o acesso a esses serviços como um
direito de todos, sem distinção.
1.2 A Assistência Psiquiátrica no Brasil
Na Antiguidade e na Idade Média, a loucura, embora sem nenhuma definição científica apropriada, era considerada como manifestação dos deuses, anormalidade manifesta do indivíduo ou algo demoníaco ou decorrente de bruxaria. Para Resende (1987, p. 20), “a loucura tem sido uma companheira inseparável do homem ao longo de seu trajeto conhecido pela história, [uma vez que] desde o Velho Testamento aos estudos etnográficos das sociedades chamadas primitivas as referências a loucos são abundantes”.
Nesses termos, a loucura acompanha histórica e socialmente a trajetória da
humanidade, caracterizada por nuances estigmatizantes e preconceituosas, tendo os loucos um
tratamento marcado, sobretudo, pelo desprezo e o repúdio. Nas sociedades pré-capitalistas,
por exemplo, a loucura era uma questão, acima de tudo, privada, porque o poder público só
interferia em assuntos de direitos civis, validando ou anulando, por exemplo, casamentos,
caso algum dos cônjugues enlouquecesse ou a propriedade dos insanos requeresse proteção.
Nessa época, existia na sociedade uma certa tolerância para com os loucos, só que os mais
pobres, quando calmos, vagavam pelas ruas, campos e mercados das cidades, sobrevivendo da
caridade pública ou de pequenos trabalhos, enquanto os mais abastados eram mantidos em
175
casa, sob os cuidados de um assistente, o, “auxiliar psiquiátrico”, e recebiam tratamento
médico, embora restrito e precário.
Assim, ao longo dos séculos e nas diferentes sociedades, a loucura foi tida como
algo demoníaco ou derivado de bruxaria. Essa visão era guiada pela compreensão de que os
indivíduos acometidos por alguma insanidade mental deveriam ser isolados do convívio social
e tratados de forma severa, de modo que, nos primórdios da atenção à loucura, os tratamentos
eram muito rudimentares, com alto grau de brutalidade e inspirados na idéia de que a doença
resultava do desequilíbrio dos humores do corpo. Objetivava-se, então, “livrar os doentes de
seus maus humores, sangrando-os até o ponto de levá-lo à síncope, ou purgando-os, várias
vezes por dia até que de seus intestinos nada mais saísse senão água rala e muco”
(RESENDE, 1987, p.25), quando não, no início dos tempos, se os atirava ao mar, nas
chamadas “Naus dos loucos”, que singravam sem destino, aportando de cidade em cidade, ou
se os amarravam aos troncos de árvores ou os trancavam em celas fortes ou quartos isolados,
a fim de não perturbarem a ordem social estabelecida.
Para Michel Foucault (1972), o mundo da loucura “tornou-se o mundo da
exclusão”, já que ela era usada como pretexto para retirar do meio social os considerados
improdutivos, como mendigos, velhos, criminosos, doentes, indigentes, daí dizer Machado et
al (1978, p.377) que “o louco faz seu aparecimento como um perigoso em potencial e como
atentado à moral pública, à caridade e à segurança, [já que] a loucura é perigo a ser evitado
das ruas da cidade [e] liberdade e loucura são antônimos”. Não obstante, um pouco antes do
final do século XV, o advento da manufatura provoca profundas transformações no mundo,
exigindo-se mão-de-obra com maior grau de qualificação e outras aptidões laborais, mais
condizentes aos novos tempos, em que haverá uma racionalização e um controle das
atividades, algo que a sociedade ainda não havia experimentado e não estava habituada, num
momento de intenso declínio do campesinato como classe e num contexto de emergência do
capitalismo como modo de produção. Assim, as mudanças no campo e as transformações
sociais ganhavam visibilidade, deixando a população sem opção de emprego e sem qualquer
meio de sobrevivência, instalando-se um caos, marcado pelo desespero das pessoas, que
passam a mendigar, furtar e assaltar, ganhando, nessa época, a loucura um status de problema
social, ocorrendo, na Europa, medidas de controle do acelerado crescimento de alijados do
processo produtivo pela criação, nos séculos XVI e XVII, das “Casas de Internamentos”,
chamadas de Hospitais Gerais, que serviam de “moradia” para os segregados da sociedade.
Estes, privados de atenção, ficavam amontoados nos porões, sem tratamento especializado,
176
posto que os Hospitais Gerais tinham a função de retirar das ruas das cidades os tidos como
anti-sociais, visando reeducá-los sob a égide da moralidade e da religião, sem nenhum caráter
terapêutico (RESENDE, 1987).
No cenário europeu do século XVIII, a nascente burguesia afirma-se como classe
e é aí que se implanta, se mantém e se consolida o Estado Moderno, o que suscita uma gama
de racionalizações pedagógicas, jurídicas e médicas que impõem uma ordem política e
econômica e um novo estilo de vida social, que se valem de técnicas de normalização com o
fito de buscar soluções para as urgências médicas e sociais. Nesse contexto, a Psiquiatria,
entendida como o conhecimento médico sobre a loucura, se positivará no mundo ocidental,
passando a ter um lugar de destaque no enfrentamento dessas urgências, recorrendo ora a
dispositivos punitivos, ora a normativos, tanto que, no final do século XVIII, sob a égide dos
princípios da moralidade e racionalidade burguesas, a Psiquiatria já é tida como “um saber
medicamente institucionalizado e constituído a partir do momento em que a loucura vira um
objeto para o conhecimento humano e adquire, então, o estatuto de doença mental”
(RESENDE, 1987, p.86), assumindo um papel importante no trato desse distúrbio. Em outros
termos, Rosa (2002, p.140-1) afirma que, nessa época,
o louco e a loucura colocam em xeque o princípio essencial da sociedade
burguesa, a razão. Questionam a credibilidade dos princípios da nova ordem,
seus negócios e instituições (justiça, administração, disciplina, polícia,
governo). [...] A burguesia equacionou o problema político que representava
a loucura delegando mandato à psiquiatria, que deslocou o problema
essencialmente político, que ela representava, para a alçada técnica. Ao
tornar a loucura administrável, medicalizou-a. A medicalização da loucura
arbitrou um novo status jurídico, social e civil para o louco, agora alienado,
doente, um agente incluído em um outro código que [...] tornou o louco uma
pessoa tutelada pela psiquiatria [e em que] a internação em um
estabelecimento especial – o asilo – passa a ser o elemento determinante, o
qual condiciona o status de alienado, „doente mental‟, ao louco.
Ocorre, ao mesmo tempo, na Europa, nos Estados Unidos e em outras partes do
mundo um amplo movimento, contrário às formas brutais e arbitrárias de internamento dos
loucos, encampado por médicos influenciados pelas idéias iluministas da Revolução Francesa
177
e da Declaração dos Direitos do Homem. Nomes expressivos desse movimento de reforma
foram, na França, Philippe Pinel, que mandou tirar as correntes dos loucos do Asilo
Salpêtriére, William Tuke, na Inglaterra, Todd, nos Estados Unidos, e Chiaruggi, na Itália,
dentre outros que marcaram a história da primeira revolução psiquiátrica, quando se passou a
exigir para os loucos um tratamento sistematizado, em bases mais humanitárias. Esse
tratamento, que recebe o nome de moral, pregava, principalmente, a eliminação da brutalidade
física e da severidade dos maus-tratos e propunha uma disciplina que submetia o doente aos
olhos vigilantes e onipotentes da instituição asilar, de sorte que, para alguns autores como
Foucault (1975), isso, não apresentou avanços, na medida em que apenas substituiu a
violência expressa pela violência silenciosa, praticada no âmbito de instituições fechadas,
como os asilos, sob um caráter normatizador e disciplinador. Esse modelo de tratamento
inspirou os primeiros alienistas brasileiros na formulação e organização, no Brasil, da
assistência ao louco (RESENDE, 1987).
No início do século XIX, com o aprofundamento do capitalismo no mundo, o
médico ganha mais força na sociedade e a loucura adquire nova dimensão, tanto que a
Psiquiatria, como racionalidade médica, que requer um conhecimento e uma intervenção
específicos, consolida-se com a ascensão burguesa ao poder do Estado moderno e enfrentará
a problemática da loucura pela intensificação dos internamentos. Essa conduta era, aliás,
fundamental para livrar-se dos indivíduos e dos grupos que vagavam pelas ruas, ociosas e sem
emprego e que, por perturbar a paz social, traduzia-se em recolhê-los aos asilos e depois a
hospitais psiquiátricos, deixando-os sob atenção médica, encarregada do diagnóstico,
classificação e tratamento.
No Brasil, em mais de quinhentos anos, a trajetória do enfrentamento da loucura
não foi muito diferente do que acontecia no resto do mundo, já que construído sob a égide do
preconceito e do repúdio social, sem falar que, nos primeiros três séculos, ficou ela quase
silenciada na imensidão continental do país, ignorada socialmente. Com efeito, a loucura só
passa a objeto de intervenção do Estado após a chegada da Família Real, nos primórdios do
século XIX, fase em que as primeiras medidas adotadas, no trato da questão, tomou como
base o modelo europeu, sobretudo o francês, que tinha como explicação principal da alienação
os descontroles das paixões (problemas morais). Nesse período, a população psiquiátrica do
país era formada, basicamente, por homens livres, mestiços, negros, pobres, brancos e
europeus, que sofriam os reflexos e as contradições de um regime econômico consubstanciado
numa sociedade agrícola, apoiado sobre o trabalho escravo e sob forte oligarquia rural, de
178
modo que as primeiras medidas para o tratamento da loucura só ocorreram no final do Brasil
Colônia quando, por inexistência de hospitais, o louco era recolhido às Santas Casas de
Misericórdia, locais destinados a todos os alijados sociais. Aliás, diz Resende (1987, p.35)
que
as Santas Casas de Misericórdia incluem-nos entre seus hóspedes, mas dá-
lhes tratamento diferenciado dos demais, amontoandos-os em porões, sem
assistência médica, entregues a guardas e carcereiros, [sendo] seus delírios e
agitações reprimidos por espancamentos ou contenção em troncos,
condenando-os literalmente à morte por maus-tratos físicos, desnutrição e
doenças infecciosas.
As Santas Casas de Misericórdia não recolhiam, assim, apenas os loucos, mas
quaisquer indivíduos em perambulação pelas ruas, perturbando o silêncio e ameaçando a paz
social, como pobres, velhos, órfãos e mendigos, que se apresentavam como inconvenientes e,
às vezes, violentos, não raro somente uma resposta aos insultos que sofriam. Nessas Casas, o
tratamento era rude e precário, com maus-tratos, espancamentos ou amarramentos com
correntes, em troncos de árvores, o que favorecia a desnutrição e as doenças infecciosas,
causas do expressivo índice de mortalidade dos internos. Mas, em face da magnitude do
problema, as prisões também se prestavam para “guardar” os loucos, juntando-os aos
bêbados, criminosos e outros indivíduos indesejáveis à sociedade brasileira que, sob os
postulados do capitalismo nascente, exigia uma maior e mais elaborada repressão aos
elementos perturbadores da ordem e obstaculizadores do crescimento econômico e
populacional, presumido pelo novo contexto.
Os considerados loucos, pertencentes às camadas pobres da população, quando
calmos e tranqüilos, podiam circular livremente pelas ruas, praças e mercados, sendo bem
tolerados pela sociedade, mas, se agitados e agressivos, eram recolhidos às Santas Casas e, na
falta de vagas nessas instituições, levados às cadeias públicas, como criminosos. Mas as
famílias mais abastadas do Império geralmente tratavam seus loucos em casa, num cômodo
separado, ou os enviavam para a Europa, a fim de receberem tratamento mais adequado e, se
agitados, os amarravam em domicílio, porém nunca os conduziam às Santas Casas nem às
prisões. Nessa direção, afirma Amarante (1994, p.74) que
179
em 1830, uma comissão da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro realiza
um diagnóstico da situação dos loucos na cidade. É a partir desse momento
que os loucos passam a ser considerados doentes mentais, merecedores,
portanto, de um espaço social próprio, para sua reclusão e tratamento. Antes,
eram encontrados em todas as partes: ora nas ruas, entregues à sorte, ora nas
prisões e casas de correção, ora em asilos de mendigos, ora ainda nos porões
das Santas Casas de Misericórdia. Em enfermarias e hospitais era muito raro
encontrar um louco submetido a tratamento.
180
Em atenção aos reclamos da sociedade imperial, que exigia se retirassem das ruas
os indivíduos que por ela perambulavam e ameaçavam a ordem pública e a paz social e
devido aos protestos dos médicos higienistas, que denunciavam as precárias condições dos
loucos nas Santas Casas de Misericórdia e nas prisões, foi inaugurado, em 1852, por D.Pedro
II, o primeiro hospício brasileiro, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Ficava esse hospício
num local distante e recebeu o nome do próprio imperador, tendo capacidade para 350
pacientes e estando ligado à direção da Santa Casa de Misericórdia, medida essa que marca o
início do tratamento ao louco no Brasil e que consolidou o modelo assistencial psiquiátrico
nacional como hospiciocêntrico/hospitalocêntrico, já que tem, como atitude básica, as
internações.
Para Resende (1987), os ideais da nascente psiquiatria brasileira, no período
imperial, materializada, até aquele momento, pela inauguração do Hospício Pedro II, não se
traduziu em um tratamento especializado e digno. Com efeito, nesse hospício, os internos
experimentavam intensos maus-tratos (camisas-de-força, fome e, às vezes, assassinatos), em
decorrência de a instituição ainda não dispor de infra-estrutura e atendimento especializado (a
presença do médico quase não existia), tendo assim o tratamento baixo ou nenhum resultado,
ficando a maioria dos internos à mercê da sorte, embora pensionistas particulares recebessem
cuidados especiais e boas acomodações, de forma que a criação do Hospício representou, para
a sociedade, apenas a “remoção” dos loucos do convívio social, como medida “saneadora”
das cidades, em nome da ordem pública e da paz social. No entanto, excluídos da direção do
hospício e insatisfeitos com a falta de um planejamento para o tratamento (à época
rudimentar, empirista e sem cientificidade), do louco, os médicos teciam sérias críticas ao
sistema e reclamavam para si o trato científico e técnico do alienado.
Com a Proclamação da República, o Hospício Pedro II foi, em janeiro de 1890,
desvinculado das Santas Casas de Misericórdia, recebendo o nome de Hospício Nacional de
Alienados, vinculado à administração pública federal. Diz, então, Amarante (1994, p.74) que
as mudanças sociais e econômicas, no período que se segue, exigem medidas
eficientes de controle social, sem as quais torna-se impossível ordenar o
crescimento das cidades e das populações. Convocada a participar dessa
empresa de reordenamento do espaço urbano, a medicina termina por
desenhar o projeto do qual emerge a psiquiatria brasileira.
181
A Proclamação da República trouxe alterações ao processo de desenvolvimento
das atividades comerciais e industriais, intensificando-se, por exemplo, o povoamento urbano,
com modificações nas relações sociais, o que agravou as condições, já precárias, de vida da
população, aumentou os casos de doenças infecciosas, a falta de higiene e a perambulação de
pessoas pobres e maltrapilhas. Em face desse quadro, os médicos, continuavam a criticar o
sistema, reivindicando para si o direito de tratar e intervir na doença mental, entendendo que,
a essa altura, o trabalho das freiras nos asilos e casas de repouso, sem a presença deles, era
ineficiente, dada a magnitude do problema, que tendia a agravar-se com o aprofundamento
das relações sociais capitalistas.
Nessa época, a loucura, se tornará objeto de atenção de especialistas, com a
denominação de doença mental, pelo que se inicia um novo estágio na assistência psiquiatria
brasileira em que a medicina, mais especificamente a psiquiatria, ganha ascensão, devido ao
caráter de cientificidade, e passa a exercer o controle das instituições psiquiátricas e a tutela
na assistência ao louco, cujo tratamento se baseia em conhecimentos técnicos e métodos
científicos já utilizados na Europa, com o objetivo de medicalizá-lo e dominá-lo dentro de um
espaço terapêutico, o hospício, recuperando-o para o convívio social e o mercado de trabalho.
Ou seja, a medicina pretendia, com suas ações terapêuticas, no aspecto social remover das
ruas o louco, para garantir a segurança pública e, no plano clínico, curá-lo, aliviando, assim, o
seu sofrimento, pelo que assumiam, agora, segundo Resende (1987, p. 43), o papel de “porta-
vozes legítimos do Estado, que avocara a si a atribuição da assistência ao doente mental, em
questões de saúde e doença mental, tal como a gravidade da situação exigia”.
Por conta dessa realidade e para intensificar a intervenção na área da assistência
psiquiátrica o Ministério da Justiça e Negócios Interiores da República do Brasil cria, em
1890, a Assistência Médico-Legal aos Alienados, considerada a primeira instituição pública
de saúde da época republicana. É este um momento de fortalecimento e difusão, para todas as
regiões do país, do modelo hospiciocêntrico, pela construção de Colônias Agrícolas,
destinadas ao tratamento da loucura, sendo o Brasil um vigoroso defensor desse sistema,
adotando-o como medida diferenciada do asilamento, daí que o governo intensifica o projeto
das construções de Colônias com o propósito de prestar uma assistência mais humana e
abrangente aos loucos, modernizando o tratamento, com base nas experiências européias. Para
o governo, as Colônias Agrícolas, que depois se tornariam hospitais psiquiátricos,
significavam uma alternativa ao tratamento em asilos fechados.
182
Conforme Amarante (1994, p.76), a “idéia fundamental desse modelo de colônias
é a de fazer a comunidade e os loucos conviverem fraternalmente, em casa ou no trabalho”,
em virtude do que o trabalho assume característica terapêutica, no âmbito asilar e seio da
sociedade burguesa. Entretanto, a implementação das Colônias Agrícolas não teve, devido à
sua insuficiência terapêutica e das precárias condições de infra-estrutura e funcionamento,
muito sucesso. Por esses e outros motivos, o projeto recebeu muitas críticas, entre as quais a
de que era desfocado da realidade econômico-política do Brasil da época, coroada pela
industrialização urbana, uma vez que, nesse entendimento, as Colônias reproduziam, através
do trabalho, a formação de uma mão-de-obra rural agrícola não desejada e incompatível com
o urbanismo no qual o Brasil se mergulhava.
A presença do médico, reivindicando para si o tratamento do doente mental e
criticando o tipo de atenção a ele dispensada até então, não representou, no início do século
XX, um avanço significativo na área. Segundo Resende (1987), isso se deu, porque os
médicos brasileiros tomaram como base o modelo da escola alienista francesa, que já se
encontrava, na época, em decadência, dada a sua pouca eficiência terapêutica, com apoio nos
estudos de Benedict Morel, que cuidava das degenerescências que atingiam a sociedade,
postulando como causas da loucura as predisposições hereditárias dos indivíduos, geradoras
de desvios patológicos ao padrão de normalidade. Ademais, a escola francesa explicava que
as doenças da alienação resultavam dos descontroles das paixões (problemas morais), ou seja,
provinham de sentimentos interiores não controlados, o que atribuía o ônus à própria pessoa,
sendo essas doenças diagnosticadas como degenerescências atípicas, de forma que todos os
indivíduos que vagassem pelas ruas, como os loucos e os marginalizados sociais, receberiam
esse rótulo.
Nesse período posterior à República, o governo sanciona a Lei Federal de
Alienados (Lei 1.132, de 22 de dezembro de 1903), de autoria do deputado Teixeira Brandão,
que tinha como objetivo iniciar a organização da assistência psiquiátrica no país, proibindo
por exemplo, no artigo 10, a sua manutenção de alienados em cadeias públicas e dispondo que
os em cumprimento de pena só poderiam ficar nos asilos públicos que tivessem pavilhões
específicos, para o que foi criada, no Hospício Nacional, a Seção Lombroso, enfermaria para
os loucos delinqüentes e os condenados (GUIMARÃES, H.,1994, p.21), quando o presidente
Rodrigues Alves, em meio à expansão da economia do café e preocupado com a
reorganização do cenário social (agora modificado pela migração rural e estrangeira, que
conduzia a sérios problemas de saneamento e de moradia e, conseqüentemente, aumentava o
183
número de pessoas perambulando pelas ruas), toma medidas de controle das endemias, tendo
à frente, na Saúde Pública, o médico Osvaldo Cruz. Na psiquiatria, o expoente maior, Juliano
Moreira, que trabalhava com Osvaldo Cruz, esperava sanear e controlar os problemas
endêmicos urbanos (febre amarela, peste bubônica, etc), que atingiam as principais cidades
brasileiras. Ambos aliam-se para dar à psiquiatria brasileira um caráter de cientificidade,
inovando no tratamento e na classificação das doenças mentais, com base em estudos de
referência da área. Juliano Moreira era o responsável pela organização do tratamento mental
no Brasil, dando continuidade ao processo de construção dos asilos em todo o território
nacional, legitimando jurídica e politicamente a psiquiatria no país, mas em vez de apoiar-se
na escola francesa, seguiu a corrente alemã, que teve forte influência principalmente na
discussão da etiologia das doenças da mente.
Em meio às muitas controvérsias do cenário social republicano, marcado pelo
agravamento da questão social, intenso processo de urbanização e imigração estrangeira, a
comunidade médica, na pessoa de Gustavo Riedel, cria, em 1923, um novo segmento da
psiquiatria, a chamada psiquiatria higienista. O ponto de partida dessa psiquiatria, com
enfoque higienista, foi a criação da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), que defendia
a intervenção do Estado na sociedade com a finalidade de controlar e solucionar os problemas
sociais que, naquele momento, ampliavam-se. Assim, colocando o Estado como o agenciador
do desenvolvimento econômico e social, a LBHM entendia que a sociedade devia ser “um
espaço eugênico, asséptico, de normalidade” (AMARANTE, 1994, p.78), embora,
inicialmente, a preocupação fosse com a melhoria dos serviços psiquiátricos e a capacitação
dos recursos humanos, só depois se dando a mudança de foco para prevenção em saúde
mental, pelo que atua junto às pessoas sadias com um discurso de caráter moralizador e
normatizador, que pregava a necessidade da profilaxia do país, sob rigoroso controle social.
Nesse contexto, propaga campanhas higiênicas, sobretudo em relação aos grupos
ditos patológicos, responsáveis, segundo a Liga, pela desorganização política e social da
sociedade, os quais passa a combater com medidas de controle, como a esterilização sexual ou
até o extermínio, sendo os alcoolistas, por exemplo, responsabilizados pela pobreza de seus
dependentes e a causa da sífilis associada diretamente aos negros e ao processo de
miscigenação racial do povo brasileiro. Com base nessa ideologia, a origem dos conflitos
sociais da época estaria na própria população, tida como promíscua, ociosa e cheia de vícios,
ou seja, a psiquiatria eugênica sinalizava para o melhoramento da raça do povo brasileiro,
prejudicada pelo intenso processo de miscigenação (ROSA, 2000a).
184
Na década de 1930, o modelo assistencial baseado nas internações psiquiátricas
continuava hegemônico, apesar de, nessa época, a descoberta de novas técnicas de tratamento,
como os choques insulínico5 e cardiozólico
6, a malarioterapia
7 e a eletroconvulsoterapia
8. Há,
nesse mesmo período, o início da descentralização das atividades do Estado na área da saúde,
no seu aspecto normativo institucional, tanto que é criada, pelo Decreto nº 24.559, de 3 de
julho de 1934, por intermédio da Liga de Higiene Mental, a segunda Lei Federal de
Assistência aos Doentes Mentais, que “„dispõe sobre profilaxia mental, a assistência e a
proteção à pessoa dos psicopatas e a fiscalização dos serviços psiquiátricos‟” (ROSA, 2000a,
p.80). A mesma lei cria o Conselho de Proteção aos Psicopatas, formado por entidades
relacionadas com a psiquiatria e a justiça, o que reforçava o poder dos psiquiatras nos serviços
de saúde, tendo na internação, em instituição psiquiátrica, a forma primordial de tratamento.
Ademais, o art. 26 suspende, de modo “„parcial ou totalmente, a cidadania do doente mental,
[asseverando que] os psicopatas, assim declarados por perícia médica, processada de forma
regular, são absoluta ou relativamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da sua vida
social‟” (idem, 2000a, p. 80).
Como se vê, os anos de 1930, marcados pela Constituição de 1934, representou
um momento de avanço com relação aos direitos sociais e à ordem econômica do país.
Segundo Rosa (2000a), esta Carta, apesar de permeada pelo autoritarismo e pelas idéias
higienistas, em vigor na época, foi a primeira a ter um item dedicado aos direitos sociais e à
ordem econômica, estabelecendo, assim, um arcabouço legal e normativo para o setor da
proteção social, reconhecendo, pioneiramente, esses direitos. Deu-se, então, o início do
processo de institucionalização da proteção social no Brasil, com a criação, em 1933, do
Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos (IAPM), seguido de diversos outros
institutos, como o IAPC, dos comerciários, em 1934, o IAPB, dos bancários, em 1936, o
IAPI, dos industriários, em 1938, o IAPETC, dos trabalhadores em transportes e cargas, etc.
Nesse contexto, as CAP‟s, que existiam desde 1923, sob a Lei Eloy Chaves, são unificadas e
absorvidas pelos IAP‟s, que passam a ter caráter nacional e tratam os trabalhadores de forma
5 O método da insulinoterapia foi criado por Manfred Sakel, em Viena, em 1932, tendo como base o uso da
insulina, provocando, no paciente, um choque hipoglicêmico. 6 Esse método, conhecido como “choque cardizólico”, tinha como base a injeção de cardiozol na veia do
paciente, provocando um choque ou crise convulsiva. 7 O método da malarioterapia foi introduzido na terapêutica neuropsiquiátrica por Wagner Von Jauregg, em
1917. Também conhecido como impaludização, tinha como objetivo a inoculação do Plasmodium vivax em pacientes com Paralisia Geral Progressiva, produzindo acessos de febre benignos, fatais ao Trepanema palidus,
que se localizava no cérebro. 8 A eletroconvulsoterapia foi introduzida como tratamento psiquiátrico pelo médico italiano Ugo Cerletti, em
1938 (GUIMARÃES, H., 1994) .
185
segmentada, conforme o setor de atividade, sendo controlados e regulados pelo Estado
interventor e articulador de sua relação com a sociedade, com base nesse amplo aparato legal,
conjugado à criação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
Essas leis, se analisadas em conjunto, significam, de um lado, o “atendimento a
demandas históricas dos trabalhadores, e de outro, como [um] instrumento de
reconhecimento, por parte das classes dominantes, de determinados direitos sociais a alguns
setores assalariados urbanos, atendidos sob a forma de concessão (e jamais como conquista)”
(COHN, 2001, p.17). Nessa lógica, a noção de direito é sustentada e reforçada pelo lugar que
o individuo ocupa na cadeia produtiva, pois a classe trabalhadora brasileira teve, de forma
inédita, assegurado alguns direitos sociais, os quais, ao mesmo tempo, eram restritos aos
cidadãos com vínculo formal de trabalho, só sendo na verdade cidadão os que estivessem
formalmente inseridos no mercado formal, com carteira de trabalho assinada, estabelecendo-
se, assim, uma forte associação entre cidadania e ocupação. Os demais, uma expressiva
parcela, eram considerados pré-cidadãos, aqui se enquadrando o louco, desprovido de vontade
própria e dos direitos básicos como sujeito social.
No início dos anos de 1940, o Hospício Nacional de Alienados é transferido da
Praia Vermelha para o Engenho de Dentro, na cidade do Rio de Janeiro, recebendo novas
instalações, criando-se também, através do Decreto nº 3.171, de 2 de abril de 1941, o Serviço
Nacional de Doenças Mentais (SNDM), com a finalidade de gerenciar a assistência
psiquiátrica no país, federalizada, pelo governo, por meio do Decreto nº 7.055, de 18 de
novembro (ROSA, 2000a). Nessa fase, o governo manterá o estimulo à construção, em todo o
país, de hospitais asilares, conhecidos pelo tratamento excludente e de pouca eficiência na
recuperação dos acometidos por doença mental, pela superpopulação de internos e pela
precariedade das instalações. O SNDM não fortaleceu e disseminou as bases da atenção
ambulatorial e do tratamento em hospitais abertos, ficando essas intenções apenas no papel,
com raríssimas exceções bem-sucedidas, como o caso da cidade de Recife. Ali, Ulysses
Pernambucano, médico inovador e humanista, logrou, desde os anos de 1930, organizar e
ampliar a assistência psiquiátrica em ambulatórios e hospitais abertos quando, até então,
predominava no Brasil, o internamento em hospitais fechados.
Essa situação se modificou nos anos de 1950, quando, alguns IAP‟s passam a
cobrir as internações psiquiátricas, sobretudo nas instituições do setor privado, já que, até esse
momento, essa assistência especializada não fora incorporada pela Previdência Social, o que
se explica pela baixa eficiência terapêutica e as péssimas condições estruturais e humanas dos
186
hospitais asilares. Mas a ampliação da cobertura dos serviços psiquiátricos pela Previdência
só ocorrerá de fato em 1960, com a unificação dos IAP‟s pela Lei Orgânica da Previdência
Social, momento também de acesso a novas drogas psicotrópicas, que surgem no mercado em
meados de 1955, o que, segundo Rosa (2000a), possibilita a alteração no tratamento aos PTM,
embora, em vez de diminuir as ocorrências de doenças mentais, dá-se, paradoxalmente, o
aumento do índice de internações psiquiátricas no país, tal acontecendo, consoante Amarante
(1994, p.79), porque, na época, o “uso dos medicamentos nem sempre é „tecnicamente
orientada‟, muitas das vezes utilizados apenas em decorrência da pressão da propaganda
industrial, muitas das vezes por ignorância quanto aos seus efeitos ou às limitações”.
No período iniciado pelo golpe militar de 1964, que agrava os conflitos sociais e
as restrições de direitos, a assistência psiquiátrica assumiu um caráter de massificação dos
serviços, sendo estendidos para essa área a cobertura e o tratamento médico de outras doenças
sociais com diagnóstico mais leves, como o alcoolismo, os distúrbios de ansiedade e do sono
e as neuroses, que passam a atingir intensamente a classe trabalhadora, enfraquecida pela
exaustão de intensas jornadas de trabalho, no auge da fase de crescimento econômico dos
anos de 1970. É que, segundo Mendes (1999, p. 59), para o Estado, “o importante já não era
sanear os espaços de circulação das mercadorias mas atuar sobre o corpo do trabalhador,
mantendo e restaurando sua capacidade produtiva”. Ademais, unifica-se, em 1966, os IAP‟s,
criando-se, pelo Decreto nº 72, o Instituto Nacional da Previdência Social (INPS) que,
conforme pontuado no item anterior, intensificou, no Brasil, o processo de privatização da
saúde e o da saúde mental, estimulando e valorizando em favor dos interesses financeiros
deste setor, a compra de serviços de assistências médica e psiquiátrica particulares e
fomentando, a abertura de novos leitos, sob a lógica do lucro e do mercado, com grande
ênfase nas internações em hospitais psiquiátricos. Daí que, para Amarante (1994, p.79), “a
doença mental torna-se definitivamente, um objeto de lucro, uma mercadoria”, constituindo-
se a chamada “indústria da loucura”.
Por essa lógica, há intensa e rápida expansão dos hospitais psiquiátricos, em
particular nos grandes centros urbanos, visando atender, de um lado, aos interesses financeiros
do complexo médico-assistencial do setor privado, que pretendia vender seus serviços ao
Estado e, de outro, contemplar ao segmento farmacêutico, que desejava expandir os negócios,
o que fortaleceu o modelo de mercantilização dos serviços de saúde. Nessa direção, afirma
Amarante (1994, p.80) que
187
este modelo privatizante (em todo o setor saúde, e não apenas no subsetor da
saúde mental) é de tal forma tão violento, concentrador, fraudulento e
ganancioso, que contribui com parcela significativa de responsabilidade para
a crise institucional e financeira da Previdência Social, que se deflagra no
início dos anos 80.
188
Ainda na década de 1960 é lançada, pelo Ministério da Saúde, a Campanha
Nacional de Saúde Mental, através do Decreto nº 60. 252, de 21 de fevereiro de 1967, tendo
como principal objetivo incrementar e dinamizar o discurso preventista do governo, criando-
se, nesse mesmo ano, um órgão federal de normatização, avaliação e controle dos programas
de saúde mental em marcha no país, a Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), em
substituição ao antigo SNDM. O novo órgão tinha como meta assegurar os ideais de
prevenção às doenças, baseadas na assistência ambulatorial, principalmente com a realização
de consultas que evitassem possíveis internações psiquiátricas, majoradoras das despesas do
governo, embora, de forma contraditória, continuasse o governo financiar o pagamento de
leitos privados, em benefícios dos interesses de grupos particulares dominantes dessa área,
com grande influência no Estado, em diversas esferas, inclusive na saúde (ROSA, 2000a).
Essa postura do governo prejudicou várias experiências inovadoras e alternativas
ao tratamento asilar, como é o caso das Comunidades Terapêuticas e do Programa Integrado
de Saúde Mental (PISAM), que encontraram sérias dificuldades de efetivação. É que não
havia interesse nem estatal nem do empresariado em apoiar essas modalidades não
manicomiais vistas com muita resistência e intolerância. O PISAM, criado em 1977, visava
promover a qualificação de profissionais na área da psiquiatria e levar para o interior do país
os serviços psiquiátricos básicos, baseados no projeto norte-americano de psiquiatria
comunitária, mas, mesmo sendo um programa governamental, não obteve pleno êxito e até
fracassando, entre outras razões, por estar desvinculado da rede mais ampla de assistência à
saúde e em desacordo com os interesses do setor privado, com inegável influência sobre o
aparelho do Estado, não obstante, estudos oficiais, realizados pela Previdência Social, nos
anos de 1970, emitirem parecer desfavorável tanto ao modelo de assistência psiquiátrico
segregador e excludente, quanto à política de privatização da assistência psiquiátrica, e
apontarem, a alternativa da assistência ambulatorial, o que fará persistir a lógica da
contratação de serviços privados (ROSA, 2000a).
Na verdade, o campo da saúde tem sido, nas últimas décadas, sobretudo a partir
dos finais de 1970, espaço de luta e problematização que reivindica mudanças no modelo
assistencial para o setor, já que este, historicamente, concentra questões emblemáticas ainda
não resolvidas, mas apenas aliviadas pelos sucessivos governantes. Com efeito, no final da
década de 1970, em razão do esgotamento do modelo médico-assistencial privatista e em
meio à crise fiscal, financeira e de legitimidade do governo ditatorial, assiste-se ao
ressurgimento dos movimentos sociais no Brasil, engajados na superação da ditadura e por
189
mudanças substanciais nos rumos do país, criando assim, maiores possibilidades e melhores
condições de ampliação dos serviços de saúde, na perspectiva da cidadania da maioria da
população, conjuntura esta em que ressurge o Movimento da Reforma Sanitária (MRS), cuja
origem remonta à década de 1960 mas, devido ao clima repressivo da ditadura militar, tem
seus canais de interlocução fechados.
O MRS representou muito para a saúde em geral e para a mental, em particular, na
medida em que questionava os problemas e entraves enfrentados pelo setor, que iam desde o
descaso da falta de recursos específicos que, por não serem assegurados, submetia o serviço
às constantes oscilações econômicas, políticas e financeira do mercado, até à completa
ausência da saúde como prioridade do Estado, historicamente um agente de exclusão de
acesso de grande parcela da população brasileira a esse serviço essencial. Em luta por um
novo modo de conduzir a saúde pública no país, o MRS revitaliza seus ideais, na década de
1970, ao propor um novo projeto de assistência à saúde médica e hospitalar, compromissada
com os interesses dos usuários, considerando-os como sujeitos de direitos, devendo o Estado
assegurar-lhes serviços de qualidade, de modo que os ideais do Movimento, vinculado aos
trabalhadores da saúde, voltam-se para a politização e a problematização da temática,
exigindo um debate em maior profundidade e em todas as esferas da sociedade brasileira, o
que veio ser afirmado na Constituição Federal de 1988. Assim, como processo modernizador
em sintonia com a transformação dos serviços de saúde, o projeto da Reforma Sanitária,
segundo Mendes (1994, p.42), “somente se corporifica num ambiente democrático onde se
encontram a emergência de novos sujeitos políticos, a liberdade do dissenso e o governo dos
cidadãos”, fazendo-se necessário, para sua efetivação, a implantação de um outro paradigma
assistencial, que abrigue novas formas de controle e gestão do sistema pela sociedade.
Como desdobramento do MRS emerge, em 1978, na área da saúde mental, o MRP
(Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira), que tem como norte experiências
estrangeiras na saúde mental, sobretudo da Itália e América do Norte, estando seu surgimento
estreitamente relacionado à crise da DINSAM, órgão federal de gestão, avaliação e controle
das Políticas de Saúde Mental do país, o qual passou, por sérias dificuldades, com um quadro
de pessoal tão precário que levou à contratação de bolsistas. Mas o ponto crucial
desencadeador do MRP ocorreu no Rio de Janeiro, em 1978, quando uma mobilização de
profissionais de uma rede de hospitais dirigido pelo governo federal, denunciou as e precárias
condições de trabalho (a maioria estava em situação irregular, na condição esdrúxula de
bolsistas, pois há anos não se realizava concurso público) e o péssimo tratamento dispensado
190
aos internos, pelo que deflagraram, então, uma greve, fizeram abaixo-assinados e escreveram
cartas às autoridades da área da saúde, tornando público o desmazelo e reivindicando medidas
urgentes para, num primeiro instante, melhorar a situação laboral de expressiva parcela de
funcionários, médicos e outros profissionais. A mobilização recebeu apoio de entidades como
o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) sendo a resposta imediata do Estado aos
reclamos a demissão dos integrantes do movimento, o que o levou a uma retração, ganhando,
porém, força quando, no V Congresso de Psiquiatria, realizado entre 27 de outubro e 01 de
novembro de 1978, em Camboriú, Santa Catarina um grupo de profissionais envolvidos no
caso denuncia o fato, sob o respaldo dos participantes. Nesse evento, conhecido como
“Congresso de Abertura”, ficou marcado, para o ano seguinte, o Encontro dos Profissionais de
Saúde Mental, a ocorrer em São Paulo, tendo, como efeito, publicizar as dificuldades e
dilemas vivenciados nas áreas da saúde e da saúde mental, não se podendo olvidar a
realização, em 1979, do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, que contribuiu para o
fortalecimento da luta e trouxe ao Brasil profissionais renomados, que vivenciaram as
experiências européias e as socializaram com aqueles que aqui se comprometiam com os
mesmos ideais (AMARANTE, 1995).
No desenrolar dos acontecimentos, o MRP expande-se da esfera de uma simples
denúncia para a forma de um movimento social forte, com identidade própria e reivindicador
da reestruturação do modelo assistencial psiquiátrico brasileiro, com a Reforma Psiquiátrica, a
partir daí, se fortalecendo no Brasil e elegendo como objetivo central a reorientação do
modelo assistencial da saúde mental. Desse modo, ganha o MRP evidência nacional em 1989,
quando formula novas denúncias, oriundas dos trabalhadores da saúde mental, que publicizam
as precárias condições de tratamento dos PTM nos hospitais psiquiátricos de todo o país, em
particular na Casa de Saúde Anchieta, instituição psiquiátrica do setor privado, da cidade de
Santos, em São Paulo, a qual sofre interdição da Prefeitura, ficando claro que o Movimento
revelou o quadro dramático da Política de Saúde Mental no país, ainda marcado, fortemente,
pelo incentivo à construção de novos leitos em hospitais asilares. Estes, quando adotados pelo
governo federal, ofereciam, na maioria das vezes, um tratamento precário, caracterizado por
superlotação, maus-tratos, longos períodos de internamento em instituições fechadas sem a
participação da família e da sociedade no processo, aliás basicamente medicamentoso e
segregador e orientado pelo modelo assistencial privatista e violador dos direitos humanos.
Mas a constituição do MRP não foi homogênea, já que, no seu interior, existiam
várias tendências, em busca de hegemonia, com duas vertentes principais se debatendo, no
191
início, uma delas em luta pela extinção progressiva da estrutura dos manicômios-asilos, que
sempre predominaram no país, por entender somente ser possível tratar os PTM assegurando-
lhes os seus direitos de cidadão fora dos muros dessas instituições e mediante a construção de
unidades extra-hospitalares, enquanto a outra defendia a pertinência de, nos próprios espaços
das instituições psiquiátricas, promoverem-se mudanças do modelo assistencial
(AMARANTE, 1994). Essas idéias do MRP, entre as quais a de colocar a saúde como um
direito universal, são levadas a debate na VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em
março de 1986, a qual deu um salto qualitativo na discussão dessas idéias, já que aprofundou
a questão da saúde mental, avançando na defesa da ampliação da universalização dos serviços
de saúde.
Como já se assinalou, a VIII Conferência foi muito importante para a sociedade
brasileira, posto que, além de contar com expressiva presença de diversos segmentos sociais,
tanto da área quanto de fora dela, debateu e reivindicou uma nova proposta de saúde para o
Brasil. Sua relevância histórica decorre, pois, do seu caráter democrático, demonstrado pela
ampla participação das forças interessadas na problemática da saúde e pela sua dinamicidade
processual, revelada pela realização de encontros preparatórios, nas instâncias municipais e
estaduais, até alcançar o plano nacional. O relatório final da Conferência traz, para a
sociedade brasileira, uma forte perspectiva de avanços e conquistas sociais, em particular na
saúde, inéditas até então, principalmente porque os resultados convergiram e culminaram na
elaboração da proposta de criação do Sistema Único de Saúde (SUS), acolhida na
Constituição de 1988, a chamada Constituição Cidadã. O SUS, preconiza, com efeito, em seus
princípios, a descentralização, a universalidade e a eqüidade dos serviços de saúde, em
beneficio de todos os brasileiros, independente de qualquer contribuição financeira.
Logo após a VIII Conferência e como parte dos acontecimentos ligados ao
processo de aprofundamento das discussões sobre a saúde mental, realiza-se em 1987, no Rio
de Janeiro, a I Conferência Nacional de Saúde Mental. Esta Conferência deliberou sobre a
organização dos serviços de saúde assistenciais da área, reforçou a idéia da revisão do modelo
hospitalocêntrico/hospíciocêntrico pela proposição de serviços alternativos e reafirmou a
diminuição de leitos psiquiátricos em prol do atendimento em hospitais gerais e serviços de
base comunitária, como Hospital-Dia, Hospital-Noite, Lares Protegidos, Espaços Auto-
Gestacionários e Trabalho Protegido. Ademais, no tocante à política de recursos humanos,
propagou o restabelecimento dos princípios de democratização dos serviços, com a realização
de concursos públicos e formulação de um plano de cargos e salários para os profissionais da
192
área (ROSA, 2000a). Quanto à legislação sanitária e psiquiátrica, as diretrizes da Conferência
sugerem que as internações em instituições psiquiátricas sejam regulamentadas em lei,
assegurados e garantidos os direitos básicos dos PTM, redefinindo-se-lhes critérios e
controles, além de estabelecer, ainda, o trabalho em equipes interdisciplinares,
descentralizando assim o poder médico sobre as discussões dos atos terapêuticos e passando a
valorizar a democratização das informações e maior participação da família e do próprio
doente, requerendo, também, que o PTM seja visto como cidadão, cidadania essa até aquele
momento e ainda hoje não devidamente assegurada, quer no plano legal, quer na prática. A
esse respeito, Vasconcelos (1997, p.137) diz que “em última instância, trata-se de uma
cidadania „especial‟, a ser inventada, marcada pela diferença colocada pela experiência da
loucura e da desrazão e que, portanto, não pode ser identificada com a concepção
convencional associada ao indivíduo racional, livre e autônomo”.
Assim, quase três décadas depois do início do MRP, observa-se, no final dos anos
de 1990, a concretização de importantes avanços na direção de desmontar o “parque
manicomial” (FALEIROS, E., 2002), progressos esses relacionados à normatização, pelo
governo federal, de ações voltadas ao tratamento alternativo, as quais têm, por aportes, o
rompimento com o caráter asilar e a defesa da descentralização do atendimento para unidades
de referência, fora dos muros do hospital psiquiátrico. Ademais, outras medidas foram
tomadas pelo governo federal, no quadro de reestruturação da assistência propugnada pela
Política Nacional de Saúde Mental, em especial aquelas que se referem, de um lado, à
proibição de aberturas de novos leitos psiquiátricos em todo o país e, de outro, ao princípio do
processo de fechamento dos macro-hospitais, que recebiam uma enorme população de PTM,
o que reforça as ações destinadas à abertura de leitos alternativos em Hospital-Dia, Hospital-
Noite, Pensões Protegidas, etc, algumas delas concretizadas na década de 1990 e no novo
milênio, sendo esse, porém, um processo ainda em construção no país.
Mas os ideais da Reforma Psiquiátrica se implementam de forma desigual na
sociedade brasileira, sendo mais expressivas na Região Sudeste e, nela, em cidades como São
Paulo, Santos e Rio de Janeiro, onde a sociedade passou a conviver, ao mesmo tempo, com os
serviços alternativos, que rompem com os manicômios, e os tradicionais, que se baseiam nas
internações hospitalares e consultas ambulatoriais. No Piauí e em Teresina, a Reforma tem
sido, por sua vez, discutida e executada a passos lentos, seguindo, até o momento de feitura
desta pesquisa, as diretrizes do Ministério da Saúde no que tange à progressiva redução de
leitos da internação integral sem, no entanto, haver, por parte dos gestores da saúde nas
193
esferas de governo estadual e municipal, ações palpáveis no sentido de constituir os serviços
alternativos, propostos e exigidos pelo próprio Ministério. Há, na verdade, nessas esferas de
poder, uma postura pouco comprometida com os rumos da política de saúde mental no
Estado, apesar da existência de um processo que, lentamente e incipientemente, vem sendo
debatido pelos sujeitos sociais mais envolvidos com a causa, como os trabalhadores da saúde
mental e os familiares dos PTM.
No campo jurídico-político, uma das discussões mais polêmicas esteve
relacionada à apresentação, em dezembro de 1989, do Projeto de Lei nº 3.657/89, de autoria
do deputado federal Paulo Delgado, do Partido dos Trabalhadores de Minas Gerais, que
versava sobre a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos, cabendo ao Estado, em
contrapartida, criar serviços alternativos, extra-hospitalares. Isso, entre outras disposições,
causou um amplo embate na mídia nacional, através da divulgação de propagandas e
experiências que tratam dessa questão, “em prol de mudar a relação da sociedade com a
loucura” (ROSA, 2000a, p.102), estabelecendo-se, na sociedade civil, na comunidade médica
e no setor empresarial da área, posicionamentos opostos. No cenário nacional, em
decorrência da aprovação da Lei federal nº 3.657/89, em 14 de dezembro de 1990,
intensificou-se, ainda nessa década, a discussão sobre a extinção e a substituição progressiva
dos leitos em hospitais psiquiátricos por Serviços Alternativos de Atenção Integral à Saúde
Mental, proposta pelo Ministério da Saúde, os quais devem atuar na perspectiva da reinserção
social, com o fortalecimento da cidadania do PTM, valorizando, assim, o usuário como sujeito
de direitos. Por receio de situações de desassistência e abandono aos PTM, uma reação
especifica à Lei foi a criação, na cidade do Rio de Janeiro, em 1991, por seus familiares e
cuidadores, da Associação de Famílias de Doentes Mentais (AFDM).
A II Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), que aconteceu em Brasília,
de 1 a 4 de dezembro de 1992, com a temática “A reestruturação da atenção em saúde mental
no Brasil: modelo assistencial/direito à cidadania”, foi, também, de grande importância,
porquanto reafirmou os princípios inscritos na VIII CNS, realizado em 1986, e no SUS, criado
em 1988, que se referem à saúde como direito do cidadão e dever do Estado. No calor das
discussões, reforçou-se a defesa dos ideais da Reforma Psiquiátrica brasileira, na perspectiva
da desinstitucionalização e da antimanicomialidade, sendo o debate norteado pelo
fortalecimento do modelo assistencial de saúde ancorado nos princípios dos direitos de
cidadania do PTM. Mas, mesmo que com avanços nos debates, lutas e regulamentações em
torno da saúde mental, observa-se na prática, até o presente momento, que o modelo
194
tradicional persiste, pois, segundo Faleiros (E., 2002, p.33), “o que se verifica é que não foi
ainda implantada no país uma política governamental que substitua a atual, baseada na
concepção apenas biológica e patológica dos transtornos psíquicos [já que] prevalece o
modelo médico-clínico, hospitalocêntrico, medicamentoso”, embora, em conjuntura diferente,
o movimento proposto pela Reforma Psiquiátrica continue, nos dias atuais, a agregar forças
no afã de concretizar seus princípios.
Com efeito, a partir da década de 1990, discutem-se, na sociedade brasileira,
vários projetos de mudanças na normatização dessa área da saúde, sendo certo que, apesar dos
avanços no sentido de a saúde mental ser tratada sob os princípios do SUS, as adversidades
permanecem, de modo que a garantia da lei não é suficiente para criar, por si, caminhos para a
sua efetiva concretização. Assim é que, mercê dos esforços da sociedade e das entidades
sociais comprometidas com a saúde mental, na busca de promover e estabelecer uma nova
diretriz para a condução das ações na área da assistência psiquiátrica que amplie a rede de
serviços alternativos, o modelo hospitalar asilar tradicional resiste, no Brasil, como a principal
forma de tratamento dos PTM. Não bastasse isso, com a introdução e a investida dos modelos
neoliberais, a saúde mental passa a sofrer-lhe os reflexos, com as imposições, para as Políticas
Sociais, da redução dos benefícios e da redefinição da assistência psiquiátrica no país, o que
se intensifica, no governo de Fernando Henrique Cardoso, com a reforma mesma do Estado,
em adequação ao receituário do neoliberalismo, num período marcado pela adoção de
medidas fortemente recessivas, geradoras de desemprego e precarizadoras de direitos sociais,
lançando expressiva parcela da população brasileira à desproteção desses direitos, embora
garantidos na Constituição Federal de 1988.
Neste contexto, as Políticas de Saúde, em especial as de Saúde Mental, são
atingidas drasticamente, com graves prejuízos para a sociedade brasileira, mais
especificamente para os pobres e os que reivindicam serviços públicos universais de
qualidade, com o governo federal não cumprindo em plenitude a universalização da saúde e,
como parte dessa mesma lógica, tornando muito lento o processo de regulamentação das leis
complementares da área da saúde e da saúde mental. Ademais, pouco se tratou da promoção
das ações básicas de saúde e das Políticas de Saúde, em especial das Políticas de Saúde
Mental, pois as injunções neoliberais atingem a todas as esferas sociais, expostas a profundos
impasses econômicos, financeiros e políticos, derivados das decisões governamentais,
também de corte neoliberal, em desrespeito às diretrizes do SUS asseguradoras da saúde
195
como um direito de cidadania e um dever do Estado, que deve promovê-la, de forma
descentralizada e universal, criando as condições estruturais para a sua efetivação.
Apesar de tudo, o governo federal, nos últimos anos, tem efetivado a política de
reestruturação da assistência psiquiátrica no país, incentivando o tratamento dos PTM por
meio de ações comunitárias de atenção psicossocial, numa perspectiva que amplia, de forma
expressiva, os leitos nas unidades de tratamento alternativos, sobretudo nos grandes centros
urbanos, onde as idéias da Reforma Psiquiátrica são mais difundidas, e os diminui nas
internações integrais. As mais recentes portarias nesse sentido, as de n° 52 e 53, de janeiro de
2004, regem a classificação, por categorias, dos hospitais psiquiátricos conveniados com o
SUS, tendo como parâmetro básico a quantidade de leitos, devendo os hospitais se adequar às
exigências do programa que dispõe sobre a sua redução progressiva. Além disso, as medidas
que visam estimular a criação de serviços de tratamentos alternativos têm sido motivadas pela
redução de custos, tanto que dados do governo federal, do ano de 1998, mostram que os
gastos com o tratamento asilar somaram RS$ 432.276.674,27, enquanto que com os serviços
alternativos o valor foi de 21.455.417,00 (ROSA, 2000a), o que se, por um lado, revela que
para o governo é mais barato tratar do PTM nos serviços alternativos, por outro lhe impõe a
criação de uma rede integrada, articulada, diversificada e descentralizada, como preconizam
os princípios do SUS, inclusive para os serviços de saúde mental, montada com equipes
interdisciplinares especializadas e treinadas, que sirva de apoio a esse tratamento, cujos
exemplos são os NAPS, os CAPS, as Pensões Protegidas, os Hospitais-Dia e os Hospitais-
Noite.
Se essa rede integrada não for constituída paralelamente à implantação dos novos
serviços, estes ficam comprometidos, sob o risco de não funcionar de forma eficiente, porque
o fato de o usuário freqüentar os serviços alternativos não implica que não mais usará em
algum momento de sua vida, das internações psiquiátricas, convencionais ou não, pois podem
ter recaída, com crise aguda e, nesses momentos críticos, requerem cuidados psiquiátricos
mais intensivos. É por isso que, diante da complexidade e das incertezas do transtorno mental,
torna-se imprescindível à sustentação e efetivação dos serviços alternativos a criação de um
sistema de referência e contra-referência que assuma as características citadas e lhes sirva de
suporte, caso contrário se tornará a assistência psiquiátrica cada vez mais precarizada, frágil,
fragmentada e com pouca resolutividade, não atendendo aos interesses e necessidades básicas
da população usuária desses serviços especializados de saúde. Além disso, Amarante (1995,
196
p.84) sublinha que, nesse processo, é preciso ficar vigilante, já que podem surgir problemas
relacionados aos novos serviços, os quais,
embora tenham apontado para uma nova tendência no que diz respeito ao modelo assistencial, chamou a atenção para o aspecto da qualidade dos
mesmos. Em outras palavras, percebeu-se que o fato de ser um serviço
externo não garante sua natureza não-manicomial, pois pode reproduzir os mesmo mecanismos ou características da psiquiatria tradicional.
197
Essa preocupação remete a que, no atual contexto, é preciso avaliar e acompanhar
a implantação dos serviços alternativos, nas suas fases e faces, observando os seus rumos e os
desdobramentos na sociedade brasileira, uma vez que esse processo envolve múltiplos e
antagônicos interesses, como os dos proprietários de hospitais, que historicamente
estimularam as internações psiquiátricas convencionais em instituição fechada, para eles fonte
de receitas, e os da presença e incentivo ao uso indiscriminado de medicamentos
psicotrópicos, que favorece ao empresariado do setor farmacêutico na expansão de seus
negócios com o transtorno mental, na verdade uma certeza de lucro tão garantido que mantêm
um permanente assédio à categoria médica, na divulgação de novos medicamentos.
Infelizmente, situações dessa natureza persistem, no âmbito da Política de Saúde Mental,
apesar dos esforços estatais e das entidades defensoras desta causa em aumentar e melhorar o
nível de fiscalização desses serviços no país, em busca de uma assistência digna, que promova
a efetiva cidadania dos usuários, como sujeitos de direitos. Aliás, não raro ocorrem
aprovações de leis e diretrizes sobre Política de Saúde Mental, em virtude da participação das
várias entidades interessadas e da população usuária, sendo implantado diversos novos
serviços na área, embora prevaleça no Brasil o modelo de atendimento hospitalar tradicional.
Mas, como se trata de um processo, transformador e em construção, é preciso atentar,
conforme Amarante (1995, p. 85), que “a participação, por si só, não é garantia de
democratização ou de opção pelos caminhos mais corretos e melhores para os sujeitos
portadores de sofrimento psíquico” .
Nesse jogo de interesses, ainda se dá que os mais fragilizados e penalizados, os
PTM e suas famílias, podem ser manipulados por segmentos contrários ao processo de
implantação dos novos serviços, num desvio de rota que atende aos diversos grupos
dominantes na sociedade, comprometidos com o sistema de tratamento psiquiátrico
tradicional, que a eles proporcionam inúmeras vantagens econômicas.
1. 3 A Assistência Psiquiátrica no Piauí
Estado do Piauí, uma das unidades da Federação mais pobres da Região Nordeste do
Brasil, tem uma área de 250.000 km2 e uma colonização, que, ao contrário do que ocorreu
com os demais estados nordestinos, não se deu pela costa marítima, mas pelo interior, através
da expansão das fazendas de gado bovino. Em razão disso, ficou isolado do resto do país e,
198
por sua posição geográfica, situada no “Polígono das Secas”, sofre, desde os primórdios,
extensos e cíclicos períodos de estiagem, que se refletem, ainda hoje, no seu desenvolvimento.
Sob extrema pobreza, o Piauí teve então, já no princípio, a economia baseada na agricultura
de subsistência (cultivo de produtos básicos como arroz, feijão e milho) e na pecuária, essa
implantada como suporte à indústria açucareira nacional e posteriormente consorciada ao
incremento do extrativismo da borracha, uma atividade importante na área do comércio e da
indústria locais. Dessa forma, desde o período de colonização, no século XIX, o Piauí tem,
historicamente, uma economia frágil e dependente e uma sociedade composta por população
predominantemente rural, que se consolida social e culturalmente a partir de relações
autoritárias, assentadas no coronelismo, no clientelismo e no favor e marcam profundamente a
sociedade piauiense, afetando-lhe o seu desenvolvimento econômico, político, social e
cultural.
Não seria então surpresa dizer que, no Estado do Piauí, como no restante do Brasil e
do mundo, os doentes mentais de condição social mais abastada eram tratados, em seus
domicílios, por cirurgiões ou médicos, enquanto os mais empobrecidos, ficavam entregues
aos cuidados de suas famílias, à própria sorte ou à caridade pública. É que algum suporte
assistencial legal na área da saúde pública, só veio com a aprovação da Lei Provincial nº 9, de
4 de julho de 1835, que criou o Hospital da Caridade, na cidade de Oeiras, primeira Capital do
Piauí, nada porém sendo realizado, vindo o Hospital a funcionar, efetivamente, apenas em 31
de março de 1849, com a prestação de serviços médicos aos militares. Anos depois, ainda em
Oeiras, o Hospital da Caridade é transformado em Santa Casa de Misericórdia, passando a
atender principalmente as camadas mais pobres da população piauiense, embora antes dessas
medidas, em 14 de setembro de 1822, o então padre e deputado estadual Domingos da
Conceição tentasse, junto à Corte, a aprovação de um projeto de um hospital para a Província
do Piauí, iniciativa fracassada devido ao momento conflituoso entre Brasil e Portugal.
(GUIMARÃES, H., 1994).
Com a mudança da capital para Teresina, em 1852, surgiram as primeiras medidas
de saúde pública, a partir da preocupação com a qualidade da água, a qual, em períodos de
intensas chuvas, apresentava-se muito barrenta (OLIVEIRA, 1995), sem olvidar que, na
década seguinte, o governo provincial atentava para as doenças infecto-contagiosas,
principalmente a febre amarela e o cólera, causas da morte de vasta parcela da população,
sobretudo trabalhadores. Nesse mesmo período, em 17 de agosto de 1861, inaugurou-se, na
nova capital, o Hospital da Caridade da Santa Casa de Misericórdia, com a menção de
199
cuidados médicos aos loucos, nessa instituição, só sendo feita no ano de 1890, pelo Decreto-
Lei nº 25, de 22 de abril, que em seu artigo 40 os incluem no direito de internação, referindo
que “o serviço médico será classificado segundo a natureza das enfermidades: 1º em Clínica
Médico-Geral, abrangendo os inválidos e loucos de todo gênero” (GUIMARÃES, H., 1994,
p.30). Ainda assim, a ala dos loucos, anexa à Santa Casa, se compunha de “quartos-prisões”, o
que evidenciava uma assistência mais carcerária que médica.
Sob a mesma orientação e modelo, foi fundado em Teresina, pelo Decreto nº.327
de 5 de janeiro de 1907, no governo de Álvaro Mendes (1904-1907), o Asilo de Alienados
(ARAÚJO, 1995), o qual, no início, era uma entidade independente mas em 8 de julho de
1909, no governo de Anísio de Abreu, passou a funcionar, em decorrência da Lei nº 541,
vinculado ao Estado do Piauí, posto que a referida Lei autorizava o executivo a acordar, com
a administração da Santa Casa de Misericórdia, a transferência da direção e da
superintendência do Asilo, de modo que a criação do Asilo de Alienados constituiu-se, sem
dúvidas num marco histórico da assistência psiquiátrica piauiense. A iniciativa de construí-lo,
no governo de Álvaro Mendes partiu do médico e vice-governador, Areolino de Abreu, que
mediante o apoio de colegas de profissão abriu uma subscrição9
nesse sentido, de modo que,
passados poucos meses e já contando com cinco contos de réis, o governador, solidário com a
causa, doou, via erário, outros cinco contos, destinados à compra de uma chácara, no Campo
de Marte (onde hoje está erguida a Unidade Escolar Benjamin Batista, na atual Rua Jônatas
Batista), pelo preço de oito contos. Como o que restou em caixa era insuficiente para iniciar a
execução da obra, a Câmara dos Deputados aprovou, em 2 de julho de 1906, a Lei nº 409,
que concedia outro auxílio de vinte contos de réis, tendo o Senado Federal igualmente votado
uma verba de quinze contos, totalizando assim os recursos necessários para à construção da
obra (GUIMARÃES, H., 1994).
O projeto original do prédio, feito pelo engenheiro e diretor de obras públicas do
governo do Estado, Antonino da Silva Freire, previa quatro pavilhões, dois para o sexo
masculino e dois para o feminino, comportando cada um 16 leitos, além de uma sala para a
administração e um salão para banhos (no início do século XX ainda existia a classificação e
divisão dos enfermos em pensionistas, agitados e furiosos), sendo o Asilo inaugurado em 21
9 Compromisso de contribuir com uma certa quantia de dinheiro para empresa ou obra de beneficência
(FERREIRA, 2000).
200
de janeiro de 190710
, sob a denominação de “Asilo de Alienados Areolino de Abreu”, com
discursos e festividades, apesar de a construção estar incompleta. Antonino Freire foi
governador do Piauí de 1910 a 1912 e, diante das condições de extrema precariedade do
Asilo, dirige-se, em Mensagem, à Câmara Legislativa, mencionando que, ao visitá-lo, teve a
sensação de que “„falta tudo: a casa, as enfermarias, o tratamento‟” (ARAÚJO, 1995, p. 110),
conclui seu discurso impressionado com a precariedade do hospício, sendo este, mais uma
casa de doidos, que um local para tratamento, pois o que se percebia era a total ausência de
infra-estrutura mínima para seu funcionamento. Isso retratava que os enfermos ali internos
não recebiam nenhum tipo de cuidados médicos ou higiênicos, pois nem mesmo a
alimentação estava a eles disponível, que ficavam à mercê da própria sorte ou da ausência
dela.
Uma década após a inauguração do Asilo, o governador Eurípedes Clementino de
Aguiar (1916-1920) ainda lamentava, em discurso, o seu inacabamento. Na verdade, em razão
dos parcos recursos, só algum tempo depois da inauguração a obra foi retomada, com a
construção da metade de dois pavilhões para doentes, a sala para os agitados e a casa para a
administração, usando-se verbas federais, no valor de 25 contos de réis, que se destinavam a
socorrer as vítimas da seca (ARAÚJO, 1995). No entanto, mesmo com esses reparos, o
funcionamento do Asilo continuava precário, tanto que Eurípedes de Aguiar dizia que
ao assumir o governo do Estado, conhecedor da situação lamentável em que
se achava o Asylo, um dos meus primeiros cuidados foi lançar as minhas
vistas para os infelizes asylados. Dentro dos estreitos limites de recursos que
a lei me faculta, fiz o que foi possível, e tenho a satisfação de vos comunicar que os loucos do Asylo de Teresina não andam mais nus, não sofrem fome
nem morrem por falta de cuidados médicos. Mas isto não é o bastante. É
preciso que a obra iniciada seja concluída, que o projeto do asylo seja executado. Para que assim aconteça não é necessário que o Estado despenda
um vintém de suas rendas; basta que se dê ao asylo o que é do asylo. Quero
me referir às quotas com que a Companhia das Loterias Nacionais subvenciona o asylo desde o ano de 1911 (apud GUIMARÃES, H., 1994,
p.32-3).
O governador reconhece, assim, a premência de melhorar a infraestrutura do Asilo
de Alienados, relacionando-a diretamente com a conclusão da obra, exigindo, para isso, que
cotas da Companhia de Loterias Nacionais, pertencentes ao Asilo e que deveriam
10 Há divergência, entre os autores consultados sobre a data de inauguração do Asilo de Alienados. Para
Guimarães (H., 1994), isso ocorreu em 24/01/1907, enquanto, para Araújo (1995), o acontecimento é de
21/01/1907.
201
subvencioná-lo, desde os anos de 1911, lhes fossem integralmente repassadas não sendo
necessário recorrer aos cofres públicos. Os pavilhões foram concluídos no governo de João
Luiz Ferreira, com os internos ficando, a partir daí, melhor acomodados. Na verdade, a
decisão de construir o Asilo de Alienados decorreu das precárias condições a que estavam
submetidos grandes contingentes de pessoas, como os retirantes, que fugiam da seca e
perambulavam, ou até moravam, nas ruas e, para sobreviver, realizavam pequenos furtos e
mesmo alguns roubos, situação essa que incomodava a elite da sociedade piauiense, que
reclamava medidas garantidoras da tranqüilidade, da moralidade e da ordem social, de modo
que em essência o Asilo responde aos anseios desses grupos, para os quais conviver ou
assistir os miseráveis a perambular pela cidade era uma questão moral a ser resolvida pelo
poder público. Aliás, afirma Araújo (1995, p.112) que
as instituições Colégio dos Educandos Artífices11
e Asilo de Alienados
foram criados como instrumentos de disciplinarização da vida urbana, fruto
do medo e da insegurança provocada pelo imaginário das elites dirigentes de
Teresina. Neste período, a Capital do Piauí, necessitando de ordenação
urbana, retira de suas ruas os meninos órfãos e loucos, isolando-os da
sociedade para que vivessem nela apenas homens sadios, normais e
higiênicos.
A criação do Asilo de Alienados está, portanto, ligada ao interesse do governo e
das elites locais de retirar das ruas os loucos e os marginalizados sociais, que eram
extremamente pobres e migravam para a capital à procura de emprego ou de melhores
condições de vida e, em não conseguindo, ficavam pelas ruas, perambulando. O louco era
apenas mais um a ser levado para o Asilo, a fim de garantir a paz social tão reclamada.
Mas, antes mesmo da criação do Asilo de Alienados, iniciou-se, ainda em 1877,
os primeiros movimentos da sociedade piauiense, sobretudo em Teresina, no sentido de
angariar recursos financeiros em prol da construção de um Asilo de Mendicância e uma Casa
de Detenção, que absorvessem os pobres, os loucos e os indigentes que perambulavam pelas
principais cidades do Estado. É que essas pessoas se constituíam, para as famílias mais
abastadas, uma ameaça cotidiana à ordem social e aos bons costumes, posto que, como
11
O Colégio dos Educandos Artífices, que se destinava a receber meninos órfãos e pobres, foi fundado por
Zacarias de Góis e Vasconcelos, em 24 de setembro de 1847, através da Lei 220 (ARAÚJO, 1995).
202
ressalta Araújo (1995, p.102), “pelo imaginário dos teresinses perpassava a ânsia por uma
cidade „progressista‟ e „civilizada‟. Daí a preocupação de limpar as ruas e o locais onde os
homens e mulheres pobres, os órfãos, os mendigos e os loucos viviam.”
Em suma, da mesma forma que no resto do país, no Piauí, antes do Asilo de
Alienados, os loucos e todos os que perambulavam pelas ruas eram também recolhidos às
cadeias públicas, sob a alegação de serem perigosos para o convívio social, devendo ser
mantidos em locais isolados, como as prisões, em sistema de reclusão. No entanto, a criação
posterior do Asilo de Alienados não trouxe melhorias significativas para os mais
empobrecidos lá abrigados, pois a assistência nele prestada, como se mencionou, era precária
e desprovida de uma infra-estrutura capaz de atender às necessidades humanas, de modo que
os doentes, os loucos e os indigentes levados para lá ficavam desprezados, sem alimentação
nem roupas adequadas, sendo abandonados pelas famílias e ficando somente sob a
responsabilidade da administração do hospital. Aliás, Santos (1973, p.39) afirma que
tratava-se de um hospital pobre, desprovido de recursos, tanto material
como humano, não possuindo um só médico psiquiatra, usando os mais
arcaicos dos meios terapêuticos. Apesar dos esforços da sua direção, o referido estabelecimento, pela falta de condições econômicas, representava
mais um sistema presidiário do que hospitalar.
Assim, no Piauí, como no Brasil, os loucos de condição social mais elevada,
quando calmos, ficavam sob a responsabilidade de suas famílias, num quarto separado, sendo
da mesma maneira tolerados os loucos mais pobres, se calmos, embora circulassem pelas
ruas, vivendo da caridade e de pequenos serviços que realizavam. Já os agitados eram
recolhidos às prisões, juntando-se aos demais desviantes e, anos mais tarde, transferidos para
o Asilo de Alienados, onde morriam esquecidos pelos parentes e a sociedade.
A criação do Asilo de Alienados ocorre, em síntese, nos marcos da lógica nacional
dominante à época, pois, além de servir de abrigo para o louco, destinava-se a manter a
disciplina moral dos “desviantes” por meio do trabalho, tido como um elemento fundamental
para o progresso social. Por conta disso, o seu regimento assinalava que a instituição deveria
recuperar e moralizar o louco, como forma de disciplinar e manter a ordem social, reclamada
pelas elites locais, que se sentiam inseguras e desejavam o reordenamento urbano da cidade,
com a retirada dos locais públicos de todos os indesejáveis, como os meninos órfãos e os
próprios loucos, isolando-os do convívio social, que deveria compor-se, segundo Araújo
(1995, p. 112), “apenas por homens sadios, normais e higiênicos”. Um exemplo disso eram as
203
funções do enfermeiro, referidas no regimento, o qual deveria promover atividades para
ocupar os alienados, com tendência para o trabalho, mesmo com pequenos serviços.
É então assim, sob a ótica da disciplina e do trabalho, que as questões relativas à
pobreza e à loucura passam a ser vistas pelo Estado e pela sociedade, a primeira tida no
âmbito da caridade e “ser percebida como falha moral inerente ao indivíduo, passando a ser
vigiada e controlada” (ROSA, 2000a, p.124-5), devendo, em decorrência, ser tratada nas
esferas policial e jurídica e no bojo de medidas sócio-assistenciais e médicas. Enfim, a
assistência psiquiátrica piauiense, assim como ocorreu nos outros estados brasileiros, “desde
suas origens está centrada no modelo hospíciocêntrico/hospitalocêntrico” (idem, 2000a,
p.126), baseada nas internações em instituições asilares fechadas, seguindo a lógica da
política nacional dominante.
No momento da criação do Asilo de Alienados Areolino de Abreu, a direção ficou
a cargo de médicos clínicos gerais, sendo o primeiro diretor Marcos Pereira de Araújo, mas, a
partir de 1912, no governo de Antonino Freire (1910-1912), essa responsabilidade é
compartilhada com as irmãs da Ordem das Filhas de Maria, que cuidarão cotidianamente dos
doentes internos, com as ações voltadas para a higiene, a alimentação e os desvelos gerais,
numa situação que perdurou até meados de 1940, década essa marcada por um sensível
crescimento da economia piauiense fomentada pelo extrativismo da borracha, expansão do
comércio e o incremento da indústria de transformação de produtos de exportação e
alimentos. Aliás, uma das conseqüências diretas desse surto desenvolvimentista foi a
formação de uma classe média, constituída por comerciantes, funcionários públicos,
burocratas e profissionais liberais, que discutiam e defendiam novas idéias para o progresso
estadual. Nessa fase, a sociedade piauiense dinamiza-se social e economicamente, embora
permaneça relevante o seu caráter agrário e rural (ROSA, 2000a).
Ora, desde os finais dos anos de 1930 e início da década de 1940, vários
acontecimentos marcaram a área da saúde. Com efeito, surge, em 1938, no governo de
Leônidas Melo (1935-1945), a Sociedade Piauiense de Medicina, que visava promover a
integração social e cultural da classe, divulgando e discutindo temas de interesse da categoria
e em 1940 cria-se o Departamento de Saúde Pública, vinculado à Secretaria de Educação do
Estado, com o objetivo de combater as doenças endêmicas, muito comuns na época, sem
mencionar a inauguração, em decorrência do Decreto-Lei n° 360, de 2 de maio de 1941, do
Hospital Getúlio Vargas (HGV), que passa a ser referência para todo o Estado e ligado,
inicialmente, ao Instituto de Assistência Hospitalar do Estado do Piauí (IAH). Tal período
204
torna-se mais relevante ainda porque é nele que aqui chegam os primeiros médicos
psiquiatras, o que permite dizer que no Piauí as instituições psiquiátricas antecedem os
próprios psiquiatras.
O psiquiatra pioneiro do Piauí foi Clidenor de Freitas Santos, seguido por João
Coelho Marques, aquele o primeiro especialista a dirigir o Asilo de Alienados, de 1940 a
1958. Segundo Oliveira (1995), o ato administrativo inaugural de Clidenor de Freitas Santos
foi mandar retirar as correntes que prendiam as pernas dos loucos, como fez Pinel, na França,
sendo que tais, num montante de cem, perfizeram mais de uma tonelada de ferro, doada ao
Estado para o “reforço de guerra”. Outra medida de impacto foi sugerir a substituição
imediata do nome Asilo de Alienados, que ele achava impróprio, para Hospital Psiquiátrico
Areolino de Abreu (HPAA), em homenagem a seu fundador, o que se deu pelo Decreto–Lei
nº 411, de 14 de agosto de 1941, mesmo ano da desvinculação institucional do Asilo da Casa
de Misericórdia e da vinculação ao Instituto de Assistência Hospitalar (IAH), ocorrendo a
estadualização do HPAA.
As transformações realizadas na administração de Clidenor de Freitas Santos
foram significativas tanto em relação à estrutura física (execução de vários reparos,
construção de enfermarias, etc), quanto acerca da ordem funcional, já que melhorou a
qualidade no atendimento aos loucos ali internos, introduzindo-se novas e modernas técnicas
de tratamento, já em uso no país, como malarioterapia (método utilizado, pela última vez, no
Estado do Piauí, em 1952), eletroconvulsoterapias, choques cardiazólicos e a insulinoterapias
(método utilizado por Clidenor a partir de 1947). Ademais, como parte desse conjunto de
medidas na área da saúde mental e seguindo às diretrizes da Política Nacional de Saúde,
dirigida pelo Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM), é criado, em 1942, o primeiro
Ambulatório de Higiene Mental do Piauí, em anexo ao Asilo de Alienados, para atender à
população não-interna carente de assistência especializada. Mas, segundo analistas, apesar
dessa opção, serão conservadas, no Asilo, as mesmas práticas de internamento, embora Santos
(1973, p.43) pense diferente, pois diz que
seu quadro de pessoal é constituído de um médico psiquiatra e três
atendentes. Grande tem sido o papel desempenhado pelo mesmo, na assistência ambulatorial, atendendo os pacientes da classe menos favorecida,
principalmente aqueles sem direito à assistência da Previdência Social. Tem
o mesmo como principais finalidades: o tratamento preventivo, a continuidade do tratamento aos egressos, evitar segregação do paciente do
seu meio sócio-familiar sem interromper suas atividades profissionais.
205
Um dos nomes expressivos, senão o mais, da psiquiatria piauiense nos anos de
1940, Clidenor de Freitas Santos é nomeado, em 1942, diretor, no Piauí do SNDM. Nesse
período, inicia ele, em Teresina, a construção do próprio hospital psiquiátrico, que chamaria
de Sanatório Meduna, em homenagem ao médico húngaro L. J. Von Meduna. Pelo tamanho e
estrutura, o Sanatório só será inaugurado, com repercussão nacional, dez anos depois, em 21
de abril de 1954, sendo, por mais de uma década, uma das referências em tratamento
psiquiátrico no Nordeste do Brasil.
Emerge, assim, nos anos de 1950, no Piauí, a assistência psiquiátrica particular,
representada pela inauguração do Meduna, que provocará, nessa época, uma expansão
significativa dessa assistência no Estado, embora limitada a Teresina, que concentrava, além
dele, o Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu. É que, nas cidades do interior, não havia
atendimento médico especializado, de modo que os casos graves de loucura eram
encaminhados à capital, muitas vezes por prefeitos, juízes ou polícia, não sendo os loucos
atendidos nem mesmo por clínicos gerais, havendo relatos de que, na impossibilidade de vir
para a capital, as famílias ficavam com os doentes em casa, num local isolado, embora o
desenvolvimento da assistência psiquiátrica no Piauí já estivesse condicionada, sobretudo, à
“ampliação da oferta de serviços no interior das estruturas hospitalares, como também a
melhoria arquitetônica e assistencial destes lugares, principalmente da organização pública”
(ROSA, 2000a, p.130). Registre-se que, em face da precariedade da estrutura física do
hospital público, cujos internos viviam em condições subumanas, sem água tratada, próximo a
animais e sem alimentação adequada, Clidenor de Freitas Santos empreende esforços junto ao
SNDM, na pessoa do diretor, Adauto Botelho, ainda nos anos de 1940, para transformar o
HPAA em Hospital Colônia de Psicopatas, objetivando, com isso, proporcionar aos doentes a
chance do trabalho agrícola (horticultura, pecuária, suinocultura, avicultura, etc). A idéia foi
aprovada e escolhido um vasto terreno, doado pela Prefeitura de Teresina, à margem do rio
Poti, mas não se concretizou devido à falta de recursos, desviados para o setor da educação, o
que sinaliza que não existia, na época, vontade política dos governantes locais em concretizar
o projeto, de sorte que a área ficou abandonada, passando aos poucos a ser ocupado por
grupos de pessoas comuns, das proximidades, com a própria Prefeitura abrindo ruas pelo seu
interior, além de outras obras, como depósitos e sede de delegacias (GUIMARÃES, H.,
1994). A década de 1950 foi marcada, no cenário nacional, pelas discussões de projetos de
reformas para o país, o que se refletia no Piauí, cujo governo, a cargo de Francisco das
Chagas Caldas Rodrigues (1958-1961), que assumiu com o discurso de mudanças e defendia
206
amplas reformas, intensificou as ações no campo social, no sentido de ampliar a oferta de
serviços assistenciais para a população urbana da capital (ROSA, 2000a). Em 1958, assume a
direção do HPAA o psiquiatra Carlos Alves Araújo, que fica no cargo até 1962 e realiza no
hospital uma ampla reforma administrativa, física, assistencial e humana, enquadrando os
procedimentos à legislação do serviço público estadual e organizando a estrutura sanitária da
instituição. Dentre as medidas mais importantes adotadas por ele destacam-se, segundo Veras
e Moreira (1997),
a) instalação do sistema de água potável para todos os doentes;
b) canalização dos esgotos, separando os PTM dos animais que viviam nas
proximidades;
c) extinção no tratamento, do sistema de acorrentamento;
d) eliminação, do sistema de isolamento dos epiléticos, superando a falsa idéia da
epilepsia como um mal contagioso;
e) melhoria da qualidade da alimentação e da hotelaria;
f) construção de banheiros e fossas sépticas;
g) reformulação dos pavilhões;
h) implantação do corpo clínico, com as especialidades de médico psiquiatra,
urgentista, ginecologistas e odontólogo;
i) criação do Serviço de Terapia Ocupacional, visando desenvolver trabalhos
manuais para os PTM que com eles tivessem mais afinidade;
j) iniciação do processo de documentação e registro do quadro de evolução dos
pacientes.
É, assim, no âmbito dessas medidas que se dará o processo de reestruturação do
corpo de funcionários do HPAA, visando atender a população dita indigente, mas o diretor
Carlos Alves Araújo, objetivando apurar denúncias de desvios, por políticos locais, dos
recursos públicos federais destinados à obra do Hospital Colônia, planejada por Clidenor de
Freitas desde os anos de 1940, institui uma Comissão sindicante, pedindo, em seguida,
demissão do cargo. A denúncia, feita formalmente ao SNDM, resultou, conforme noticia
207
Guimarães (H., 1994, p.63), na vinda de uma Comissão ao Piauí, a qual constatou que “a
referida Colônia não passa então de um engodo político: obra inacabada, suas verbas [foram]
desviadas para construção de grupos escolares” e responsabilizou o governo estadual pelo uso
indevido dos recursos públicos, exigindo, ao mesmo tempo, a conclusão do hospital, tendo o
Estado, na pessoa do governador Helvídio Nunes, que providenciar o imediato recomeço das
obras. Em 1962, cria-se o Setor de Serviço Social do HPAA, sendo esse ano o marco inicial
da contratação, pelo Estado, das primeiras assistentes sociais que atuaram na assistência
psiquiátrica pública piauiense. Esses profissionais atendem aos PTM na montagem de seu
histórico social e realizam entrevistas e visitas domiciliares, a fim de subsidiar o tratamento
prestado. Essas pioneiras foram Marlene Neide de Carvalho, formada pela Universidade
Federal do Ceará e contratada em 1962, Teresinha de Sá, graduada pela Universidade Federal
do Ceará e admitida em 1968, Miriam Soares da Silva, diplomada pela Universidade Federal
do Pará e contratada em 1974 e Cirene Costa Cortez, titulada pela Universidade Federal do
Maranhão e admitida em 1978.
As mudanças efetivadas por Carlos Araújo na direção do HPAA aborreceram às
irmãs religiosas que, até então, cuidavam dos doentes e respondiam administrativamente pela
gerência do hospital. É que, da mesma forma que no Hospício Pedro II, no Rio de Janeiro,
aqui também os médicos especialistas reclamavam para si a competência de cuidar dos PTM
e, no caso especifico do HPAA, denunciavam que as freiras queriam limitar suas ações.
“Travei uma luta muito grande com as religiosas, o que culminou com sua saída”
(OLIVEIRA, 1995, p.46), diz Carlos Araújo, que ficara no cargo até 1962, sobre a resistência
das irmãs em aceitar a presença do médico no cotidiano do hospital, tendo então que recorrer
até ao governador do Estado, que lhe apoiou.
Mas, no período iniciado em 1964, já se vive a ditadura militar e, como
mencionado no item anterior, essa fase foi marcada por sinais de expressivo crescimento do
setor econômico e fortemente caracterizada pela repressão social, restrição de direitos civis e
políticos e agravamento dos problemas sociais do país. Nesse contexto, o Piauí, como um
estado pobre e periférico, não alavanca seu desenvolvimento econômico, continuando com
elevados índices de pobreza, alta concentração de renda e sob uma desordenada urbanização,
principalmente em Teresina, que, apesar de também experimentar sérias dificuldades,
representava, no imaginário do povo, a possibilidade de conquista de emprego e renda.
Nessa época, ocorre, no país e no Piauí, o aumento da demanda por serviços
psiquiátricos, de modo que o HPAA, até então localizado no Campo de Marte, tem as
208
instalações ampliadas. Em 1968, dá-se a transferência para uma nova sede, no bairro
Primavera, na Rua 1º de Maio, na Zona Norte de Teresina, instalada como Sistema de
Colônia, recebendo então o nome de Hospital Colônia de Psicopatas Areolino de Abreu
(HPAA), permanecendo nesse local até os dias de hoje. Nessa nova fase, o Hospital Colônia
tinha em seu quadro seis psiquiatras, dois clínicos, com a administração interna a cargo da
comunidade das irmãs religiosas, sob a direção do médico Francisco das Chagas Pacheco.
Foi, aliás, nesse contexto de mudanças que as irmãs religiosas deixaram de prestar assistência
aos PTM do HPAA, afastando-se, definitivamente, na década de 1970, mesmo tempo em que
o Ambulatório de Higiene Mental, também foi transferido do Campo de Marte para uma área
anexa ao Hospital Colônia, sendo-lhe o dirigente e primeiro médico psiquiatra Wilson Freitas
Santos, auxiliado por dois atendentes de enfermagem. O Ambulatório funcionava pela
manhã, de segunda a sexta-feira, e recebeu, por determinação do então governador Francisco
das Chagas Rodrigues (1958-1961), o nome de Clidenor de Freitas Santos (GUIMARÃES,
H., 1994).
Em 1968, no âmbito da política de expansão dos serviços de saúde mental, deu-se
a fundação, por Wilson Freitas Santos, do Hospital-Dia, que funcionava em anexo ao Hospital
Colônia e era tido como um dos primeiros do país. Essa medida foi adotada como uma forma
de enfrentamento da superlotação do HPAA, impedindo que se instituísse o “leito chão”.
Ademais, os novos conceitos da psiquiatria moderna recomendavam que a internação, como
alternativa de tratamento, tivesse um período mínimo, para o PTM, exigindo-se também a
participação direta da família, a fim de evitar o afastamento do enfermo do convívio social.
Na época, esta modalidade de tratamento era considerada digna de um hospital
psiquiátrico do futuro, representando uma grande inovação por embasar-se na semi-
internação, com caráter diferenciado da internação convencional, atendendo, e esse era um
problema, um pequeno número de pessoas (as vagas eram limitadas), com diagnósticos mais
leves (os casos agudos e mais graves não podiam dela utilizar-se). O funcionamento do novo
serviço se dava nos turnos da manhã e tarde, de segunda a sexta-feira, com consultas médicas,
administração de medicamentos, fornecimento de alimentação, atividades esportivas e
realização de leituras. A praxiterapia era baseada na terapia ocupacional e, para atender a
esses objetivos, foram instalados, salas de cinema e de trabalhos manuais, além de
horticultura e terapias de grupo, sob a orientação do psiquiatra, tudo em cooperação com o
HPAA (OLIVEIRA, 1995).
209
A demanda psiquiátrica, no final dos anos de 1960, era expressiva, tendo em vista
que o HPAA e o Sanatório Meduna recebiam pacientes do Piauí e de estados vizinhos, como
o Maranhão e o Ceará, mas, mesmo assim, faltavam vagas. O Hospital Colônia, por exemplo,
passava por sérias dificuldades administrativas e financeiras, com o número de médicos e
paramédicos insuficiente para assistir a clientela, que ocupava os 150 leitos (90 para
indigentes e 60 para os pensionistas). Em face da situação, o diretor, médico Francisco das
Chagas Pacheco, inicia a construção de um pavilhão com mais 100 leitos, além da ampliação
de outras dependências administrativas (GUIMARÃES, H., 1994). Já o Sanatório Meduna,
que assumia, naquele momento, um papel de destaque na assistência psiquiátrica do Piauí,
como hospital particular, atendia aos usuários com convênios privados e os vinculados ao
INPS, órgão que, após o processo de unificação dos IAPS‟s, tornou-se central na cobertura
das doenças mentais. Na época, o Sanatório Meduna atendia, também, a uma cota limitada de
indigentes.
Na década de 1970, sob a orientação da Política de Saúde Mental Nacional,
norteada pelo discurso da ambulatorização do tratamento, com atenção expressiva às
consultas, em detrimento das internações, a psiquiatria do Piauí, que até aquele momento
estava representada pelo Sanatório Meduna e o HPAA, este contando também com o
Hospital-Dia e o Ambulatório Clidenor de Freitas, expandiu-se em outras frentes. É que a
assistência psiquiátrica local passou igualmente a ser implementada por outras agências, como
o Ambulatório do INPS e o Ambulatório de Higiene Mental do Instituto de Previdência e
Assistência dos Servidores do Estado, o IPASE (ROSA, 2000a). Apesar disso, a psiquiatria
piauiense concentrava-se na capital, tendo em vista que o Programa Integrado da Saúde
Mental (PISAM) não prosperou no Estado, da mesma forma que fracassou no resto do país,
ele que tinha por objetivo levar ao interior do Brasil o Programa de Saúde Mental do governo,
difundindo os ideários da saúde mental, mas, com sérias dificuldades de recursos, devido à
crise financeira da Previdência e outros problemas, o PISAM emperra, com a presença do
médico só ocorrendo, ocasionalmente, em municípios de maior desenvolvimento econômico,
como Parnaíba e Picos.
Em 1972, dentro das metas da Política de Saúde Mental do Estado e do Ministério
da Saúde, o Sanatório Meduna, sob a direção de Wilson Freitas Santos, dá seguimento às
diretrizes centrais dessa Política, mediante duas alas: a Clínica de Repouso, destinada aos
pacientes em processo de melhora ou remissão, e a Clínica Psiquiátrica, dedicada aos doentes
em fase aguda e aos tidos como crônicos. A capacidade do hospital era então de 500 leitos,
210
contando com cinco psiquiatras e quatro clínicos. A direção do pessoal paramédico, como os
técnicos e atendentes de enfermagem e todos os cuidados com os internos, com relação à
alimentação e à higiene, ficava a cargo das irmãs religiosas da Congregação Filhas do
Coração Imaculado de Maria, acolhidas na instituição desde a fundação e nela permanecendo
até a década de 1990.
Em 1973, assume a direção do HPAA o médico Anfrísio Lobão que, por decreto
estadual, muda o nome do Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu para Hospital Areolino de
Abreu (HAA), expressando a preocupação de melhorar as equipes médicas e paramédicas,
através de treinamento e melhoria salarial. Outro avanço para a psiquiatria local foi a
fundação da Associação Psiquiátrica do Piauí (APP), em 9 de agosto de 1975, que contribuiu
para a divulgação das novas idéias da Saúde Mental, propagadas no restante do país,
realizando, no final da década de 1970, algumas Jornadas de Psiquiatria, a primeira em abril
de 1979, sob o nome de I Jornada Psiquiátrica do Norte e Nordeste Brasileiro, considerado um
evento de suma relevância.
A década de 1980, como já mencionado, é marcada pelo fim do regime militar e
o início do processo de redemocratização do país, quando ocorre o refortalecimento da
sociedade civil, que convergia para um amplo leque de lutas por melhorias em setores como o
da saúde, em especial a saúde mental, o que culmina em amplos movimentos organizados,
que reivindicam mudanças profundas na sua forma procedimental e de gestão. No Piauí,
também houve mudanças nos campos econômico, político e social, sendo que, na área da
saúde mental, sinaliza-se para a alteração no modo de organização desses serviços
especializados, com exigências de melhorias no tratamento e nas instalações sanitárias do
serviço público de saúde. Como parte dessas medidas, o HAA, que atravessava forte crise
financeira, associada à precariedade de suas instalações, planeja e discute, junto ao órgão
gestor da saúde, uma ampla reforma física, administrativa e assistencial. Aliás, registra-se,
nesse período, a criação, em 9 de outubro de 1980, da Associação Comunitária de Saúde
Mental do Piauí (ACSM), que surge sob os efeitos das influências do processo de
revitalização das sociedades civis brasileira e piauiense e dos psiquiatras locais. Composta por
vários profissionais de saúde e por pessoas da comunidade, o objetivo principal era superar a
falta de uma Coordenação de Saúde Mental no Estado, comandando, de modo independente,
os debates sobre as principais questões que diziam respeito à assistência psiquiátrica
piauiense, além de divulgar experiências vitoriosas em outras regiões do país e tentar
implantar, no Piauí, serviços alternativos que, no entanto, não se efetivaram (NOGUEIRA,
211
1993). Em 1982, a ACSM, com o apoio e a participação de vários profissionais e técnicos
comprometidos em debater questões da saúde, no que tange ao seu processo histórico de
constituição, planejamento e execução, promoveu a I Jornada de Saúde Mental Comunitária.
Nesse contexto de democratização, o Piauí experimentava uma conjuntura de
amplas lutas e questionamentos acerca da assistência psiquiátrica, plena de protestos contra as
precárias condições da saúde, permeada de conflitos históricos e marcada pela falta de
recursos financeiros fixos, pessoal técnico especializado, sucateamento de estruturas e
equipamentos, etc. Por conta dessa situação, que perdura ao longo de décadas, são deflagradas
no Estado, sobretudo em Teresina, várias greves, que reivindicam melhorias efetivas no
campo da saúde, sendo fruto desses esforços e da atuação dos movimentos sociais a nomeação
de uma comissão para estudar a elaboração de um projeto de saúde mental para o Estado do
Piauí, que deu fundamento ao Programa de Saúde Mental Comunitária (PSMC), cuja
legalização e implementação se deu em abril de 1983, sob duas metas centrais e prioritárias:
descentralizar, com a regionalização da assistência no Estado e na capital, e reformar a parte
administrativa e assistencial, com a recuperação física do HAA.
Sob essas metas centrais, o PSMC, uma ação do governo estadual, tinha como fio
condutor a criação de leitos ou enfermarias psiquiátricas em hospital geral de referência,
sobretudo nas principais cidades, o que foi avaliado pelos psiquiatras do Piauí, como muito
promissor, no sentido de atingir a regionalização da assistência psiquiátrica pela implantação
de atendimento ambulatorial em saúde mental. Uma outra meta alcançada com êxito pelo
PSMC foi ampla reforma do HAA, na gestão de Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco, como
secretário de Saúde, no governo de Hugo Napoleão do Rego Neto (1983-1986), acompanhada
de medidas como a extinção do sistema de “celas fortes” (quartos isolados com grades,
destinado a enfermos em crise aguda de agitação e agressividade), o que veio, de certa forma,
contribuir para a negação do caráter asilar do hospital, dando à instituição características mais
“suaves”, sem a forte alusão ao louco e à loucura, imprimida pelo termo “psiquiátrico”. Tais
decisões, são consideradas um divisor de águas na história do HAA, pois, anteriormente a
elas, o hospital tinha marcas asilares muito fortes (GUIMARÃES, H., 1994).
Mas o PSMC, pensado e planejado para o Estado do Piauí, não se sustentou por
muito tempo, já que em 1987 entra em declínio, fracassando, assim, a tentativa de
descentralizar o atendimento psiquiátrico. Isso ocorreu, em boa medida, porque as
enfermarias psiquiátricas do Serviço de Pronto Socorro do Hospital Getúlio Vargas não
tiveram boa aceitação, entre outras causas porque a presença dos PTM e de psiquiatras nas
212
equipes de plantão foram rejeitadas, pela existência, no imaginário da sociedade de um forte
preconceito ao tratamento dos portadores de transtorno mental fora dos muros dos hospitais
psiquiátricos, tidos que eram como pessoas perigosas e ameaçadoras da ordem. Ficou, então,
em funcionamento, apenas o Ambulatório de Saúde Mental, com a realização, somente, de
consultas médicas.
No contexto das lutas por melhorias na área da saúde é criado no Piauí em 1986, o
Movimento Popular de Saúde (MOPS), que no início, tinha um caráter de informalidade, mas
logo assumiu natureza política, com idéias, mais definidas e amplas, de contestação à
precariedade do setor, passando a reivindicar mudanças substantivas na área. Surgindo de
grupos ligados à Igreja e de profissionais que valorizavam uma atuação baseada nas práticas
populares em saúde, embora a questão específica da saúde mental ainda não se lhe estivesse
presente, o MOPS, foi por demais importante para o fortalecimento da luta em torno da
problemática (ROSAa, 2000).
Nos anos de 1990, a política local fica sob o comando do governador Antonio de
Almendra Freitas Neto, eleito pelo Partido da Frente Liberal (PFL), que propõe mudanças nas
áreas administrativa, econômica e política, seguindo as diretrizes do governo federal. Esse
período foi marcado por forte crise nos setores da saúde e da educação, ocorrendo várias
greves e intensos movimentos da sociedade civil organizada, que reivindicavam alteração na
forma de gestão desses setores e almejavam a efetivação de melhoria das condições das
políticas públicas nessas áreas. No panorama de crise na área da saúde, marcada também pelo
ressurgimento de doenças já erradicadas, objetivava-se a descentralização da assistência
psiquiátrica no Estado do Piauí, ampliando a oferta de serviços especializados para além dos
limites da capital e a expansão dos serviços alternativos, como Hospital-Dia, CAPS e NAPS,
sendo nesse sentido, elaborado, pela Secretaria de Saúde do Estado (SESAPI), no I Fórum
Estadual de Saúde Mental, uma proposta de programa assistencial, montada sem levar em
conta os princípios do SUS, que concebia a saúde numa perspectiva de direito garantido na
Carta Magna de 1988, não contemplando assim, os anseios e as necessidades da sociedade
piauiense.
Em 1991, entre 27 a 29 de setembro, realizou-se, em Teresina, a I Conferência
Estadual de Saúde, com o lema “Municipalização é o Caminho”, evento preparatório para a
Conferência Nacional de Saúde, que se daria de 9 a 14 de agosto de 1992, em Brasília. As
decisões tomadas apontavam na direção da independência e liberdade dos atores sociais na
escolha de seus representantes, do fortalecimento do controle social e das experiências
213
populares de saúde, da exigência de concurso público como única forma de ingresso no
serviço estadual, da implantação do Plano de Cargos Carreiras e Salários e da efetivação de
um programa de reciclagem dos recursos humanos do setor. E, apesar de a I Conferência
Estadual de Saúde não ter feito grandes referências à saúde mental, uma de suas deliberações
finais foi determinar a implantação, em todo o Estado, de programas de saúde mental nas
ações básicas de saúde (SESAPI, 1991, apud ROSA, 2000a).
Com novos horizontes para a saúde e tendo como base os reflexos dos
movimentos ocorridos na área e na sociedade, em 1993 a Fundação Municipal de Saúde
(FMS) da Prefeitura Municipal de Teresina (PMT), por meio da Coordenadoria do Programa
de Saúde Mental e em conformidade às diretrizes de descentralização do SUS, inicia um
processo de reestruturação da assistência psiquiátrica, objetivando o planejamento, a execução
e a fiscalização ampla dos serviços de saúde mental do município. Propõe, ainda, embora a
maior parte das proposições ficassem somente no plano das intenções, a implantação de leitos
psiquiátricos em hospitais gerais, visando, com isso, à redução deles em hospitais
especializados e à intensificação do controle das prescrições indiscriminadas de psicotrópicos,
estendendo a atenção ambulatorial. Mas, como parte das reformas propugnadas pela PMT, na
área da saúde mental, é implementado, em 1994, um Núcleo de Apoio Psicossocial (NAPS),
para atender aos funcionários municipais, sobretudo os alcoolistas, os usuários de outras
drogas e aqueles com dificuldades de adaptação ao trabalho, funcionando na Policlínica
Municipal, sob orientação de um psiquiatra, numa abordagem grupal, com reuniões semanais,
transferindo-se, no final de 2003, para uma nova sede, na Zona Sul da cidade, anexa ao
Hospital Municipal do Monte Castelo, com o nome de Núcleo de Apoio Psicossocial
Clidenor de Freitas Santos. Nesse momento, o NAPS amplia o atendimento à comunidade,
prestando serviços a usuários de álcool e outras drogas e a equipe se torna interdisciplinar,
composta por um psiquiatra, uma assistente social, uma psicóloga, uma enfermeira. A
finalidade da Prefeitura, como gestora de saúde no município, era construir, com essas ações,
uma rede de serviços psiquiátricos de referência e contra-referência, em obediência às
diretrizes do Ministério da Saúde (MS), referente à descentralização das ações básicas,
sobretudo na esfera municipal, inclusive implementação dos serviços alternativos, como os
CAPS e os NAPS, dentre outros.
Apesar dos esforços para melhorar a assistência psiquiátrica na capital, na verdade
não se avança em relação à ampliação desses serviços, na medida em que não são tomadas
providências para a sua efetiva criação, limitando-se a Prefeitura ao repasse de verbas, e à
214
atenção ambulatorial, por meio de consultas médicas, e à distribuição de psicotrópicos nas
Unidades de Saúde, sem uma assistência mais sistematizada de apoio ao PTM e a sua família,
voltada para a reabilitação psicossocial (ROSA, 2000a) e com esse atendimento ambulatorial
nos hospitais municipais funcionando em precárias condições.
Acontece no Piauí, no período de 10 a 12 de junho de 1994, o I Seminário de
Saúde Mental, com o lema “Em busca da transformação”, evento com apoio do MOPS e do
Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Saúde do Estado do Piauí (SINDESPI),
que contou com a participação de usuários dos serviços de saúde mental do Conselho de
Saúde. O resultado final foi a elaboração de um conjunto de propostas, sintonizadas com os
princípios do SUS, encaminhado aos secretários municipal e estadual de saúde. Os seus
principais eixos visavam (MOPS, 1994, apud ROSA, 2000a):
a) criar fóruns de caráter permanente para discutir a saúde mental;
b) criar serviços alternativos e trabalho em equipe multiprofissional;
c) tratar, articuladamente, da problemática da saúde mental com a reforma
psiquiátrica;
d) promover trabalhos com famílias e comunidades para superar o caráter
estigmatizante da loucura;
e) criar novos serviços e manutenção dos ambulatórios;
f) implementar leitos psiquiátricos em Unidades de Saúde da rede municipal;
g) criar novos Hospitais–Dia, Lares Abrigados e Pensões Protegidas e Cooperativas de
Trabalho.
Tais propostas, consolidadas no evento, reafirmaram a importância de o
tratamento psiquiátrico ser promovido em estruturas que preservem e respeitem a cidadania e
garantam a permanência do PTM no seu meio social e familiar, fora dos muros das estruturas
asilares.
No ano de 1995, assume o Governo o então candidato do PMDB, Francisco de
Assis Moraes Sousa, o “Mão Santa”, que propõe uma ampla reforma do Estado, adotando,
como medidas prioritárias, a redefinição do papel estatal, dentro dos moldes neoliberais. Isso
215
deslocava os eixos que tradicionalmente norteavam as ações do Estado como gestor das
políticas públicas nas áreas econômica, política e social para a função de regulador e promotor
do desenvolvimento, seguindo, assim, em vários níveis, as diretrizes reformistas. Nesse
período, os serviços públicos de saúde mental continuam centralizados na capital e os dois
hospitais da área psiquiátrica, o Sanatório Meduna e o Areolino Abreu, procedem a
mudanças, visando atender às diretrizes e exigências legais do Ministério da Saúde,
instauradas pela Portaria 224/1994, que reclassificava essas instituições em todo o país, pelo
que o HAA passou de 315 para 280 leitos e o Meduna de 500 para 300, enquadrando-se,
assim, na categoria de Hospitais de Psiquiatria, nível IV. Diz, ainda, a citada Portaria que o
número de profissionais deve ser proporcional à quantidade de leitos, de modo que, por conta
disso, são contratados novos profissionais, inclusive assistentes sociais, para recomporem as
equipes interdisciplinares desses hospitais.
Na cidade de Teresina, realizou-se, de 26 a 29 de junho de 1996, a II Conferência
Estadual de Saúde, tendo como lema o “SUS - na construção de um modelo de atenção à
saúde para a qualidade de vida”. A avaliação feita na referida Conferência aponta que, no
geral, houve uma melhoria dos indicadores de saúde dos piauienses, mas o sistema estatal
permanece embasado na medicina curativa e individualizada, sob alto custo financeiro. Nesse
evento, a discussão da saúde mental ganha evidência, constituindo-se em pauta da
programação, com o título “A Política de Saúde Mental e o SUS”, de modo que os debates
ocorridos nas mesas redondas e palestras giraram em torno da criação dos CAPS nos
municípios e do projeto de lei da Reforma Psiquiátrica, com a criação da Comissão Estadual
de Reforma Psiquiátrica. No ano seguinte, como parte da política de descentralização da
assistência psiquiátrica, é criado o Instituto de Psiquiatria Infanto Juvenil Dr. Martinelli
Cavalca, que funciona em um prédio anexo ao HAA, em sistema de semi-internação,
surgindo, também no interior do Estado, outros Hospitais-Dia, como em Picos, que o inaugura
em 29 de junho de 1997, e Parnaíba, que o faz em 1998, ambos com 30 leitos. Com essas
medidas, os serviços de saúde mental começam a descentralizar-se, mas ainda permanecem
centrados nas cidades de maior potencial econômico-financeiro, sobretudo Teresina, cujos
hospitais de referência, o Sanatório Meduna e o Areolino de Abreu, atendem à clientela não
só do Piauí, mas de estados vizinhos, como Ceará e Maranhão (ROSA, 2000a).
Em reforço ao debate sobre o processo de descentralização das Políticas de Saúde
Mental, realiza-se em Teresina, de 3 a 4 de outubro de 1997, a I Jornada de Saúde Mental
Comunitária, tendo como tema “Legislação de saúde mental no Estado do Piauí”, quando é
216
constituída uma Comissão de mobilização das famílias dos PTM para a discussão das leis que
regem esse serviço de saúde, tendo em vista o reduzido número de parentes que participaram
da referida Jornada. No ano seguinte é realizado em Teresina, de 10 a 12 de setembro, a II
Jornada de Saúde Mental Comunitária, promovida pela ACSM e pela APP, evento que contou
com ampla participação dos profissionais que atuam na área, sendo discutidos nos trabalhos
de grupo, dentre outros assuntos, os dois projetos de lei de saúde mental propostos por essas
instituições, que versam sobre o processo de reestruturação da saúde mental do Piauí e o
processo de internações em hospitais psiquiátricos. Foram destaques, nesse evento, as
experiências vividas em serviços públicos alternativos de saúde mental no Estado do Piauí,
como o Hospital-Dia e os NAPS. Realce-se que, já perto do novo milênio, é realizada, de 10 a
12 de novembro de 1999, a III Conferência Estadual de Saúde, cujo tema foi “SUS – PIAUÍ,
consolidando municípios saudáveis”, cujos debates voltaram-se para a saúde mental,
enfatizando a descentralização das ações especificas, tanto que o relatório final recomenda,
em atendimento às diretrizes do SUS, o desenvolvimento de ações de saúde mental pelos
municípios.
Sintonizado com esse debate, fez-se, no município de Teresina, a III Jornada
Comunitária de Saúde Mental, de 8 a 10 de agosto de 2002, sob o lema “Saúde Mental em
Hospital Geral”, organizada pela APP, que se tornou espaço de amplas discussões sobre
temáticas diversas, dentre as quais a ética em saúde mental e a abordagem da família, a
assistência psiquiátrica em hospital geral, a Política de Saúde Mental e a Reforma
Psiquiátrica, etc. O evento se constituiu numa oportunidade de socialização das questões mais
emblemáticas dessa área, já que contou com a presença de participantes de todo o Piauí e de
outras regiões do Nordeste e do Sudeste do país, canalizando esforços na direção de promover
esse debate.
Vê-se assim, que, no geral, as idéias da Reforma Psiquiátrica, desde o início
defenderam, no Brasil, a reestruturação da assistência psiquiátrica, o que envolve o
redirecionamento de suas diretrizes básicas e passa pela progressiva substituição dos leitos
asilares por serviços alternativos, numa rede integrada e descentralizada de atendimentos de
saúde apoiada por equipes especializadas, que assistam o usuário numa perspectiva de
integralidade e universalidade. Infelizmente, como já foi pontuado, essas propostas têm
avançado de forma desigual, com efetivação mais expressiva no Sul e Sudeste do país, em
especial nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, que detêm a maior rede de
serviços em saúde mental do Brasil.
217
No Piauí, esses ideais avançam muito lentamente, com os poderes estaduais e
municipais não se empenhando em adotar as providências para a criação da rede de serviços
alternativos, sob a alegação de falta de recursos financeiros. O certo é que, nessas esferas de
governo, há resistência e desinteresse em descentralizar a assistência psiquiátrica, pois
nenhuma das instâncias assume plenamente a causa da saúde mental, com medidas na direção
de construir os CAPS e os NAPS, ficando o assunto, ainda hoje, no terreno das discussões. O
que tem havido são as expressivas reduções nos números de leitos psiquiátricos do estado, que
em média de 460, em 2003, caiu para aproximadamente 400, no início de 2004, sem que
fossem criados, em contrapartida, outros serviços que os substituíssem, para garantir a
assistência psiquiátrica ao PTM. Nesse sentido, no Piauí, como em alguns outros estados
brasileiros, o ideário da Reforma Psiquiátrica se vêm de algum modo concretizando,
sobretudo através das ações e de normatizações do Estado, porquanto os dirigentes dos
serviços de saúde mental se preocupam em atender às normas ministeriais que versam sobre
as diretrizes de funcionamento das instituições (redução de leitos, contração de pessoal
técnico, melhoria das instalações físicas, etc) sem, no entanto, implementarem ações
consistentes que imprimam a esses serviços um caráter de descentralidade e universalidade,
como preconizam o SUS e a Constituição Federal de 1988.
Levantamentos e análises de dados mais recentes reafirmam essa direção tomada
pelo debate da Reforma Psiquiátrica no Estado, apesar de essas idéias não terem, até o
presente momento, sido discutidas, com profundidade, pela sociedade piauiense, nem pelos
profissionais, os trabalhadores da saúde mental e, os usuários e familiares dos serviços
especializados. Sabe-se, é claro, que a reforma está em andamento no país, mas ainda não se
evidenciaram, num contexto mais amplo, todas as suas nuances, faces e conseqüências,
positivas ou negativas, ficando, às vezes, os seus princípios traduzidos à mera redução dos
leitos psiquiátricos. Isso não significa uma total ausência de seus reflexos no Piauí, posto que,
como já demonstrado, nos últimos anos diversos eventos na área da saúde mental foram
realizados (fóruns, debates, jornadas, etc), promovidos por entidades de saúde, dentre as quais
se destacam o MOPS, a CMS, a ACSM e a APP, visando a uma ampla discussão dos ideários
da Reforma Psiquiátrica e suas propostas de alternativas de tratamento, bem como
viabilizando mobilizações socializadoras dessas idéias.
Assim, em termas gerais, a discussão da saúde mental, na perspectiva da Reforma
Psiquiátrica, ganha expressividade e visibilidade em toda a década de 1990, embora o modelo
baseado nas internações hospitalares prevaleça nas três esferas de governo, sobretudo nos
218
estados onde o debate precisa de intensificação. É que, apesar das garantias constitucionais, os
serviços de saúde no Brasil passam, desde a década de 1990, por um processo de
sucateamento, tendo a população que assumir a responsabilidade de promover a própria
saúde, numa realidade marcada pelo desemprego em massa e num quadro de pobreza
estrutural que tornam vulneráveis o tecido social e o grupo familiar. Esse processo reflete e
traz graves conseqüências para o setor da saúde em geral e a saúde mental, em especial, pois
ambos, historicamente, se caracterizam por ações de baixa resolutividade, encetadas por
gestores públicos das três esferas de governo, já que não atendem às necessidades da
população, o que acarreta constrangimentos para o cidadão que busca os serviços públicos de
saúde. Como bem expressou Rosa (2000a, p.149),
apesar de se ter conquistado e consignado todo um arcabouço legal em termos de direitos, a efetivação dos mesmos está sendo postergada e
obstacularizada pela crise fiscal, de um lado, e pelas orientações políticas
neoliberais, de outro, conjugados com a crise econômica e o refluxo dos movimentos sociais.
Dessa forma, a problemática que norteia as políticas de saúde, sobretudo as da
saúde mental, continuam a ser, no século XXI, um tema emblemático, que requer se prossiga
com sua discussão, questionamentos e lutas, na busca de reafirmar e garantir efetivamente a
saúde como um direito de todos e um dever do Estado, segundo dispõe a Carta Magna de
1988.
219
CAPÍTULO II
SANATÓRIO MEDUNA:
FUNDAÇÃO DO HOSPITAL E ESTRUTURA FUNCIONAL
2.1 Avanço da Psiquiatria Piauiense: Clidenor de Freitas Santos e o Sanatório Meduna
Como se viu no Capítulo I, a assistência psiquiátrica no Piauí tem dois marcos
iniciais importantes: a inauguração, em Teresina, em 1907, do Asilo de Alienados Areolino de
Abreu, e a fundação, em 1954, também em Teresina, do Sanatório Meduna, hospital privado
pioneiro na área de saúde mental. A criação dessas instituições tem um significado histórico,
terapêutico e social para a assistência psiquiátrica piauiense, posto que até hoje o tratamento
dispensado ao portador de transtorno mental (PTM) nelas se centram, apesar de já existirem
outras unidades especializadas.
Para a sociedade piauiense, a criação do Asilo de Alienados constituiu uma das
primeiras medidas estatais no enfretamento das questões sociais da loucura, com o louco
representando, para as elites da época, uma ameaça à tranqüilidade, à moral e à ordem, pois
vivia a perambular, sem nenhum tipo de assistência. O Asilo de Alienados significou, então,
uma ação governamental que garantia, num primeiro momento, a retirada dos loucos e dos
indigentes das ruas, deixando-as limpas dessas pessoas consideradas indesejáveis e
inoportunas, sem no entanto lhes oferecer nenhuma assistência médico-terapêutico, já que esta
se resumia a meras medidas de isolamento social. Nesses momentos iniciais, também não
havia alimentação, roupas e acomodação adequada para os internos, nem especialista em
psiquiatria, sendo característica do Asilo a precariedade, em todos os aspectos.
No Piauí, os especialistas em psiquiatria começam a chegar, conforme exposto no
capítulo anterior, no início da década de 1940. O primeiro deles foi Clidenor de Freitas
Santos, tendo seu regresso a Teresina representado um momento singular para a psiquiatria
local, já que redirecionou a assistência psiquiátrica no Estado. Clidenor de Freitas Santos foi
criado na cidade de Miguel Alves, no Piauí, mas nasceu em brejo do Anapurus, no Maranhão,
em 16 de fevereiro de 1913, e faleceu em 2 de abril de 2000, em Teresina. Filho de Raimundo
Rodrigues dos Santos e Maria de Freitas Santos, cursou o ginasial no Liceu Piauiense, no final
da década de 1930, prestou vestibular em 1931 e iniciou os estudos superiores na Faculdade
220
de Medicina do Pará, da qual foi transferido, em 1934, para a Faculdade de Medicina de
Recife, onde terminou o curso, em 1936, tendo sido essa transferência motivada pelo seu
engajamento político no Movimento Estudantil. Como estudante, sofreu fortes influências de
seus professores, entre eles Ulisses Pernambucano de Melo Sobrinho e Gouveia de Barros,
tendo permissão, como aluno interno, para freqüentar o laboratório de patologia da Faculdade.
Logo depois de formado, foi contratado como médico assistente do Instituto de Patologia do
Norte, em Belém, no Pará.
Inquieto e curioso, Clidenor de Freitas Santos pediu dispensa desse cargo seis
meses depois, regressando para o Piauí, onde montou um consultório, na cidade de Miguel
Alves. Em 1938, viajou para São Paulo, a fim de especializar-se, no Hospital do Juqueri,
exercendo, ao mesmo tempo, a prática psiquiátrica no Hospital da Praia Vermelha, no Rio de
Janeiro. No início da década de 1940 retornou a Teresina, trazendo, na bagagem, novas idéias,
que influenciaram as áreas não só da psiquiatria, mas também da filosofia, da sociologia, da
política e da literatura. É que, segundo Ramos (2003, p.70), Clidenor era “homem de ciência e
de cultura geral singular, falava sobre poesia, passeava pelas artes, adentrava a literatura,
aprofundava-se nos conhecimentos, fundamentados na filosofia erudita”.
Radicado em Teresina, casou-se com Aracy Dutra de Freitas Santos, em 27 de
fevereiro de 1940, tendo oito filhos: Maria Bedaia, Aracy Dutra, José Dutra Neto, Fernanda
Elisa, Clidenor Júnior, Raimundo Santos Neto, Alberto Mariano e Lindomar Dutra. Nessa
época, o primeiro psiquiatra do Estado é nomeado diretor do Asilo de Alienados que, por sua
iniciativa, confirmada pelo Decreto-Lei nº 411, passa a denominar-se Hospital Psiquiátrico
Areolino de Abreu (HPAA), deixando de pertencer à Santa Casa de Misericórdia. A nova
direção, tendo agora à frente um especialista, sugere melhorias para o hospital, na perspectiva
de atender às necessidades mínimas dos doentes ali internos, sem mencionar a ordem de
retirar todas as correntes que prendiam os loucos, no então Asilo de Alienados. Conforme
Soares (2000, p.145), certo dia
enfileirou os seus doentes e foi com eles para a rua, em uma praça, depositar
1.450 quilos de correntes de ferro ao sol, num testemunho de repúdio e de
desafronta. Aquela tonelada de ferro ficou como um monumento marcando a
divisão da era da ciência psiquiátrica no Piauí antes e depois de Clidenor.
221
Para Ramos (2003, p.69), essa iniciativa de libertar os loucos das correntes teve
grande repercussão na sociedade local, pois “fez com que as pessoas na praça se
aproximassem e conversassem com os pacientes, rompendo o preconceito e provando que o
doente mental é um ser humano que, por infelicidade, um dia apresentou desvio da
normalidade, mas, apesar de tudo é gente como nós”, constituindo-se essa medida, no
contexto da época, uma atitude revolucionária. Segundo Guimarães (1994), ao assumir o
Asilo de Alienados, Clidenor de Freitas, como médico e diretor, não se conformava com a
precária realidade ali vivida, o que pode ser comprovado num contundente Relatório que
escreveu sobre as péssimas condições de funcionamento da Casa de Saúde, o qual foi lido por
ele na Associação Piauiense de Medicina (APM), durante uma reunião, no dia 21 de junho de
1941. Num trecho, afirma Clidenor (apud GUIMARÃES, H., 1994, p.33) que
com o tempo, as condições higiênicas desses cômodos foram-se agravando
sobretudo em virtude do pequeno esgoto – no qual os doentes deveriam fazer
suas necessidades fisiológicas – sair do centro do próprio quarto e ser
completamente aberto. O que não foi esquecido foi a colocação em todos os
quartos, e até no pátio, nos troncos dos cajueiros, de pesadíssimas correntes
destinadas às pernas dos doentes. É esta, em síntese a história do pobre
Asylo.
O relato mostra a forte impressão que Clidenor teve ao realizar uma visita de
inspeção, logo após assumir a direção do Asilo de Alienados, num momento em que a obra
ainda não se concluíra e tudo era muito precário, desde as acomodações até ao tratamento aos
internos. Mas, após desacorrentar os loucos, Clidenor de Freitas busca das autoridades
recursos urgentes para a realização de melhorias no Asilo, de modo a aliviar-lhe a
precariedade, de sorte que outro trecho do Relatório de inspeção, lido na APM, ressaltava as
ínfimas condições em que se encontravam os enfermos internos, pelo que solicita a adoção, o
mais breve possível, de medidas concretas.
E haverá algum ser humano que, ao ver quase uma centena de infelizes
psicopatas jogados em verdadeiros calabouços, uns com uma perna presa a
uma corrente, outros despidos, noite e dia sobre um aterro de cimento,
porque este é o seu leito de todos os momentos, outros em pleno estado de
222
caquexia sub-alimentar [situação de desnutrição], outros acumulados de três
e até de quatro numa só prisão, outros maltrapilhos, todos bebendo de um
tanque sem higiene, numa velha lata de creolina, e outros, enfim, nas mais
variadas condições de miséria, haverá, dizíamos, algum ser humano que, ao
se deparar com tanto infortúnio, não se sinta humilhado, deprimido ou
reduzido na sua própria condição? Referimo-nos assim, Sr. Presidente e Srs.
Assistentes Técnicos do INSTITUTO DE ASSISTÊNCIA HOSPITALAR,
porque foi esta exatamente a impressão que nos atingiu no dia 27 de
setembro do ano passado, quando assumimos o cargo de Chefe da Clínica
de doenças mentais da antiga Santa Casa e fizemos a primeira inspeção do
„Asylo de Alienados Areolino de Abreu‟ (SANTOS, C., 1941, apud
GUIMARÃES, H., 1994, p.33).
Este era, nos anos de 1940, o retrato das condições do Asilo de Alienados. Para
alterar essa realidade, Clidenor de Freitas Santos faz, no citado Relatório, várias sugestões de
mudanças nas instalações físicas, sanitárias e administrativas, dentre as quais se podem
destacar, segundo Guimarães (H., 1994), as seguintes:
a) Substituição do nome Asilo de Alienados Areolino de Abreu por Hospital
Psiquiátrico Areolino de Abreu;
b) Reforma do pavilhão grande, reparando a pintura interna e externa, pisos do quarto
dos pensionistas, com equipamento do setor do refeitório (mobília, lavatório, filtro,
louças, etc), além da organização de consultório médico com fichários, estantes,
cadeira e uma máquina de escrever e a confecção de um modelo novo de fichas
para registro de observações;
c) Organização de uma pequena farmácia, com estoque permanente de cardiozol e
insulina;
d) Demolição das paredes centrais do pavilhão feminino, visando construir no local
três enfermarias, com capacidade para vinte leitos cada, sendo uma para
pensionistas de segunda classe e as outras para indigentes (uma para homens e
uma para mulheres), equipadas com camas e não mais com aterro de cimento;
223
e) Reforma, mediante pequeno reparos, do pavilhão novo, destinado a doentes
agitados, metade para cada sexo;
f) Construção, ao lado dos já existentes, de um modesto pavilhão, com dois
refeitórios, para os indigentes, duas salas pequenas para balneoterapia e um quarto
para a dormida de empregados;
g) Reforma do muro do Asilo, com aumento de 60cm, possibilitando, assim, a
liberdade dos doentes pelo dia inteiro;
h) Retirada de todos os chapuzes e correntes usados para prender os doentes;
i) Aumento da quantidade de empregados e melhoria dos seus ordenados;
j) Construção de uma caixa-d‟água higiênica de maior capacidade, para utilização da
já existente eletrobomba;
k) Criação de um ambulatório para doentes mentais e um esboço de Higiene Mental,
além de um lugar para a auxiliar visitadora;
l) Autorização de exames de líquor e sangue, entre outros, no ambulatório do
Hospital Getúlio Vargas;
m) Autonomia à direção do Asilo, ficando a irmã superiora restrita à administração,
com poderes ao Chefe de Clínicas de doenças mentais para atuar como diretor,
subordinado ao Instituto;
n) Autorização da redação de regulamento interno, baseado nos novos princípios de
assistência a psicopatas;
o) Melhoria da alimentação dos indigentes e suprimento de roupas;
p) Apoio ao Chefe de Clínica para, acatadas essas sugestões, difundir novos métodos
de tratamento das doenças mentais, demonstrando ao meio social que o antigo
Asilo não é mais um medieval calabouço e que de lá já saíram e sairão pessoas
curadas.
Feito isso, acreditava Clidenor que o Piauí poderia, num futuro próximo, ter uma
assistência psiquiátrica digna. Ademais, nessa fase da psiquiatria piauiense, Clidenor de
Freitas Santos foi também o responsável pela introdução de novos métodos terapêuticos,
224
considerados avançados para a época, como a utilização do medicamento cardiozol e a
introdução das eletroconvulsoterapias e da malarioterapia.
Inquieto com o que via, o médico dedica-se profundamente à psiquiatria, sempre
em busca de novas alternativas de tratamento. Nesse sentido, constrói, com um amigo, o
técnico Benedito Barbosa de Almeida, em 1947, o primeiro aparelho de eletrochoque,
(método terapêutico criado pelo médico italiano Ugo Cerlett, em 1938) do Brasil. Em
depoimento a Ramos (2003, p.69), Clidenor declara que “fez seu curso de especialização em
São Paulo, tomou conhecimento do tratamento das psicoses pelo eletrochoque, produzido por
um aparelho importado dos Estados Unidos [e que] desejou comprar o aparelho, porém,
[como era] muito caro, não tinha condições de importá-lo”. Em virtude disso, Clidenor e
Benedito de Almeida estudaram cuidadosamente o funcionamento e a forma de montagem do
referido aparelho, através do livro “The 1940 year book of neurology psychiatry and
endocrinology”, escrito por Reese, Lewis e Servrinhous (GUIMARÃES, H., 1994) realizam
as primeiras experiências em cães e procedem a sucessivos testes, “até conseguir produzir o
choque terapêutico, manifestado por uma crise convulsiva” (RAMOS, 2003, p. 69). Dois anos
depois, finalmente importam um novo aparelho.
Clidenor de Freitas Santos, como médico e cidadão, foi homem de múltiplas
ações. Exerceu a psiquiatria como oficio, mas desempenhou outras funções importantes,
entre elas a de administrador do Serviço Público, deputado federal e empresário. Em 1943, é
nomeado médico psiquiatra do Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM), depois
Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM). Seguindo seus propósitos e ideais, defendia a
tese de que o Piauí poderia ter uma assistência psiquiátrica digna, daí idealizou a construção,
com recursos próprios, de um hospital privado, apropriado para tratamento dos doentes
mentais, para o que, em 1943, adquire um vasto terreno, nas proximidades do Rio Poti, na
Zona Norte de Teresina. Segundo seu irmão, Wilson Freitas Santos (1973, p. 41), isso era
fruto de um idealismo de seu criador e construtor, o médico psiquiatra
piauiense Clidenor de Freitas, que lutando contra todas as barreiras do
pessimismo e incompreensão do meio, após dez anos de labor, o inaugurou,
em 21 de abril de 1954. Uma obra representativa do esforço, da decisão, da
coragem, realização e tenacidade de um só homem. No ato de sua
inauguração, dizia Clidenor: „O que importa não são os milhões que vale o
Sanatório, mas o objetivo a que ele se destina, a finalidade que ele comporta‟
225
A fundação do Sanatório Meduna, nos anos de 1950, representou para o Piauí um
momento de afirmação da assistência psiquiátrica local, na medida em que agregava, na
época, um tratamento especializado tido como referência para a área, no plano nacional.
Conforme o médico Wilson Freitas Santos, em entrevista concedida à pesquisadora em
janeiro de 2004, o terreno do Sanatório tinha 240.000m2, com mais de 10.000m2 de área
construída, sendo que ele, quando inaugurado, possuía dois pavilhões, um para cada sexo, que
se interligavam por galerias e extensos jardins, os quais proporcionavam conforto e bem-estar
aos usuários e funcionários, além de dois refeitórios, um masculino e outro feminino, salas
para aplicação de insulinoterapia e malarioterapia, e um Salão Nobre, para reuniões e
solenidades. Nessa época, a capacidade inicial era de 40 leitos, sendo o corpo clínico
composto pelo próprio Clidenor, que era o psiquiatra responsável pelos atendimentos, por
atendentes de enfermagem e pelas irmãs religiosas.
Consoante Wilson Freitas Santos, logo após a fundação o Sanatório Meduna teve
a direção a cargo de Dr. Clidenor e das irmãs da Congregação Filhas do Coração Imaculado
de Maria, trazidas do Asilo de Alienados. Elas, além da formação religiosa, tinham também o
curso de atendente de enfermagem, de modo que, sob a sua responsabilidade, encontravam-se
a administração e os cuidados gerais com os internos. Nessa missão, cada irmã se
responsabilizava por um pavilhão, administrando-o com o apoio do pessoal de enfermagem,
sob a orientação do diretor do Sanatório, tarefas que conduziram até o final da década de
1990, fase em que começa no país o processo de reestruturação da saúde mental e, as
religiosas afastam-se dos hospitais, para trabalhar nas comunidades, como missionárias ou por
já estarem idosas e aposentadas.
O Sanatório Meduna, mesmo em termos de estrutura física, era moderno para a
época, apresentando-se como uma referência para o Nordeste do Brasil, pois proporcionava
um padrão assistencial diferenciado, não contando com grades de ferro ou celas fortes, como
era comum nos hospitais psiquiátricos do período. Além disso, a arquitetura hospitalar se
compôs, desde a fundação, por uma área arborizada com praças, sendo possível aos internos
circularem por suas dependências físicas, sem mencionar que sua inauguração repercutiu em
âmbito nacional, noticiada, no Piauí, como um grande acontecimento. Na verdade, o
Sanatório e as idéias de Clidenor de Freitas levavam o hospital, em seus primórdios, a gozar
de um alto conceito, no Nordeste e no Brasil, pela utilização de quase todos os métodos
226
modernos da terapêutica psiquiátrica, em decorrência do que, da inauguração até os dias
atuais, recebe pacientes inclusive dos estados vizinhos, como Ceará, Maranhão e Pará.
O Sanatório foi administrado pelo próprio fundador de 1954 a 1957, ano em que
Clidenor ingressou no mundo da política, afastando-se da diretoria dos dois hospitais, o
Areolino de Abreu e o Meduna, para candidatar-se, primeiramente, a prefeito de Teresina,
empreitada em que não logrou êxito, e depois, em 1958, para deputado federal pelo PTB,
elegendo-se e passando a morar no Rio de Janeiro, com afastamento definitivo das atividades
na psiquiatria, fazendo, como deputado federal, inúmeros discursos e elaborando diversos
projetos12
. Por essa ocasião, a direção clínica do Sanatório Meduna ficou com o irmão,
Wilson Freitas, psiquiatra recém-formado, e de retorno a Teresina, após estudar na Faculdade
Fluminense do Rio de Janeiro, o qual pelo mesmo motivo, assume, de 1958 a 1959, o
comando do Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu.
No governo de João Goulart, eleito em 1961 e deposto, em 1964, pelo golpe
militar, Clidenor de Freitas Santos, que à época presidia o Instituto de Previdência e
Assistência dos Servidores do Estado (IPASE), foi, como muitos cidadãos brasileiros,
considerado comunista e subversivo, tendo os direitos políticos cassados, pelo que se asilou
na Embaixada do Peru, viajando, em seguida, no mesmo ano, para Lima, com outros
correligionários, também asilados. Ainda em 1964, foi para Montevidéu, no Uruguai, onde
morou com a família por mais de três anos e realizou vários estudos, na Universidade
Nacional, nas áreas da economia, história e línguas.
Retornou ao Brasil e ao Piauí em 1967, mas, ainda com os direitos políticos
suspensos, não pôde reingressar na atividade política, dedicando-se à área empresarial,
fundando, no Estado do Piauí, empresas agrícolas, como a Cajulândia do Brasil S/A e a
Alkool Motor do Piauí S/A (Almopisa), além de empreender esforços para a execução de
12 Segundo Guimarães (H., 1994, p. 41), entre os projetos do deputado Clidenor de Freitas Santos, podem-se
citar os seguintes:
- Projeto de criação do Museu do Folclore Nordestino – 07/10/59;
- Projeto (nº 1.800, 1960), de criação da Hidrelétrica de Boa Esperança no Rio Parnaíba;
- Projeto (n º 2.582, 1961), de criação do plano de Recuperação da Pecuária Piauiense, com base na
algaroba;
- Projeto (nº 3.107, 1961), de autorização à SUDENE para financiar as Ligas Camponesas;
- Projeto (nº 66, 1959), de criação da Operação Teresina, com crédito de 25 milhões de cruzeiros, através
do Ministério da Viação;
- Projeto (nº 107, 1959), de autorização ao Ministério da Justiça para construir um Manicômio Judiciário e uma Penitenciária em Teresina. Além disso, fez discursos, (entre eles, “As bases psicológicas do
nacionalismo”), Pareceres, apartes e resoluções publicados no Diário do Congresso nos anos de 1961,
1962 e 1963 e catalogados nos arquivos da Câmara dos Deputados, integrou o Grupo Grupacto, uma
associação ideológica de jovens deputados daquela legislação.
227
outros projetos, não aprovados, como o Proálcool e o Agrovilas, sendo ainda responsável pela
vinda pioneira dos japoneses ao Estado, a fim de conhecerem o funcionamento do cultivo de
hortas e o óleo de mamona, um produto de valor comercial, sem mencionar a introdução, em
terras piauienses, do búfalo (GUIMARÃES, H., 1994).
Intelectual e estudioso, Clidenor amou as artes e a poesia e foi um grande
admirador de Dom Quixote, de Miguel Cervantes, tendo-o como inspiração para suas idéias e
lutas. Em 1953, tornou-se membro da Academia Piauiense de Letras (APL), ocupando a
cadeira nº 13. Escreveu diversos trabalhos13
e recebeu títulos e homenagens pela atuação
como psiquiatra, responsável por inovações nessa área.
Assim, com esses novos ideais, voltados para a área empresarial e econômica,
Clidenor de Freitas Santos retornou a Teresina, em 1967, não mais aos quadros do serviço
público do Estado, nem à da diretoria do HPAA, nem à do Sanatório Meduna, cuja direção
ficaria, até meados dos anos de 1990, com o irmão e médico Wilson de Freitas Santos. Este,
assim como Clidenor, era um profissional obstinado pelo que fazia e pela psiquiatria e, em
entrevista concedida especialmente para esta pesquisa, relata que sempre administrou, de
maneira centralizada, o Sanatório acompanhando de perto o seu funcionamento geral, desde o
13Entre os trabalhos de Clidenor de Freitas Santos, escritos como intelectual e médico, destacam-se, segundo
Guimarães, H., (1994, p.41) os seguintes:
- História da célula nervosa do Piratinga, (Recife, 1933), premiado no I Congresso de Estudantes de Medicina do Brasil;
- Psicopatologia da Afetividade, (publicada na Revista da APM);
- Shakespeare, criador de símbolos;
- Beethoven, o semideus da música;
- Camões e o Espírito da Poesia;
- Em Louvor de Gonçalo Cavalcante (discurso de posse na APL, 1953);
- Carta a Meus filhos, 1954;
- A Glória de Saraiva (discurso proferido na inauguração da estátua de Conselheiro Saraiva, no centenário
de Teresina, em 1952);
- O Clube Telúrico e seus componentes, 1950;
- Psicologia do Nacionalismo (discurso proferido na Câmara dos Deputados, 1959); - Três Movimentos (discurso);
- Ideologia como Fator Determinante (ensaios);
- Hagiologia do amor amado (discurso de recepção a Lili Castelo Branco, na APL);
- Recepção a O. G. Rego de Carvalho (discurso proferido na APL);
- Discurso à memória do senador Mathias Olimpio;
- As Raízes Históricas do latifúndio (conferência);
- Imunologia e Fatores Ideológicos;
- Autoconquista da América Latina;
- A estátua de D. Quixote (discurso em honra do presidente Sarney);
- A crise, ensaios;
- O Matador de onça (elogio a Heitor Castelo Branco, autor do livro O Sócio da Onça);
- Oração de Natal – Maldito Seja o Senhor, 1984; - Tancredo, o Sábio;
- Com meu amigo, D. Quixote;
- O Universo Grego, Gênio e Caráter ;
- Ideologia e Circunstância.
228
corpo de funcionários até às internações, além da parte que envolvia a estrutura técnico-
administrativa, enfatizando que procurava o melhor para o PTM.
Relata ainda que, logo ao assumir a direção do Sanatório, começou a ampliação
das instalações físicas, iniciando a construção da Capela anexa ao hospital, em 1958, que
concluiu em 1962. Nesse mesmo ano, ergueu mais dois pavilhões (a Unidade de Internação
Masculina, UIM, e a Unidade de Internação Feminina, UIF). Em 1970, principiou a
construção da Casa das Irmãs e o Centro das Clínicas, pavilhão este equipado com serviços de
eletroencefalograma, salas para pequenas cirurgias e doenças intercorrentes, fisioterapia,
esterilização, gabinete dentário com raios X, laboratório de análises clínicas, além de três
apartamentos para repouso e recuperação dos usuários que se submetiam a tratamento neste
setor, com o término das obras em 1971. A edificação de um novo refeitório, mais amplo e
misto, onde seriam servidas as refeições de todos os internos, se deu em 1975.
Com relação ao sistema de internação, antes mesmo do surgimento do SUS, em
1988, o Sanatório Meduna já tinha autonomia neste aspecto, mantendo convênio com vários
Institutos de Pensões da época, como o Instituto de Assistência Previdenciária dos
Comerciários (IAPC), o Instituto de Assistência Previdenciária Bancária (IAPB), o Instituto
de Assistência dos Trabalhadores dos Transportes e Cargas (IAPETC), o Instituto de
Assistência Previdenciária dos Ferroviários (IAPFESP), o Instituto de Assistência do
Industriário (IAPI) e o Instituto do Servidor do Estado (IPASE). Após o SUS, o processo de
internação no Meduna foi alterado, sendo o serviço universalizado, conforme as diretrizes
básicas do novo sistema, no qual qualquer cidadão tem direito a este serviço especializado,
pelo que o Sanatório passa a subordinar-se ao gestor estadual da Saúde Mental, o Hospital
Areolino de Abreu (HAA). Desde então, as internações no Meduna só se fazem após a
expedição dos laudos ou Autorização de Internamento Hospitalar do SUS, através do HAA,
de modo que todos os usuários que necessitem de internação integral no Sanatório Meduna
devem antes ser avaliados no HAA e, se for o caso, expedida a AIH.
Wilson Freitas, como diretor do Sanatório Meduna, coordenava o corpo de
funcionários do hospital, composto de uma equipe de médicos psiquiatras, clínicos gerais,
auxiliar de terapia ocupacional, enfermeiros, atendentes e auxiliares de enfermagem, pessoal
do setor administrativo e zeladores. No final de 1970 e início de 1980 a equipe de psiquiatras
é ampliada, sendo também contratados os primeiros profissionais de psicologia, fazendo ainda
parte do quadro um dentista, um farmacêutico e uma enfermeira (um profissional para cada
setor). Aliás, os auxiliares de administração, em número de três, eram uma espécie de “braço
229
direito” da direção geral, colaborando com o funcionamento da rotina da instituição de saúde,
com trabalho nos turnos da manhã, tarde e noite e residência em casas construídas dentro da
área do próprio Meduna. Dentre esses funcionários, os mais conhecidos eram Alcides da
Cruz, João Rosa e Antonio Silva, todos aposentados no final dos anos de 1990.
De modo geral, segundo os depoimentos dos sujeitos entrevistados, até o final de
1980 os profissionais de nível superior, responsáveis pela assistência especializada aos PTM,
trabalhavam, predominantemente, de forma individualizada, a partir de sua especialidade
profissional, sem uma maior integração interprofissional. Nesta perspectiva, cada um atendia
aos PTM de maneira isolada, sem uma interação e um diálogo interdisciplinar constante e
permanente sobre os casos mais graves e um planejamento conjunto das ações no que diz
respeito ao acompanhamento dos doentes.
Nessa fase, o número de internos era elevado, ou seja, mais de 300 pessoas,
número desproporcional à quantidade de profissionais existentes, o que tornava inviável uma
atenção mais contínua e permanente a cada um deles. Apesar disso, diariamente os internos
no Sanatório eram atendidos pelos psiquiatras, a quem cabia realizar regularmente as
prescrições nos prontuários dos enfermos, registrando a evolução do quadro psíquico, a
marcação de alta médica e, quando necessário, a autorização da transferência para outro tipo
de tratamento. O atendimento psiquiátrico se dava no próprio pavilhão onde o PTM se
encontrava, com cada psiquiatra se responsabilizando por determinado número de internos,
nos diversos pavilhões.
O Serviço Social iniciou-se, no hospital, em 1963, mas somente nos anos de 1980
começa a atuar de forma mais estruturada14
com a atenção voltada ao PTM e a sua família,
realizava, entre outras atividades, as de recreação e lazer, encaminhava as altas, comunicava
os óbitos e dedicava-se aos casos mais complicados, como os dos usuários crônicos deixados
pelas famílias e que passavam a morar no hospital.
O Serviço de Psicologia ocorria, por sua vez, somente na sala da psicóloga, sem o
deslocamento do profissional para os diversos pavilhões do Sanatório, sendo, pois, individual
e desenvolvido, junto aos internos, por terapias de apoio psicossocial, como forma de ajudá-
los em seu processo de recuperação. Já a enfermeira, no início, dedicava-se à supervisão geral
dos auxiliares de enfermagem nos pavilhões, acompanhando a administração dos
14
Para informações mais detalhadas sobre a criação do Serviço Social no Sanatório Meduna, ver o capítulo
terceiro.
230
medicamentos, da higiene, da alimentação e dos cuidados gerais com os usuários internos e
elaborando, ainda, as escalas de serviços do setor.
Desde a fundação, o Sanatório Meduna preocupa-se com o Setor de Terapia
Ocupacional, estimulando os internos a atividades de auto-expressão, criatividade e auto-
estima. Aliás, a primeira funcionária responsável pelo Setor fez, a mando da direção, um
treinamento de seis meses no Rio de Janeiro, para aprender novas técnicas na área, com Nilse
da Silveira, psiquiatra de renome nacional e incentivadora das atividades lúdicas no
tratamento psiquiátrico. Nesse contexto (anos de 1960 e 1970), os usuários realizavam
diversas atividades, como confecção de objetos de decoração, pintura em tela, cerâmicas,
quadros, cadeiras de vime, entre outros produtos de boa qualidade, muitos deles
comercializados entre funcionários e visitantes, sem mencionar que, sob a orientação do
Serviço Social e da Terapia Ocupacional, produziam ainda um jornalzinho, de circulação
interna, chamado O IDEAL, enviado até para algumas instituições psiquiátricas de fora do
Estado, que divulgava o trabalho ludoterápico dos PTM, discutia temas do interesse dos
próprios usuários e editava poesias, recadinhos, cartas, desenhos e anúncios sobre as datas
comemorativas do ano, aniversariantes do mês, etc, estimulando-se a participação deles na
escolha dos temas, para o que escreviam, recortavam figuras de revistas ou desenhavam o que
iria compor o informativo (anexo I). Existia, além disso, atividades musicais, com a Banda
“Pai Herói” (denominação retirada de novela homônima da Rede Globo e forma de
homenagear o dono do grupo, um viúvo que, sozinho, criava os filhos) animando
semanalmente, nos horários de visitas, os internos, os visitantes e os funcionários, tocando
marchinhas e forró.
O início da década de 1990 marca o fim da gestão do Wilson de Freitas, que
transfere o cargo ao médico Lindomar Dutra e ao administrador Alberto Mariano, ambos
filhos de Clidenor de Freitas. Sob essa nova direção, o Sanatório funciona conveniado com o
SUS e a outros serviços de assistência médica estadual, como o Instituto de Assistência e
Previdência do Estado do Piauí (IAPEP) e o Plano Médico de Tratamento e Assistência
(PLAMTA), sendo o eixo administrativo principal o processo de reestruturação das Políticas
de Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica, por conta do que a instituição sofre mudanças e
adequações de ordem organizacional, financeira e assistencial, em atendimento às exigências
das referidas Políticas e Reforma em curso no Brasil e com fortes reflexos no Piauí. Essas
imposições se traduzem em um amplo e contínuo processo de mudança do modelo de atenção
psiquiátrica, que se pauta, principalmente, pela redução de leitos e do tempo de permanência
231
em internação integral, o que se dá em todo o país, na década de 1990, quando se inicia a
substituição por leitos alternativos, sob uma perspectiva de tratamento que ultrapassa os
muros do hospital psiquiátrico.
No âmbito do Sanatório Meduna, ocorre a ampliação do quadro de profissionais
de nível médio (na área de enfermagem e administração) e superior, com a contratação de
mais três assistentes sociais, oito enfermeiros, quatro psicólogas, quatro terapeutas
ocupacionais, um educador físico, duas nutricionistas e três médicos plantonistas. Tal
aumento da equipe favoreceu a estruturação de uma intervenção interdisciplinar, que conferiu
um novo sentido ao trabalho com os PTM, qual seja, o de abordá-lo como sujeito social que
pensa e expressa sentimentos, vivências, desejos e vontades e merece ser ouvido e respeitado
em sua dignidade de pessoa portadora de direitos e capacidades, ainda que limitadas. Nesse
sentido, a ação profissional volta-se para o bem-estar geral do PTM, na verdade um ser
humano complexo e resultado de múltiplas determinações, subjetivas e objetivas, que deve ser
considerado não apenas em seus elementos biológicos e patológicos, mas também nos
aspectos econômico, social e familiar, porquanto sujeitos históricos.
Nesse horizonte, os profissionais passam a atuar em conjunto e diretamente nos
pavilhões, mediante atividades terapêuticas diferentes das de antes. Ocorrem, então,
atendimento individual, formação de grupos informativos, recreativos e educativos, discussão
de casos, sessões de auto-expressão, passeios e visitas a outras instituições, caminhadas,
(anexo II), prática de futebol de campo (com realização de torneios), gincanas, reuniões com
familiares, festas comemorativas (Carnaval, São João, Natal, aniversariantes do mês, etc.),
valorizando-se sempre, a participação do PTM (anexo III).
Na atualidade, há, no Sanatório Meduna, um processo de interlocução entre as
equipes interdisciplinares, entre estas e a direção e desta com a sociedade, que participa da
vivência do hospital, além, de receber estudantes dos cursos de enfermagem, medicina,
psicologia e, mais recentemente, desde março de 2004, de Serviço Social. Ademais, conta,
hoje, com um corpo interdisciplinar composto por oito médicos psiquiatras, nove enfermeiros,
duas terapeutas ocupacionais, quatro assistentes sociais, um educador físico, uma
nutricionista, um farmacêutico, dois cardiologistas, dois clínicos gerais, sendo um deles
também ginecologista, e um dentista, totalizando 183 funcionários, contratados em regime de
CLT, incluindo o pessoal de enfermagem, administração, manutenção e zeladoria.
Desde a fundação o Sanatório Meduna se caracteriza como uma instituição
gerenciada por seus proprietários ou pessoas próximas à família. No entanto, essa realidade,
232
que vigeu por décadas mudou nos últimos dois anos, pois desde 2002 o hospital sofre os
reflexos do processo de reestruturação que afeta, em âmbito nacional, todas as empresas do
país, independentemente da área de atuação. Daí ter o Sanatório Meduna, passado por uma
profunda reforma administrativa e organizacional, estando a diretoria, na atualidade,
composta não mais por parentes, como sempre ocorreu, mas por um gestor e dois diretores
(um, na área técnica, responsável pela parte médica assistencial, e outro, na área
administrativa), que canalizam esforços para manter e aprimorar os serviços de saúde
especializados, atendendo aos objetivos a que se destina e a finalidade que comporta, como
afirmava o fundador, meio século atrás. Ou seja, a nova direção tenta alcançar o padrão de
qualidade cobrado pelos usuários e familiares desse serviço de saúde, dentro da perspectiva de
atendê-los como cidadãos com direito a uma assistência cujo nível garanta a satisfação de
suas necessidades especiais.
2.2 Os Serviços do Sanatório Meduna e o trajeto do Portador de Transtorno Mental e
de sua Família E
233
O Sanatório Meduna, como instituição que presta assistência especializada em
saúde mental, estava, até maio de 2004, classificado no Ministério da Saúde (MS) na
categoria de porte nível IV, devido à sua capacidade de leitos, que era de 220.
Havia, no entanto, exigências do MS para a redução imediata de vinte leitos até
maio de 2004, o que foi feito, passando o Sanatório, assim, para o nível III, segundo Portarias
do MS 52 e 53, de 20 de janeiro. Nessa nova realidade, o Meduna passou a funcionar, desde
maio, com 200 leitos na internação integral, tendo como preocupação central a recuperação do
enfermo no menor tempo possível, mantendo a média atual de permanência, por internação,
de 30 dias.
O tempo máximo que o usuário pode permanecer internado pelo SUS, com a
mesma AIH, é de 45 dias, mas, em casos mais graves, com evolução lenta, a equipe
responsável pelo pavilhão, após avaliação do quadro do enfermo e com consentimento da
família ou responsável e do médico assistente, se considerar a falta de condições para a alta,
pode solicitar ao SUS a prorrogação desse prazo por mais 30 dias. Assim, a direção do
Sanatório Meduna o está enquadrando às novas exigências do MS, na medida em que reduz
leitos e toma outras providências.
Atualmente, a estrutura física do hospital conta com sete pavilhões, destinados a
usuários do SUS. Dois deles, com 37 leitos, destinam-se ao sexo feminino (um dos quais
denominado Dr. Correia), em especial às usuárias com quadro melhorado ou em remissão da
crise aguda, enquanto o outro, o da Unidade de Internação Feminina (UIF), também com 37
leitos, é reservado às em crise aguda, com quadro de agitação e desorientação, perfazendo, no
total, 74 leitos. Três pavilhões atendem, por sua vez, aos PTM do sexo masculino, o Dr.
Noronha, com 66 leitos, para usuários melhorados, em remissão do quadro e fora da crise
aguda, e a Unidade de Internação Masculina (UIM), com 46 leitos, dirigidos,
preferencialmente, aos usuários em crise aguda, com desorientação e agitação psicomotora,
sob necessidade de observação nos primeiros dias. Há, ainda, o Pavilhão Dr. Martinelli, com
14 leitos, que recebe, preferencialmente, alcoolistas e outros drogaditos. Os três pavilhões
somam 126 leitos masculinos, os quais, associado aos femininos, totalizam 200, conveniados
com o SUS. O Sanatório Meduna tem, também, o Pavilhão das Clínicas, com nove
apartamentos, para convênios privados e usos particulares, e o Pavilhão de Unidade de
Internação (UI), para os internos com intercorrências ou complicações clínicas que precisem
ficar sob observação, submetidos a cuidados médicos e de enfermagem mais intensivos.
234
Cada pavilhão ou setor é assistido por uma equipe interdisciplinar, composta por
médico psiquiatra, assistente social, psicóloga e enfermeira, que atuam, no cotidiano
hospitalar, junto aos PTM, realizando atendimentos individual e de grupo, com abordagem de
temas variados, como efeitos das drogas, noções de higiene, auto-expressões, informativos
sobre assuntos diversos e de interesse dos usuários, além da promoção de reuniões de equipe
dos profissionais, recreação, futebol e outras atividades lúdicas, como pinturas, música, etc. O
Sanatório Meduna, uma das referências em assistência psiquiátrica do Estado, funciona em
regime de 24 horas, com plantões para os profissionais de medicina e enfermagem, atendendo
diariamente à demanda por serviços de internação psiquiátrica.
Como instituição privada conveniada com o SUS, o Sanatório Meduna não tem
autonomia para expedir AIH, a cargo do HAA, órgão público gestor e responsável por essas
emissões, no município de Teresina. Dessa forma, o processo de internação do PTM no
Sanatório inicia-se no HAA, onde ele, geralmente acompanhado pela família ou responsável,
é avaliado pelo médico plantonista ou a equipe de plantão, que conta também com assistente
social e enfermeiro. Em caso de indicação para internação, esta será efetivada após a emissão,
pelo Setor de Admissão, de AIH ao Sanatório ou ao próprio HAA. Vê-se, assim, que o PTM e
sua família percorrem um longo caminho até chegar ao Meduna com a AIH.
Para isso, as famílias geralmente chegam cedo ao HAA e, após preencherem a
ficha de consulta, aguardam o médico plantonista que, se não indicar internação, apenas
medicará o PTM, retornando este para casa com o acompanhante, orientado a fazer o uso
domiciliar do psicotrópico prescrito. Se, porém, houver indicação para internação, esta, para
ser efetivada, dependerá da existência de vaga em um dos dois hospitais, o que é um dilema
constante para as famílias e os funcionários, já que essas são insuficientes para atender à
demanda, tendo em vista que, nos últimos anos, o governo pratica a política de redução
progressiva de leitos psiquiátricos. Com efeito, o DATASUS (Departamento de Informática
do SUS), mostra que os números de leitos psiquiátricos financiados pelo SUS se reduzem ao
longo dos anos: 72.970, em 1966, 61.393, em 1999, e 54.141, em setembro de 2001, número
esse bem superior à quantidade de serviços alternativos do país, a essa época: 266 em Centros
de Atenção Psicossocial (CAPS) e em Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) (FALEIROS,
E., 2002).
Esses dados indicam que a demanda manifesta por internações psiquiátricas em
hospitais convencionais não tem seguido a lógica de redução de investimentos no setor, pois é
comum os usuários permanecerem por todo o dia e às vezes pela madrugada na enfermaria de
235
observação (composta de três leitos) e, na ausência de vagas nesta, ficam no hall do HAA,
aguardando vaga para o dia seguinte no próprio HAA ou no Sanatório Meduna. Muitos vêm
de cidades do interior do Piauí ou de estados vizinhos, como Maranhão e Ceará, geralmente
com crise aguda e quadro de agitação, inclusive, em algumas situações, amarrados pelos pés
ou algemadas as mãos. Nessas urgências psiquiátricas, o PTM é avaliado pelo plantonista e
medicado, enquanto aguarda a resolução do processo de internação.
Diariamente, nos turnos da manhã e tarde, o Sanatório informa ao HAA o
número de vagas existentes. No geral, as famílias e o PTM, ao chegarem na urgência do
HAA, para ser atendidas e buscar a AIH, são impelidos a internar o enfermo onde tiver vaga,
naquele momento. Mas alguns usuários, por afinidade com o corpo de funcionários e as
instalações, só aceitam se internar no Sanatório, o que leva as famílias a aguardar o
surgimento da vaga.
No Sanatório Meduna, a família e o PTM são recebidos pelos auxiliares de
enfermagem e pela funcionária do Setor de Admissão, localizado na Unidade de Internação
(UI). Nesse momento, verifica-se se os seus dados e os da família ou responsável, apostos no
laudo de internação, estão corretos, porque, muitas vezes, a AIH é preenchida, no HAA, de
forma errada ou incompleta, tornando necessário o retorno ao referido hospital para as
correções e, não sendo isso possível, algumas vezes, o funcionário do Sanatório se encarrega
das providências. Trata-se, pois, de um procedimento cansativo e estressante (este que vai da
busca da AIH até à chegada ao Sanatório), não raro um trajeto demorado e lento que deixa a
família aborrecida pela longa espera ou pelo quadro do PTM, que geralmente não aceita a
condição de doente nem a possibilidade da internação, exigindo dela ou do responsável uma
atenção especial e permanente.
Após a verificação dos dados da AIH, o PTM, junto com a família ou o
responsável, é atendido pela equipe de plantão, composta por médico, enfermeiro e assistente
social. Depois, é individualmente avaliado pelo médico plantonista, que faz a anamnese
clínica, averiguando seu estado geral e psiquiátrico, procedimento também realizado pelo
enfermeiro e pelo assistente social. Esta faz a anamnese social, que aborda os dados
socioeconômicos e familiares do enfermo, orientando a família sobre o tratamento e o
funcionamento geral do Sanatório. Também são verificados, no setor de enfermagem, os
sinais vitais do usuário, como pressão arterial, peso, pulso e temperatura, de sorte que todas as
informações colhidas são registradas no prontuário do PTM que, após os primeiros
atendimentos pela equipe de plantão, é encaminhado para o pavilhão onde ficará internado,
236
escolhido pelo enfermeiro, em função do seu gênero e o do seu estado psíquico. Algumas
vezes, esse processo de entrevistas também cansa a família e PTM, pois têm que responder
muitas perguntas, feitas por diversos profissionais, deixando-os ansiosos.
No processo de internação, é comum a UI ficar superlotada de familiares e
usuários. Isso se justifica, segundo os funcionários, devido ao atendimento no HAA ocorrer
de forma lenta, realizando-os todos ao mesmo tempo, o que faz com que as famílias cheguem
praticamente juntas ao Sanatório Meduna, para a internação. Normalmente, o atendimento no
Meduna se dá conforme a ordem de chegada, salvo os casos mais graves, solução encontrada
para não desagradar a quem procura o serviço. Ademais, quando o PTM tem indicação de
primeira internação psiquiátrica, a equipe de plantão algumas vezes questiona a família ou o
acompanhante sobre alguma consulta anterior e o uso ou não de medicação específica, no
sentido de evitar uma internação desnecessária, ainda que já tenha passado pela triagem no
HAA, caso em que a AIH é cancelada e a família orientada a tratar o doente em casa.
Em algumas situações, as famílias ficam ansiosas e temerosas em deixar os entes
queridos no hospital, junto com os “loucos”, já que não raro acreditam que estejam apenas
nervosos e por isso solicitam que fiquem num lugar separado dos demais ou no local dos mais
calmos. Esta é uma situação quase sempre traumática para o familiar ou acompanhante do
doente, principalmente se parente próximo, tendo a equipe do plantão e mais intensamente a
assistente social a função de conciliar essas tensões com conversas e orientações à família
sobre a necessidade da internação, informando-lhe a possibilidade de acompanhar de perto o
tratamento, com visitas diárias e liberação nos finais de semana, até que o enfermo melhore,
receba alta e retorne para casa. Mesmo assim, a família fica confusa e apreensiva, pois não
sabe se, ao internar o PTM, o ambiente hospitalar será bom para ele ou se arrepende e o leva
para tratamento em casa, embora, sobretudo nas crises agudas de primeira vez, quando o leva
ao hospital ele já tenha sido tratado em casa ou em ambulatório, o que lhe deixa como única
saída a internação. Depois da conversa com a equipe de plantão, que presta as orientações
sobre o tratamento, a família às vezes é convidada a conhecer as instalações onde o enfermo
vai ficar, o que a tranqüiliza, apesar de o melhor entendimento da situação não afastar, é claro,
a preocupação.
Outro ponto é que, muitas vezes, a família necessita de ajuda para levar o PTM até
ao HAA ou ao Sanatório Meduna. Por não dispor de transporte próprio ou não ser possível
conduzi-lo em coletivo, procura o auxílio de parentes e vizinhos, cooperação essa que, em não
havendo, propicia o recurso extremo à Polícia, ao Corpo de Bombeiros ou ao SOS da
237
Prefeitura Municipal, que fazem a remoção dele ao hospital, para ser medicado e, se
necessário, internado.
2.3 O Serviço pavilhonar do Sanatório Meduna e sua rotina
O Sanatório Meduna se constitui por vários setores, entre os quais os sete
pavilhões, já referidos, que acomodam os usuários, e um amplo pátio externo, considerado,
pelos PTM, como o lugar mais agradável do hospital. Esse pátio é arborizado e comporta uma
quadra para futebol, festas e outras atividades, uma praça com bancos e mesas de cimento
espalhadas pelo espaço livre, sombreada por árvores, plantadas desde a fundação do
Sanatório. Nele é permitido fazer novas amizades, conversar com os colegas, ouvir música
ambiente no coreto, local onde se situa o serviço de som e os PTM se reúnem para dialogar e
dançar, nos períodos da manhã e tarde. O pátio é utilizado ainda para receber os familiares
nos horários das visitas, que se dão, diariamente, de 14 às 16 horas, acrescidos em duas horas
(8 às 10h) aos domingos e feriados. É, aliás, no pátio, que todos transitam (funcionários,
usuários e profissionais da equipe interdisciplinar), sendo, assim, um local democrático, onde
ocorre um permanente contato entre os PTM e familiares e entre estes e o conjunto dos
sujeitos que compõem o Sanatório.
Outro setor importante era o Serviço de Ambulatório, inaugurado em 7 de julho
de 2000, cujo pedido de credenciamento junto ao SUS, para funcionamento imediato, foi
encaminhado pela direção. Neste setor, realizavam-se consultas médicas, com os psiquiatras
atendendo a comunidade em geral, inclusive os usuários com alta da internação integral. No
entanto, após um ano de funcionamento, por motivos de ordem administrativa, o referido
convênio não foi formalmente regularizado, sendo o serviço desativado em 2001, até porque
não havia medicamentos a ser distribuídos aos usuários ali atendidos.
238
Ressalta-se que, no cotidiano institucional, o momento da visita da família, de um
amigo ou de um conhecido representa, para o interno, a possibilidade de ter a rotina alterada
por alguns instantes já que, para eles, esse é um evento particular de muito significado, pois,
entre outros sentimentos, alimentam o desejo e a vontade de receber alta e sair do ambiente do
hospital, retornando para casa. Essa expectativa da visita de alguém torna comum a cena de o
usuário ficar no corredor, próximo ao pátio, olhando pelos combogós que dão acesso à rua e
observando tudo o que se passa no exterior.
Os setores ou pavilhões receberam nomes de psiquiatras piauienses que foram
amigos dos fundadores do Sanatório Meduna, a exemplo do Pavilhão Dr. Noronha, Pavilhão
Dr. Corrêa e Pavilhão Dr. Martinelli, (na entrevista, Wilson Freitas Santos relatou que este foi
um grande amigo pessoal dele e do irmão Clidenor, sendo quem cuidava da administração
quando o diretor precisava se ausentar). Esses pavilhões funcionam de acordo com os horários
das refeições, de modo que abrem às 7 horas, para o café, servido até às 7h40, e fecham às
11h30, após o almoço, servido das 10h20 às 11h20, sendo reabertos às 14h, para o lanche e as
visitas e fechados às 17h30, depois do jantar, que acontece das 16h30 às 17h20.
O horário de acordar dos internos é variado, mas se dá geralmente muito cedo,
em torno das 5h horas ou até um pouco antes, quando já se encontram alguns andando pelo
setor. Logo que acordam, é feita a estimulação da higiene pessoal, como os atos de banhar e
escovar os dentes e, dependendo da condição de saúde, às vezes necessitam de auxilio no
banho, na alimentação e na hora de tomar a medicação. Mesmos nos horários em que estão
fechados, é comum encontrar, em todos os pavilhões, os PTM circulando, por não conseguir
ou não desejar o repouso, aguardando, assim, o pavilhão abrir novamente, para que se sintam
mais livres e possam passear pelas outras dependências do hospital.
A alimentação dos internos costuma se dar no refeitório, nos horários
preestabelecidos, exceto o lanche da noite, servido, normalmente, no próprio pavilhão do
usuário, por volta das 20h30, pelo funcionário de enfermagem de plantão, antes da medicação
noturna, procedimento adotado porque o serviço de nutrição e dietética do Sanatório não
funciona em regime de 24 horas. Se, porém, o interno, por algum motivo, não puder deslocar-
se ao refeitório, terá todas as refeições no pavilhão, o mesmo valendo para os da ala de
convênios particulares e os do Hospital-Dia, que as recebem no próprio apartamento ou no
setor. No caso do Hospital-Dia, um funcionário encarrega-se de buscar diariamente no
refeitório, nos horários preestabelecidos, a alimentação a ser servida.
239
Um dilema para a direção do Sanatório são as filas para a refeição pois, no geral,
o ambiente fica tumultuado, já que todos querem ser atendidos ao mesmo tempo. A direção
tem, nos últimos anos, adotado a norma segundo a qual as mulheres se alimentam primeiro,
não só pelo menor número, mas também por sofrer empurrões dos PTM do sexo masculino.
Em todos os pavilhões, após a primeira refeição do dia começa a rotina dos
atendimentos médicos e de outros profissionais, o que se dá nos turnos da manhã e tarde,
sendo geralmente o psiquiatra o que atende primeiro, entre 6h30 e 10h, enquanto os demais o
fazem nos pavilhões, um pouco mais tarde, das 8h às 10h30. Ainda pela manhã, os usuários
podem participar de atividades de terapia ocupacional, coordenada pelo educador físico e, à
tarde, pela terapeuta, como colagens, auto-expressão, bingos, leituras de revistas. Caso não o
deseje, pode, simplesmente, ir ao Setor de Terapia Ocupacional e conversar um pouco com os
outros internos ou com o profissional que lá se encontra, de modo que algumas vezes ele entra
apenas para olhar-se num espelho que lá existe, vê a sua imagem e pentear o cabelo, já que,
nesse setor, eles têm trânsito livre para utilizar-se das atividades oferecidas nos dois turnos.
Após o lanche das 14 horas, iniciam-se novos atendimentos, como os psiquiatras o fazendo da
14 às 15h30 e os outros profissionais nesse mesmo horário, estendendo-se, porém, até às 17h,
sendo o da tarde seguido, basicamente, das mesmas atividades matutinas.
No conjunto das atividades terapêuticas desenvolvidas no Sanatório Meduna, a
que mais mobiliza os usuários é a esportiva, geralmente o futebol, (anexo IV) praticado,
semanalmente, no turno da manhã, sob o comando do educador físico, num campo
apropriado, localizado na área externa. Essa atividade, que conta com a participação ativa de
funcionários, no apoio e no jogo, propicia, algumas vezes, o interno a evadir-se do hospital,
aproveitando e facilidade de estar fora das suas dependências, dele saindo sem destino certo,
quando não conhece a cidade, ou, em contrário, indo direto para casa. A família é, então,
imediatamente comunicada pelo Serviço Social, pois se trata de um momento de aflição e
tensão tanto para ela quanto para a equipe, que realiza busca nas áreas próximas, na tentativa
de trazer o PTM de volta. Se, no entanto, ele vai diretamente para casa, a família decide se
retornará ou não, a fim de continuar o tratamento.
De modo geral, a alteração da rotina dos pavilhões se dá mesmo no momento de
sua abertura, nos turnos da manhã e tarde, representando isso, para os PTM, um instante de
liberdade e, acima de tudo, a possibilidade de vivenciar experiências diferenciadas, como
contatar com outras pessoas que não só os colegas do pavilhão (profissionais, visitantes,
funcionários, etc). Este é, na verdade, uma oportunidade de interlocução e interação com a
240
família ou com quem se encontra no hospital, usar o telefone público, instalado no pátio,
conversar com os profissionais nem que seja só para cumprimentá-los. Nessa direção é o
relato de um dos usuários entrevistados para esta pesquisa, o qual, indagado sobre o que mais
gosta quando internado no Sanatório, responde que “é pela manhã, quando amanhece o dia e
a gente pode ficar solto pelo pátio, conversando com os colegas”. Esse momento imprime,
assim, um forte significado para os usuários, devido à possibilidade de exercerem, como
qualquer cidadão, o direito de ir e vir, ainda que nos limites da área hospitalar, o que, de
alguma forma, altera a rotina e satisfaz vontade e desejos, em virtudes de maior liberdade e
interação com outros sujeitos internos e os profissionais da instituição, num espaço mais
amplo e democrático, embora delimitado fisicamente e norteado por normas restritivas de
funcionamento.
A Unidade de Internação (UI), porta de entrada para o Sanatório, concentra e
mobiliza a equipe de plantão. É que por este setor dão-se todas as admissões e nele também
ficam os usuários que necessitam de cuidados médicos, de enfermagem e do serviço social,
mais intensos e contínuos, por apresentarem alguma complicação clínica ou por serem idosos
ou gestantes, daí a grande movimentação que se registra. Por ele passam, também, todos os
médicos que realizarão o primeiro atendimento ao usuário recém-admitido, o mesmo
ocorrendo com outros profissionais da equipe interdisciplinar, posto que, se o psiquiatra e
outros integrantes da equipe nos demais setores o atendem a cada dois dias, neste a visita
médica é diária, pelo fato de o enfermo encontrar-se em observação. Por isso, enquanto o
PTM permanecer na UI, a família é mobilizada pelo Serviço Social para acompanhar o caso
de perto, visitando-o até fora do horário estabelecido. Segundo os funcionários de
enfermagem do setor, os usuários, com complicações clínicas, quando são transferidos para a
UI, não mais querem voltar ao pavilhão de origem, porquanto “eles adoram ficar aqui na
Unidade de Internação”, talvez porque recebam cuidados mais intensos e, ainda, por ser um
setor pequeno, com apenas duas enfermarias e seis leitos, três femininos e três masculinos, o
que lhes conferem maior privacidade e atenção constante dos que por lá circulam.
Ademais, todos os pavilhões tem a rotina de encaminhar os PTM para outras
especialidades oferecidas pelo Sanatório Meduna, como cardiologia, ginecologia, clínica geral
e odontologia, atendimentos feitos na Ala de Consultórios, com instalações apropriadas para
cada uma. No caso dos serviços odontológicos, o dentista realiza, nos internos, somente
exodontia (extração), enviando as situações de maior complexidade para outros especialistas,
fora do hospital, sendo que as consultas com médicos de outras especialidades se dão
241
semanalmente, com duas visitas semanais de cada profissional, que atende, em média, cinco
usuários a cada vez. O repasse a essas especialidades se dá por qualquer membro da equipe
interdisciplinar e se, após a isso, as complicações clínicas do PTM não melhorarem ou não
tiverem solução no Sanatório, a família ou o responsável são comunicados, para que
providenciem uma consulta extrahospitalar. Há, também, no Meduna, um serviço de
barbearia, à disposição dos internos.
As consultas médicas com outras especialidades, realizadas fora do Sanatório,
torna-se um dilema para as famílias, na grande maioria detentoras de baixo poder aquisitivo e
sem condições de custeá-las, tendo, por isso, que recorrer ao SUS, onde normalmente não é
fácil obtê-las, menos ainda um leito vago. Nessas situações, há outra agravante, que é a forte
resistência nos hospitais gerais em aceitar o PTM, mesmo que para consultas médicas, sendo
exigido da família e do Sanatório uma permanente vigilância sobre o usuário, o que se torna
mais difícil quando da necessidade de internações nesses hospitais como, por exemplo, para
intervenções cirúrgicas. Neste caso, a família ou o responsável assume a responsabilidade de
acompanhar por 24 horas o enfermo, até ele recuperar-se, mas sempre que o PTM é atendido
em hospital geral, tem a alta abreviada, sob a alegação de continuar o tratamento em casa ou
num local especializado.
2.4 O Serviço de Hospital-Dia do Sanatório Meduna
Em 1995 foi inaugurado, no Meduna, o Hospital-Dia Clidenor de Freitas Santos, o
qual, desde aquele ano, funciona em anexo ao prédio do Sanatório, no horário das 7 às 16
horas, de segunda a sexta-feira, oferecendo tratamento psiquiátrico para ambos os sexos e
conveniado com o SUS. Com capacidade de trinta leitos, em regime de semi-internação ou
internação parcial, com prazo máximo de 45 dias e média de permanência entre 25 a 30 dias,
propicia um espaço que proporciona, no mais amplo aspecto, um tratamento diferenciado da
internação integral. Na verdade, o tratamento psiquiátrico no Hospital-Dia dá ao PTM uma
certa autonomia, independência e liberdade de ir e vir na sociedade e na comunidade onde
vive, decidindo e resolvendo seus problemas de ordem pessoal e social, uma vez que, mesmo
interno, sempre que necessita dele ausentar-se pode isso solicitar, sendo liberado pela
assistente social, sem mencionar que normalmente esses internos usam de todos os serviços
do Sanatório, incluindo outras especialidades médicas e até a barbearia.
242
Na rotina do Hospital-Dia vige um conjunto de normas, diferentes, dos demais
setores, porque mais flexíveis. Com efeito, o usuário tem mais liberdade, devido à
dinamicidade das atividades desenvolvidas, que sempre envolvem e motivam a participação e
a criatividade dos internos, quer na sua elaboração, quer na execução, por isso que às vezes a
simples visita de alguém ou de um profissional não pertencente ao setor pode alterar-lhe a
movimentação. Frise-se que o funcionamento deste anexo estava, até 1999, subordinado ao
HAA, que emitia as guias de AIH, mas desde o início de 2000 adquiriu autonomia para a
emissão dos seus laudos de internamento.
O Hospital-Dia é assistido por uma equipe interdisciplinar, composta por um
médico psiquiatra, uma assistente social, uma enfermeira, uma psicóloga, uma terapeuta
ocupacional, dois técnicos de enfermagem e um zelador. Conta com uma oficina de arte,
(anexo V) uma sala para exposição de trabalhos dos usuários (em tela, cerâmica, bordado,
crochê, tapeçaria, etc) e duas enfermarias com três leitos, uma para cada sexo, além de uma
área externa ampla, arborizada e estruturada, com mesas e cadeiras distribuídas por diversos
pontos, nelas podendo os internos ficar à vontade, em conversas ou em realizando alguma
atividade terapêutica. Existe, ainda, nessa parte do Hospital-Dia, uma horta, onde são
cultivados legumes, ervas medicinais e hortaliças, usados no consumo interno, cuja
manutenção é feita pelos próprios PTM, sob a coordenação dos profissionais de Serviço
Social e da Terapia Ocupacional, tendo tal atividade boa aceitação da clientela.
No projeto original, a atenção básica do Hospital-Dia dirigia-se,
preferencialmente, para os diagnósticos ditos mais leves, como neuroses, depressão e
semelhantes. Todavia, no desenvolvimento das atividades no cotidiano do hospital, nas
conversas e nas entrevistas, os profissionais observavam que, em alguns casos, os motivos
referidos pelos usuários e familiares para justificar a internação relacionavam-se
implicitamente ao desejo ou à necessidade de auferir um beneficio previdenciário ou mesmo a
aposentadoria, o que, nos últimos anos, tem sofrido um redirecionamento, já que o Hospital-
Dia é, na verdade, uma das alternativas cada vez mais presentes ao tratamento em internação
integral, de sorte que se tornou um setor de transição, com seus objetivos finais, hoje mais que
antes, sendo o de preparar o usuário para o retorno progressivo ao convívio social, segundo a
lógica do MS, que orienta tratamento psiquiátrico em internação integral só para casos agudos
e, após a alta, continuação em serviços alternativos, como Hospital-Dia, CAPS, NAPS,
Pensões Protegidas, consultas ambulatoriais, dentre outros.
243
Mas, normalmente, nem todos os PTM têm condições de seguir essa lógica,
embora, sempre que têm alta da internação integral, a equipe interdisciplinar e os funcionários
de enfermagem do Sanatório o orientem e à família ou responsável a procurar, no menor
tempo, os serviços alternativos ou de semi-internação, oferecidos pelos hospitais da cidade de
Teresina, como o próprio Sanatório Meduna e o HAA, que também atende com Hospital-Dia
e consultas ambulatoriais, assim como os da rede municipal, que disponibilizam consultas e
de medicação psicotrópica. De modo geral, o uso desses serviços evita uma recaída do quadro
psíquico e uma nova internação integral, com a opção de escolha destas formas de tratamento
se relacionando ao estado mental do usuário e ao apoio e incentivo da família ou responsável.
Diferentemente do início, o Hospital-Dia do Sanatório Meduna recebe a todos com
diagnóstico de doença mental, inclusive os psicóticos, com uma boa resposta do próprio
usuário, da equipe que o acompanha e da família, que colabora para a integração dele nessa
alternativa de tratamento.
Permanece, no entanto, a exigência de que, para dela participar, o usuário esteja
fora de crise aguda, ou seja, não tenha quadro de agitação psicomotora e aceite a internação
de forma espontânea e consciente, sem idéia de fugas. Isso se justifica pelo fato de esse
serviço de saúde ocorrer em um hospital aberto, onde o usuário tem trânsito livre por toda a
área física, com acesso à rua. Por isso é que, em razão das peculiaridades do Hospital-Dia
como um tratamento de semi-internação, normalmente os usuários, familiares ou responsáveis
são orientados pela equipe e funcionários do Sanatório Meduna a procurar esse serviço logo
após a alta da internação integral e antes de uma recaída ou crise aguda. No tratamento em
internação parcial ou semi-internação, se algum usuário, pela condição ou estado psíquico,
não puder ir sozinho de casa até ao Hospital-Dia e vice-versa, a equipe solicita à família ou
responsável que o faça diariamente, deixando-o pela manhã e buscando-o no momento do
retorno ao domicílio, procedimento necessário, em certos casos, durante todo o tratamento e
em outras só no início, até que ele se adapte e consiga deslocar-se a sós e com segurança ao
Hospital-Dia e deste ao domicílio. A participação da família, em qualquer tipo de tratamento,
é elemento de fundamental importância, em particular no Hospital-Dia, pois, sem essa
cooperação, fica ele inviabilizado, na medida em que a família é que interage e mediatiza o
processo, acompanhando diariamente o PTM durante a semi-internação e após a alta médica.
Como um serviço de saúde mental diferenciado, o Hospital-Dia trabalha sob uma
programação prévia, agendada pela equipe do setor, que envolve atividades de grupos
recreativos, sócioterapêuticos, informativos, lúdicos, auto-expressivos, coordenados pela
244
assistente social, a psicóloga, a terapeuta ocupacional e o médico psiquiatra. Desse processo
de planejamento, os usuários não participam diretamente mas, na medida do possível, são
incorporadas as suas opiniões e solicitações, sendo as atividades pensadas e voltadas para as
suas necessidades e anseios. No turno da manhã, concentram-se as atividades de limpeza do
setor, para o qual os internos em condições cooperam, realizado-se, também, os atendimentos
médico e psicológico, com o período da tarde se reservando às atividades de Terapia
Ocupacional e o intercâmbio do Serviço Social com as famílias. Aliás, no Hospital-dia é o
Serviço Social quem coordena as reuniões mensais com as famílias e aborda temas de seu
interesse (os efeitos colaterais das medicações, cuidados com a higiene e a saúde, importância
da participação no tratamento, procedimentos para aquisição de benefícios, etc), em muitas
delas contando o profissional com convidados de outros setores, que se responsabilizam por
temáticas especificas a suas áreas, definições essas que as famílias podem sugerir. O Serviço
Social e o Setor de Terapia Ocupacional promovem ainda atividades de lazer aos usuários,
como festas comemorativas (Natal, Carnaval, São João, aniversariantes do mês, Páscoa, Dia
das Mães, Dia dos Pais, etc), (anexo VI), bingos e jogos, sem mencionar uma, que mobiliza
profissionais e internos: a elaboração de painéis, para decorar os murais do hospital, sempre
com temáticas relacionadas às datas comemorativas e a assuntos do interesse dos internos e de
suas famílias. Informe-se, por importante que no final de 2003, por problemas de ordem
administrativa, o credenciamento com o SUS foi suspenso e o Hospital-Dia do Sanatório
Meduna foi fechado por alguns meses, reabrindo no início de 2004, com instalações físicas
reformadas e melhores acomodações e com um número reduzido de usuários (dez vagas, no
momento da realização desta pesquisa), não sendo, até então, restabelecido o referido
convênio, fato que, segundo a direção, deve ser resolvido nos próximos meses15
.
Vale salientar que, como alternativa à internação integral, o Hospital-Dia ou de
semi-internação ainda é, em geral, pouco conhecido pela população que carece de tratamento
especializado, talvez por ausência de divulgação, na cidade de Teresina, pelas duas
instituições que dispõem do serviço, o HAA e o Meduna, sem dizer dos custos com
transporte, um dos entraves para as famílias e usuários, devido aos custos financeiros do
deslocamento diário pesar-lhes no bolso, já que são na grande maioria, de baixa renda. No
Sanatório Meduna, a direção resolveu esse problema através do vale-transporte, concedidos
15 No entanto, lamentavelmente ao término dessa pesquisa, o Hospital-Dia ainda não tinha conseguido
restabelecer o credenciamento junto ao SUS, sendo este Serviço de Saúde, fechado no final de julho de 2004,
por tempo indeterminado, apesar das inúmeras tentativas da direção junto ao Ministério da Saúde, que na
atualidade tem priorizado a abertura de outras formas de tratamento, como CAPS e NAPS.
245
aos que residem em regiões mais distantes, medida essa que foi uma verdadeira conquista de
todos os que necessitam desse tipo de tratamento.
Nos últimos cinco anos, o Hospital-Dia do Sanatório Meduna, tem procurado
diversificar e ampliar (sobretudo antes do descredenciamento com o SUS) a clientela, por
meio de estímulos dos próprios funcionários e dos usuários do serviço, que o divulgam na
comunidade onde residem, ressaltando-o como uma alternativa viável àqueles com quadro
melhorado e em alta médica, como uma forma de continuar o tratamento psiquiátrico sem
desvincular-se totalmente da família, o que, não raro, evita nova internação no sistema
integral ou convencional. Assim, no período de internação integral do PTM a equipe
interdisciplinar já o orienta e à família ou responsável sobre a continuação do tratamento após
a alta médica, informando-os dos serviços disponíveis em Teresina, incluindo, neste rol, o
Hospital-Dia, uma opção válida principalmente para os usuários residentes na capital ou em
cidades como Floriano e Parnaíba, no Piauí, e Caxias, no Maranhão.
246
CAPÍTULO III
O SERVIÇO SOCIAL COMO PRÁTICA PROFISSIONAL
3.1 O Serviço Social no Brasil
Buscou-se, nos dois primeiros capítulos, mostrar o processo de constituição das Políticas
de Saúde e da Assistência Psiquiátrica no Brasil, analisando-lhes os avanços e recuos no
desenvolvimento da sociedade brasileira. Neste capítulo, o ponto capital será uma análise mais ampla
possível do Serviço Social a partir, sobretudo, dos anos de 1970, momento esse de grande
efervescência política e social para a profissão, tanto no Brasil quanto no continente latino-americano,
em especial pela deflagração do Movimento de Reconceituação do Serviço Social (MRSS) 16, iniciado
em 1965, e a reorganização da sociedade civil, isso num elenco de acontecimentos políticos,
econômicos, sociais e culturais que fomentaram amplos debates. Nesse sentido, o Serviço Social será
enfocado em linhas gerais, ressaltando-se alguns aspectos de seu surgimento, constituição e
desdobramentos, como sujeito ativo da construção do desenvolvimento da sociedade brasileira,
presente nos mais diversos espaços, já que tem atuado e intervido historicamente na questão social17 e
nos seus múltiplos efeitos e expressões. Serão abordados, ainda, alguns pontos cruciais do processo
de inserção do Serviço Social na área da saúde mental no Brasil, em particular no Sanatório Meduna,
articulando e mediatizando essas discussões com a temática da cidadania.
No marco do capitalismo monopolista e considerando a realidade brasileira, o Serviço
Social insere-se e se concretiza a partir da divisão sócio-técnica do trabalho e do conjunto das
16 Este foi um Movimento ocorrido, na década de 1960, na profissão de Serviço Social em todo continente
latino-americano e no Brasil, tendo a participação de professores, profissionais e estudantes. Seu eixo principal
era a contestação ao tradicionalismo profissional e “implicou um questionamento global da profissão: de seus
fundamentos ideoteóricos, de suas raízes sócio-políticas, da direção social da prática profissional e de seus modus operandi” (IAMAMOTO, 1998, p. 205-6)
17 Nos termos de Cerqueira Filho (1982, p. 21) por questão social, no sentido universal do termo, se entende o
conjunto de problemas políticos, sociais e econômicos que o surgimento da classe operária impôs ao mundo
capitalista, estando “fundamentalmente vinculada ao conflito entre capital e trabalho.”
247
necessidades históricas dos indivíduos e grupos sociais, determinando e expressando significados e
tendências diversas oriundos, sobretudo, da questão social.
A profissão é aqui compreendida como um produto histórico e, como tal, adquire seu
sentido e inteligibilidade na história da sociedade da qual é parte e expressão. O Serviço Social afirma-se como uma especialização do trabalho coletivo, inscrito na divisão sócio-técnica de trabalho, ao se constituir em expressão de necessidades históricas, derivadas da prática das classes sociais no ato de produzir seus meios de vida e de trabalho de forma socialmente determinada. Assim, seu significado social depende da dinâmica das relações entre as classes e dessas com o Estado nas sociedades nacionais em quadros conjunturais específicos, no enfrentamento da „questão social‟ (IAMAMOTO, 1998, p.203).
Na sociedade brasileira, a questão social tem origem ao longo do processo histórico, com
as raízes calcadas no cenário das desigualdades e das injustiças presentes na trajetória do país. Essa
realidade aparece, por exemplo, sob a forma do desemprego, da violência, da concentração de renda e
da falta de moradia, atingindo um amplo contingente de atores sociais, sobretudo os das camadas mais
pobres que, em conseqüência, dependerão, em diferentes conjunturas e estruturas, dos serviços
prestados pelo Estado ou por organizações privadas, para viverem de modo minimamente decente e
digno. O surgimento da questão social tem, assim, raízes históricas profundas, pois, como diz
Arcoverde (1999, p.78),
no fundo, a questão brasileira, em suas variadas formas, tem na desigualdade
e na injustiça social ligada à organização do trabalho e à cidadania seu
núcleo orgânico. Resulta da estrutura social produzida pelo modo de
produção e reprodução vigentes e pelos modelos de desenvolvimento que o
país experimentou: escravista, industrial-desenvolvimentista, fordista-
taylorista e o de reorganização produtiva.
Pode-se, então, dizer que a questão social no Brasil aflora ainda no final do século XIX,
escondida em meio ao emergente processo de industrialização, não sendo reconhecida pelo poder
dominante como legítima e menos ainda real, pois, na verdade, era vista pelo Estado como ilegal e
marginal, enquadrada como “caso de polícia” e tratada no interior dos aparelhos repressivos. Com
248
efeito, nesse período, a problemática social se via mascarada e ocultada sob a forma de fatos pontuais
e excepcionais, sendo então a pobreza, para os órgãos públicos, uma disfunção dos próprios
indivíduos, que não se adaptavam ao novo processo de desenvolvimento em andamento no país
(CERQUEIRA FILHO, 1982).
Nas três inaugurais décadas do século XX, a questão social assume um novo formato e
ganha novos contornos, requerendo do Estado outras medidas de enfrentamento que não somente a
repressão. Àquela época, torna-se já premente, sendo reconhecida, pela primeira vez, pelo Estado
brasileiro, sob os postulados dos ideais liberais e como reflexo e expressão das relações capital e
trabalho. Naquele período, o país dava os passos iniciais decisivos rumo ao capitalismo e a nova
conjuntura, marcada pelo processo de industrialização e urbanização, exigia a intervenção do Estado,
de um lado, na criação de infra-estrutura básica (estradas, transportes, ferrovias e preparação de mão-
de-obra especializada, etc) e, de outro, na gerência e administração dos conflitos sociais, que se
agravavam e se tornavam mais complexos e progressivos.
Assim, ao tempo em que o capitalismo se implantava no Brasil, afirmando-se como modo
de produção dominante, os trabalhadores iniciavam as manifestações de protestos, reivindicando
melhorias de vida e trabalho. Em tal contexto, o Estado intervém na questão social, reconhecendo-a
como legítima e legal, pelo que adota medidas de proteção que, em seus conteúdos centrais,
objetivava desmobilizar e despolitizar os movimentos sociais que, naquele momento, se fortaleciam.
Dessa forma, a esta altura do desenvolvimento das relações sociais e de produção, decorrentes da
expansão do capitalismo, as antigas ações voltadas para o tratamento da questão social, advindas da
caridade, da filantropia e da assistência, não davam mais conta da realidade, agora com características
capitalistas, fazendo-se necessário e urgente a adoção de medidas estratégicas dentro de um aparato
estatal que desse suporte ao seu enfrentamento e resolução, até porque ela se agravava sob a égide
do desenvolvimento capitalista industrial em marcha no país.
249
É nesse contexto de mudanças que surgirá o Serviço Social, em íntima relação com
o trato da questão social no Brasil. Daí que o nascimento do Serviço Social não se dá, é óbvio, por
acaso, mas como desdobramento da união de interesses estratégicos levados a efeitos por ações da
Igreja, do Estado e dos setores dominantes da sociedade brasileira, nos anos de 1930. Sua emersão
acontece no seio do bloco católico, que objetivava, em última instância, recuperar espaços e privilégios
enfraquecidos, numa conjuntura de acelerada mudança, sendo sua missão principal propagar os
ideários da Doutrina Social da Igreja, bem como “humanizar” a questão social, nos marcos dos
princípios do neotomismo18 e do Cristianismo, os quais, por longas décadas, embasaram a formação
dos assistentes sociais, influenciando-os fortemente.
O Serviço Social é, então, constitutivo do e constituído pelo processo de industrialização
brasileiro, emergindo como uma das especialidades da divisão social e técnica do trabalho. Por isso, é
chamado a atender a um conjunto de exigências e necessidades desse processo em ampla expansão,
intervindo na questão social sob o princípio da visão cristã, com o objetivo de humanizá-la e aliviar, em
decorrência, as tensões e os conflitos existentes. Nesses termos, nos anos de 1940, como
desdobramento da questão social, que tivera suas características aprofundadas e agravadas, caberá
ao Estado a responsabilidade majoritária, frente a tais exigências, de canalizar para si a gestão e a
elaboração de um conjunto de leis, normas e regulamentos voltados para o social. É quando surgem no
país grandes instituições assistenciais, como o Serviço Nacional do Comércio (SENAC), o Serviço
Social da Industria (SESI), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), a Legião Brasileira
de Assistência (LBA), dentre outras, que tratavam, de forma legal, racionalizada e institucionalizada, os
conflitos sociais, almejando amplamente, com seus serviços e práticas, a garantia da manutenção e
18 O neotomismo recoloca, sob novas determinações históricas, a corrente filosófica inspirada em Santo Tomás
de Aquino, que tinha como “base teleológica o princípio [de que a] existência de Deus confere uma hierarquia
aos valores morais, tendo em vista a sua subordinação às „leis naturais‟ decorrentes das „leis divinas‟” (BARROCO, 2003, p. 91). A natureza humana é vista como dotada de livre arbítrio, devendo o homem seguir
as leis morais, em busca de sua essência e da aproximação com Deus, tendo como finalidade última fazer o
bem e encontrar a felicidade. Esta doutrina influenciou a formação dos primeiros assistentes sociais no Brasil,
até o início da década de 1960. Para maiores informações, ver Aguiar (1995).
250
reprodução da força de trabalho, dentro de uma lógica de enquadramento e ajustamento da classe
trabalhadora (IAMAMOTO, 1991).
Mas, além dessas instituições, foram criados, para o enfrentamento da questão social,
órgãos públicos, como o Ministério do Trabalho, culminando, em 1943, com a edição da Consolidação
das Leis Trabalhistas (CLT), medidas pelas quais o Estado objetivava manter sob controle as
manifestações dela advindas, evitando possíveis crises, pois, na lógica intervencionista do governo
Vargas, não era recomendável deixar o mercado de trabalho entregue à auto-regulação. Com essa
postura, entendia-se possível resolver os conflitos entre capital e trabalho “fora da esfera” e “dos
limites” da luta de classes, tendo as leis de proteção social como suficientes para gerar relações de
plena igualdade e garantir o bem-comum (ARCOVERDE, 1999).
A criação dessas instituições estava, assim, estreitamente relacionada aos interesses do
Estado em agir sobre a questão social e seus desdobramentos, atendendo aos carentes através de
serviços assistenciais em várias áreas e setores. A institucionalização do Serviço Social no país, como
profissão, se dá com o surgimento dessas instituições, pois nelas atuavam os assistentes sociais, que
gerenciavam a questão social, canalizando e equacionando os conflitos soc iais, tendo “a partir de suas
práticas, efeitos tanto econômicos como políticos e ideológicos” (IAMAMOTO, 1991, p.314).
No âmbito dessa lógica de criação de organismos estatais e não estatais, o assistente
social, como profissional que domina um conjunto de conhecimentos, métodos e técnicas, passa a
atuar a partir das necessidades advindas do desenvolvimento da sociedade e de suas instituições.
Estavam, assim, os assistentes sociais vinculados ao Estado e voltados a responder às necessidades
e demandas dos grupos sociais, fomentados pelo impulso dado pela intensificação do processo de
industrialização. Suas ações eram, então, racionais e compatíveis com tal processo, de sorte que a
progressiva intervenção estatal na questão social guarda forte relação com a institucionalização do
Serviço Social no país. A esse respeito, assinala Iamamoto (1991, p.315) que
251
o processo de surgimento e desenvolvimento das grandes entidades
assistenciais – estatais, autárquicas ou privadas – é também o processo de
legitimação e institucionalização do Serviço Social. A profissão de Assistente Social apenas pode se consolidar e romper o estreito quadro de
sua origem no bloco católico a partir e no mercado de trabalho que se abre
com aquelas entidades. A partir desse momento só é possível pensar a
profissão e seus agentes concretos – sua ação na reprodução das relações sociais de produção - englobados no âmbito das estruturas institucionais.
A partir de então, o Serviço Social deixa de ser uma forma de intervenção ligada a alguns
segmentos representados por grupos femininos abastados da sociedade, que agiam, através da Igreja,
baseando-se em atividades de assistência traduzidas na caridade e na filantropia. É que assumem um
caráter institucional e atuam profissionalmente junto às políticas sociais implementadas pelas grandes
instituições assistenciais, imprimindo e incorporando à prática profissional uma racionalidade e
sistematização antes ausentes, agora com o fito de impor à sociedade, sobretudo aos trabalhadores,
noções educativas estimuladoras da cooperação entre as classes, estabelecendo o consenso para a
aceitação das relações sociais vigorantes, o que ultrapassava a visão e a ação anteriores “do
apostolado doutrinário, da salvação e recristianização das massas populares, de exorcizar o conteúdo
liberal da sociedade burguesa” (IAMAMOTO, 1991, p.316).
No entanto, o Serviço Social e sua prática não podem ser entendidos nem considerados
como um mero e isolado reflexo das relações sociais capitalistas que marcam a sociedade. Como
profissão, seu sentido é mais amplo e profundo, porquanto constituinte do e constituída pelo contexto
econômico-político-social e cultural das relações vigentes numa dada sociedade e num dado contexto,
conjuntura e processos. Por esse anglo ampliado, observa-se, em última instância, que a prática
profissional do assistente social visa responder historicamente às exigências, necessidades e
demandas dos segmentos sociais, sobretudo dos mais empobrecidos.
O Serviço Social é uma profissão que tem características singulares. Ela não
atua sobre uma única necessidade humana (tal qual o dentista, o médico, o pedagogo...) nem tão pouco se destina a todos os homens de uma sociedade,
sem distinção de renda ou classe. Sua especificidade está no fato de atuar
sobre todas as necessidades humanas de dada classe social, ou seja, aquela formada pelos grupos subalternos, pauperizados ou excluídos dos bens,
serviços e riquezas dessa mesma sociedade. É por isso que os profissionais
252
de Serviço Social atuam basicamente na trama das relações de conquista e
apropriação de serviços e poder pela população excluída e dominada
(CARVALHO e NETTO, 1996, p.52).
Em tal configuração, o processo de inserção social do profissional de Serviço Social na
elaboração de respostas a essas exigências e necessidades pode acontecer na perspectiva da
reprodução e do fortalecimento das condições presentes em dadas sociedades, favorecendo-lhes a
ampliação das forças dominantes, bem como, ao contrário, a ação se pode dar na direção das lutas e
movimentos que se canalizam para os interesses, anseios, desejos e direitos das classes populares.
Possui, ademais, esse profissional a chance de atuar no sentido de contribuir para a modificação das
relações dessa sociedade e da própria questão social, que tem, aliás, se metamorfoseado, nas últimas
décadas, com o acentuado avanço das relações capitalistas e do Estado, almejando-se uma sociedade
mais justa na qual todos possam usufruir a riqueza socialmente produzida.
Assim, as inserções da profissão de Serviço Social nos contextos sociais não estão
determinadas aprioristicamente. O sentido e a direção que os profissionais imprimirão à sua prática
sofrerão os reflexos das lutas, dilemas, movimentos e relações estabelecidas com a sociedade e seus
grupos constituintes, as quais não são estáticas e homogêneas, mas dinâmicas e contraditórias,
caminhando em várias direções e assumindo diversas formas. Daí que as inserções do assistente
social nos vários campos ocupacionais, de acordo com a historicidade e a dinamicidade das relações,
podem assumir diferentes posições, posturas e pensamentos no modo de conceber essa realidade
social. No entanto, no Brasil, historicamente, a prática do assistente social tem imprimido,
predominantemente, uma direção mais voltada para reforçar e garantir, direta ou indiretamente, às
exigências, necessidades e interesses dos setores dominantes da sociedade, em seus processos de
reprodução e ampliação do capitalismo no país.
Mas essa não é uma posição unânime e homogênea na categoria dos assistentes sociais,
sobretudo nas últimas três décadas do século XX. É que a profissão no Brasil e no continente latino-
253
americano tem encampado movimentos e lutas na direção da promoção de reformas e mudanças nos
rumos predominantes no Estado e na sociedade, empenhando-se na defesa dos interesses dos
segmentos sociais mais empobrecidos, em especial os concernentes à garantia dos seus direitos e da
sua cidadania. No entendimento de Gentilli (1998), trabalhar na perspectiva dos direitos sociais dos
usuários não chega a ser uma novidade no âmbito do Serviço Social como profissão, já que, desde
suas origens, preocupou-se ele em minimizar as mazelas do capitalismo. Contudo, tal prisma tem sido
retomado com muito mais força, amplitude e significação nas três últimas décadas, norteado pelas
discussões da construção de novas bases e rumos para a profissão, levadas a cabo por expressiva
parcela da categoria dos assistentes sociais, que passam a assumir compromisso profissional, ético e
político efetivo na defesa dos direitos e da cidadania dos usuários dos serviços e das políticas sociais,
sob a ótica dos seus interesses e necessidades. Esse rumo de atuação do assistente social marca a
década de 1970, período em que se fortalecia, no Brasil e na América Latina, o Movimento de
Reconceituação, ocorrido no seio da categoria profissional na década anterior, mais precisamente em
1965, nesse continente e nesse país, e que, segundo Iamamoto (1998, p.205), significou um marco
histórico e “decisivo no desencadeamento do processo de revisão crítica do Serviço Social no
continente”.
O Movimento de Reconceituação do Serviço Social (MRSS) questionou profundamente os
princípios teórico-metodológicos que embasavam a profissão. As discussões objetivavam imprimir-lhe
novos rumos, direções e práticas, no sentido de romper e superar a postura conservadora (política,
teórica e metodológica), adotada em seus processos de inserção no social. Esse Movimento provocou
uma reviravolta na profissão de Serviço Social, que passou a seguir novas referências teórico-
metodológicas, entre elas o marxismo, em suas diversas vertentes.
Nas sociedades latino-americana e brasileira, o MRSS acontece em contextos
econômicos, políticos, sociais e históricos, marcados por amplos questionamentos aos modos
tradicionais e conservadores de conceber o Estado, a sociedade e a profissão. No que respeita à
254
atuação profissional, as principais bases teóricas de sustentação da prática levada a efeito nos
diferentes campos de atuação do assistente social estavam, até então, fundamentadas no positivismo e
no funcionalismo19. Ademais, tais questionamentos são, de maneira geral, gestados numa conjuntura
latino-americana, perpassada por amplas e profundas mudanças advindas e constituídas da forte
efervescência e agitação dos movimentos e lutas sociais dessa época, decorrentes da expansão do
capitalismo no mundo.
Aliás, naquele contexto histórico, essas inquietações e questionamentos não germinaram
somente no Serviço Social. Também no âmbito da Igreja e nas Universidades prosperaram as lutas dos
estudantes e movimentos culturais e artísticos, que afetaram outras categorias profissionais e o
conjunto das Ciências Sociais. Floresceram, então, indagações e críticas tanto em relação aos seus
fundamentos e alicerces teóricos, quanto ao papel desempenhado na sociedade, em face aos novos
desafios postos por um mundo em transformação. Procuram-se, então, novas teorias, parâmetros e
explicações que embasem o pensamento e a ação no enfrentamento dessa nova e complexa
realidade. Para Iamamoto (1998, p.206-7), nessa efervescência econômica, política, social e cultural
o pensamento social latino-americano busca reconciliar-se com sua própria história, questionando as teorias exógenas e subordinando sua validação à
capacidade que apresentem de explicar e iluminar os caminhos particulares
trilhados pelo desenvolvimento na América Latina em suas relações com os centros avançados do capitalismo.
Nessa perspectiva, o Serviço Social assiste às tentativas de ruptura com as formas
tradicionais, conservadoras e históricas da profissão20 de intervir na sociedade, elaboradas e
19 Correntes teóricas que marcaram profundamente a profissão de Serviço Social, sobretudo até a década de
1970. Em linhas gerais no Positivismo a “sua hipótese fundamental é de que a sociedade humana é regulada
por leis naturais, ou por leis que têm todas as características das leis naturais, invariáveis, independentes da
vontade e da ação humana, [...] portanto o que reina na sociedade é uma harmonia semelhante à da natureza,
uma espécie de harmonia natural” (LÖWY, 1985, p. 35-6). O Funcionalismo por sua vez, prega a defesa do
funcionamento adequado da sociedade em que cada indivíduo exerce uma função indispensável no
funcionamento do todo. “Na sociologia funcionalista, as ideologias são vistas como valores consensuais” (idem, 1985, p.17).
20 “Por Serviço Social „tradicional‟ deve-se entender a prática empirista, reiterativa, paliativa e burocratizada
que os agentes realizavam e realizam efetivamente, na América Latina. Evidentemente, há um nexo essencial
entre ambos: parametra-os uma ética liberal-burguesa e sua teleologia consiste na correção - uma ótica
255
propagadas por assistentes sociais que buscavam repensar a própria prática tanto em nível teórico,
quanto metodológico e político, revendo a forma de refletir, analisar e agir, sobre a realidade social,
dentro de uma ótica mais dinâmica e contraditória, imprimindo-se novas alianças e novos
compromissos, sobretudo com as classes mais empobrecidas e menos favorecidas da sociedade
brasileira. Em tal contexto, o MRSS, mesmo imerso na textura societária, não conferiu às sociedades
brasileira e latino-americana um debate homogêneo ou unitário. Ao contrário, como diz Iamamoto
(1998, p.207),
tanto em função de suas gêneses sociais diferenciadas – determinadas por
contextos sócio-políticos e econômicos distintos – quanto em razão da
vinculação intelectual e política por parte de seus protagonistas a matrizes teóricas e societárias também diversas, o movimento de reconceituação se
molda como uma unidade repleta de diversidades. Essas se manifestam não
só na forma de construção das críticas e propostas, mas também no
conteúdo atribuído ao „novo‟ Serviço Social latino-americano.
Nesse sentido, o MRSS repercutiu no continente latino americano como um momento de
reflexão, denúncia e cisão com o Serviço Social dito tradicional, que não dava mais conta de responder
aos novos desafios históricos impostos pelo ciclo expansionista do capitalismo. Romper com esse
Serviço Social tradicional era então crucial para os assistentes sociais que buscavam novas metas e
um outro sentido para a profissão, em sua inserção na sociedade, como categoria profissional,
porquanto se desejava a construção de um revigorado Serviço Social, carregado de historicidade e
capaz de empreender uma leitura mais crítica da realidade. Isso fez com que uma vasta parcela de
assistentes sociais fortalecesse o interesse em modernizar o Serviço Social, direcionando o eixo da
atuação profissional para um compromisso real e efetivo com as demandas e necessidades da classe
trabalhadora e dos grupos mais pobres, no intuito de gerir novas formas de sociabilidade, relações
sociais e valorização do protagonismo desses sujeitos.
claramente funcionalista – de resultados psicossociais considerados negativos ou indesejáveis, sobre o
substrato de uma concepção (aberta ou velada) idealista e/ou mecanicista da dinâmica social, sempre
pressuposta a ordenação capitalista da vida como um dado factual inalienável ” ( NETTO, 1981, p. 60).
256
No entanto, devido ao cenário ditatorial, a Reconceituação passou a vigorar, tardiamente,
no Brasil, pois somente nos anos de 1970 brotam as primeiras manifestações mais concretas de
ruptura com o Serviço Social tradicional que, naquele momento, mostrava-se, teórica e
metodologicamente, “incapaz” de responder à nova e complexa conjuntura econômica, política e social
do país. Essas primeiras manifestações do Movimento de Reconceituação do Serviço Social no Brasil,
receberam influências da política desenvolvimentista levada a efeito pelos militares, em vista do que
esse Movimento só veio se fortalecer, como proposta ruptorial ao tradicionalismo, nos finais da década
de 1970, quando uma nova conjuntura emerge, no bojo da reorganização da sociedade civil no país e
há uma maior abertura para os influxos do marxismo. Como diz Iamamoto (1998, p.210), “a descoberta
do marxismo pelo Serviço Social latino-americano contribuiu decisivamente para um processo de
ruptura teórica e prática com a tradição profissional”. Mas refere a mesma autora (1998, p. 210) que se,
por um lado, a primeira aproximação do Serviço Social com o marxismo representou um momento
singular (de rompimento com as idéias conservadoras e tradicionais) para a categoria, por outro ela, da
forma como foi estabelecida, significou também a formação de “inúmeros equívocos e impasses de
ordem teórica, política e profissional cujas refrações até hoje se fazem presentes”.
A descoberta das idéias marxistas pelo Serviço Social se dá ainda na década de 1970,
mas é sobretudo no início da década de 1980, que se faz mais presente, marcada por um forte caráter
economicista e determinista, com a utilização do pensamento de Marx de forma utilitarista, acrítica e
pragmática, com ausência de uma reflexão e de uma mediação do referencial teórico e do instrumental
do método dialético como um processo crítico e histórico do conhecimento, havendo uma for te
valorização das relações de produção e da estrutura dominante da sociedade, sendo essas influências
baseadas em manuais que divulgavam as idéias do autor sem uma avaliação e conexão mais
profunda, ampla e crítica da tradição marxista21. Apesar disso, a perspectiva, aos poucos “purificada”,
21 Na verdade, essa aproximação “enviesada” do Serviço Social com o marxismo levou a uma série de
equívocos: desconsideração do trabalho nas instituições, com supervalorização de análises da estrutura social,
com conseqüente desvalorização do trabalho mais no nível micro, que é mais ligado ao cotidiano, atuando
diretamente no processo produtivo do trabalho de organização dos trabalhadores, sem mediações institucionais,
257
do ecletismo existente, permitiu a construção de análises mais amplas sobre a profissão e sua prática
na realidade social capitalista (IAMAMOTO, 1998), daí que as influências do marxismo, no âmago do
Serviço Social, foram decisivas no apontar novos rumos, direções e possibilidades de ação profissional.
É, aliás, a partir dessas influências que o Serviço Social vai, de fato, caminhar em direção à defesa dos
interesses das classes populares, sendo esse compromisso, ao longo dos últimos vinte anos,
aprofundado e fortalecido pela categoria, apesar das múltiplas adversidades da conjuntura econômica,
política e social, que permeia e abala a sociedade brasileira no final do século XX e início do novo
milênio.
O período de passagem da ditadura para a democracia no Brasil foi marcado por uma
fase de profundas mudanças para o Serviço Social, para os trabalhadores e para a sociedade,
configurada pelo ressurgimento de lutas que representaram, para o país, o fortalecimento dos
movimentos sociais organizados, entre eles os dos trabalhadores, fomentando vigorosos debates nas
mais diversas esferas e constituindo-se novos espaços de lutas, reivindicações e dilemas sociais e
políticos. Na verdade, esse foi um momento de interlocução e atendimento às exigências de melhores
condições de trabalho e de vida, numa nova correlação de forças, em que se criaram e ampliaram
conquistas sociais para o conjunto dos trabalhadores brasileiros. No cenário desses anos de 1980,
muitos atores sociais foram protagonistas de amplas transformações sociais e políticas, dentre os quais
se destacam os assistentes sociais que, no cotidiano de suas práticas, nos espaços de atuação
profissional e em suas entidades de classe, participaram, de diferentes modos, dos movimentos
internos e externos à profissão que fomentaram um intenso processo de mobilização da sociedade
civil.
Na realidade, nesse novo cenário, o envolvimento e a participação dos assistentes sociais
representaram, para a categoria, uma nova vivência e um outro pensar, agir e interagir, na perspectiva
das lutas e compromissos ético-políticos para com os segmentos sociais mais empobrecidos da
assumindo a posição de um trabalhador mais militante político do que profissional, assistente social, tudo isso,
perpassado por uma visão monolítica, tendo, assim, uma só perspectiva de conceber a sociedade, o mundo e a
profissão.
258
sociedade brasileira. É, aliás, no bojo desse quadro de mobilizações e transformações que, nessa
década, o Serviço Social adquire uma nova interlocução com a tradição marxista, que se caracterizou
pela superação daquela primeira e precária aproximação, apoiada num marxismo não consubstanciado
nas obras originais de Marx, mas em maus intérpretes, que vulgarizavam as idéias do pensador. A ida
a fontes fiéis a Marx, como Gramsci, Lukács e Lefèbvre, resgatou-lhe as idéias em termos de
totalidade e historicidade e aprofundaram o seu humanismo, o que contribui para um olhar dialético
sobre a realidade social, em suas múltiplas determinações e movimentos. Assinala Iamamoto (1998,
p.234-5) que essa nova interlocução, a partir dos meados da década de 1980, significou
um encontro com nova qualidade com a tradição marxista: mediado pela
produção de Marx e por pensadores que construíram suas elaborações fiéis ao espírito da análise marxiana, desenvolvendo criativamente suas
sugestões, preenchendo lacunas e enriquecendo aquela tradição com as
novas problemáticas emergentes com a maturação capitalista da época dos
monopólios.
Desse modo, o amadurecimento das discussões fomentadas pelo MRSS, nas décadas de
1960 e 1970, sem dúvida propiciou que a entrada do Serviço Social nos anos de 1980 se traduzisse em
expressivas conquistas, tanto para a categoria quanto para a sociedade. Sobre esse aspecto, diz Netto
(1996b, p.111) que
a década de oitenta consolidou, no plano ídeo-político, a ruptura com o
histórico conservadorismo do Serviço Social. Entendamos-nos: essa ruptura
não significa que o conservadorismo (e com ele, o reacionarismo) foi superado no interior da categoria profissional; significa, apenas, que – graças
a esforços que vinham, pelo menos, de finais dos anos setenta, e no
rebatimento do movimento da sociedade brasileira – posicionamentos ideológicos e políticos de natureza crítica e/ou contestadora em face da
ordem burguesa conquistaram legitimidade para se expressarem
abertamente. É correto afirmar-se que, ao final dos anos oitenta, a categoria
profissional refletia o largo espectro das tendências ídeo-políticas que tensionam e animam a vida social brasileira.
Agora mais que antes a profissão, sob essa nova tônica, compreende o homem como
ente histórico, portador de necessidades concretas e capaz de se expor e expressar-se, individual e
coletivamente, por meio da organização e participação político-social nos acontecimentos,
259
transformações e fatos inerentes à sociedade, como sujeito ativo do seu processo de constituição e
desenvolvimento. Tal evolução, segundo Netto (1996b, p. 112), “assinalou a maioridade do Serviço
Social no Brasil no domínio da elaboração teórica [tanto que] nesse decênio desenvolveu-se, no interior
da categoria, uma „divisão de trabalho‟ (uma especialização) que é própria das profissões
amadurecidas”. Assim, o Serviço Social passa a vincular-se à pesquisa, à produção de conhecimentos
e a debates, no contexto interno e externo de efervescência intelectual e profissional da categoria, em
busca de superar o tradicionalismo que o marcava. É que neste momento histórico a sociedade exige
do Serviço Social uma postura mais comprometida no sentido da “criação de um projeto profissional
abrangente e atento às características latino-americanas, em contraposição ao tradicionalismo,
envolvendo critérios teórico-metodológicos e prático-interventivos” (IAMAMOTO, 1998, p.209)
Na verdade, a aproximação com o legado de Marx fomentou um processo de caráter
criativo e crítico do Serviço Social, que reorientou o exercício profissional numa ótica dialética capaz de
compreender a sociedade e suas relações em várias nuances e dimensões (econômica, política, social,
cultural, objetiva, subjetiva, material , espiritual, ideológica, etc). Nessa perspectiva, o assistente social
analisa o Serviço Social por novas mediações e formulações, entendendo a prática profissional como
exercida num campo semeado de forças contraditórias, no qual pode a ela imprimir um outro conteúdo
ídeopolítico, comprometido com os interesses da classe trabalhadora e dos grupos mais empobrecidos,
colocando-se a serviço dos processos de lutas em prol de uma nova sociedade. Nessa direção,
Iamamoto (1998, p.203-4) diz que
a ruptura com o profissionalismo estreito, a implosão do „estritamente
profissional‟, a abertura para mais longe – para o amplo horizonte do
movimento da sociedade – é que torna possível iluminar as próprias particularidades do Serviço Social, apreendendo-o na trama de relações
que explicam sua gênese, seu desenvolvimento, seus limites e possibilidades;
trama essa que condiciona o âmbito de alternativas que se apresentam aos sujeitos profissionais em cada momento conjuntural.
260
À luz dessa compreensão, a profissão de Serviço Social, que já mudava desde antes,
fortalece esse processo, com competência para questionar e lutar para alterar as realidades onde se
insere, não se conformando com o estabelecido, mas acompanhando o movimento dinâmico,
contraditório e dialético da sociedade. Trata-se, então, de um Serviço Social que é sujeito constituinte e
constituído da sociedade e que postula a construção de um novo processo de reflexão, quer de sua
formação, quer de sua prática social, esta que “carregada de historicidade [...] sintetiza tanto a
superação do idealismo filosófico como dos determinismos naturais no trato com o social”
(IAMAMOTO, 1998, p.225).
Esse processo de amadurecimento da profissão de Serviço Social, ocorrido na década de
1980, desenvolveu-se numa conjuntura, já citada, de ampla efervescência política, em que se deu a
realização de eleições diretas para governadores, em 1982, a luta pelas eleições diretas para a
Presidência da República, em 1984, que desaguou na escolha, ainda que indireta, do primeiro
presidente civil após mais de vinte anos de repressão e a convocação da Assembléia Constituinte, em
1986, que culminou na promulgação da Carta Magna de1988. Esta resultou, assim, de uma
mobilização social sem paralelo na história do Brasil, tanto que, para Silva (1999, p.65), o Texto
Constitucional “consolidou conquistas, ampliou os direitos sociais, representando um avanço em
direção a uma ampla, moderna e democrática concepção de seguridade social [e] estabeleceu a
cobertura universal na saúde, direito de todos e dever do Estado”. Foi chamada, então, de Constituição
Cidadã, por alargar os direitos sociais dos trabalhadores brasileiros e caracterizar a Saúde, a
Previdência e a Assistência Social, partes integrantes da Seguridade Social, como direitos do cidadão e
dever do Estado. Aliás, ampliada foi a proteção à mulher, à criança, ao adolescente, ao índio, ao idoso,
ao portador de transtornos mentais, reconhecendo-os como sujeitos sociais detentores de direitos. A
Constituição Federal de 1988 reconhece, com efeito, a todos como cidadãos e, como tais, com direitos
aos serviços básicos para viver minimamente de modo decente, assegurado o princípio da eqüidade às
261
condições de saúde, alimentação, moradia, educação e cultura, independentemente de cor, raça,
credo, classe ou condição social (FALEIROS, 2000).
Como sujeito ativo da sociedade, na efervescência do processo de transição democrática,
os assistentes sociais participaram das lutas e movimentos do período, tanto nos seus espaços de
ocupação profissional nas instituições públicas e privadas, quanto nas esferas do legislativo e do
judiciário. Nos anos de 1990, o Serviço Social procurará consolidar os novos rumos e direções
imprimidos profissão a partir da década anterior, pelo que passa a ser uma das profissões basilares na
defesa da cidadania e dos direitos sociais da população, particularmente dos pobres e dos destituídos
da riqueza produzida no país.
Evidencia-se, assim, que o Serviço Social tem, nas últimas duas décadas, apresentado
momentos de amadurecimento e de avanços no tocante ao processo de formação e intervenção dos
profissionais, que participam de debates, realizam seminários e congressos, e se envolvem em outros
movimentos que fomentam novas discussões e outras formas de pensar e agir, uma vez que, num
sentido amplo, o Serviço Social é constituinte e constituído pelo conjunto dos vínculos, nexos e
processos contraditórios que se estabelecem no interior da sociedade capitalista e das relações
humanas e sociais. Nessa década de 1990, (re) definem-se novas ocupações e funções ao assistente
social, dentre as quais as de pesquisa, assessoria, consultoria, planejamento e gestão das políticas e
programas sociais nas mais diversas áreas, governamentais e não governamentais, como, por
exemplo, educação e saúde, em especial na saúde mental, tendo esta se constituído num campo
quantitativamente expressivo para a sua atuação, nos últimos tempos.
262
O Serviço Social é uma profissão reconhecida por toda a sociedade e seus
serviços são requeridos sempre que há necessidade de se mobilizar pessoas, grupos e segmentos sociais numa ação social, tanto para organização de
ações interativas, quanto para se procederem mudanças sociais e
comportamentais cotidianas [...]. O Serviço Social se estende às políticas
sociais nas áreas de saúde, assistência, previdência, educação, habitação em programas de atendimento a infância e adolescência, saúde mental,
atendimento hospitalar, reabilitação profissional, ações de saúde públicas,
relações de trabalho, etc (GENTILLI, 1998, p.43).
A Lei de Regulamentação da Profissão de Serviço Social (Lei nº 8.662, de 07 de junho de
1993) e o novo Código de Ética, de 1993, passam então a nortear e embasar as ações profissionais no
sentido de assegurar os direitos sociais e a cidadania dos trabalhadores, sobretudo os setores mais
pobres, público-alvo preferencial da atuação do assistente social. Segundo a Lei, compete também ao
assistente social prestar orientação social aos indivíduos, grupos e à população no atendimento e na
defesa de seus direitos; planejar e executar pesquisas visando contribuir para a análise da realidade
social; apoiar os movimentos sociais no exercício e na defesa de seus direitos civis, políticos e sociais,
etc. O Código de Ética, por sua vez, constitui democraticamente os princípios que guiam a profissão: o
reconhecimento da liberdade dos indivíduos como valor ético central; a defesa intransigente dos
direitos humanos e a recusa do autoritarismo e do arbítrio; a ampliação e a consolidação da cidadania,
como tarefa de toda a sociedade para garantir os direitos civis, políticos e sociais; a luta pela equidade
e a justiça social; a busca pela eliminação de todas as formas de preconceito e pelo asseguramento do
pluralismo na profissão e na sociedade.
É nessa perspectiva e sob esse arcabouço legal que os assistentes sociais protagonizam
suas ações nas duas últimas décadas, o que precisa ser fortalecido pela categoria dentro das
condições sóciohistóricas do cenário nacional e mundial. Sua construção e consolidação acontecem no
embate constate com outros projetos que expressam proposições e objetivos diferentes, tensionados
pelas reais condições sociais, marcadas por significativas transformações que impõem limites, desafios
e possibilidades à concretização do rumo abraçado pelos profissionais dessa área no Brasil. Atua,
263
assim, o assistente social, em sintonia com o ideário defendido e construído pela categoria, que
reconhece como valor central, a liberdade, “concebida, historicamente, como possibilidade de escolher
entre alternativas concretas, daí um compromisso com a autonomia, a emancipação e a plena
expansão dos indivíduos sociais” (NETTO, 1999, p. 104). Por outro ângulo, as diretrizes dos
assistentes sociais se vêem perpassadas por uma dimensão teórica, técnica, política e ética que,
segundo Netto (1999, p.105),
vincula-se a um projeto societário que propõe a construção de uma nova ordem social, sem dominação e/ou exploração de classe, etnia e gênero. A
partir destas escolhas que o fundam, tal projeto afirma a defesa intransigente
dos direitos humanos e a recusa do arbítrio e dos preconceitos, contemplando positivamente o pluralismo – tanto na sociedade como no
exercício profissional. A dimensão política do projeto é claramente
enunciada: ele se posiciona em favor da eqüidade e da justiça social, na perspectiva da universalização do acesso aos bens e serviços relativos aos
programas e políticas sociais; a ampliação e a consolidação da cidadania são
postas explicitamente como condição para a garantia dos direitos civis,
políticos e sociais das classes trabalhadoras.
Nos marcos dessas lutas, no final da década de 1980 surgem e se fortalecem, no Brasil,
as políticas de ajuste neoliberal, fortemente descomprometidas com os direitos sociais e a situação de
pobreza da população e que influencia no redirecionamento do papel do Estado na sociedade. Essas
políticas neoliberais, assumidas por diversos governos, em diferentes países e continentes, como
respostas às crises econômico-financeiras do capital, vêm resultando no enfraquecimento e redução
das conquistas sociais historicamente adquiridas pela classe trabalhadora, instaurando, por meio de
processos de reestruturação produtiva22, profundas mudanças no mundo do trabalho, precarizando as
relações e flexibilizando os direitos sociais.
22 Os processos de reestruturação “determinam novas formas de domínios do capital sobre o trabalho, realizando
uma verdadeira reforma intelectual e moral, visando à construção de outra cultura do trabalho e de uma nova
racionalidade política e ética compatível com a sociabilidade requerida pelo atual projeto do capital” (MOTA,
1998, p.29).
264
Por isso, os orçamentos públicos sofrem sucessivos cortes, diminuindo-se
expressivamente os investimentos estatais na área do social. Por essa lógica, o Estado deve ser
mínimo, devendo intervir somente nos setores não-lucrativos da sociedade, apenas regulando o capital,
de modo que se garanta a liberdade de mercado e se priorizem os que vivem da especulação, em
detrimento dos trabalhadores. Tudo isso, é claro, sob o monitoramento do Fundo Monetário
Internacional (FMI) e de outras organizações financeiras, que direcionam suas funções para a
segurança, a fiscalização e a arrecadação de tributos. Desse modo, a esfera social passa a ser
discutida sob a ótica da viabilidade financeira, subordinando-a aos objetivos macroeconômicos
traçados pelos mecanismos de estabilização, que pregam a integração de cada país à ordem
econômica mundial, “cujas prescrições são a redução do déficit público, via corte de gastos sociais, a
capitalização do setor privado prestador de serviços sociais rentáveis e a desregulamentação do
mercado de trabalho” (MOTA, 2000, p.177).
Assim, a receptividade do Estado ao projeto neoliberal contribuirá para o desmonte e o
enfraquecimento das garantias sociais consolidadas na Constituição de 1988, sendo uma das
principais conseqüências dessa proposta a privatização das políticas públicas, nas quais se incluem
saúde, educação, transporte, energia e previdência social, havendo com isso, ao longo dos anos, a
transferência das responsabilidades do Estado, em solucionar ou aliviar os problemas sociais, para a
sociedade civil, o mercado e as empresas. Ao Estado, quando muito, compete estimular medidas de
baixo impacto, ou seja, “ações pontuais e compensatórias daqueles efeitos mais perversos da crise”
(BEHRING, 2003, p.103). Tais ações só amenizam esses efeitos, sem imprimir alterações mais
profundas no sentido de sua problematização e enfretamento, na perspectiva da garantia e da
efetivação dos direitos sociais assegurados na Constituição, num deslocamento de responsabilidade
que acontece através de parceiras entre o Estado e a sociedade e as várias empresas governamentais
e não-governamentais, por meio de estímulos à isenção fiscal.
265
Com o Estado brasileiro assumindo tais posturas, é preciso fortalecer a sociedade civil e
suas lutas, ampliando suas formas de participação e organização, na direção da consolidação da
democracia e da seguridade social do país, pautadas na Constituição Federal. Aliás, todo essas
problematizações, movimentos, dilemas, conflitos e novas exigências pelo qual passa as sociedades
brasileira e mundial nas últimas duas décadas ocorrem em sintonia e articulação com as lutas mais
amplas de várias categorias profissionais, dentre eles os assistentes sociais, esta uma das que
assimila compromissos no enfrentamento dessa complexa e contraditória arena de transformação
social, que permeia as nações, em particular as periféricas ao circuito capitalista mundial, como o
Brasil, submetido a uma severa flexibilização e vulnerabilização das relações de trabalho e
enxugamento dos postos de emprego, o que penaliza expressivas parcelas de trabalhadores.
Na verdade, tudo isso afeta o Serviço Social, que nesse contexto de múltiplas
transformações societárias no mundo do trabalho e de cruzada expansionista do grande capital, tem
que responder a um conjunto de demandas dos mais diversos segmentos sociais, sendo-lhe exigido
um posicionamento crítico e propositivo fundamentado numa ética que seja capaz de “socializar
informações na ótica dos direitos dos usuários, instrumentalizando-os a se apropriarem do saber
institucional” (IAMAMOTO, 1999, p.125), articulando-se com os movimentos mais gerais da sociedade
visando ao seu fortalecimento em face aos dilemas imprimidos pelas profundas mudanças em marcha
no país e no mundo.
Ainda que os ventos do neoliberalismo soprem contra é, pois, sob esses posicionamentos
e preocupações que o Serviço Social, como uma profissão complexa e contraditória, inscrita na divisão
sóciotécnica do trabalho e tendo a prática profissional como uma unidade dialética e histórica, adentra
no novo milênio, desafiada a vencer as inúmeras barreiras impostas pelos projetos neoliberais e de
reestruturação do trabalho. É que, apesar do expressivo avanço na conquista dos direitos e da
cidadania, configurados na Constituição, serão montadas, pelo bloco dominante, barreiras e limites,
legais ou não, para a sua não efetivação, tendo a sociedade, principalmente as classes mais
266
empobrecidas, que experimentar, mais uma vez, a defasagem entre os direitos prescritos e os
efetivados, sem mencionar os efeitos perversos do privilegiamento do setor econômico, em detrimento
do social, que se traduz em pouco ou nenhuma inserção ou acesso aos benefícios como direito e
cidadania. Nesse embate, a profissão mobiliza-se para o fortalecimento do seu projeto ético-político,
reafirmando e assumindo novos compromissos, na direção de possibilitar o acesso aos direitos e a
cidadania daqueles sujeitos com quem estabelece vínculos ao longo dos anos. É para esse horizonte
que tem caminhado, nos novos tempos, significativa parcela dos profissionais de Serviço Social,
elegendo novos princípios, que ganham relevância no enfrentamento das seqüelas da questão social e
seus desdobramentos, no novo milênio.
3.2 O Serviço Social na Saúde Mental
Feitas as considerações acerca da contextualização (surgimento, constituição e
desdobramentos) do Serviço Social no Brasil, ressaltando seus principais dilemas e os rumos tomados
nas últimas décadas, como sujeito constituinte e constituído da sociedade brasileira, neste item se
analisará historicamente a prática do assistente social na área da saúde mental, apreendendo-a numa
perspectiva crítica e entendendo o Serviço Social como “uma profissão inserida na divisão sócio-
técnica do trabalho, cujo significado só se desvela numa análise que tenha por objeto a sociedade da
qual a profissão faz parte” (IAMAMOTO, 1992 apud RODRIGUES, 2002, p.100). Na verdade, o Serviço
Social, como prática social ativa na sociedade, não pode ser comparado ou nivelado a uma atividade
qualquer ou à caridade e à filantropia. É que o a profissão de Serviço Social, ela, em última instância,
só pode ser constituída historicamente em meio à sociedade, estabelecendo com esta múltiplas
relações, marcadas por movimentos de toda a ordem e adversidades. O assistente social, como
profissional responsável pelo enfrentamento da questão social e seus desdobramentos no cotidiano
dos mais diversos espaços ocupacionais, tem que encarar o constante desafio de atuar sobre as
267
múltiplas realidades sociais, defrontando-se com vários e complexos problemas que lhe demandam a
intervenção. Nessa direção, um dos espaços ocupacionais do assistente social tem sido a área da
saúde mental23, a qual vem, através dos tempos, na sociedade brasileira, suscitando, cada vez mais,
sua intervenção.
No que concerne à saúde mental, a intervenção profissional do assistente social se deu,
primeiramente, nos Estados Unidos, no ano de 1905, porém somente se consolidou como
especialidade, em 1918. Os primeiros assistentes sociais da área tiveram como referência exponencial
o trabalho pioneiro de Mary Richmond, divulgado no livro Diagnóstico Social, publicado em 1917.
Entretanto, o surgimento do Serviço Social psiquiátrico na Europa e nos Estados Unidos teve forte
influência, também, do Movimento de Higiene Mental (MHM), que emergiu na França, entre 1910 a
1920.
As origens do MHM estão ligadas à defesa da melhoria das condições de funcionamento
dos hospitais psiquiátricos, ampliando seu enfoque para a prevenção e a higienização mental da
sociedade da época. O processo de formação e constituição desse Movimento teve, como obra
impulsionadora, a publicação, em 1908, em Nova York, do livro autobiográfico do vendedor de seguros
e ex-paciente Clifford Beer, Uma mente que encontra a si mesma. A edição da referida obra contou
com o apoio e colaboração de médicos psiquiatras renomados do Hospital de Nova York, com seu
conteúdo conclamando a nação para empreender uma luta contra a doença mental, para o que foi
criado o MHM, com a implantação de diversas ligas, que se espalhavam pelo país, sob a coordenação
de um Comitê Nacional, que estabelecia diretrizes centrais.
A partir desse momento, o Movimento expandiu-se pelos continentes europeu e
americano, tendo como objetivo principal mobilizar a população para o combate à doença mental. As
23 Nesta investigação, para traçar um panorama acerca da atuação e das manifestações de Serviço Social na área
da Saúde Mental no Brasil, utilizou-se, em particular, como fonte e referência principal de análise, os estudos de
Vasconcelos (2000), um dos autores que se dedicaram, nas últimas décadas, a resgatar os processos de inserção, interlocução e influência do profissional de Serviço Social na área da saúde mental no Brasil. A obra “Saúde
Mental e Serviço Social: o desafio da subjetividade e da interdisciplinaridade” traz o resultado de várias
pesquisas realizadas pelo autor na década de 1990, na cidade do Rio de Janeiro, sendo até o presente momento,
um dos poucos que tematiza a atuação do assistente social nessa área no Brasil.
268
suas principais bases teóricas se valem dos estudos de Benedict Morel, que focalizou os fatores
hereditários nas doenças mentais, que ele acreditava degenerativas, tanto que no Tratado das
degenerescências, publicado em 1857, era sua preocupação central descobrir as causas e as origens
(etiologia) das doenças, sobretudo as ocultas, de modo que as degenerescências por ele analisadas se
constituíam no que convencionou chamar de “desvios doentios”, em comparação com o
comportamento tido como normal, perpetuado pela transmissão hereditária (CASTEL, 1978 apud
VASCONCELOS, 2000, p.130).
Antes dos estudos de Morel, no final do século XIX, a psiquiatria tinha o foco na
semiologia das doenças. Dito de outra forma, a psiquiatria se voltava para analisar os sintomas e sinais
visíveis das doenças mentais, que eram tratadas nos asilos, como forma de proteção da sociedade,
promovendo, assim, uma “profilaxia defensiva”, ou seja, retirava do convívio social as pessoas tidas
como “desviantes”, tratando-as em locais de clausura, por serem perigosas e uma ameaça à ordem
estabelecida. Entretanto, Morel introduz um outro tipo de profilaxia, a “profilaxia preservadora”,
deslocando o raio de ação do tratamento moral psiquiátrico para fora da esfera do asilo, objetivando
alterar as condições físicas, intelectuais e morais dos doentes mentais da época, medida terapêutica e
higiênico-profilática essa que objetivava, em síntese, “„combater as causas das doenças e prevenir
seus efeitos‟” (VASCONCELOS, 2000, p.130), visando, com isso, estabelecer uma forte ligação da
medicina com a sociedade, sendo esta a vítima e aquela, a salvadora. Nesse sentido, Castel (1978,
p.264), referido por Vasconcelos (2000, p. 131), tomou como base os estudos de Morel para afirmar
que a medicina
pode tornar-se para a sociedade um precioso meio de salvação [uma vez que]
somente ela pode, efetivamente, avaliar a natureza das causas que produzem as degenerescências na espécie humana [e] somente ela pode dar a indicação
positiva dos remédios a serem empregados.
Destarte, a partir das idéias de Morel, a psiquiatria extrapola os espaços dos hospícios
para agir em todas as esferas do ser humano, ampliando a competência da medicina na sociedade, o
269
que Cunha (1986, apud VASCONCELOS, 2000, p.133) chama de “„uma visão crescentemente
triunfante da competência médica [no sentido de que] se a loucura funciona como metáfora da
desordem social, a psiquiatria, seu oposto, é a possibilidade da ordem e da estabilidade‟”. Norteando-
se por essa concepção, o Movimento de Higiene Mental se expande e, embora surgido na França, é
nos Estados Unidos, no início do século XX, que se fortalece, sobretudo na década de 1920, vigendo,
entre os psiquiatras americanos, a idéia de que só a classificação das doenças não era suficiente para
tratá-las, levando isso à valorização das influências do meio-ambiente sobre o paciente e do conjunto
de sua personalidade, fundamentos da análise e compreensão da doença mental e bases do melhor
encaminhamento do processo de alta médica.
É no bojo do MHM que os assistentes sociais passam a ser requisitados para realizarem
estudos e coleta de dados econômicos, sociais, físicos, hereditários, mentais, familiares e emocionais,
visando compor a história dos pacientes, originado-se aí o Serviço Social psiquiátrico americano, por
volta de 1905. Na verdade, as discussões acerca do Movimento, amplamente difundido nos EUA e na
Europa, no início do século XX, influenciaram significativamente o processo de formação e inserção do
Serviço Social da época. As obras publicadas nesse período, como o Diagnóstico Social, de Mary
Richmond e, em especial, as posteriores, como Mental conflict and misconduct (1917) e What is social
casework (1922), receberam fortes aportes desse Movimento.
Tais influxos da psiquiatria no Serviço Social intensificaram-se, durante a Primeira Grande
Guerra, com a adesão dos Estados Unidos. É que, em decorrência do conflito, passou-se a valorizar o
tratamento das doenças mentais, como as neuroses, as psicoses e os traumas vividos pelos militares
nos campos de batalha, o que exigirá dos assistentes sociais o uso de uma abordagem psicologizante
no estudo e tratamento dos casos econômico-sociais que envolviam os soldados e suas famílias. Após
a Guerra, esses problemas, de ordem mais social e econômica, deixam de ser o foco da ação do
assistente social, que passa a ser a família e as crianças, utilizando-se então de uma abordagem de
“ajustamento”, já desenvolvida pelos Centros de Orientação Infantil (COI) e os Centros de Orientação
270
Juvenil (COJ), nos Estados Unidos, fortalecendo o trabalho conjugado do Serviço Social com a
Psiquiatria, junto ao MHM. Para Vasconcelos (2000), existia na comunidade dos psiquiatras
americanos da época a idéia de que a psiquiatria, com seus princípios higienistas, ajudaria o Serviço
Social a compreender os processos mentais dos indivíduos e, assim, promover um melhor ajustamento
das pessoas alvo da ação desse profissional. Isso representou, segundo o autor, para o assistente
social, uma mudança do status, no sentido de, ao receber ou não as orientações propostas, poderia
deixar de ser visto como um profissional subordinado à figura do psiquiatra, havendo, assim, uma
chance para o crescimento da categoria e do seu prestigio. profissional. Nessa perspectiva, o
assistente social adquiriria maior autonomia, inclinando-se a superar a subalternidade ao psiquiatra,
passando a ter, como profissional, no mundo acadêmico, uma metodologia própria e mais rigorosa.
Em termos de Brasil, desde os anos de 1930 os assistentes sociais vêm, consoante
Vasconcelos (2000), atuando no campo psiquiátrico e psicossocial, mas a historiografia do Serviço
Social brasileiro não tem registrado, até o momento, pelos menos de forma ampla, a sua inserção no
campo da saúde mental24, bem como as várias abordagens psicossociais que lhe dão sustentação.
Conforme já mencionado, em pesquisa recente, que trata da inserção histórica e da interlocução do
assistente social na área da saúde mental, realizada na área metropolitana do Rio de Janeiro na
década de 1990, Vasconcelos defende que o Serviço Social brasileiro foi, nos primórdios da profissão,
fortemente influenciado pela Doutrina Social da Igreja e pelo Movimento Higienista, influxo este
constatado pelo mapeamento feito por esse estudioso e que identificou, no primeiro Curso de Serviço
Social, nos anos de 1930, um número expressivo de disciplinas com conteúdos a eles ligados. Como o
Movimento, na época, iniciava-se no Brasil, havia, entre ele e a Doutrina Católica da Igreja, momentos
de tensão e complementaridade, ganhando adesão e simpatia de diversos figuras políticas do país,
como o presidente Getúlio Vargas.
24 Vale lembrar que, no Brasil apesar de historicamente o assistente social ter sido demandado para intervir na
área da saúde mental, não é reconhecido com um profissional do campo do “Psi”, sendo esta área vista como
apenas dos psiquiatras, psicólogos e psicanalistas.
271
Diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos, em que os profissionais eram
adeptos da prática do “casework” (Serviço Social de Caso) e do “aftercare” (cuidado pós-hospitalar) nas
instituições psiquiátricas, no Brasil o Serviço Social iniciou-se, na área da saúde mental, na cidade do
Rio de Janeiro, nos Centros de Orientação Juvenil (COJ) e Centros de Orientação Infantil (COI),
baseando-se nos modelos das “Child Guidance Clinics”25, idealizados pelos médicos higienistas norte-
americanos e brasileiros, estes influenciados por aqueles. Nessa época, as idéias higienistas já
estavam, no Brasil, amplamente divulgadas na comunidade médica, sendo criada, em 1923, a exemplo
do que ocorria na Europa e nos EUA, a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), pelo médico Gustavo
Riedel. Mas a primeira experiência brasileira, com base no modelo higienista, deu-se em 1932, na
cidade do Rio de Janeiro, chamava-se “Clínica de Eufrênia”, era ligada à LBHM e tinha o objetivo de
trabalhar em conjunto com os serviços de psiquiatria, do Hospital do Engenho de Dentro, a fim de
divulgar, entre os professores das escolas municipais, as técnicas de higiene mental, através de uma
“clínica de hábitos”, que garantisse a boa formação do psiquismo das pessoas na sociedade, sem
mencionar que, em termos de coletividade, realizavam-se propagandas dos princípios da higiene
mental por meios de conferências e publicações avulsas ou periódicas (VASCONCELOS, 2000, p.
163).
Na década de 1940, o modelo das “Child Guidance Clinics” esteve ligado aos projetos da
prefeitura do Rio Janeiro, que tinham como principal objetivo diagnosticar e tratar de “crianças-
problema” pela implantação, na família e nas escolas, da educação higiênica. Esses projetos foram
desenvolvidos, principalmente, pelos COI e os COJ, responsáveis diretos pela organização e difusão
do Serviço Social Clínico, cujas primeiras experiências se ancoram no Serviço Social de Caso. Nessa
perspectiva, a preocupação primordial da visão higienista era com o processo de adaptação e
normatização das pessoas, visando, com isso, prevenir possíveis patologias, devendo estas, quando
25 As “Child Guidance Clinics” são clínicas norte-americanas que tratavam de “crianças-problema” e da
implementação da educação higiênica nas escolas e na família, baseando-se nas idéias do MHM, num
modelo, que influenciou a atuação do Serviço Social brasileiro na saúde mental, servindo, inclusive, de
exemplo para a intervenção profissional do assistente social nessa área (VASCONCELOS, 2000, p.185).
272
manifestadas, serem logo diagnosticadas e tratadas. Os princípios da higiene mental, defendidos pelo
Movimento, relacionavam-se à promoção do desenvolvimento normal e saudável dos indivíduos, com o
fim de combater as causas das doenças, prevenindo-as tanto na infância quanto na vida adulta, para o
que se amparava no paradigma médico baseado no diagnóstico-tratamento-cura, cuja fundamentação
teórica provinha da psicologia do ego e das doutrinas funcionalistas. É nesse contexto que o Serviço
Social recebe influência do Movimento Higienista, tendo, inclusive, no quadro curricular das primeiras
Escolas de Serviço Social do país várias disciplinas voltadas para a compreensão dos processos
adaptativos e de ajustamento social dos indivíduos, além de noções de higiene e de psiquiatria. Dessa
forma, enfatiza Vasconcelos (2000, p.185) que
a constituição do Serviço Social no Brasil é marcada, tanto pela vertente doutrinaria católica, quanto pela influência do movimento de higiene
mental, por abordagens com forte ênfase nos aspectos individuais e
psicológicos de problemas com dimensões políticas, sociais e econômicas
mais amplas, constituindo uma clara estratégia de hiperpsicologização e individualização normatizadora e moralizadora da força de trabalho e da
população em geral, como estratégia de Estado, das elites empresariais, da
Igreja Católica e da corporação médica.
Segundo o autor, o Serviço Social, além da influência do MHM, recebeu outros aportes da
abordagem psiquiátrica, embora em menor ênfase e sem grande repercussão na cultura e formação
profissional dos assistentes sociais. Entretanto, estes influxos, das abordagens psiquiátrica se
constituíram em “modelos” de orientação da prática profissional do assistente social na área da saúde
mental, a partir dos anos de 1940, na cidade do Rio de Janeiro, não podendo, dessa forma, serem
olvidados no processo de compreensão da interlocução e inserção do Serviço Social nessa área, em
particular no Brasil.
O primeiro modelo de abordagem psiquiátrica que reverberou na prática profissional do
assistente social na área da saúde mental diz respeito às oficinas terapêutico-expressivas de Nise da
Silveira, baseadas no pensamento junguiano, iniciadas na década de 1940, na cidade do Rio de
273
Janeiro, onde a assistência psiquiátrica era fortemente caracterizada pelo tratamento fechado em
asilos. Este enfoque apoiava-se na realização de trabalhos terapêuticos, ocupacionais e
profissionalizantes, mas, sobretudo, em atividades artístico-expressivas, em locais abertos, que
objetivavam proporcionar aos pacientes o desenvolvimento pessoal, estimulando a projeção de suas
imagens interiores, numa estratégia de humanização. Na época, a técnica desenvolvida pela equipe de
Nise da Silveira, no Centro Psiquiátrico Nacional (atual Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de
Dentro), obteve reconhecimento e aceitação, no Brasil e no exterior, servindo de campo de estágio,
durante muitos anos, para os assistentes sociais, o que influenciou os profissionais que atuavam na
área da saúde mental.
O segundo modelo é resultante da “influência da prática de mediação, na „porta de
entrada e saída‟ das enfermarias dos asilos psiquiátricos” (VASCONCESLOS, 2000, p.186), que
marcaram as décadas de 40 e, principalmente, nos 50. Nessa época, os assistentes sociais, graduados
das primeiras turmas, eram convocados para os setores respectivos das instituições psiquiátricas
asilares e segregadoras, nas quais a direção e o funcionamento ficavam a cargo do médico e de outras
pessoas, estas sem qualificação técnica. Ademais, as equipes eram uniprofissionais26 e também
subordinas ao médico e diretores dos hospitais, de modo que o assistente social, não tinha notoriedade
e sua ação era, além de subalternizada à do médico, conduzida de modo burocratizado e superficial,
sem nenhuma reflexão sobre a prática profissional, eminentemente assistencialista. Esse modelo, na
verdade, consistia no seguinte: os assistentes sociais, em pequenas equipes, situavam-se
estrategicamente na “porta de entrada e saída” dos hospitais e asilos, atendendo, principalmente, as
demandas relacionadas aos dados sociais, como a identificação, endereço, situação econômica de
pacientes e familiares, contatos com as famílias nos encaminhamento e resoluções das altas,
aquisições de atestados sociais, sem mencionar o que Vasconcelos chama de demandas no “varejo”
26
Nesse sentido, as equipes eram compostas por um só tipo de profissional, no caso especifico, somente por
assistentes sociais.
274
dos próprios usuários no tocante à necessidades mais imediatas, como roupas, objetos de uso pessoal,
contato com familiares, etc.
Nessa fase, o número de profissionais de Serviço Social era reduzido, ficando, pois,
sobrecarregados de atividades, sem tempo para planejar e refletir sobre a melhoria da qualidade dos
serviços oferecidos em prol dos interesses e demandas dos usuários. Para Vasconcelos, esse modelo
manteve basicamente os mesmos aspectos do anterior, que já era criticado, não sendo, ainda hoje,
superado nem no Rio de Janeiro nem no Brasil, sobretudo nos hospitais de rede privada que mantêm
convênio com o SUS, embora se tenha modernizado para responder a novas demandas, postas para o
Serviço Social, nessa área.
Nos anos de 1960 e início da década de 1970, em pleno governo militar, o Serviço Social
com atuação na área da saúde mental toma como por parâmetros um novo modelo, marcado pelas
experiências das comunidades terapêuticas, constituídas na cidade de Porto Alegre e, posteriormente,
de forma gradual, no Rio de Janeiro. Nessa fase, “o projeto político do governo militar, instaurado com
o golpe de 1964, buscava a modernização, com vistas ao crescimento capitalista industrial e à
reorganização dos serviços de saúde mental em bases capitalistas” (VASCONCELOS, 2000, p.233).
Sob essa linha, o governo organizava serviços de assistência médica, inclusive psiquiátrica, para os
trabalhadores, visando recuperar a força de trabalho que se encontrava fora do processo produtivo ou
inativa, de sorte que, mesmo num clima de forte repressão e intensa hostilidade à participação política
e social, mas sob influência dos trabalhos realizados fora do Brasil, foi possível a criação das
comunidades terapêuticas no âmbito dos hospitais psiquiátricos, gerando isso expectativas otimistas, já
que tidas, para a psiquiatria brasileira, como bastante avançadas. As primeiras experiências de
comunidades terapêuticas aconteceram na Inglaterra e nos Estados Unidos, durante a Segunda
Guerra, e visavam assistir os soldados com traumas bélicos, iniciando-se no Brasil, em Porto Alegre,
nos anos de 1960, na Clínica Pinel, sendo depois implementada gradativamente em outros estados.
275
No Rio de Janeiro, para que o modelo se constituísse, foram realizadas várias
experiências, iniciando-se com os trabalhos de praxiterapia, coordenados por Luis Cerqueira, no
Instituto de Psiquiatria (IPUB). Depois, houve os experimentos de Osvaldo Santos e sua equipe, numa
clínica privada, nominada Bela Vista, consolidando-se como modelo, no período de 1967 a 1974, na
Unidade de Saúde Odilon Gallotti, pertencente ao Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro.
Por último, ocorreram as das enfermarias do Hospital Pinel, nos anos de 1969, realizadas pelos
psiquiatras Eustáchio Portela e Roberto Quilelli, com apoio do IPUB. Esse conjunto de experiências
favoreceu o processo de constituição e efetivação do modelo das comunidades terapêuticas na cidade
do Rio de Janeiro (TEIXEIRA, 1993 apud VASCONCELOS, 2000).
Nacionalmente, as comunidades terapêuticas vigoraram no Brasil da década de 1960 ao
início da década de 1970. Tidas como um avanço, serviram como suporte e referência para os
profissionais do setor da saúde mental comprometidos em democratizar e humanizar o relacionamento
entre eles e os usuários. Dentre esses profissionais estavam alguns assistentes sociais, que se
destacaram nesse processo, como Lêda de Oliveira, integrante da equipe de Osvaldo Santos, ela que
ocupou, em 1970, o cargo de coordenadora do Serviço Social da Divisão Nacional de Saúde Mental
(DINSAM), do Ministério da Saúde, contribuindo para a divulgação do modelo entre assistentes sociais
e estagiários, por meio de treinamentos. Nas comunidades, os assistentes sociais utilizavam-se, em
geral, de técnicas coletivas (grupos terapêuticos, grupos operativos, assembléias, etc), com a
participação dos familiares, visando estabelecer um processo de democratização e humanização das
relações entre os profissionais e os usuários dos serviços de saúde mental.
Em relação ao modelo anterior, as experiências das comunidades terapêuticas trouxeram
algumas inovações, sobretudo no que concerne a um maior fortalecimento do compromisso político
com os trabalhadores da saúde mental, visando mudanças nas instituições e nas práticas profissionais.
Ademais, promoveram o questionamento da divisão de trabalho, com alteração das relações de poder
entre os profissionais pela “eliminação”, por exemplo, da superioridade do médico, dando às práticas
276
na área da saúde mental um caráter de interdisciplinaridade, numa ação interventiva mais complexa
junto à família, indo além da preparação da alta para atuar, por mais tempo, no processo de reinserção
do usuário no grupo familiar e na comunidade, atendendo-lhe, ainda, em outras demandas, por meio de
atividades grupais regulares, que acolhiam a problemática dos participantes. Vale lembrar que essas
inovações aconteceram sob a influência da assistente social Lêda de Oliveira que, nessa época,
ocupava um cargo na coordenação da DINSAM, acirrando o debate entre os profissionais de Serviço
Social sobre o modelo anterior de intervenção.
O quarto modelo, que influenciou a ação profissional dos assistentes sociais na área da
saúde mental no Brasil, foi, segundo Vasconcelos (2000), o proveniente das idéias sanitaristas e da
psiquiatria social, produzidas nas décadas de 1970 e 1980. O início da constituição desse modelo se
deu na década de 1970, sob influência da psiquiatria preventiva norte-americana e da intensificação da
interferência de órgãos internacionais, como Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização
Pan-Americana de Saúde (OPAS), nas questões relativas a este setor, que repercutiram fortemente no
campo da saúde pública do país. Naquele momento, o clima político no Brasil era de forte repressão
aos movimentos e organizações da sociedade civil, mas mesmo assim foram possíveis algumas
tentativas dos trabalhadores da área da saúde mental de reorganização do setor psiquiátrico no país,
através da aprovação da portaria do Instituto Nacional de Assistência Médica de Previdência Social
(INAMPS), em 1973, que fazia várias exigências, dentre elas a ampliação do número de profissionais
nos hospitais psiquiátricos, inclusive assistentes sociais. Outro ponto a destacar diz respeito ao
ressurgimento dos movimentos sociais no Brasil, a partir do final da década de 1970, que lutam e se
mobilizam pelo restabelecimento das relações democráticas na sociedade brasileira, contribuindo para
aguçar e fomentar os questionamentos acerca da organização dos serviços públicos de saúde, o que
culminou no MRS, o qual, no quadro nacional de saúde mental, teve um tal desdobramento que ficou
conhecido como Movimento da Reforma Psiquiátrica (MRP) brasileira27.
27
Para mais detalhes sobre a temática da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica, além do que já foi
expresso nos capítulos anteriores, consultar Teixeira (1989) e Amarante (1995), respectivamente.
277
A década de 1980, como já visto em capítulo precedente, propiciou debates e lutas em
torno dos problemas da saúde em geral e da saúde mental em particular, nos quais se situam o MRP.
Este, numa fase inicial, assume a publicização, na mídia nacional, de denúncias das precárias
condições de tratamento, nos hospitais psiquiátricos, dos usuários do serviço de saúde conveniado
com o INAMPS. Nessa época, discutiam-se, também, outras correntes teóricas internacionais que
criticavam a psiquiatria, como a antipsiquiatria, o movimento institucionalista, a teoria de Foucault, o
preventismo norte-americano, etc. Num segundo momento, em meados de 1982, a conjuntura política
e social de intensa mobilização das forças populares, que exigiam posturas mais comprometidas e
éticas dos governantes, favoreceu que lideranças do MRP, em particular no Sudeste do país,
assumissem a gestão das instituições e órgãos do governo, responsável pela assistência psiquiátrica.
Simultaneamente, por conta dessa nova realidade, os trabalhadores da saúde mental requeriam
mudanças na área, sobretudo no que respeita à assistência psiquiátrica levada a cabo pelo governo
federal, almejando a adoção de três diretrizes principais: a) controle mais intenso do sistema de saúde,
focalizando a forma como se efetuam os processos de internamentos psiquiátricos, vistos como fonte
fácil de lucros para os hospitais credenciados; b) críticas às internações e defesa da eliminação das
formas precárias de tratamento psiquiátrico; c) criação das equipes multiprofissionais de saúde mental,
composta por psiquiatra, psicólogo e assistente social, a chamada equipe mínima, com atuação nos
ambulatórios e postos de saúde e junto ao processo de regionalização das ações de atenção básicas e
preventivas em saúde mental. Ou seja, a saúde mental devia incluir-se nas Ações Integrais de Saúde
(AIS) que, tempos depois, constituiriam o Sistema Único de Saúde (SUS), com vistas a operar
mudanças na forma do tratamento asilar.
O modelo proveniente das propostas sanitaristas foi fundamentalmente importante para o
Serviço Social, em especial em dois pontos. De um lado, ocorreu o desenvolvimento das práticas
ambulatoriais, que tinham como tônica principal o atendimento grupal dos usuários e suas famílias,
numa perspectiva de reabilitação social, através de oficinas expressivas e atividades laborativas. Por
278
outro, houve a consolidação, no país, do Serviço Social Psiquiátrico, combinando a tradição do Serviço
Social Clínico, ou seja, do modelo “porta de entrada e saída” (VASCONCELOS, 2000) com a psiquiatria
social do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, somadas, ainda, às
experiências das comunidades terapêuticas. Tal modelo, na década seguinte, agregou outras
influências, trazidas da antipsiquiatria e das terapias de família, inspiradas na teoria sistêmica, aquelas
criticando severamente o saber da psiquiatria tradicional pela admissão da cura dos transtornos
mentais e a negação do hospital psiquiátrico como espaço terapêutico. Para a antipsiquiatria, a
explicação para os transtornos mentais se encontrava na própria família, deles a causadora e por isso
culpada, por refletir as características de uma sociedade autoritária, que priva a liberdade de expressão
das pessoas.
Já as terapias de famílias, baseadas na teoria sistêmica, surgiram nos EUA, nos anos de
1950, com a intenção de conhecer a fundo as comunicações entre pacientes e seus familiares,
trabalhando-as numa perspectiva investigativa desse grau de comunicação. Essa era uma atividade
voltada em especial para famílias de esquizofrênicos e influenciaram vários profissionais da área,
inclusive os assistentes sociais, no Brasil.
Outro ponto ressaltado e discutido por Vasconcelos (2000) vincula-se às influências do
MRSS, na área da saúde mental, porquanto esse Movimento ocasionou, no seio da categoria, um
recalcamento das temáticas relacionadas, por exemplo, às questões da subjetividade, do indivíduo, do
inconsciente do cotidiano, da afetividade, etc.
As primeiras aproximações do Serviço Social com o marxismo se basearam em manuais
de intérpretes do pensamento de Marx, evidenciando uma leitura economicista e cientificista das obras
do autor, canalizado por uma estreita análise humanista sobre o indivíduo. Com essas influências, a
atuação profissional transforma-se num mero procedimento de intervenção política, muitas das vezes
pelo viés do militantismo partidário, sem conexão mais profunda e ampla com o movimento histórico da
sociedade brasileira. Como diz Vasconcelos (2000, p.199), “o Movimento de Reconceituação adotou
279
várias versões do marxismo como matriz teórica, incluindo, inicialmente, a influência de fontes
marxistas simplificadoras”, apesar do inegável aporte de outras. Afirma que MRSS, ao contatar
enviesadamente o pensamento marxista, trouxe vários equívocos e gerou na profissão um
empobrecimento ou, nas palavras do próprio autor, um “recalcamento da subjetividade”.
Apesar de constituir um debate muito complexo e que exige necessariamente
um aprofundamento [...], é possível afirmar de modo provisório que o processo de reconceituação reproduziu dentro da profissão um
recalcamento da temática da subjetividade, sobretudo de seus aspectos
relacionados ao inconsciente, à personalidade e ao campo das emoções
(VASCONCELOS, 2000, p.198).
Para explicar o processo de recalcamento da subjetividade, o autor demonstra que o
mesmo se deu com o marxismo soviético e pós-revolucionário, mais precisamente no período marcado
pela ditadura stalinista, que reprimiu os temas ligados ao inconsciente, à sexualidade e à emoção. É
que o marxismo soviético, na pós-revolução russa, antes de Stalin, ampliou as discussões em torno
das “teorias do inconsciente e de suas implicações no processo de crítica e mudança da cultura”
(VASCONCELOS, 2000, p.200), mas, com o stalinismo, a abordagem de dimensão essencialmente
ligada ao campo psíquico e do inconsciente foram reprimidas, de modo que essas abordagens foram
vistas como burguesas e individualistas, sendo banidas do país, pelo que, a partir de então, houve “um
processo de repressão (recalcamento) dos termos do inconsciente, da sexualidade, da emoção e dos
processos de subjetivação”. Ressalta ainda Vasconcelos (2000, p.200) que “esse recalcamento da
subjetividade não ficou restrito apenas ao marxismo soviético, mas estendeu-se também ao marxismo
ocidental”. No que diz respeito ao Brasil, em termos gerais, houve uma penetração heterogênea desse
debate em áreas como a Psicologia, a Psiquiatria. No Serviço Social,
o movimento de reconceituação, ao criticar com razão a abordagem da
subjetividade temática hegemônica no Serviço Social pré-reconceituado, praticamente a identificou com única opção disponível de abordagem da
temática, acabando por reproduzir um processo de recalcamento dos temas
da subjetividade, do inconsciente, da emoção e dos processos de subjetivação em geral muito semelhante àquele realizado pelo marxismo
280
soviético, praticamente desconhecendo ou secundarizando todo o debate e a
produção teórica feita por esses movimentos históricos de aproximação da
esquerda com o tema da subjetividade desde a década de 20, produzindo um enorme empobrecimento teórico para a profissão (VASCONCELOS, 2000,
p.201).
Isso levou a um empobrecimento teórico da profissão, no que respeita não só à ausência
de aprofundamento da temática da subjetividade, mas também no sentido dos processos de
intervenção do assistente social na área da saúde mental. Uma dessas conseqüências, ressalta
Vasconcelos (2000, p.208), é a notória ausência de mediações teóricas e de instrumental metodológico
adequado para o desenvolvimento da prática profissional na área da saúde mental, criando-se “um
fosso que impede a interação com a cultura profissional mais contemporânea, incentivando uma
autonomização da formação, no campo da saúde mental, que tende então a ser polarizado apenas
pelo instrumental teórico e metodológico do próprio campo psi”. Neste aspecto há o risco de os
profissionais incorporarem, de forma acrítica, “a cultura profissional dessas áreas, tanto do ponto de
vista teórico, quanto do tipo de prática, reduzindo sobremaneira as formas e o campo de sua atuação
profissional e o contato com os compromissos ético-politicos conquistados pela profissão no processo
de reconceituação” (VASCONCELOS, 2000, p.210).
Somente a partir dos meados da década de 1980 ocorre, no âmbito do Serviço Social
brasileiro, um segundo momento de interlocução com o pensamento marxista, agora por meios de
fontes que promovem uma “reflexão crítica sobre a história da profissão no país” (VASCONCELOS,
2000, p.198). Vigem, então, novas reflexões e análises acerca da profissão no Brasil e na América
Latina, entendendo-se-a agora como sujeito ativo, constituída e constituinte do processo histórico de
construção, acomodação e transformação social, pelo que os assistentes sociais firmam compromisso
com uma postura ético-política voltada para os direitos sociais e a cidadania dos atores com os quais
mantém, historicamente, vínculos profissionais, a qual desaguará no Código de Ética de 1993, cujas
preocupações centrais referem-se à defesa dos princípios da cidadania e da democracia para todos,
em especial para os trabalhadores e os pobres do país. Como ressaltado antes, o Serviço Social
281
buscará os fundamentos da dialética crítica, que vê a realidade como uma totalidade histórica e social,
constituída e instituída de movimentos, processos e relações de natureza de múltiplas dimensões
(objetiva, subjetiva, material, espiritual, econômica, política, cultural e social), que se cruzam, se
interpenetram, se conflituam e se opõem, numa incessante transformação e acomodação.
Nesse sentido, os equívocos da Reconceituação têm sido superados, ao longo dos
últimos anos, com o amadurecimento da interlocução do marxismo com o Serviço Social contribuindo
para isso na busca não só de uma compreensão mais ampla do conjunto das obras de Marx, mas em
especial no que diz respeito ao aspecto humanista e de atualização marxista aos novos tempos. Dessa
forma, a partir do final da década de 1980, a par da interlocução com o marxismo, outras influências
teóricas começam a emergir com mais evidência no debate interno e externo à profissão, avultando
temáticas relacionada a gênero, cotidiano, subjetividade, simbólico, indivíduo, representação,
sexualidade, afetividade, etc. É então que a subjetividade ganha destaque nas discussões no meio
acadêmico.
Cabe ainda ressaltar que, desde os anos de 1980, em particular na década de 1990, o
Serviço Social voltado para a saúde mental adotou uma postura mais comprometida, teórica e
politicamente, com o processo de desinstitucionalização, consolidando, a partir de então, os
compromisso em direção aos ideais da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica, reforçando as
idéias ligadas à cidadania dos grupos e segmentos sociais mais empobrecidos e dos trabalhadores, do
PTM em especial e da realidade em seus múltiplos significados, movimentos, tensões e constituições.
Isso levou os profissionais de Serviço Social a buscar outros referenciais, apoiados numa perspectiva
interdisciplinar, que imprimiram à prática cotidiana elementos que valorizam esses aspectos das
relações sociais, num prisma de abrangência do homem como ser social e histórico.
Ademais, a interlocução do Serviço Social com a saúde mental não vem sendo
pesquisada há muito tempo, sendo ainda uma abordagem pouco conhecida e raramente explorada,
282
pelo que demanda outros estudos e debates para sua maior socialização no seio da categoria dos
assistentes sociais, tanto no Piauí como no Brasil28.
3.3 A prática do assistente social no Sanatório Meduna
Não é por acaso que se faz a escolha por esta profissão:
ninguém a procura para ter mais dinheiro, para ter mais
status, para ter mais prestígio (IAMAMOTO,1998, p.65,
grifo nosso).
Tendo em vista essa assertiva de Iamamoto, que enfatiza o desafio de ser assistente
social, tratar-se-á neste item, dos processos de inserção desse profissional na área da saúde mental no
Piauí, mais especificamente na realidade social da instituição psiquiátrica denominada Sanatório
Meduna, na cidade de Teresina. Tal objetivo é, de fato, uma grande empreitada, que instiga e
impulsiona esta pesquisadora, até porque, no momento não existem dados sistematizados acerca da
estruturação do Serviço Social no referido hospital. Dessa forma, é desafiador tentar construir e
reconstruir, ao longo dos últimos vinte anos, a história da inserção da profissão no Sanatório Meduna,
tendo como fonte principal, na falta de documentos mais profundos e sistematizados, as falas, os
discursos, as ações e os livros de relatórios diários dos profissionais de Serviço Social, além das
observações de campo vivenciadas, experimentadas e percebidas cotidianamente pela pesquisadora e
assistente social, constituinte desse processo de intervenção social junto aos PTM, seus familiares e
demais profissionais inseridos no contexto dessa específica realidade institucional.
Em primeiro lugar, é necessário relembrar que o Serviço Social só se constitui como
profissão, histórica e socialmente determinada, ao inserir-se numa dada realidade, numa conjuntura
mais ampla e em situações variadas, num intenso e contínuo processo de interlocução com os sujeitos
sociais e políticos com e contra os quais enfrenta a questão social e os problemas e demandas da
28
Para um maior aprofundamento do debate acerca do recalcamento da subjetividade, consultar Vasconcelos
(2000).
283
prática profissional. Assim, a profissão, como uma das especializações da divisão sóciotécnica do
trabalho, se concretiza no âmago do processo histórico das relações sociais vigentes na sociedade,
marcadas no seu cotidiano e na sua dinamicidade por embates e contradições, mediadas e articuladas
por diversos vínculos, interesses e necessidades sociais dos indivíduos e dos segmentos sociais, que
se expressam e se manifestam das mais variadas maneiras. Nesses termos, a profissão de Serviço
Social é concebida como uma das formas institucionalizadas de agir no cotidiano da vida social,
engendrando a sua prática, no âmbito de instituições públicas ou privadas, uma dimensão interventiva.
Daí que, para atender às exigências da profissão no cotidiano da sociedade brasileira, o
Serviço Social não atua a partir de uma única perspectiva ou um único modo de investigar e refletir o
contexto social, nem sua prática profissional pode ser vista como mero reflexo das relações sociais
capitalistas. Seu sentido, como profissão, é mais amplo e profundo, porquanto não se constitui
isoladamente, mas se concretiza no cerne mesmo da complexidade das forças e relações sociais, nas
suas nuances e processos em permanente contradição e movimento. Destarte, a prática do assistente
social, como ação humana, efetiva e global, deve ser compreendida como determinada pelas
condições históricas e conjunturais da sociedade, ou seja, pela realidade objetiva do espaço sócio-
ocupacional onde se encontra inserido, pelas demandas que chegam e pela forma com que são
respondidas, sem mencionar os modos como o Estado e a sociedade se portam diante dos problemas
e da questão social.
A prática profissional é, assim, resultante da ação de seus agentes sociais e não está
determinada, aprioristicamente, na sociedade. Na verdade, os rumos que o profissional imprimirá à sua
ação e à sua postura serão determinados, em última instância, por um conjunto de fatores objetivos e
subjetivos presentes no cotidiano da realidade social, de modo que, por não ser um modelo, influencia
e é influenciada, sofrendo os múltiplos reflexos das dificuldades, entraves, lutas, recuos, dilemas,
vínculos, limites, possibilidades e contradições das relações estabelecidas com os indivíduos, os
grupos, as classes, a sociedade. E como todas essas relações são sociais, não são estáticas nem
284
homogêneas, caracterizando-se pela dinamicidade, contraditoriedade e movimento que as fazem
caminhar em várias direções e sentidos, manifestando-se e articulando-se, no cotidiano, de variadas
formas.
A prática profissional insere-se, enfim, na contraditória sociedade brasileira, reproduzindo-
a ou lutando por sua modificação, atendendo simultaneamente aos interesses dos setores dominantes
e dos populares. Isso exige que a profissão se ampare em fundamentos teóricos, práticos e políticos
capazes de potencializar respostas concretas às exigências postas pela realidade social e que se
renovam e se diversificam num processo permanente de movimento e dinamicidade. Nessa lógica, o
assistente social é, por excelência, um profissional que atua através de uma rede de mediações que
estruturam o tecido social, as quais, segundo Pontes (1997, p.175), “permitem passagens entre as
instâncias constituintes da totalidade e que, portanto, devem ser reconstruídas pela razão”. Desse
modo, não se pode afirmar que o Serviço Social assume uma postura defensiva somente dos
interesses dos setores dominantes da sociedade ou apenas dos mais empobrecidos, uma vez que a
prática profissional não se exaure na imediaticidade social, porquanto é uma unidade complexa e
dialética, permeada por múltiplos processos e forças que, na singularidade histórica da sociedade
brasileira, se posicionam em diversas direções.
Assim, nos processos de inserção profissional do assistente social e no conjunto das
elaborações de respostas às exigências e necessidades da sociedade e dos grupos sociais, é possível
acontecer a reprodução e até o fortalecimento das condições dadas, em favor da ampliação das forças
dominantes do país, mas o profissional pode também intervir na direção das lutas e dos movimentos
sociais que se canalizam para o vigor e o amadurecimento dos interesses e dos direitos dos segmentos
mais empobrecidos, numa perspectiva de modificação das relações sociais estabelecidas,
vislumbrando e almejando uma sociedade mais justa. Aliás, é fato que, ao longo da história brasileira, a
prática do assistente social tem em geral assumido, consciente ou inconscientemente, o sentido da
garantia, direta ou indireta, dos anseios, exigências e necessidades dos grupos dominantes na
285
sociedade, embora no Brasil e no continente latino-americano, dentro da categoria, essa seja uma
realidade sem homogeneidade e unanimidade, considerando que dos anos de 1970 para cá a profissão
tem defendido e encampado movimentos e lutas voltados para a promoção de mudanças nos rumos
dos interesses, direitos e cidadania dos segmentos e grupos sociais mais vulnerabilizados, conquanto
sujeitos ativos e protagonistas da história. Essa posição, ao longo dessas décadas e no novo milênio,
ganha corpo, fortalecida e amadurecida no país como uma postura intransigente da categoria dos
assistentes sociais na defesa dos direitos humanos e do cidadão e não só como fundamento da
profissão e de sua prática, nos diversos espaços onde atua, o que está, inclusive, expressa no Código
de Ética Profissional e na Lei 8662/1993, que regulamenta a profissão no Brasil, fomentando um
debate teórico e crítico acerca de si e de seus rumos num contexto social mais amplo, tendo como
respaldo maior a Constituição Federal de 1988.
Assim, a ação do Serviço Social, se considerada, como deve ser, numa perspectiva
dinâmica e histórica, se altera conforme as modificações ocorridas nos movimentos e forças sociais e
nas múltiplas situações, como nos locais de trabalho, no próprio Serviço Social e nas estruturas e
conjunturas políticas, econômicas e sociais do país, já que estas, em última instância, determinam o
modo de inserção profissional nos diversos espaços ocupacionais. Por isso que o assistente social, ao
atender às necessidades concretas da classe trabalhadora e dos segmentos mais empobrecidos da
sociedade,
pode contribuir para o aprimoramento, o aprofundamento e a ampliação das novas práticas sociais que levem as mudanças de rumos e de significados
para a sociedade brasileira. Nesse mesmo sentido, pode contribuir para o
desenvolvimento das potencialidades e capacidades organizativas e políticas dos novos sujeitos sociais. Com isso, muitas possibilidades concretas de
atuação profissional em novos horizontes de prática sociais abrem-se para o
profissional hoje e no amanhã (GUIMARÃES, 1998, p.74).
É que, conforme Pontes (1997, p.155), “historicamente, o Serviço Social constituiu-se
numa profissão de natureza interventiva, cuja ação se coloca em face das demandas sociais que
286
substanciam a sua intervenção sócio-histórica na sociedade”, atendendo ainda as demandas internas e
externas às instituições nas quais atua. Dessa forma, o assistente social é considerado, através dos
tempos, como o técnico habilitado, capacitado e responsável pelo enfrentamento das mazelas sociais
advindas do processo de produção capitalista que, nas últimas décadas, assume um caráter cada vez
mais excludente, segregador e perverso em todas as nações e continentes. Ademais, na sociedade
brasileira, historicamente o assistente social é chamado a intervir em vários campos, marcados pela
contraditoriedade e diversidade, em que se manifesta, concreta e intensamente, a questão social nas
suas mais variadas expressões e desdobramentos, seja nas áreas da educação, da criança e
adolescente, da habitação, da previdência, da assistência e da saúde e, em especifico, da saúde
mental, dentre inúmeros outros.
Por esses caminhos da realidade social, marcada por constantes processos de
transformação e acomodação, o cotidiano da prática do assistente social é determinado por múltiplas
forças, que se relacionam e envolvem diferentes interesses, motivações, intencionalidades e desejos.
Trata-se, na verdade, de uma realidade dinâmica, dialética e contraditória sempre em movimento, num
fluxo contínuo de relações sociais, sendo que, para Carvalho (1997, p.58), “o movimento presente à
prática social é expressão do „vir a ser‟ constante desta prática e dos sujeitos que interagem [de sorte ]
que o „dever ser‟ da prática social está em disputa [e] não há um único „dever ser‟”, já que não é um ato
singular e isolado. Dessa forma, a prática do assistente social imprime um sentido amplo na sociedade
em que interage e atua, pois “ela é expressão do sujeito coletivo, transindividual” (CARVALHO, 1997,
p.59). Desse modo, em reforço ao já dito, essa prática é social, ou seja, é ação de uma coletividade e
tem como base uma visão de mundo dinâmica e contraditória, em permanente processo de mudança.
Aliás, Carvalho (1997, p.60) enfatiza que
a prática social exercida pelos profissionais de Serviço Social se articula às
demais práticas, mas, sobretudo, ela deve articular e buscar seu horizonte e
sua direção nas práticas movidas pelos grupos sociais oprimidos, pois são
estes os portadores possíveis do máximo de consciência sobre as direções
alternativas do caminhar histórico revolucionário.
287
É, assim, no bojo dessas considerações gerais e tomando por base as idéias principais
suscitadas nos capítulos anteriores que se objetiva analisar a prática do assistente social na saúde
mental, mais especificamente no Piauí e, em Teresina, no Sanatório Meduna. Pretende-se proceder a
essa análise levando em conta o refletir e o agir profissional, sob uma perspectiva da efetivação dos
direitos sociais e da cidadania dos usuários, tidos como sujeitos sociais históricos. Desse modo, e
tendo em vista o significado mais amplo e profundo que norteia e embasa o pensamento da
pesquisadora acerca da atuação do profissional na sociedade, empreender-se-ão esforços para uma
análise crítica do processo da inserção do assistente social no âmbito da assistência psiquiátrica no
Estado do Piauí, no caso particular do Sanatório Meduna, em Teresina.
Conforme assinalado no capítulo anterior, para Veras e Moreira (1997) a atuação das
primeiras profissionais de Serviço Social, no âmbito da assistência psiquiátrica, no Estado do Piauí,
deu-se ainda na década de 1960, no setor público, mais precisamente no Hospital Areolino de Abreu.
As primeiras assistentes sociais contratadas, em 1962, tinham por objetivo prestar atendimento aos
PTM, na montagem de seu histórico social, durante a permanência para tratamento no hospital, para o
que realizavam entrevistas e visitas domiciliares.
Já a assistência psiquiátrica privada, que se inicia também na década de 1960, é esse
ano o marco histórico da contratação das primeiras assistentes sociais do Sanatório Meduna, embora
somente na década de 1980 comece a, de fato, se efetivar. Nessa instituição, antes da implantação do
Serviço Social e do Serviço de Enfermagem, as atividades relacionadas a estes profissionais eram
realizadas pelas freiras religiosas da Congregação Filhas do Coração Imaculado de Maria, que
atuavam diretamente com os PTM, respondendo por todos os cuidados com relação à higiene,
alimentação, medicação, alta médica, etc. Eram, ao todo, seis irmãs, que residiam no Sanatório e se
responsabilizavam pelo trabalho, sendo que cada uma coordenava um setor ou pavilhão, o que fizeram
dos anos de 1950 ao início da década de 1990, já que, com o passar do tempo e a idade avançada, se
288
aposentavam ou, às vezes, eram transferidas para outras localidades, sempre substituídas por outras.
As primeiras irmãs que vieram residir no Sanatório Meduna chegaram em 14 de maio de 1954, um mês
após a inauguração do hospital: Bernarda (madre superiora), Lina (responsável pelo setor feminino),
Maria de Jesus e Filomena (responsáveis pelo setor masculino), Amor Divino (auxiliar de secretaria) e
Maria Loreto (secretária)29.
Em entrevista concedida para esta pesquisa pelo ex-diretor, Wilson Freitas Santos, a
primeira pessoa a ser “considerada assistente social do Meduna” foi a atendente de enfermagem Maria
Francisca Monteiro de Sousa, a mais antiga funcionária do hospital, aposentada no início da década de
1970. Ela atuava, junto com as irmãs, nos cuidados com os usuários, realizando atividades
terapêuticas, como dramatizações, festas, recreação e pinturas, sendo que, por ocasião das visitas,
fazia contatos com as famílias dos PTM e encaminhava altas ou a solução de outro tipo de problema.
No seu depoimento, relata Maria Francisca que passou nove anos na função de atendente de
enfermagem, quando, em março de 1963, recebeu o convite para exercer as atividades no Setor de
Serviço Social, para o que fez um minicurso teórico, orientado pela assistente social paulista Fernanda
Pinto Ferraz e em seguida um estágio de 30 dias no Hospital Getúlio Vargas, supervisionado pela
assistente social Bernadete. Terminado o minicurso, começou a trabalhar no Setor, sob orientação da
direção, com dois auxiliares. Ressalta ainda, que a implantação do Serviço Social no Sanatório, em
1963, decorreu de exigências do Ministério da Saúde, embora não existisse na cidade nenhum
profissional graduado disponível, pois os poucos já estavam integrados a outras instituições e não se
dispunham a trabalhar no Meduna porque, entre outros fatores, havia o medo de lidar com o PTM.
De fato, no início da década de 1960 não havia profissionais graduados na área de
Serviço Social no Estado do Piauí, conquanto os assistentes sociais, em número bastante reduzido, se
29 Estas informações foram colhidas em depoimento oral concedido pela primeira funcionária do Sanatório
Meduna, Maria Francisca Monteiro de Sousa, atendente de enfermagem. O depoimento foi realizado em 26 de março de 2004, no Sanatório Meduna, especialmente para esta pesquisa, sendo de valor imprescindível, tendo
em vista a ausência de dados documentais escritos. D. Francisca relata que todos os procedimentos
hospitalares eram documentados em livros de registros, guardados no porão, mas, ao longo dos anos, estes
documentos foram incinerados ou extraviados.
289
formaram em outros estados. O Curso de Serviço Social só foi implantado em Piauí, no ano de 1977,
na Universidade Federal, com a primeira turma concluindo-o no início de 1981. Por isso é que, no
período anterior, havia pessoas com atuação na área sem a devida qualificação profissional, sem
mencionar que isso também se dava em virtude da história da formação da própria profissão, com suas
raízes fincadas na doutrina da Igreja, na filantropia, na caridade e na prestação de assistência aos
pobres e despossuídos. Ademais, não existia na época um órgão da categoria, que fiscalizasse a
prática profissional dos assistentes sociais.
Mesmo após a chegada do Serviço Social na instituição, no início da década de 1960, as
irmãs religiosas permaneceram no Sanatório Meduna, desenvolvendo atividades mais ligadas aos
cuidados de enfermagem, centradas na medicação, alimentação e higiene, supervisionando os
trabalhos dos atendentes e auxiliares de enfermagem. Afastaram-se elas da instituição apenas em
meados dos anos de 1990, por motivo de mudanças administrativas e por já se encontrarem com idade
muito avançada ou aposentadas, embora nunca perdessem o vínculo afetivo com o Sanatório,
lembradas que são com muito apreço pela direção e por funcionários mais antigos.
A contratação das primeiras assistentes sociais foi também da iniciativa da própria
direção do hospital, em meio a uma conjuntura interna e externa de mudanças nos planos estadual e
federal que exigia alterações e a sistematização dos procedimentos na assistência ao PTM. No início, o
Serviço Social constituiu-se por um reduzido quadro funcional, considerando o contingente de usuários
internos, formado apenas por uma assistente social e dois auxiliares. Segundo Francisca Monteiro, a
primeira assistente social graduada do Sanatório foi Maria Teresa, contratada em 1965 e nele
permanecendo até 1970, a segunda, Heloísa Helena de Lima, em 1973, e a terceira, Helmirinha
Ferraz, cuja data de admissão e tempo de permanência não sabe precisar. Aliás, é importante ressaltar
que, no decorrer desta pesquisa, não se encontrou nenhum documento sobre a criação do Serviço
Social na instituição, nem sobre o tempo de permanência das três primeiras assistentes sociais, já que
os registros feitos em livros de relatórios sobre a prática dessas profissionais no Meduna não foram
290
localizados. Em março de 1981, foi contratada a assistente social Rosemary Santos Feitosa, até hoje
no hospital e atualmente chefe desse Setor, na verdade a responsável pelo processo de organização e
estruturação da profissão no âmbito do Sanatório Meduna.
Os levantamentos desta pesquisa apontam que, numa divisão meramente didática, até o
início da década de 1990 o trabalho do profissional era dirigido, sobretudo, pelos aportes do Serviço
Social de Caso, caracterizando-se pela abordagem individualista e pelo fornecimento de dados
econômico-sociais que compunham o diagnóstico social do enfermo e corroboraravam no tratamento.
A respeito disso, assinala Berezovsky (1977) que este tipo de abordagem intervém nos aspectos
psicossociais da vida dos usuários, objetivando restaurar, melhorar e manter o seu bom funcionamento
na sociedade, sendo, na verdade, um método preocupado em detectar os problemas e dificuldades do
usuário no tocante às necessidades humanas ou sociais que influenciavam o tratamento, a formulação
do diagnóstico e o processo de alta. Por isso, a ação do profissional de Serviço Social visava
estabelecer uma relação interativa com o usuário, para ajudá-lo no processo de restabelecimento
psicossocial.
As análises dos depoimentos dos entrevistados levam à indução de que, nessa época, a
intervenção do assistente social era isolada dos demais profissionais da instituição (psiquiatra,
enfermeira e psicóloga), já que voltada, sobretudo, para os atendimentos individuais ao usuário interno,
não existindo um processo de interlocução entre os quatro, que contribuísse para a recuperação e alta
do PTM. Em decorrência, as decisões centravam-se no psiquiatra em detrimento das outras profissões
vistas como subordinadas ao médico.
Eu mudei bastante. Porque antes eu não me preocupava com a minha
atuação enquanto assistente social, não dizia respeito ao conjunto de pessoas que atendiam ao paciente, eu fazia minha anotação numa folha específica só
para mim, dentro do prontuário, onde a equipe que trabalhava com o doente
mental não tinha nenhum interesse em lê aquelas anotações [...]. No Meduna
de antigamente, meu trabalho era muito bom [...], mas não era pensado num
291
conjunto, eu nunca ia procurar um médico, nem eles iam falar comigo, para
estudar algum caso de paciente (Mariana, assistente social)30
.
Como se vê, não havia, entre os profissionais, intercâmbio nem momentos de discussões
de casos. Cada um, dentro da instituição, fazia um trabalho isolado, sem um diálogo mais próximo,
estando alheios, assim, ao que os outros realizavam. Aliás, nesse trecho da fala de Mariana está
expresso o desinteresse do Serviço Social em estabelecer contatos mais próximos e amplos com os
outros profissionais, no que tem a devida reciprocidade.
Na verdade, considerando as observações, os depoimentos e os dados apurados nesta
pesquisa, nota-se que o Serviço Social do Sanatório Meduna teve a sua constituição intrinsecamente
vinculadas às orientações da direção, no que diz respeito ao planejamento de suas ações
interventivas.. Com efeito, quando a assistente social Rosemary Santos Feitosa, contratada em 1981,
chegou ao hospital, não encontrou nenhum documento oficial sobre a criação do Serviço, no âmbito
institucional, não havendo pois registros ou arquivos com dados estruturados que informassem, o que
fora feito até aquele momento, tanto que se começou a implantação da escala zero, de modo que só
aos poucos o Serviço Social se foi estruturando, para intervir no processo de tratamento do usuário.
Esse processo de estruturação (planejamento das ações interventivas junto ao usuário interno e à sua
família, elaboração dos primeiros fichários, etc), contou com a colaboração, estímulo e cooperação da
direção, na pessoa do médico Wilson Freitas Santos, adesão essa relacionada mais diretamente ao
grau de importância atribuído por ele à profissão no contexto institucional, tida como fundamental no
tratamento do usuário interno. Em seu depoimento, Wilson Freitas se refere ao Serviço Social com
veemência, afirmando que o assistente social é muito valioso na instituição, atuando como um parceiro
do médico.
A contratação da primeira assistente social foi muito importante para o
hospital, como ainda é. Nenhum hospital pode funcionar sem Serviço Social, o assistente social é importantíssimo, é o “braço direito” do médico. Naquela
30
Os sujeitos entrevistados nesta pesquisa conforme mencionado no início deste estudo, serão identificados por
nomes fictícios, como forma de preservar-lhes o anonimato.
292
época todos os problemas sociais que envolviam a família e o paciente eram
resolvidos pelas irmãs, mas quando a assistente social chegou assumiu toda
essa parte.
Dessa forma, a direção, pela experiência acumulada no gerenciamento desse serviço de
saúde, mostrou-se uma grande estimuladora da implementação e efetivação do Serviço Social na
instituição, procurando adotar, junto com este, as medidas de interesses do PTM, na busca da mais
adequada solução para as inúmeras situações, que requeriam respostas que atendessem às
necessidades especiais dos usuários. O relato abaixo, da assistente social Mariana, expressa bem
esses vínculos com a direção, em especial nos primórdios do Serviço Social na instituição. Diz ela que
quando eu era só, era muito “verde” [recém-formada], eu era o que a direção
passou para mim. Uma direção muito boa, preocupada com o paciente [...] Eu aprendi a trabalhar com orientação do médico diretor, apesar de que ele
sabia respeitar até onde ia o Serviço Social e no dia-a-dia a gente foi
descobrindo outras coisas, agora eu e o diretor do Sanatório Meduna [...] tudo tinha a orientação dele, tudo que acontecia com o paciente ele
participava junto com o Serviço Social, lá foi uma instituição que sempre
respeitou o paciente em primeiro ponto.
A assistente social planejava as ações em sintonia com a direção, que orientava,
intervindo nas situações mais complexas, como as dos PTM tão “esquecidos” pela família no Sanatório
que passavam muitos anos sem receber visitas dos familiares, tornando-se “moradores” da instituição.
Nessa época, a década de 1980, não existia, por parte das instituições governamentais, como o
Ministério da Saúde, um acompanhamento rigoroso do processo de internamento, nem sobre o tempo
de permanência no hospital, ficando essa decisão a critério do médico psiquiatra, que avaliava o
período de internamento necessário para cada usuário, levando em conta o diagnóstico e o quadro das
manifestações do transtorno mental. Mas, com a implantação do Serviço Social no Meduna, deu-se
início à organização e racionalização das ações terapêuticas, de sorte que as atividades, como
resoluções dos processos de altas, contatos com as famílias e recreação, entre outras, passassem a
subordinar-se a um plano de ação pensado e organizado, agora, por profissional habilitado para intervir
no espaço institucional, através de métodos e técnicas que possibilitavam o conhecimento dos dados
293
que compõem o diagnóstico médico e social do usuário, contribuindo para a sua recuperação e alta e
seu retorno ao convívio familiar e social.
Nesses termos, o Serviço Social se responsabilizava, no cotidiano institucional, pelas
atividades relacionadas, por exemplo, à comunicação com a família, através de cartas ou telegramas (o
telefone era raramente utilizado) ou de visitas domiciliares, aos encaminhamentos de altas e ao
atendimento individual. Assim, em caso de alguma intercorrência no tratamento do PTM (acidente,
agravamento do estado de saúde, óbito, evasões ou qualquer outro problema) a família era
imediatamente informada pelo Serviço Social, por visita domiciliar, já que tinha à disposição um carro e
um funcionário lotado no Setor.
Outra atividade do diretor clínico até o início da década de 1980, que passou para a esfera
da assistente social, foi a elaboração mensal de um jornalzinho, denominado O IDEAL, com a
participação efetiva dos PTM internos, ajudados pelo auxiliar de terapia ocupacional. Nele, os usuários
discutiam temáticas de seu interesse e se expressavam através de poesias, redigiam cartas e
“recadinhos”, faziam desenhos e escreviam sobre datas comemorativas como Natal, Carnaval, São
João, Dia das Mães, etc, sendo os mais interessantes recolhidos pelo Serviço Social para compor a
capa. Se existisse uma variedade grande de temas a serem abordados no mesmo mês, eram eles
discutidos e a seleção se dava pelos usuários, através de votação, com a ajuda das pessoas que
coordenavam a feitura, a assistente social e a auxiliar de terapia ocupacional. O jornalzinho circulava
dentro da instituição e era lido por funcionários, familiares e usuários, com alguns exemplares enviados
para outros hospitais psiquiátricos fora do Piauí, como forma de divulgar esse trabalho desenvolvido
pelos PTM internos no Sanatório Meduna. Junto, ainda, com o auxiliar de terapia ocupacional, o
Serviço Social coordenava a confecção de enfeites, em formas de símbolos natalinos e flores,
fabricadas com isopor e papel, para serem usadas na decoração do hospital, nas festas
comemorativas.
294
O Serviço Social realizava também, nesse período, semanalmente, com os internos,
atividades recreativas, com músicas e danças, de que participava com regularidade uma banda
conhecida como Pai Herói, o que se dava nos dias de visitas (quatro vezes por semana) no pátio
interno do hospital, animando funcionários, usuários e visitantes. Passava, ademais, o Serviço Social a
realizar passeios com os PTM para fora do hospital, em visita, por exemplo, ao Parque Zoobotânico de
Teresina, quando se mobilizava outros Setores, como o de Enfermagem, que acompanhavam os
internos, prestando assistência e os cuidados necessários ao bem-estar e à segurança deles durante a
ausência do âmbito institucional. Vale ressaltar que era a assistente social que mantinha contatos com
outras instituições, no sentido de adquirir patrocínios e recursos para o desenvolvimento das
atividades, como os passeios externos, não raro conseguindo que empresas de transportes cedessem
os ônibus, sem mencionar a interlocução com prefeituras do interior do estado e autoridades locais,
como juizes e prefeitos, visando auferir informações para a localização de parentes de usuários
“moradores” que haviam perdido as referências familiares e sociais, após longos anos “residindo” no
hospital. Nesse caso específico, a assistente social, apoiada pela direção, iniciou um trabalho de
envolvimento e aproximação da família com os “moradores”, (vários na época), mobilizando-a, de
forma lenta e progressiva, a se reaproximarem do ente querido, visitando-o e, depois, levando-o para
um passeio de carro na cidade, um dia na casa dos familiares, com retorno, no final, para o hospital.
Desse modo, paulatinamente se foi restabelecendo a presença e a participação da família no
tratamento no âmbito institucional até o momento da alta e a volta do usuário ao lar31.
A par desse conjunto de atividades, eram realizados atendimentos de abordagem
individual aos PTM, visando conhecer com mais profundidade os problemas psicossociais que
obstruíam ou impediam a melhora, a recuperação e o retorno do usuário à família, enfatizando também
as orientações e esclarecimentos sobre os cuidados com higiene, alimentação, uso da medicação, etc.
Esses atendimentos destinavam-se preferencialmente aos PTM com problemas psicossociais e
31 Essas informações sobre como atuava o Serviço Social a partir da década de 1980, foram fornecidas pela
assistente social Rosemary Santos Feitosa, atual chefe do Setor, em entrevista concedida à pesquisadora em
novembro de 2003 e através de inúmeros contatos informais com esta profissional, no decorrer desse estudo.
295
dificuldades de relacionamento familiar, marcado pelo conflito e elevado grau de rejeição, chegando às
vezes ao abandono, bem como àqueles com complicações clínicas, tendo em vista que, à época,
existia apenas um profissional de Serviço Social no hospital e mais de trezentos usuários sendo
impossível o atendimento individual a todos.
É notório, assim, que a atuação do Serviço Social no Sanatório Meduna, nos seus
primórdios, dava-se de forma pulverizada pelos vários setores, sob uma abordagem genérica, incidindo
sobre diversos aspectos do processo de tratamento do PTM, sem entretanto, uma interatividade maior
com o conjunto dos demais técnicos, resultado de um planejamento profundo e articulado que levasse
em conta a totalidade histórica e social das situações do cotidiano profissional. Mas, nesse contexto
inicial, o assistente social já era visto e reconhecido pela direção como responsável pela articulação e
mobilização da família, ou seja, era ele o pontencializador das múltiplas mediações (PONTES, 1997)
entre a instituição, a família do PTM e a sociedade, daí sua fundamentalidade. Os usuários, por sua
vez, viam-no igualmente como um intermediador dele com a família, já que articulava contatos com
esta e juntava esforços, com a direção, para solucionar alguns de seus problemas, como a alta e a
saída do hospital, bem como o reconheciam como o profissional que realizava atividades como
recreação, músicas, etc. A família também via o Serviço Social como mediador, ou seja, o
encarregado de conversar e interagir com ela sobre os assuntos relativos ao usuário, ao tratamento e a
instituição e seu funcionamento. Essas percepções a respeito do Serviço Social vão, ao longo dos
anos, sendo historicamente aprofundadas e fortalecidas dentro da instituição pelos sujeitos sociais,
interlocutores deste Setor.
Com relação aos demais profissionais, estes, já se sabe, não se articulavam com o
Serviço Social, configurando-se, como antes exposto, em ações isoladas, pois cada um realizava as
atividades independentemente da participação do outro. A maior vinculação do Serviço Social foi, no
caso, com a direção, já que os outros profissionais com ele não interagiam, exceto o Setor de Terapia
296
Ocupacional, que na época não tinha profissional graduado, mas apenas um auxiliar de terapia
ocupacional. Daí dizer a responsável pelo Setor de Psicologia que
eu antes tinha muito distanciamento dos profissionais de Serviço Social, havia uma certa resistência, eu não sei se era da minha parte, [...].
Antigamente mesmo trabalhando no mesmo turno, mas não havia
entrosamento entre a gente, cada um fazia suas atividades, o seu papel, não existia aquela afinidade, como existe hoje (Teresa, psicóloga).
Os anos de 1990 serão, no entanto, marcados pelo fortalecimento dessas e de outras
características assumidas pelo Serviço Social, iniciando uma “nova fase” para a profissão, sob o ponto
de vista de sua organização, no Sanatório Meduna. Nessa época, em face ao processo de
reestruturação da assistência psiquiátrica no país e no Piauí, o quadro de profissionais é, em 1994,
ampliado para quatro assistentes sociais, sendo também contratados vários de outras áreas, como
enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, nutricionista e educador físico, que passam a
trabalhar na perspectiva de equipe interdisciplinar, esta entendida sob o prisma da reciprocidade de
compromissos com uma problemática comum.
Assim, o Serviço Social passará a atuar, cotidianamente, como membro de uma equipe
interdisciplinar, que discute, planeja e participa da condução do tratamento do PTM, agindo, mais
intensivamente, na interlocução com a família, mobilizando-a para participar de forma mais ativa do
referido tratamento. Suas atividades, no âmbito institucional, se ampliam e se diversificam, já que
realiza as já mencionadas e incorpora outras, entre as quais se destacam as de abordagem grupal, de
cunho sócio-educativo, sócio-terapêutico e informativo, abrangendo temáticas de interesse dos
usuários, orientando-os sobre os cuidados gerais com a saúde, higiene, continuação e locais de
tratamento, causas e conseqüências do uso de drogas, palestras sobre aquisição de benefícios e
serviços prestados por outras instituições, etc. Assume ainda as entrevistas com os usuários no
momento da admissão, obtendo dados sobre a sua situação sócio-econômica, o que contribui para
compor o seu diagnóstico social, sem mencionar a realização de reuniões com os familiares dos
297
internos, enfocando e ressaltando os aspectos biopsicossociais que se interrelacionam e interferem nos
relacionamentos sociais de qualquer ser humano.
O assistente social engendrará, pois, a sua prática profissional na instituição com base em
uma nova postura, mais crítica, mais planejada e mais abrangente, de modo que centralizando “sua
intervenção ao cotidiano organizacional, a família é também sua usuária direta e permanente” (ROSA,
2000a, p.207). Trata-se de um novo modo de ser, pensar e agir, porque agora, diferente de antes, o
profissional mudou o modo de conduzir sua prática na instituição em relação aos sujeitos sociais,
atuando sob um enfoque que tem os PTM internos como pessoas humanas e sociais e membros de
uma comunidade que vivenciam múltiplas relações e não mais alguém isolado e desligado de um
contexto social, político, econômico e cultural mais amplo. Nessa perspectiva, atualmente o Sanatório
Meduna conta com quatro assistentes sociais (incluindo a autora desta pesquisa), com trabalho em
regime celetista e com carga horária de vinte horas semanais, divididas nos turnos da manhã e tarde,
sendo três na internação integral e uma no Hospital-Dia, no setor de semi-internação.
Um traço peculiar e comum às assistentes sociais da instituição é a experiência anterior
de três delas na área da saúde mental, como acadêmicas, bolsistas ou estagiárias no HAA. O que
ajuda ao profissional do Curso de Graduação em Serviço Social, a exemplo de diversos outros, é a
formação generalista, que não oferece conhecimentos específicos de modo aprofundado em dadas
áreas ou campos em que possa vir a exercer a profissão, mas dá suporte teórico-metodológico e
técnico indispensável à compreensão das singularidades e totalidades de cada campo e área a
trabalhar, seja na saúde mental ou não, competindo ao assistente social, em seus múltiplos espaços de
atuação, aprofundar as especificidades das diversas situações profissionais. O fato de boa parte dos
profissionais do Meduna ter vivenciado experiências de estágio na área foi fundamental para a sua
inserção no Sanatório, embora a capacitação continuada e permanente do assistente social para
compreender os diferentes espaços ocupacionais e situações vivenciadas no cotidiano institucional
esbarre, quase sempre, numa questão central: ainda são poucas as oportunidades que têm de
298
aprimoramento, em especial na área da saúde mental, no Piauí e em Teresina. Tanto é verdade que os
profissionais de Serviço Social e de outras áreas que atuam no HAA e no Sanatório Meduna vivem
esse dilema da falta de preparação especializada na área, o que se torna, para a categoria, um desafio
a ser enfrentado e administrado, superando-se essa deficiência no cotidiano, pelo autodidatismo e o
bom-senso (ROSA, 2000a)32. Em algumas falas dos assistentes sociais, é possível perceber essa
questão da qualificação profissional no espaço institucional. Mariana, nesse sentido, diz que
a gente sai da Faculdade, a gente não sabe nada de saúde mental. Então, a gente passa a adquirir conhecimento de saúde mental na medida em que
exercemos nossa prática.
Compreender a prática do assistente social no Sanatório Meduna, na perspectiva dos
direitos e da cidadania dos usuários, tem por base o entendimento de que, no continente latino-
americano e especialmente no Brasil, a partir dos anos de 1960, sobretudo após a Constituição de
1988, o discurso profissional (proferido em livros, revistas, congressos, encontros, simpósios, reuniões,
enfim, nos diversos espaços de manifestação e atuação) está sintonizado com esses direitos e com
essa cidadania. É que, do ponto de vista da retórica, a inclinação do Serviço Social na direção da
defesa dos direitos é uma realidade inconteste, com respaldo legal no Código de Ética e nas Diretrizes
curriculares dos Cursos existentes no país, estando também presente entre os assistentes sociais do
Piauí, de sorte que estudos e pesquisas acadêmicos, como a realizada por Guimarães (1987),
apontam, no geral, para a referida defesa dos direitos e da cidadania dos usuários.
No cotidiano do Sanatório Meduna, a realidade experimentada pelas assistentes sociais
não é muito diferente do contexto mais amplo. Com efeito, nas reuniões com os usuários e familiares,
nas discussões em equipes, nas conversas de corredores, nos livros de relatórios e em outras
atividades há evidências que sinalizam o compromisso com os direitos sociais e a cidadania dos
32 É pertinente registrar que, em meados de março de 2004, por meio de convênio e apoio do Ministério da Saúde
e da Universidade Federal do Piauí, foi implantado o primeiro Curso de Especialização em Saúde Mental do
Estado, destinado, a priori, somente aos profissionais que trabalham na área. Além disso, os assistentes sociais
têm procurado se capacitar, participando de eventos, no Piauí e fora dele, que discutem as questões da saúde
mental.
299
usuários. No geral, os profissionais de Serviço Social do Sanatório se envolvem com as diversas
atividades, procurando, por suas práticas, assumir a defesa dos interesses dos usuários, imprimindo à
sua atuação junto aos PTM e à sua família uma qualidade sintonizada com a Constituição de 1988 e as
diretrizes do projeto ético-político, construído pela categoria no Brasil, nas últimas duas décadas.
Associado a isso, o fato de o Meduna ser uma instituição privada confere um diferencial ao padrão e
atendimento do usuário do SUS, clientela preferencial do assistente social, daí que a direção, os
próprios usuários e os familiares exigem o empenho dos profissionais nas atividades cotidianas, no
sentido do cumprimento das normas e diretrizes emanadas pelo Sistema Único de Saúde.
Em respostas a essas e outras exigências, no Sanatório Meduna as assistentes sociais
trabalham, atualmente, numa perspectiva de interdisciplinaridade, em equipes compostas por
psiquiatras, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais e educador físico, estes últimos não
ficando lotados nos pavilhões, como os demais profissionais, mas na sala da terapia, onde atendem
aos usuários e desenvolvem atividades lúdicas, como jogos de dominó e cartas, auto-expressões,
colagens, bordados, crochês, tapeçarias, leituras de revistas, confecção de enfeites para festas
comemorativas, músicas (karaokês), etc. Cada pavilhão é, por sua vez, assistido por uma equipe
interdisciplinar, responsável pela assistência médica e terapêutica aos usuários, divisão essa feita pela
direção, levando em conta a quantidade de paciente (até sessenta) que cada um pode atender,
segundo as orientações do MS, sendo considerado ainda, na formação das equipes, os horários de
trabalho de cada um na instituição, de modo que atuem de forma próxima e coesa.
No tocante à interdisciplinaridade, essa nova postura significou uma conquista para a
categoria dos profissionais da saúde mental, no geral, e para os profissionais do Meduna, em especial,
representando um avanço no tratamento dos usuários dos serviços de saúde e dos PTM,
respectivamente. Aliás, a interdisciplinaridade deve ser entendida como uma relação “estrutural,
havendo reciprocidade, enriquecimento mútuo, com tendência à horizontalização das relações de
poder entre os campos implicados” (VASCONCELOS, 1997, p.141), não significando mera soma de
300
poderes, mas um redirecionamento das forças internas já consolidadas, radicalizando as formas de
atendimento anterior, baseadas no individualismo e sem interação entre os profissionais. Segundo
Vasconcelos (1997, p. 141-2), “desta forma, as práticas interdisciplinares autênticas tendem, quando
prolongadas no tempo, para a criação de campos de saber, teóricos ou aplicados”, com a
redemocratização das relações de poder nas equipes de profissionais da saúde mental.
Essas práticas interdisciplinares implicam compromisso e identificação com uma causa
comum e uma proposta de trabalho conjunto que busca traduzir, de forma recíproca, a significação da
mesma problemática, sob diversos ângulos e direções, proporcionando, para o Serviço Social e as
demais categorias do Sanatório Meduna, um questionamento das ações exercidas, anteriormente, de
modo isolado e solitário. Nas equipes, o papel do assistente social é mediar as relações intra e inter
equipes e com as outras instâncias do Serviço Social, da sociedade e dos demais profissionais, sendo
ele, assim, o intermediador desse intercambio com os outros membros da equipe, a família, a
sociedade e a instituição, sob o compromisso da defesa dos interesses e da cidadania dos usuários.
Por essa ótica, no cotidiano do Sanatório a assistente social desenvolve atividades que visam efetivar
a cidadania mais ampliada dos usuários preferenciais dos serviços de saúde mental oferecidos pelo
hospital, destacando-se os acompanhamentos dos processos de admissão, pela realização da
anamnese social, e os atendimentos semanais de abordagem individual com os usuários internos, no
pavilhão pelo qual é responsável. Coordena ainda, atividades grupais, mensais, enfatizando temas
como a aquisição de benefícios, preparação para a alta médica, em que é ressaltada a importância da
continuação do tratamento em casa e em outras unidades de saúde, os cuidados com a higiene do
corpo e do ambiente e os gerais com a saúde, como as causas e conseqüências do uso abusivo de
drogas e álcool, os encaminhamentos de alta, etc, sem mencionar as orientações diárias às famílias
acerca do tratamento, benefícios, atestados, altas e visitas, transferências, óbitos, evasões, dentre
outros. Muitas podem até ser as mesmas historicamente desenvolvidas pela assistente social no
Meduna e em outras instituições, mas o diferencial delas e do conjunto das atividades diz respeito ao
301
modo como a profissão se insere hoje na sociedade, na perspectiva, no caso do Sanatório Meduna, da
cidadania do PTM.
Na dinamicidade da prática do assistente social há avanços e recuos, entraves e dilemas
a serem enfrentadas no cotidiano institucional. Uma situação peculiar é o fato de que, corriqueiramente,
os outros setores enviam para o Serviço Social situações as mais diversas e não resolvidas, esperando
que os assistentes sociais, como categoria que faz a mediação com a instituição, os usuários, a família
e a sociedade, as solucione, sendo comum os demais profissionais entenderem que a eles cabe, no
hospital resolver qualquer problema relacionado ao usuário, à sua família e à esfera institucional.
Dentre as situações mais comuns, destaca-se, no dia-a-dia, as de caráter administrativo, como perda,
roubo ou dano, o que normalmente gera conflitos e desavenças e exige mediação, sem dizer do
processo de admissão, já que às vezes este Setor identifica, no ato da internação do usuário,
complicações clínicas, ausência de comprovante de endereço fixo (talão de água, luz ou telefone) ou
de uma pessoa residente em Teresina que lhe figure como responsável ou, ainda, falta de documentos
dele ou da família, necessários ao procedimento, quando a assistente social é então acionada, para
mediá-la e resolvê-la.
Ressalte-se que, nesses dilemas do momento da internação, em geral os outros setores,
como enfermagem e psicologia, opinam mas não decidem nem assumem a responsabilidade de
problemas posteriores, deixando a resolução para o Serviço Social, que procura mobilizar, por telefone
ou outro meio, algum parente, amigo ou vizinho do usuário que se disponha a colaborar para resolver o
impasse, conseguindo um endereço fixo ou alguém que por ele se responsabilize. É certo que esses
entraves não são específicas do Serviço Social, mas do conjunto dos profissionais do Meduna,
devendo a decisão pela internação ser tomada em conjunto, levando em conta, acima de tudo, o
estado de saúde do enfermo, podendo qualquer membro da equipe interdisciplinar resolver a situação.
A despeito dessas e de outras particularidades, Sandra assevera que
302
o assistente social no Sanatório Meduna é um profissional muito procurado
pela família, pelos pacientes e também por outros profissionais. Sempre
esperam que a gente resolva todos os problemas dos pacientes, os problemas da família e às vezes coisas que estão completamente fora dos
nossos limites.
Assim, ouvem-se, não raro, pelos corredores e enfermarias, comentários de funcionários
e profissionais do tipo “eu não sei, mas fale com a assistente social, que ela te orientará melhor”. É que
há, no imaginário dos funcionários do Sanatório, que o Serviço Social pode sempre ajudar, orientando
ou prestando alguma informação, tanto que, em uma pesquisa realizada no HAA, Rosa (2000a, p.214)
assinala que identificou situação semelhante, enfatizando que “os possíveis insucessos que seriam
imputados a outra categoria profissional são canalizados para o assistente social, que, os otimiza”.
Ademais, ainda no processo de admissão, o Serviço Social é chamado em internação de primeira vez
ou algum problema a ela relacionada, sobretudo se o PTM for do interior ou de outros estados,
porquanto essas exigências, geralmente de documentação, fazem parte da rotina processualística e se
justificam como medidas imprescindíveis ao atendimento das regras do SUS, sendo necessário,
principalmente, que responsável ou familiar dele resida em Teresina ou em Timon, no Maranhão, o que
possibilita um contato mais próximo e rápido em caso de intercorrências e no momento da alta,
situações em que o assistente social solicita a presença para discutir o problema, junto com a equipe
interdisciplinar do setor em que o doente se encontra, a equipe do plantão ou a direção do hospital.
Para além dessas considerações, deve-se ressaltar que, o trabalho no Meduna é
interdisciplinar. Por isso que, na admissão, se o PTM apresentar alguma complicação clínica grave,
antes de aceitá-lo o caso é discutido pelo médico plantonista, o enfermeiro e o assistente social, no
sentido de avaliá-lo e conhecer-lhe melhor o estado. Após a avaliação, se o parecer da equipe for de
não risco de morte e quadro clínico do paciente informe a possibilidade do tratamento no Meduna, sem
lhe acarretar maiores comprometimentos à saúde, a internação é efetivada, sendo, então, os familiares
ou responsável disso comunicados. Se a situação evoluir para mais grave, o usuário será, o quanto
antes, transferido para um hospital clínico, com o devido consentimento dos familiares ou do
303
responsável, e, em caso de a equipe concluir que a sua saúde inspira cuidados especializados, a
internação não será efetivada e indicado à família que o leve para uma avaliação mais detalhada,
inclusive com submissão a exames. Na verdade, os eventos de maior complexidade exigem a
transferência, pois o Sanatório, como hospital psiquiátrico, não está aparelhado para tratá-los, sendo
indicada a ida para um hospital geral, o que se torna um dilema para as famílias na medida em que
essas casa de saúde têm alto índice de resistência em receber o PTM, apesar do seu quadro clínico
agudo.
Isso acontece porque a lógica vigente no pensamento da sociedade é a de que o PTM é
uma pessoa perigosa. Então, conseguir um leito em hospital geral para interná-lo torna-se, para a
equipe do Sanatório e a família uma verdadeira “maratona”, já que os funcionários dessas casa de
Saúde quando sabem que o enfermo vem do Meduna alegam, quase sempre, ausência de vagas.
Nesse momento, a equipe se articula, usando até da amizade com algum colega (enfermeiro, médico
ou assistente social), que neles trabalha, para obtê-las, ou como estratégia, às vezes se faz
necessário, para se auferir a vaga, omitir-se que o usuário carente do tratamento clínico é portador de
transtorno mental, revelando esse fato aos profissionais do outro hospital somente depois de estar ela
assegurada. Assim, se o acesso aos serviços de saúde é difícil para a população em geral, muito mais
se torna para o doente mental que como qualquer ser humano pode, em algum momento, necessitar
de atenção médica que não a psiquiátrica. Essa é, aliás, uma das questões em que a cidadania do
PTM deixa a desejar e pouco tem o profissional contribuído para modificá-la substancialmente, pois, na
verdade, essas mudanças não dependem apenas do esforço do assistente social, mas de alterações
mais profundas nos valores e costumes da sociedade, cuja discriminação contra o portador de
transtorno mental é histórico, embora sempre combatido. Isso evidencia que o SUS garante
formalmente a todos os brasileiros o direito à saúde, mas na prática poucos o têm plenamente
assegurado, sendo essa uma luta constante, a ser encampada por toda a sociedade.
304
No Meduna, além da admissão, outro momento que demanda expressiva atenção do
assistente social diz respeito aos horários de visitas, que é fundamental para o bom tratamento do
PTM, por representar, para ele, o reencontro com a família e a possibilidade de alteração da rotina,
sendo em geral para ambos um instante agradável e feliz, embora, às vezes, as famílias se mostrem
angustiadas porque acham que o ente querido não apresenta melhora satisfatória ou ficam chocadas
com alguma situação não comuns ao seu cotidiano, como, por exemplo, presenciar um doente com
crise convulsiva ou impregnação (manifestação colateral do uso de alguns psicotrópicos que causam
contrações involuntárias no corpo, excessos de suores e de produção de saliva, dentre outros). Em
face disso, as famílias, inquietas, procuram o Serviço Social, desejando que a assistente social
explique, solucione ou encaminhe seu problema, sentindo-se geralmente mais aliviada após a
conversa. Se necessário, ou seja, se a família permanecer com as mesmas dúvidas, a assistente social
a orienta a dialogar com o médico do usuário, que lhe explicará como proceder.
Em casos de suspeita de violação dos direitos do PTM, por agressão física ou de outro
tipo, o Serviço Social é acionado pela própria família, que exige do profissional e da instituição um
posicionamento rápido, em razão do que o assistente social faz relatórios para apurar os fatos, ouvindo
os envolvidos e, depois, emite parecer. Essa é uma situação constrangedora para todos os implicados,
mas, constatado o fato e identificado o autor, este sofre punição, podendo até ser dispensado do
emprego, pois o objetivo é que ocorrências dessa natureza não se tornem comum no Sanatório, ainda
que nenhum usuário ou familiar esteja isento de passar por isso.
No cotidiano da instituição, às vezes os funcionários do Sanatório procuram o apoio da
assistente social na resolução de problemas profissionais e pessoais. Há casos em que a chefia do
setor ou mesmo a direção solicitam que ela atenda ao funcionário, mediante aconselhamento,
orientação psicossocial, palestras sócio-educativas, etc. As situações nas quais a assistente social é
chamada a intervir referem-se a problemas de relacionamento entre funcionários e funcionários e
funcionários e usuários, como desavenças, discussões, agressões ou qualquer manifestação de
305
violência de ambas as partes, faltas freqüentes ao trabalho (o álcool é, em geral, a causa), quedas de
desempenho e rendimento, dentre outros. Nesses eventos, a assistente social realiza atendimento, às
vezes em conjunto com o Setor de Psicologia, buscando o bem-estar psicossocial dos funcionários e
usuários, embora não exista ainda na instituição um programa específico e estruturado, sobre o
assunto.
Como complemento do elenco das ações interventivas do Serviço Social no Sanatório
Meduna serão pontuados, no próximo item, elementos concernentes a uma dessas ações, a
preparação da alta do PTM, uma das atividades mais relevantes e que mobiliza fortemente esses
profissionais, como membros da equipe interdisciplinar.
3.3.1 O Serviço Social e a preparação da alta Médico-Hospitalar do PTM
No ambiente hospitalar a alta é, notadamente na linguagem técnica, um ato médico. Por
isso, no Sanatório Meduna, ela é uma decisão quase sempre tomada individualmente pelo médico
psiquiatra assistente, que acompanha o tratamento do PTM e leva em consideração a sua evolução
biopsicossocial. Porém, muitas vezes é possível a decisão de alta ser tomada em equipe, quando o
profissional de Enfermagem, o de Serviço Social e o de Psicologia discutem com o médico o seu
melhor momento, sendo então antecipada ou postergada. Isso depende, quase sempre, da postura do
psiquiatra, pois uns são mais flexíveis, enquanto outros mais fechados e resistentes em aceitar
opiniões, nesse aspecto em específico. Às vezes, a família e o usuário também participam da decisão,
expressando para a equipe o desejo da alta do PTM ser antecipada ou adiada. Esta discussão, pela
equipe, sobre a alta do enfermo, reforça a caráter de interdisciplinaridade almejado por seus membros,
numa perspectiva de interesses mútuos, objetivos comuns, efetiva cooperação e relações
democráticas.
306
No Sanatório Meduna, existem vários tipos de alta. A “alta a pedido” é aquela em que a
própria família, por algum motivo, a solicita diretamente ao hospital, ocorrendo sobretudo com os
usuários de primeira internação, que a família percebe que melhorou e, preocupada com o que lhe
possa vir a acontecer (agressão de outro enfermo, sentimento de abandono, etc), avalia que em casa
estará mais bem cuidado. No cotidiano do hospital, esse tipo de alta é viabilizado pela assistente social,
que orienta sobre a importância da continuação do tratamento e a realização, o mais breve, de uma
consulta psiquiátrica em outras unidades de saúde especializada, a fim de que o doente continue a
melhorar.
Outro tipo é a “alta por abandono”. Esta ocorre quando o usuário se ausenta do hospital,
às vezes para resolver problemas pessoais ou passar o final de semana em casa e, por algum motivo,
não retorna para continuar o tratamento. Nessas situações, aguarda-se o decurso do prazo de 48
horas, ao fim do qual, se o Serviço Social nem o hospital receber nenhuma informação dos familiares
sobre o possível retorno do PTM, o seu prontuário será recolhido do pavilhão, assinada a alta e, em
seguida, arquivado. Às vezes a família informa que o PTM está bem e não deseja retornar ao
tratamento e o Serviço Social a orienta no sentido de conversar com a equipe para discutir a
possibilidade de antecipação da alta, evitando que o usuário a receba “por abandono”, interrompendo o
tratamento sem orientação médica. Nesses casos, normalmente cabe ao Serviço Social, considerando
o exposto pela família, intervir junto ao médico para a viabilização da alta, mediante receita médica e
com todas as orientações necessárias ao usuário e à família para a continuação do tratamento.
Existe, ainda, a “alta administrativa”. Esta, que é a mais complicada, a direção adota
quando o usuário, de modo lúcido e consciente, comete algum delito ou tem comportamento indevido
no Sanatório, como, por exemplo, usar drogas lícitas ou ilícitas. Normalmente, antes de proceder à “alta
administrativa”, a direção avalia o estado psíquico do usuário e as circunstâncias do fato delituoso para,
depois, tomar alguma medida, sendo solicitado do Serviço Social um relatório sobre o fato, após
conversar com os envolvidos. Com os dados em mão, a assistente social elabora um relatório e nele
307
emite um parecer, com a preocupação de avaliar, com a direção, se o usuário estava em condições de
responsabilizar-se ou não por seus atos.
Por fim, há a alta “alta médica”, a mais comum e a que, no cotidiano do Sanatório,
mobiliza mais intensamente o Serviço Social. Este tipo de alta é marcado de acordo com a evolução do
quadro do PTM, geralmente pelo médico assistente ou em conjunto com a equipe interdisciplinar, o que
é feito com antecedência de uma semana ou mais, sendo por isso também chamada “alta médica
prevista”, já que possibilita ao assistente social providenciar os contatos necessários para informar à
família dos procedimentos a serem adotados. Rotineiramente, ao ir aos pavilhões para as atividades de
acompanhamento aos internos, as assistentes sociais anotam as altas marcadas pelos médicos e, para
facilitar-lhes os encaminhamentos, são arroladas em uma lista, obedecendo ao gênero e à data de
admissão do enfermo, o que favorece o controle do processo. Conforme as marcações, as altas são
comunicadas pela assistente social aos familiares ou responsáveis, através de telefone ou aerogramas
ou telegramas fonados, também podendo ser feitas no momento das visitas ao hospital, quando o
próprio usuário ou a assistente social as transmitem às famílias que se encontram no hall de entrada,
antes da visita, ou nos grupos denominados “sala de espera”, atividade desenvolvida pelas
profissionais de Serviço Social com as famílias que aguardam visitar algum interno, nos quais se
discutem temas variados, com a participação dos visitantes, que opinam sobre as escolhas das
temáticas. Outras famílias conversam com o assistente social no pátio interno do hospital, no momento
em que visitam o PTM internado e, mesmo sendo este um contato informal, é importante porque
atende a uma demanda espontânea das famílias e, em particular, do usuário, que desejam perguntar
algo sobre sua alta ou apenas apresentar para ela o familiar ou somente cumprimentá-la. Trata-se,
enfim, de um momento de aproximação com a família, de que se aproveita o profissional para
sensibilizá-la a participar mais ativamente do processo de tratamento do PTM.
Ao contrário do HAA, o Sanatório Meduna não adota, como rotina, a alta com entrega em
domicílio, mas esse procedimento é realizado se acontecer de a família, por algum motivo, deixar de
308
comparecer ao hospital para buscar o usuário, com “alta médica prevista”. Dentre as diversas razões
da ausência da família as mais comuns são as de ordem econômico-financeira (falta de recursos para
pagar o transporte, até porque às vezes o usuário reside distante ou no interior) e as de problemas de
saúde ou viagens do cuidador sem que outro membro se responsabilize pelo enfermo, caso em que é
necessário aguardar o seu retorno ou a recuperação de seu estado de saúde para o PTM sair em alta
do hospital. No geral, quando a família não comparece para buscar o enfermo, é realizado, pelo
Serviço Social, um novo contato, para verificar o motivo da ausência e, dependendo da situação, a
assistente social tenta solução junto com a família e o médico assistente, mandando deixar o usuário
em casa ou o mantendo mais dias internado, com uma nova data para a alta, até que os responsáveis
se disponibilizem. Buscam, assim, a assistente social e o médico a medida menos prejudicial ao
usuário e à família, sempre levando em consideração o prazo máximo de internação estabelecido pelo
SUS, atualmente de 45 dias.
Nos encaminhamentos dos processos de “alta médica”, o uso do telefone é uma constante
na rotina do Serviço Social, sendo comum os comentários de funcionários e usuários do tipo “quem
telefona para a família é a assistente social, fale com ela”. Pela rapidez, o telefone é o meio de
comunicação mais utilizado não só para contatar o paciente, a família, o cuidador e a sociedade, mas
também para avisar as altas médicas e informar qualquer intercorrência com o usuário. Até do fato de o
enfermo ser transferido para a Unidade de Internação, ficando em observação mais intensa, a família é
comunicada, sem mencionar que se usa o telefone para solicitar a ela que faça visitas, traga material
básico de higiene pessoal (sabonete, escova de dente, roupas, etc) ou qualquer outra coisa necessária
na instituição.
Na rotina do Sanatório Meduna, o comunicado da alta médica é recebido e percebido
pela família de várias formas. Para a maioria, este representa um momento agradável, por significar a
volta à casa do ente querido, caso em que ela comparece na data combinada para buscá-lo, com
manifestações de afeto, atenção e alegria. Mas, a alta médica é também notícia pouco agradável,
309
havendo recusa, medo ou outros sentimentos, por ter que retomar toda a rotina de cuidado intenso com
o PTM, somadas ao temor de uma nova crise ou recaída, em pouco tempo, com os mesmos sintomas
de agressividade, insônia, inquietação, irritabilidade, rejeição à medicação, etc. A família ou o
responsável apresentam, assim, certa resistência em buscar o usuário de alta médica e levá-lo para
casa, expressando-se por frases do tipo “já está de alta? Mas internei faz tão poucos dias”, ou “ele não
passou nem um mês internado”. Com essas e outras inquietações, a família, procura a assistente
social ou o médico assistente para conversar, explicando as dificuldades em ter o PTM em casa e
tentando negociar um prazo maior de permanência dele no Sanatório.
As alegações e justificativas da família para o pedido de permanência do PTM no hospital
podem ser as mais variadas. Entre as mais comuns encontram-se problemas de saúde na família,
geralmente do cuidador do PTM (a mãe, a esposa, o esposo, a irmã, o irmão, etc), ou o pedido de mais
um tempo para terminar a construção de um “quartinho”, anexo à casa, que se está preparando ele, o
conhecido “quarto do doido”, muito comum no início do século passado e ainda hoje existente em
certas residências, no Piauí. Algumas vezes ouvem-se comentários que os quartos estão sendo
equipados com grades de ferro, para uma maior proteção da família e dos PTM, ficando estes isolados
dos contatos pessoais e familiares, medidas adotadas pela família como último recurso, a fim de
mantê-lo em crise aguda ou fora da crise, em casa, sob seus cuidados. Ademais, se o comportamento
do PTM é mais exaltado e hostil, a família não consegue que ele fique em casa, passando, assim,
grande parte do tempo, quando não internado, a perambular, em longos períodos, pelas ruas da
cidade, expostos ao sol, sem destino certo e sob privações de alimentação, medicação, higiene, etc.
Por isso, os familiares atribuem ao “quarto isolado e trancado” o condão de manter o PTM sob seus
cuidados e proteção, sem sair de casa e longe da rua.
Até o ano de 2001, no Sanatório Meduna o prazo máximo de internação conveniada com
o SUS era de 90 dias, reduzindo-se, nesse ano, para 45, no que respeita aos casos mais graves, pois a
alta é marcada de acordo com a melhora do quadro psiquiátrico do PTM, de sorte que o enfermo só
310
permaneça internado nesse tempo sob indicação médica. A Portaria nº 111, de 03 de abril de 2001, do
Ministério da Saúde, baliza esse período e impõe ainda um prazo de carência de 15 dias para novas
internações, significando que, após a alta, o usuário só poderá reinternar-se, em hospital psiquiátrico,
após cumprir esse prazo. Por isso é que o PTM que recebe alta médica deve ficar em casa ou em
serviços alternativos, como Hospital-Dia, CAPS ou ambulatórios, a fim de continuar o tratamento,
sendo atendido, se houver alguma emergência psiquiátrica, no serviço de urgência do HAA, que
funciona 24 horas para a capital e cidades adjacentes.
Por conta dessa realidade, observam-se posturas de familiares que exigem que o
enfermo permaneça os três meses internado. É que, no seu imaginário, foi construída e consolidada,
historicamente, a idéia de que o PTM deveria ficar no hospital o tempo mais longo possível, porquanto
“lá é que é seu lugar”. Aliás, por diversas vezes ouvem-se essas expressões das famílias, ao ter que
levar para casa o enfermo, sabedora de que pode reinterná-lo, após a carência de 15 dias. Essas
manifestações de recusa e medo e, às vezes, repúdio à presença do PTM em casa se reproduzem na
vizinhança e se perpetuam através dos tempos, nos indivíduos e na sociedade. É que conviver com o
diferente, aceitando-o em suas particularidades e com seus comportamentos tidos como esquisitos e
estranhos, até mesmo por serem considerados como pessoas “perigosas”, afeta fortemente os
sentimentos de afetividade em relação ao PTM, cujas reações inesperadas e manifestações
decorrentes das medicações psicotrópicas de uso contínuo afetam, abalam e fragilizam a afetividade e
a subjetividade deles e dos familiares, nos seus espaços de convivência.
As manifestações dessa multiplicidade de sentimentos estão inter-relacionados, uma vez
que o aparecimento do transtorno mental no ambiente familiar causa grande impacto em todos os seus
membros, nos aspectos econômico, social e subjetivo, envolvendo emoções e afetividades em relação
a si, a família, ao doente. Nesse contexto, a condição objetiva de vida dessas famílias é marcada
fortemente por uma situação socioeconômica e financeira geralmente muito precária, sem um mínimo
para uma vida digna e decente em que as necessidades básicas (alimentação, educação, saúde, etc)
311
do ser humano sejam atendidas. Além disso, o PTM, como ser humano com necessidades especiais,
requer da família um cuidado especializado, contínuo e permanente, exigindo uma atenção
diferenciada porque é preciso, algumas vezes, acompanhá-lo em suas ações cotidianas básicas, até
que as consiga resolver sozinho em casa e em outras esferas do convívio social. Assim, frente às
particularidades do PTM, o período de internação no hospital representa, para algumas famílias, a
possibilidade de descansar um pouco e recompor as forças físicas e mentais, tendo em vista que o
enfermo, por sua natureza, requer um longo e intenso processo de cuidados e atenção de toda a
família, senão de seu cuidador.
Com efeito, algumas vezes o momento da alta médica do PTM torna-se, para as famílias,
uma questão emblemática e difícil de ser enfrentada na medida em que, para elas, essa convivência
tem vários e múltiplos significados, instalando-se em seu seio a sensação de medo de possíveis
reações, como agressões físicas, o que cria um sentimento confuso para com o doente. Ora, no bojo
dessa complexa realidade está a assistente social, que tenta articular e mediatizar essa relação com a
família ou responsável para receber o PTM em alta, posto que a família, como uma âncora no
tratamento do PTM, às vezes também requer cuidados e apoio psicossocial dos profissionais de saúde
mental, para um melhor enfrentamento do transtorno mental.
A assistente social preocupa-se, nessa relação, em apoiar a família para receber o PTM
em alta em casa, dialogando com ela acerca dos transtornos mentais, formas e locais de tratamento,
bem como da importância de conhecer as principais causas, manifestações e maneiras de enfrentá-las.
Com suporte psicossocial da assistente social, e algumas vezes do psicólogo, as famílias têm a
oportunidade de acercar-se de conhecimento e de informação sobre o transtorno mental e, assim,
melhor lidar com a doença. Nesse sentido, a assistente social esclarece também sobre a necessidade
e a importância de o PTM retornar à família, como forma de ajudar na sua recuperação, pelo
fortalecimento do relacionamento familiar e social, porquanto o usuário tem o direito de conviver em
sociedade, na família e nos diferentes grupos sociais.
312
O hospital serve de apoio para o PTM em crise aguda e a sua família, mas não lhe pode
ser um local de clausura ou de “morada”, conquanto a brevidade dessa passagem é, hoje, um princípio.
Daí que os profissionais de saúde mental, dentre esses os assistentes sociais, têm a árdua missão de
desconstruir, no pensamento dessas famílias, as idéias, solidificadas e consolidadas, de que o melhor
lugar para o PTM é o hospital psiquiátrico, inclusive como espaço de morada. Mas, lentamente é
possível perceber, no cotidiano familiar e hospitalar, a adesão da família, ao tratamento, de forma mais
intensiva e interativa junto à equipe interdisciplinar, o que amplia a cidadania e humaniza a sociedade.
A despeito do exposto, a prática dos assistentes sociais tem, pelo menos, dois efeitos
diferenciados. De um lado, favorece que os PTM, ao receberem alta médica, retornem mais
rapidamente para suas residências, atendendo aos interesses, necessidades e direitos dos próprios
usuários, e, do outro, contemplam aos anseios da instituição, assegurando a “eficiência e a
rentabilidade dos leitos psiquiátricos, ao implementar a reciclagem rápida destes leitos” (ROSA, 2000a,
p.208), principalmente num quadro de crescente demanda por essas internações, que nos últimos anos
se tem expandido, em face da progressiva redução de leitos psiquiátricos, tendo como agravante a
ausência de serviços alternativos ou de uma rede devidamente aparelhada que suporte atender tal
procura em crescimento no país, motivada por múltiplos fatores de ordem econômica, social, política e
cultural. Destarte, como atualmente a Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde, que se norteia
pela progressiva redução de leitos destinados a internações em hospitais psiquiátricos, está em pleno
andamento no país e no Piauí, em contrapartida inexistem medidas efetivas de implantação de serviços
alternativos, nas esferas estadual e municipal, que supram as necessidades da assistência psiquiátrica
advinda da demanda local e das regiões adjacentes, haja vista que, historicamente, o HAA e o
Sanatório Meduna, atendem a pessoas de diversos estados como Maranhão, Ceará e Pará. A
alegação de falta de recursos para a edificação e aparelhamento dos CAPS de responsabilidade do
município ou deste em parceria com o Estado federado é corriqueira mas inconsistente.
313
O âmago da questão é saber como ficarão, enfim, os PTM, pois as últimas portarias do
Ministério da Saúde têm exigido que, nos próximos 365 dias do ano de 2005, deverá haver, em média,
a redução para 160 leitos, nos dois hospitais psiquiátricos de referência no Estado, o HAA, da rede
pública (hoje com 200 leitos) e o Sanatório Meduna, da rede privada (hoje também com 200 leitos).
Essa é, na verdade, uma preocupação a ser discutida e amadurecida entre os profissionais da área da
saúde mental, no sentido de pressionar o poder público a assumir a gestão plena da Política de Saúde
Mental, hoje descentralizada, sendo, dessa forma, responsabilidade dos municípios, dos estados e da
sociedade. Ademais, isso retrata o remanescente descaso histórico com a problemática da questão da
saúde mental, que não se faz prioridade no Brasil nem no Piauí, talvez pela desculpa de sua
complexidade e especificidade. Afinal, lidar com a doença mental e o PTM é contatar um mundo de
vidas humanas fragilizadas em que se agudizam problemas sociais comuns no cotidiano dessas
pessoas.
No sentido de discutir a Política de Saúde Mental no Estado do Piauí foi realizado, em
Teresina, de 17 a 18 de abril de 2004, o II Fórum de Atenção à Saúde Mental, sob o lema
“Integralidade, Responsabilidade e Inclusão”, contando com a presença de autoridades do Ministério da
Saúde, na pessoa de Pedro Gabriel Delgado, e dos gestores da saúde no estado e no município. Em
sua exposição, Pedro Gabriel Delgado enfatizou que a Política de Saúde Mental do governo Luís Inácio
Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, é uma prioridade, dando-se andamento à expansão, em
todo o país, dos serviços alternativos, como os NAPS e os CAPS, sendo que atualmente o Brasil conta,
em média, com 250 CAPS, concentrados nas Regiões Sul e Sudeste, nas cidades de maior potencial
econômico-financeiro. O Piauí, entretanto, é um dos poucos estados com apenas um CAPS,
conveniado com o SUS, sendo este serviço responsável pelo atendimento específico dos dependentes
químicos de múltiplas drogas, como alcoolistas, através de equipe interdisciplinar, serviço esse
localizado na Zona Sul de Teresina.
314
No referido Fórum, foi avaliado o atual Programa Estadual de Saúde Mental do Piauí,
frentes às novas exigências impostas pela mesma Política, em nível nacional, tendo como norte a
redução progressiva de leitos e a implementação de um novo serviço, com leitos alternativos e
prestação de assistência psiquiátrica nos municípios. No entanto, as condições das prefeituras, que
são o eixo do processo de municipalização da saúde e da saúde mental, não são a ele favoráveis, em
razão dos sérios problemas de ordem financeira e administrativa que atravessam. Por isso, assinala
Vasconcelos (2000, p.57) que as experiências brasileiras, como a de Santos em São Paulo, têm
mostrado a necessidade, para a efetivação da Reforma Psiquiátrica, do estabelecimento de alianças ou
pactos políticos.
A implantação efetiva da reforma depende primordialmente, do que tenho chamado de „pactos políticos e sociais locais‟, em que governos municipais e
a sociedade civil local devem se posicionar claramente em torno das
bandeiras da prioridade do investimento social e da reforma psiquiátrica e
implantar de forma criativa as condições para implementá-la e motivar seus trabalhadores em torno dela.
Nesses termos, no Piauí se está, de fato, distante de alcançar esse nível de entendimento
e compromisso políticos, tendo em vista que, no Estado, a discussão do processo da Reforma
Psiquiátrica se acha dispersa nos diversos segmentos, com pouco poder de mobilização social dos
setores envolvidos e da sociedade com a causa da saúde mental. Mas, na realidade em que se
encontra o Piauí, o Ministério da Saúde mostrou-se acessível a cooperar na criação dos serviços
alternativos, sendo, para tal, elaborado, no final do evento referido, um plano diagnóstico da situação
dos serviços de saúde especializados estaduais, sob a promessa de implantação, em breve, de CAPS
e NAPS nas principais cidades, sobretudo na capital.
315
CAPÍTULO IV
O SERVIÇO SOCIAL E A CIDADANIA DO PORTADOR DE TRANSTORNO
MENTAL
No capítulo anterior, viu-se como se deu o processo de constituição, como sujeito
ativo e histórico, do Serviço Social na sociedade brasileira. No presente, objetiva-se analisar
com mais detalhes as discussões acerca da noção de cidadania, relacionando-a aos novos
requisitos postos ao Serviço Social no Brasil, após a aprovação do Código de Ética
Profissional, em 1993. Para essa compreensão, o ponto de partida serão as falas, vivências e
expressões dos sujeitos pesquisados, considerando-os nas particularidades e singularidades de
seus envolvimentos com a prática do assistente social no Sanatório Meduna. Deseja-se ainda
demarcar o conceito de cidadania, dentro de um novo campo e de uma outra perspectiva, que
supere e ultrapasse o seu entendimento clássico de mera garantia de direitos civis, políticos e
sociais, no âmbito da sociedade e do Estado burguês. Tratar-se-á, assim, o tema da cidadania
articulando-o às práticas do Serviço Social ao estabelecer relações profissionais com o PTM e
seus familiares, no espaço da instituição psiquiátrica. Nessa linha de análise, serão tomadas
como referências as contribuições de estudiosos como Telles (1994), Dagnino (1994) e
Vasconcelos (1997), dentre outros que postulam o mesmo entendimento.
4.1 Cidadania e Serviço Social: bases para a compreensão da prática profissional junto
ao portador de transtorno mental
A discussão do tema da cidadania no mundo ocidental não é recente e deve ser
analisada como um fenômeno histórico de profunda complexidade. Um dos pioneiros a lidar
com a temática da cidadania foi Marshall (1967), que debateu a evolução dos direitos dos
cidadãos dentro das desigualdades que marcaram a sociedade burguesa no mundo europeu.
Em seu estudo clássico sobre a sociedade inglesa, o autor leva em consideração o
desenvolvimento histórico dos direitos do cidadão nela inseridos, a partir do século XVIII,
abordando a cidadania sob três direitos principais: o civil, o político e o social. Segundo
Marshall (1967, p.63), os direitos civis incorporados, na Inglaterra do século XVIII, eram
“composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de
imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à
316
justiça”. São, assim, os direitos cuja garantia caberia aos tribunais de justiça, se esta fosse
ampla e concernente a todos, significando a igualdade perante a lei e o direito de não sofrer
segregação e discriminação.
Os direitos políticos são característicos do século XIX e relacionam-se, conforme
Marshall (1967, p.63), ao “direito de participar no exercício de poder político, como um
membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros
de tal organismo [cujas] as instituições correspondentes são o parlamento e conselhos do
Governo local”. Este tipo de direito está vinculado ao exercício do poder político na esfera do
parlamento, expressando-se no fato de votar e ser votado, enquanto os direitos sociais se
corporificam no século XX e estão vinculados “a tudo o que vai desde o direito a um mínimo
de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social
e levar a vida de um ser civilizado, de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”
(MASRHALL, 1967, p.63-4). Nesta esfera, o cidadão deve ter acesso à herança social,
usufruindo os serviços nela produzidos, de sorte que, na concepção de Marshall (1967, p.76),
“a cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade
[sendo que] todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e
obrigações pertinentes ao status”. Segundo Fernandes (2000, p. 60), “é a cidadania, apoiada
na igualdade entre os cidadãos e na participação plena do indivíduo em todas as instâncias,
que permitirá que as desigualdades dos sistemas de classes possam ser confrontadas”.
Marshall, um dos estudiosos mais citados sobre a temática, trouxe, assim,
contribuições importantes para o mundo ocidental com relação às suas teses acerca do
desenvolvimento da cidadania na sociedade inglesa, sem embargo das críticas que sofreu por
ser esta considerada, dentre outras restrições, uma análise linear, evolucionista, progressiva e
homogênea, concepção essa que, para Vasconcelos (1988), não permitiu a compreensão das
contradições estruturais entre os três tipos de direitos. É que, em seus estudos, Marshall deu
ao tema um enfoque eminentemente cronológico, que não se reproduziu em outras
sociedades, no mundo moderno.
O Brasil, com suas características estruturais de país em desenvolvimento, não
experimentou, por exemplo, a mesma lógica, pois aqui foram adquiridos em primeiro lugar os
direitos sociais, mais enfatizados em relação aos demais. A história brasileira tem mostrado
que a construção da cidadania percorreu um longo e árduo caminho, influenciada pelos
condicionamentos dos conflitos sociais, decorrentes de um modelo histórico marcado pela
exclusão social e extrema pobreza de seu povo. Nesse sentido, Santos (W., 1979, p.75),
317
analisando as relações entre o Estado e a sociedade, assinala que o Brasil primeiramente
vivenciou a “cidadania regulada”, no período posterior ao Estado Novo até à chamada
transição política dos regimes ditatoriais, estando ela ligada às relações contratuais de
trabalho, tuteladas pelo Estado, que controlava os cidadãos na esfera do vínculo e dos
conflitos entre capital e trabalho. Nesse horizonte, “a cidadania está embutida na profissão e
os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que este ocupa no processo
produtivo, tal como reconhecido por lei” (SANTOS, W., 1979, p.75), sendo cidadãos aqueles
formalmente vinculados ao mercado de trabalho, no exercício de atividades reconhecidas pelo
Estado, o agente regulador da sociedade. A cidadania, vista por esse ângulo, limita o homem a
um simples consumidor, adstringindo-o ao campo do trabalho e às relações com o capital, no
seio da sociedade capitalista moderna. Dessa forma, desde a década de 1930 a cidadania, no
Brasil, era uma pertença de apenas uma parcela da população, ficando a imensa maioria à
margem desse processo histórico em permanente transformação.
Somente após a promulgação da Constituição de 1988, a discussão da cidadania
ganha força e ênfase na sociedade brasileira, assumindo uma nova dimensão e amplitude, já
que a Carta estende e garante a todos direitos sociais básicos, como saúde e educação,
abrangendo sobretudo os segmentos sociais mais empobrecidos. Este Texto Constitucional é
produto das lutas e movimentos da sociedade civil brasileira e, pela abrangência de seu
conteúdo, recebe a denominação de “Constituição Cidadã”, vista como um avanço singular e
inédito para a sociedade rumo à efetivação da cidadania a todos os brasileiros. Vê-se, assim,
que a cidadania se constrói num processo histórico em constante movimento de mutação,
consolidação e aperfeiçoamento, o qual concebe o homem em sua multidimensionalidade e
pluralidade, com capacidade de criar e recriar as próprias condições de vida a partir de
situações subjetivas e objetivas promovidas individualmente e socialmente no cotidiano,
como sujeitos sociais protagonistas da história.
É nesse esforço teórico que se pretende compreender a cidadania, considerado-a
para além das condições de formalidade e legalidade garantidas na e pela Constituição do
país, concebida como uma construção e reconstrução histórica e permanente de conquistas de
direitos em que esses, em última instância, “não se vinculam a uma estratégia das classes
dominantes e do Estado para incorporação política progressiva dos setores excluídos, com
vista a uma maior integração social, ou como condição jurídica e política indispensável à
instalação do capitalismo” (DAGNINO, 1994, p.108). Ora, essa “nova cidadania”, exige a
constituição de sujeitos ativos, capazes de definir o que entendem por seus direitos, porque
318
lutam pelo seu reconhecimento como tal, tendo como base de constituição a incorporação
tanto do direito à igualdade quanto à diferença. No que respeita à diferença, Dagnino (1994,
p.114), alerta que “a afirmação [...] [dela] está sempre ligada à reivindicação de que ela possa
simplesmente existir como tal, o direito de que ela possa ser vivida sem que isso signifique,
sem que tenha como conseqüência o tratamento desigual, a discriminação”. É claro que, para
que esta nova cidadania se efetive, faz-se necessária a criação e consolidação de uma cultura
democrática que sirva como caminho para a construção e transformação de direitos que
ultrapassem os limites do mercado e da inter-relação entre ela, a cidadania e as formas de
consumo.
Essa nova cidadania transcende a relação formal e legal do Estado com a
sociedade, já que implica o reconhecimento de direitos, além de suscitar alterações nas
relações sociais para envolver uma maior e mais expressiva participação dos atores sociais,
protagonistas ativos que lutam para assegurar as mudanças na ordem social consolidada,
fazendo incluir, nesta, novas reivindicações, outras diversidades e diferentes anseios da
sociedade, particularmente dos setores mais pobres e menos favorecidos. Nessa percepção
ampliada, que ultrapassa a órbita da legalidade e da institucionalidade, é preciso se ter claro
que o fato de haver, por parte do Estado, o reconhecimento formal dos direitos não significa
que a luta pela cidadania se encerra ou se finalize, pois esta é uma constante em todos os
espaço sociais e se dá num campo de embate político por melhorias das condições objetivas
de vida de milhões de brasileiros, que buscam a inclusão e o acesso à riqueza social produzida
(e não partilhada) de forma digna pela sociedade e por seus cidadãos.
Outro ponto fundamental, enfatizado por Dagnino (idem, p. 107-8), nessa nova
noção de cidadania, refere-se à própria noção de direitos. Para ela, “a nova cidadania trabalha
com uma redefinição da idéia de direitos, cujo ponto de partida é a concepção de um direito a
ter direitos”. Nessa perspectiva, a concepção de direitos é alterada e ampliada, superando “as
conquistas legais ou ao acesso a direitos previamente definidos, ou à implementação efetiva
de direitos abstratos e formais, e inclui fortemente a invenção/criação de novos direitos, que
emergem de lutas específicas e da sua prática concreta”, sendo alguns deles “direito à
autonomia sobre seu corpo, o direito à proteção ambiental e o direito à moradia [...], [o que
representa] [...] „tornar-se cidadão‟, na difusão de uma „cultura de direitos‟”.
Telles (1994, p.91) também se dedicou ao tema e analisou a construção da
cidadania na dinâmica da sociedade, enfatizando as “possibilidades de [ela] [...] se enraizar
nas práticas sociais”. Ou seja, essa é uma perspectiva em que a cidadania está inscrita num
319
terreno de ambivalências em que deve ser levada em conta a historicidade, a cultura e a
política, no seio da sua complexidade e contraditoriedade, pois, para a autora, os direitos são
práticas, valores e discursos que configuram a forma como as desigualdades e as diferenças
são vistas no contexto social público, como os conflitos acontecem e como os interesses são
expressos, na sociedade. Daí que, considerando a dinamicidade societária, os direitos têm
estreita afinidade com a estruturação das relações sociais.
Na medida em que são reconhecidos, os direitos estabelecem uma forma de sociabilidade regida pelo reconhecimento do outro como sujeito de
interesses válidos, valores pertinentes e demandas legítimas. Para colocar em
termos mais precisos, os direitos operam como princípios reguladores das práticas sociais, definindo as regras das reciprocidades esperadas na vida em
sociedade através da atribuição mutuamente acordada [...] das obrigações e
responsabilidades, garantias e prerrogativas de cada um. Como forma de sociabilidade e regra de reciprocidade, os direitos constroem, portanto,
vínculos propriamente civis entre indivíduos, grupos e classes. Melhor
dizendo, constroem uma gramática civil que baliza práticas e interações
sociais por referência ao que é reconhecido como medida de justiça, medida que é sempre alvo de questionamentos e reformulações nos embates e
litígios de posições e interesses, valores e opiniões, mas que é sempre
solidária com critérios, muitas vezes implícitos, não redutíveis às prescrições legais, que fazem a partilha entre o legítimo e o ilegítimo, entre o permitido
e o interdito, o obrigatório e o facultativo (TELLES, 1994, p. 91-2).
Isso não implica dizer que as garantias formais, constitucional e institucional, não
sejam fundamentais e imprescindíveis à sociedade. Na verdade, a cidadania, assim vista pelas
autoras, o é para além da compreensão de mera previsão legal, como costuma ser na
sociedade brasileira. A compreensão de direitos aqui exposta inclui a defesa dos inseridos em
instrumentos legais e também de outros, ainda não assegurados mas buscados pela sociedade,
sobretudo pelos segmentos dos PTM, que se mobilizam, por exemplo, na reivindicação da não
segregação e da não estigmatização da loucura, bem como pelo reestabelacimento da
capacidade de opinar sobre a própria vida e o próprio corpo, o trabalho, as relações sociais, a
participação na educação, na cultura e no lazer. Aspiram a serem iguais no que respeita aos
valores e direitos humanos, sociais e históricos, e a serem diferentes como humanos, dotados
de capacidades, vontades e desejos, em suas singularidades de seres sociais e especiais. Desse
modo, pelo menos nos moldes deste estudo, a cidadania do PTM não pode restringir-se aos
direitos civis, políticos e sociais, mas deve ser ampliada, já que se postula que ela se inscreve
na esfera do direito das minorias sociais, sendo, assim, uma cidadania voltada para as
singularidades e particularidades desse sujeito e de sua família, pois que segundo Vasconcelos
320
(1997, p. 137), “em última instância, trata-se de uma cidadania „especial‟ a ser inventada,
marcada pela diferença colocada pela experiência da loucura e da desrazão, e que portanto
não pode ser identificada com a concepção convencional associada ao indivíduo racional,
livre e autônomo”.
Assim, os direitos do PTM devem ser tidos sob ótica ampla, à luz de uma nova
compreensão, que envolva os tradicionais (civis, políticos e sociais) e o à diferença, enfim, o
direito a ter direitos, livres de situações vexatórias e até para além dos comuns a todos, em
virtude de sua condição especial, própria de seres especiais. Respeitadas as suas limitações,
ele tem direito a, por exemplo, tratamento especializado e de qualidade, promovido pelo
Estado e que lhe garanta a integridade física, mental e moral. Dessa forma, no contexto de
uma sociedade de classes, como a do Brasil, país de intensos contrastes, falar da cidadania do
PTM é algo complexo e ambivalente, porquanto as noções de direitos civis e sociais
representam uma área de tensão constante nas relações sociais em que o seu exercício,
sobretudo o dos sociais, avançam na esfera legal sem, no entanto, se efetivarem na prática.
No Brasil, país com pouca tradição em direitos, estes não têm sido assegurados à
população, principalmente na atual conjuntura econômica, política e social, marcada pelo
aumento do desemprego e da violência social, que deixam à margem milhões de brasileiros,
na condição de pré-cidadãos, em miséria gritante. Se, nesse país, a população tem dificuldade
de acesso aos direitos civis, sociais e políticos, para os PTM isso é ainda mais complexo e
desafiador. Tais reivindicações dos direitos do PTM vêm, no entanto, sendo discutidas e
propagadas, tanto no Brasil, quanto no mundo, por setores da sociedade civil, dos
trabalhadores e por associações de usuários dos serviços de saúde mental, que se organizam e
se fortalecem, tendo como preocupação principal ultrapassar a percepção dos direitos
tradicionais (civis, políticos e sociais) para os pôr sob a perspectiva de, no dizer de
Vasconcelos (1997), uma cidadania especial.
No âmago do debate, tendo-se demarcado os parâmetros da compreensão da
cidadania e de sua complexidade como um processo histórico e político em permanente
construção em que só o arcabouço legal e formal não são suficientes para garantir o seu pleno
reconhecimento e exercício pela população, o esforço se dá no sentido de abordar e
interrelacionar a prática do assistente social gravitando à defesa do exercício da cidadania do
PTM, como usuário dos serviços sociais de saúde mental, dentro da instituição psiquiátrica,
através e para além das conquistas legais. Analisar a prática profissional do assistente social
numa perspectiva centrada nos direitos e na cidadania dos usuários dos serviços de saúde
321
mental tem por base, inicialmente, na América Latina e no Brasil, os aportes do Movimento
de Reconceituação dos anos de 1960 e posteriormente a Constituição Brasileira de 1988, que
avança na questão dos direitos sociais, o Projeto Ético-Político da profissão, consubstanciado
no Código de Ética e na Lei de Regulamentação, ambos de 1993 e as atuais Diretrizes
Curriculares, dos Cursos de Serviço Social que norteiam o processo de formação da categoria.
Nesses termos, do ponto de vista retórico-discursivo, a visão do Serviço Social na direção dos
direitos e da cidadania é uma realidade inconteste, tanto que trabalhar nesta perspectiva
confere-lhe, no entendimento de Gentilli (1998, p.178), a ênfase na postulação de que
os assistentes sociais estão entre aquelas categorias de pessoas que devem
proteger os direitos dos usuários dos serviços das organizações em que trabalham. Mais que isso: são também responsáveis pela criação de uma
mentalidade moderna, entre os usuários, referente ao desenvolvimento pleno
de suas vivências enquanto cidadãos autônomos, responsáveis e ativos.
Para Gentilli (idem, p.172), a relação do Serviço Social com a defesa dos direitos
e da cidadania de todos aqueles com os quais mantém relações e vínculos profissionais é
histórica, até porque a cidadania se relaciona numa “interface com o Serviço Social, da qual
este não tem como se dissociar”, no processo de provisão e geração de bens e serviços e no
desempenho de suas atribuições, orientando sobre direitos e prestando informações. Enfatiza
Gentilli que o compromisso do Serviço Social com a cidadania é algo que faz parte da história
do país, existindo no âmbito da categoria uma responsabilidade moral, atribuída à profissão
pela sociedade, e que tal compromisso, nas últimas décadas, se vem fortalecendo à medida
que os assistentes sociais ampliam o raio de atuação para diversos campos ocupacionais,
como a saúde e, nesta, a saúde mental. No entanto, para Netto (1996) Iamamoto (1998), o
discurso do Serviço Social na direção da cidadania se deu, de modo mais amplo e profundo, a
partir do Movimento de Reconceituação, ocorrido em 1965 no Brasil e na América Latina,
quando a profissão explicita de forma clara seus compromissos com a defesa dos
trabalhadores pobres e oprimidos.
Mas até que ponto o discurso da cidadania e dos direitos se efetiva, de fato, na
prática cotidiana do profissional? Infelizmente, apesar dos avanços, há uma defasagem
significativa entre os discursos e a prática profissional, entre o escrito na lei e o real do
cotidiano de milhares de brasileiros, entre as intenções e as ações. Certamente essa assimetria
não se manifesta somente no âmbito do Serviço Social, mas é uma demonstração do que
acontece na sociedade, no Estado e em outras profissões, sendo essas e outras inquietações
322
que moveram a pesquisadora ao desenvolvimento desta pesquisa. No cenário do Piauí, esse
discurso, no sentido da cidadania e dos direitos, também está presente entre os assistentes
sociais, embora estudos, como o de Guimarães (1987), dentre outros, apontam, sobretudo, que
o discurso profissional na direção dos direitos e da cidadania dos usuários, está distante de se
efetivar concretamente, pelo menos de modo mais amplo e profundo.
No cotidiano do Sanatório Meduna, instituição onde foi realizada a presente
pesquisa, a realidade experimentada pelas assistentes sociais não é muito diferente do
contexto referido. Com efeito, nas reuniões com os usuários e familiares, nas discussões em
equipes, nas conversas de corredores, nos livros de relatórios e em outras atividades, há
evidências que sinalizam a preocupação com os direitos sociais e a cidadania dos PTM,
embora a prática cotidiana do profissional de Serviço Social, por ser dinâmica, complexa e
contraditória, em dados momentos, situações e circunstâncias deixa a desejar, no que
concerne ao aprofundamento desse compromisso. No estudo realizado, as assistentes sociais
acenam, de um lado, que sua prática mudou, nos últimos anos, para atender melhor à evolução
das sociedades brasileira e piauiense e ao conjunto das exigências e demandas postas ao
cotidiano profissional, mas entendem, por outro, que os usuários dos serviços sociais e em
particular os de saúde mental estão, ativamente, mais conscientes a respeito de seus direitos
civis e sociais, assegurados pela Carta Magna de 1988. Esses dois aspectos têm corroborado
para que as relações profissionais entre o assistente sociais e o PTM e suas famílias adquiram
novos contornos e significados. Aliás, enfatiza Sandra,33
uma assistente social entrevistada,
que
o assistente social atua como se fosse um mediador, encaminha e orienta o
paciente e a família a outros atendimentos, é o assistente social que facilita
as informações. Então, hoje existe uma preocupação maior por parte do assistente social [...] em respeitar o doente mental como um todo, não vê só
o problema dele limitado àquela doença, mas vê toda a estrutura, todo o
contexto em que o paciente se encontra, [o que] foi reforçado da Constituição de 1988 para cá, respeitando os direitos e deveres do paciente e
da família como um ser humano.
Como se vê, um dos papéis exigidos ao profissional de Serviço Social é o de
mediatizar a relação entre a população, a instituição, os direitos e a cidadania dos PTM.
Gentilli (1998, p. 182) reforça essa análise ao assinalar que os assistentes sociais fornecem e
33
Conforme se tem mencionado no capítulo anterior, neste estudo os nomes dos sujeitos entrevistados são
fictícios.
323
asseguram ao usuário informações acerca das normas institucionais, dos benefícios ao seu
alcance e dos “trâmites burocráticos [que] no mínimo [podem] possibilitar-lhe as condições
básicas de discernimento sobre aquela realidade social e institucional em que se encontra
vinculado”. É, assim, o assistente social o responsável pela viabilização e mediatização dos
direitos dos usuários e de sua família, os assegurados pela Lei Maior do país e os que não
foram ainda consolidados em leis e mecanismos de proteção social mas são pontos de luta e
movimentos reivindicatórios do PTM como ser social especial. Por essas e outras razões, o
assistente social é o profissional imerso no cotidiano do PTM e do grupo familiar com os
quais mantém relações profissionais, estabelecendo vínculos com os movimentos mais amplos
ou específicos da sociedade para atender às suas diversas demandas e necessidades objetivas,
subjetivas, singulares e coletivas.
Os produtos a serem proporcionados pela ação profissional a estas demandas – pensados da lógica da profissão aqui formulada - são delimitados e
configurados pela natureza social e política da profissão, inscrevendo as
respostas profissionais nos vários planos da cidadania: no do direito de fazer
escolhas, de ter liberdade individual: de locomoção, de ser informado, de emitir opiniões, de fé, de propriedade, de contrato de trabalho etc.; de
participar da vida política da nação: das esferas de poder, de votar, de ser
votado, de exercer cargos públicos; de compartilhar dos bens social e culturalmente produzidos a partir da generalização dos novos padrões
civilizados da sociedade moderna: adquirir bens no mercado e, na
impossibilidade disto, ter acesso, via proteção social, aos mínimos padrões de dignidade humana (GENTILLI, 1998, p.194).
É nessa perspectiva que o profissional de Serviço Social tem tido, nas últimas
décadas, a preocupação em viabilizar o acesso aos serviços sociais e a proteção social dos
PTM que lhe mandam a ação, na ótica da cidadania e dos direitos, de cuja titularidade eles e
suas famílias têm mais consciência e por isso, lutam sob diversas maneiras e alcances. O
depoimento abaixo, retrata a ampliação dessa consciência:
Em primeiro lugar, essa pessoa [PTM] tem o direito de ser atendida com
todo o carinho, respeito e amor, porque só o fato dela já ser uma doente
mental já tá dizendo que ela não tem o equilíbrio próprio como nós que temos a cabeça mentalmente equilibrada, por isso ela precisa ser atendida
com carinho, com respeito e com amor, com paciência. Ela [o PTM] também
tem direito a uma boa formação de brincadeiras, diversão e música adequada
(Cassandra, usuária).
324
Com essa percepção e levando em consideração essas e outras questões existentes
no âmbito da instituição pesquisada, a análise dos dados coletados e as falas dos sujeitos, em
especial as das assistentes sociais, infere-se que seus discursos e seu exercício profissional
expressam, no geral, a busca da efetivação dos direitos dos usuários. Ou seja, o profissional de
Serviço Social, no cotidiano de sua prática, entendida como processo dialético inserido na
contraditoriedade, singularidade e totalidade histórica da sociedade e das instituições públicas
ou privadas, é claramente favorável ao usuário, (VASCONCELOS, A., 2002). Isso é revelado,
respectivamente, pela assistente social Sandra e pela psiquiatra Fátima, membros da equipe
interdisciplinar:
Bom, eu acho que o assistente social tem uma preocupação em respeitar os
direitos do paciente como um ser humano, em respeitar a família como parte
de uma sociedade capitalista, em respeitar os direitos do paciente. Eu acho que o assistente social está sempre respeitando o paciente em si, está sempre
orientando os funcionários, mostrando aos funcionários que nós estamos
aqui para servir ao paciente [...]. Então, a gente está sempre respeitando, procurando respeitar o espaço do doente mental, mostrando para ele,
trazendo o paciente algumas vezes para a realidade, elevando assim a auto-
estima do paciente, vendo o paciente não só como um doente mental, mas
vendo-o como uma pessoa, um ser humano que convive, que tem direito de conviver em sociedade, que tem direito de exigir um tratamento adequado,
porque ele não está aqui de graça, ele está aqui porque paga seus impostos,
porque os pais, os irmãos, os vizinhos pagam impostos, porque tem o direito de está aqui dentro, não é porque ele está pelo SUS que vamos achar que ele
está aqui de graça. [...] a gente vê o paciente como um usuário, que precisa
retornar para a sociedade e para sua vida no dia a dia, na convivência
familiar.
Acho que sempre houve a preocupação [com direitos] e esse trabalho em
valorizar o paciente, para que o paciente fosse tratado como ser humano, alguém que está ali fragilizado, mas que é um ser humano que tem deveres e
direitos como todo mundo. Então eu acho que de uns tempos para cá isso
tem sido mais visível, esse trabalho.
À luz dessas falas dos profissionais de Serviço Social e de outros setores e das
observações realizadas e experimentadas no cotidiano institucional, percebe-se que a
preocupação central da prática profissional se volta para a questão da cidadania e dos direitos
dos usuários como pessoas e como portadoras de necessidades especiais, que devem ser
atendidas pelo Estado e pela sociedade. Os depoimentos destacados enfatizam que o
profissional não só pensa, mas age intencionalmente para garantir a cidadania e os direitos do
PTM, sensibilizando os demais envolvidos no processo de tratamento a compartilhar dessas
325
idéias e propostas, já que ele é um sujeito de direitos como qualquer outro cidadão e, por isso,
tem legitimidade para participar do processo de desenvolvimento da sociedade e das riquezas
por ela produzidas. Nesse mesmo rumo, a análise da prática profissional, sob o ponto de vista
dos PTM e de seus familiares, mostra a construção de percepções que elucidam a intenção do
assistente social em trabalhar para assegurar os direitos deles no cotidiano de sua intervenção.
Daí que Cassandra, uma usuária, diz que
eu acho que o assistente tem que se preocupar com o tratamento do paciente, tem que se preocupar se ele tá precisando de alguma coisa, como a
alimentação, o tratamento, se o paciente tá passando por momento difícil,
deve ajudar o paciente com amor e carinho, deve se preocupar com os direitos dos pacientes.
Para além dessas considerações, a apreensão da prática do assistente social sob o
compromisso com os direitos e a cidadania dos usuários se dá num contexto
multidimensional, em que estão inseridos a história, a sociedade, a instituição psiquiátrica e os
sujeitos dela participantes, de sorte que compreender essa questão é de suma importância para
o exercício profissional, porquanto essas múltiplas dimensões da prática se apresentam em
movimentos dinâmicos de lutas, com contradições, avanços e recuos. No espaço sócio-
institucional do Sanatório Meduna, o profissional atua, segundo a assistente social Mariana,
para concretizar, efetivamente, os direitos dos usuários.
A gente está fazendo na instituição que esse doente seja respeitado enquanto
pessoa, nós fazemos com que a personalidade dele volte a ser um cidadão com direito, com obrigações na sociedade. Eu acho que os direitos dos
usuários da instituição têm que estar de acordo com as normas que regem
aquela instituição e [...] acho que os direitos dos pacientes estão sendo respeitados e são satisfatórios.
Na rotina do Sanatório Meduna, o profissional de Serviço Social é solicitado em
diversos setores (Unidade de Internação, Pavilhões, portaria, etc) para atender ao PTM e suas
famílias ou a outras instituições na prestação de informações acerca dos serviços prestados à
comunidade. São, assim, muitas as demandas que chegam ao Serviço Social vindas das
equipes interdisciplinares, do PTM e sua família e da sociedade piauiense, que dizem respeito,
em última instância, às problemáticas sociais dos usuários e familiares marcadas por dilemas,
movimentos e contradições, objetivas e subjetivas, individuais ou coletivas. Trata-se,
parafraseando Gentilli (1998, p.193), “de questões impregnadas de conteúdos psicológicos
326
referentes a sofrimentos psicossociais [do PTM e familiares] que comparecem nos serviços,
buscando, além de benefícios sociais, escuta e acolhimento”, dentre outras mobilizações ao
profissional. É que, como seres humanos, têm eles necessidades diversas, e almejam serem
ouvidos e recebidos como cidadãos, com potenciais a serem desenvolvidos e valorizados, com
direitos já constituídos ou a serem efetivados na sociedade, porquanto sujeitos sociais capazes
e portadores de direitos e deveres.
É nos espaços institucionais, públicos ou privados, que o assistente social tem sido
o profissional legitimado, historicamente, na divisão sóciotécnica do trabalho, para o
desvendamento e o enfrentamento dessa realidade social complexa e contraditória, com
múltiplas faces e questões inerentes, onde estão inseridos o PTM e sua família. Daí que o
assistente social vem, ao longo dos anos, em particular nas últimas duas décadas, assumindo
posturas mais comprometidas, em busca de responder a essa problemática através de
encaminhamentos, aconselhamentos e orientações, entre outras atitudes, sob a ótica de
propiciar acesso a direitos e à cidadania não como favor ou benesse. O propósito é, pois,
atender às diversidades de demandas que, direta e indiretamente, são canalizadas para o
profissional no cotidiano das instituições, em especial no Sanatório Meduna, no qual as falas
escolhidas e as observações vivenciadas na prática profissional revelam que o usuário o
considera como um local “bom”, onde se sentem, até certo ponto, bem tratados e vêem seus
direitos assegurados e respeitados. É que esse hospital, sobretudo para os que têm várias
internações, é um lugar onde fazem novas amizades, descansam, repousam, recuperam-se e
travam bons relacionamentos com os funcionários. Os depoimentos abaixo revelam o “olhar”
dos usuários sobre suas vivências no Meduna:
Acho que [os direitos] são respeitados, porque todos me respeitam dentro do
hospital, tudo que eu preciso, tudo que eu desejo, tudo que peço aos
funcionários, os enfermeiros, os psicólogo, a assistente social. Eu sempre fui
bem atendido e sempre me trataram bem e não tenho o que dizer, pois todos tentam me ajudar (Sérgio).
Sou tratada bem, eles me dão remédio na hora certa, me convidam para fazer
terapia. São respeitados [os direitos] e quando fazem alguma coisa comigo,
eu reclamo logo. Eu gosto da visita e da alimentação (Francisca).
Apesar dessas percepções positivas, normalmente existem sentimentos negativos
sobre o ambiente hospitalar, que é, para alguns usuários, um lugar hostil e pouco agradável,
327
que os isolam e os privam do mundo exterior, deixando-os sem liberdade e com os seus
direitos civis desrespeitados, já que devem cumprir as normas e rotinas que regem a
instituição. Nessa situação, geralmente o usuário sente ansiedade, angústia e desejo de sair do
hospital, sem mencionar a revolta, que algumas vezes há, por não aceitarem e não
concordarem com a internação ou a condição mesma de interno em hospital psiquiátrico. O
usuário, se assim se manifesta, questionando para a equipe indisciplinar a internação e os seus
motivos, esta avalia o caso e, se necessário, convoca a família, a fim de adotar uma posição
acerca do PTM que se acha prejudicado. Com efeito, os usuários internos, nesse universo
institucional de múltiplas experiências, entendem que a garantia de seus direitos passa
necessariamente, pelo conjunto das situações vividas no ambiente hospitalar, principalmente
no que concerne àquelas relacionadas ao tipo de tratamento oferecido. Quando indagados
sobre seus direitos, os usuários apontam desde os vinculados à satisfação das necessidades
básicas, como alimentação e medicação em horários regulares, até ao de terem atividades de
lazer e recreação e ainda o de receberem tratamento carinhoso, afetivo e paciente.
[O usuário] tem direito a um bom tratamento e muita paciência, tem direito à
medicação, pois tem pessoas que precisam e não tem essa medicação, é
preciso ter também muito carinho, por parte da família [...]. É preciso ter
respeito e consideração (Cassandra, usuária).
O paciente tem direito ao almoço, ao remédio, à alimentação, à dormida,
também eu acho importante [...] direito a um tratamento (Manuel, usuário).
Tem direito a um alimento, ao um bom tratamento [...]. Tem direito a ser
respeitado, como você faz, Adriana [...]. Tenho direito a tomar o remédio
(Conceição, usuária).
Eu acho que ela [a usuária] tem direito a ser tratada bem, a andar do jeito dos
outros, ser atendida, ter um bom atendimento, alimentação (Francisca, usuária).
De modo geral, essas falas exprimem os fortes sentimentos dos usuários, que
marcam a vida de quem freqüenta o serviço de internação do Sanatório Meduna e desvelam
como percebem o tratamento a eles dispensado. Como se vê, exigem eles que o tratamento
seja não só medicamentoso e psicossocial, mas também baseado no carinho, na atenção e no
respeito, vendo-os com necessidades múltiplas e variadas, objetivas e subjetivas, que devem
ser satisfeitas no âmbito institucional, na perspectiva dos direitos e da cidadania. Tal
328
entendimento do PTM se relaciona, principalmente, ao tipo de vínculo que estabelece com os
profissionais da equipe interdisciplinar, como o médico e o assistente social, constituído,
sobretudo a relação com o assistente social, por laços de confiança, respeito e amizade,
havendo uma empatia carregada de reciprocidade e afetividade quando o profissional se torna
uma pessoa próxima e de confiança, com a qual o PTM pode contar nas horas difíceis,
principalmente enquanto internado. O assistente social, em específico, é geralmente visto
como o profissional que mantém e lhe assegura, entre outros direitos, o contato com o mundo
exterior e a família. É o que afirma o depoimento de Raimunda:
Eu me sinto familiarizada quando alguma assistente social chega perto de
mim, parece uma pessoa da família. Acho que são respeitados sim [seus direitos no hospital], todos, às vezes quando estou com alguma dificuldade e
me dirijo a alguma assistente social, ela com carinho se expande [esforça-se]
para atender o que a gente está necessitando. É muito importante uma
assistente social dentro do hospital.
Quanto aos psiquiatras, os usuários relatam que também se sentem bem,
expressando uma relação de segurança, carinho e amizade. Assim, revela Cassandra, usuária
do serviço de internação integral, que
os médicos me tratam com muito carinho, principalmente o Dr. Carlos Silva,
ele me ajudou muito. Ele me orientou a continuar o tratamento no Hospital-Dia, eu nunca esqueço disso, então devo minha melhora a ele e aos outros
médicos, que já cuidaram de mim.
O usuário também percebe os seus direitos garantidos quando precisam de
internação e a tem assegurada, recebendo um bom tratamento na instituição. É que o acesso à
internação é visto como um direito do paciente, um dever da instituição e do Estado, este o
gestor das Políticas de Saúde Mental. Enfim, a noção de direitos por parte do PTM e suas
famílias é, assim, bastante significativa, sendo representadas em suas falas e visível nas
relações que mantém com a instituição e com os profissionais. Alguns usuários asseveram
então que
meus direitos são respeitados, até hoje graças a Deus, eu acho que sim.
Porque a gente pelo menos tem o direito, a gente vem para cá porque tem direito e aí chega aqui. Direito, assim, porque o SUS paga para a gente,
porque a gente já trabalhou muito e agora tá doente, aí o hospital tem que
cuidar da gente (Manuel, usuário).
329
acho é que os direitos do paciente é ser tratado com humanidade e educação,
porque a pessoa já vem para cá procurar um tratamento que lá fora não se
encontra, e se aqui ele encontrar aqui o mesmo tratamento que tem lá fora, de ignorância e de falta de compreensão? (Antônio, usuário)
Nessas falas se revelam fragmentos que retratam que a noção de direitos está na
garantia da oferta e no acesso a esses serviços de saúde, fazendo parte o tratamento acolhedor,
qualitativo e respeitoso ao PTM. Se, pela ótica do usuário, a instituição é um local de
ambigüidades e ambivalências, já que se constitui em um ambiente hostil para uns mas bom
para outros, como promotora dos serviços de saúde aquela procura vê-lo em sua pluralidade e
dinamicidade, considerando-o um sujeito de múltiplas determinações, necessidades e
potencialidades, de sorte que deve ser tido como prioridade, ouvido e atendido. Relata um dos
diretores da instituição que
o que a gente pode fazer é ouvir o paciente. Então, a gente escuta a opinião
sobre como está a comida, sobre os horários do refeitório, se vai fazer alguma mudança, conversa antes, afinal eles são nossos patrões, o hospital
existe para eles e por causa deles. Então, para a gente fazer um bom serviço
aqui não adianta ficar querendo só coisas da nossa cabeça, porque o nosso
serviço é para eles. Então, eles é quem tem que estar satisfeitos e não nós. Assim, não tem nem que dizer que o paciente psiquiátrico tem direitos, como
todo mundo tem. Em algumas situações o paciente não tem condições de
resolver legalmente os seus próprios problemas, mas isso é uma exceção. A grande maioria dos pacientes psiquiátricos tem condições de ter seus direitos
civis garantidos (Carlos Silva, diretor técnico).
No depoimento a seguir, outro diretor, um dos mais antigos, se expressa nessa
mesma direção, assinalando que o Sanatório, desde a fundação, sempre teve os direitos do
paciente como um dos elementos principais. Diz que, quando Clidenor de Freitas Santos
decidiu construir o próprio hospital, tinha em mente um local que assegurasse um tratamento
de qualidade aos PTM.
No tempo em que eu administrava, eu me preocupava muito com os direitos
do paciente, eu não admitia por hipótese alguma que o doente fosse agredido, maltratado, mal acomodado. Eu ia todos os dias, em todos os
setores, olhar, não confiava em mandar ninguém, ia ver como era, como não
era. [...] Em primeiro lugar o doente, em primeiro lugar o paciente. Clidenor,
quando criou o Meduna, queria criar um lugar que fosse moderno para tratar o doente, com dignidade (Luís, diretor clínico).
330
Esses depoimentos revelam que, através dos anos, a instituição, reconhecida como
prestadora de serviços de saúde, assumiu o compromisso de promover a efetivação e o zelo
para com os direitos daqueles que lá se internam. Ademais, os usuários, em suas falas,
denotam o direito de serem respeitados pela família, que deve entender suas crises e
comportamentos diferenciados, sem que sejam discriminados ou rejeitados, uma vez que o
fato de terem transtorno mental não é motivo para repúdio familiar nem de restrição de acesso
ao espaço social.
A família, ela tem que entender o doente mental, aceitar, respeitar ele, na forma que ele é, não em tudo, porque às vezes ele fica agressivo, mas a
família também não pode espancar ele, mas tem que tratar com amor,
explicando que precisa tomar o remédio (Cassandra, usuária).
Na minha família há discriminação, sim. Porque minha mãe não tem
formação nenhuma e por qualquer coisa chama logo a gente de “louca”, de
“doida”, está entendendo, Adriana? Não tenho apoio na família, a não ser de minha filha, que agora está aqui [morando juntas] estudando, mas é uma
discriminação horrível, dentro da família a gente se sente pequena, sem
apoio (Raimunda, usuária).
Por outro modo, assinalam os PTM que a sociedade deve entendê-los como
pessoas capazes de ser produtivas e de assumir responsabilidades, em especial quando fora da
crise e em discernimento e lucidez, pois, normalmente, são vistos pela sociedade como
pessoas pouco confiáveis, sem condições de arcar com compromissos no espaço social, o que
os põem em situações de humilhação e lhes ferem a integridade. Por conta do preconceito,
afirmam que algumas vezes até conseguem emprego, mas quando a sua condição é
descoberta, as chances de permanência no trabalho são reduzidas, até ínfimas, casos em que,
em geral, são dispensados, sob alegações as mais diversas.
Fora do hospital, na sociedade, deveria não haver discriminação para o
trabalho. Porque quando a gente sai do hospital, [após a alta] eu mesma, que sou cozinheira e costureira, demoro muito para conseguir trabalho [...] por
que há discriminação, elas pensam que a gente cai na depressão porque a
gente quer [...]. Não é que eu tenha dificuldade para me relacionar, é que quando as pessoas ficam sabendo que eu uso esses remédios controlados
[psicotrópicos], elas não me aceitam no trabalho, elas me rejeitam
(Raimunda, usuária).
Dentro da sociedade ele [PTM] precisa ser tratado como um ser humano,
como todos nós que somos seres humanos e todos nós podemos ter doenças,
todos nós. Uns têm aids, câncer, outros são desequilibrados mentais, outras
331
são nervosas, outros são agressivos, então ele tem que ser tratado como um
ser humano de forma geral, não pode ser discriminado de forma nenhuma,
isso é uma injustiça, é um crime (Cassandra, usuária).
Então, essas pessoas têm o direito a ser respeitada, têm direito ao trabalho e
não ser difamado pelos vizinhos. Assim, falar mal, dizer: aquele é um
“louco”, vive internado no Meduna. Então, acredito que é isso aí, a importância de chegar em casa e os vizinhos darem apoio e aquelas pessoas
da comunidade também (Sérgio, usuário).
As falas revelam que, na família e na sociedade, são marcantes e comumente
observadas situações de constrangimentos a que estão submetidos o PTM, em decorrência do
preconceito e do estigma do transtorno mental que, em relação a outras doenças, como câncer
e aids é a que mais limita os seus portadores nas diversas instâncias sociais. Se, no hospital,
são minimamente respeitadas, fora dele sofrem constantes discriminações, exclusão e
humilhações, sendo-lhes negado acesso ao trabalho e rotulados de “loucos”, devido à
passagem por ou as internações em hospital psiquiátrico. A família e a sociedade precisam,
então, avançar no debate acerca da cidadania especial, a ser assegurada aos sujeitos com
necessidades especiais, como os PTM.
Assim, para além das questões aqui expostas e considerando a realidade social
vivenciada pelos PTM, em sua trajetória de vida como usuários contínuos dos serviços de
saúde mental, vê-se que criticam e reivindicam mais atenção e uma assistência especializada
de melhor qualidade, que os tratem com respeito e dignidade. É que eles exigem, como
usuários dos serviços de saúde, que seus direitos e sua cidadania sejam assegurados, lutando
ainda para serem aceitos como diferentes, porém sem discriminação de qualquer ordem ou
natureza. Há, aliás, com relação à problematização dos direitos e da cidadania pela família ou
responsáveis, uma certa semelhança com o exposto nas falas dos usuários. Apesar de se
verificar incompreensões e preconceitos dentro de dadas famílias, o que constata-se, que, no
geral, a família e o responsável pelo PTM os vêem em sua integralidade, expressando que
tem direito a tratamento e internação, quando precisar. Os depoimentos, seguintes são
reveladores do que se quer pontuar.
No meu entendimento, o direito da pessoa [PTM] é ter vaga nos hospitais quando precisar internar, para se tratar, tomar o remédio. [...]. Eles ficam
muito agressivos e quando não tem vaga ficam perambulando pelas ruas,
porque eles só tomam o remédio quando estão internados. Então, eu acho que eles têm o direito ao internamento na hora certa (Maria Antônia,
familiar).
332
Eu penso que ele tem o direito de fazer o tratamento médico, ter o
acompanhamento médico (Marcelina, familiar).
A família percebe os direitos do PTM associando-os ao tratamento, mas não a
qualquer tipo de tratamento. Expressa que, quando internos, têm o direito a uma assistência
de qualidade, sendo bem tratados na instituição como pessoa e como PTM, devendo o serviço
de saúde acolher o seu ente querido com respeito, dignidade e acesso às informações
necessárias à sua recuperação.
Ela tem o direito de ter um tratamento adequado, a medicação que desse
certo de ela melhorar, ter um conforto, alimentação (Marcelo, familiar).
Ela tem direito a ser bem atendida, o maior prazer que a gente tem é chegar e
ver que ela está sendo bem tratada [...]. Ela tem direito à alimentação (Mirtes, familiar).
No hospital, não gira em torno da minha cabeça, mas eu acho que, como
aqui, eu vejo que eles têm um bom tratamento, observo que não é como em outras clínicas, onde ela não melhorava. Então, eu acho que eles têm o
direito a um tratamento adequado (Mônica, familiar).
Acho que o paciente deveria ter uma atenção especial, tratamento especial
por ele ser um doente mental ou deficiente mental, isso requer mais atenção
para com ele. Acho que deveria ter alimentação na hora exata, roupas,
higiene, atendimento médico, lazer, enfim, tudo isso (Maria Eduarda, familiar).
Essas expectativas das famílias, que expressam o desejo por um tratamento de
qualidade para o ente querido mentalmente enfermo, fazem parte do universo da maioria, que
encontram no hospital um lugar “adequado” para deixar o PTM em crise, esperando da
instituição que atenda a contento o internado, não apenas lhe oferecendo medicação mas
também alimentação, higiene, carinho e lazer. Na verdade, do mesmo modo como para a
maioria dos usuários, os familiares ou responsáveis sentem-se relativamente respeitados no
que refere ao ambiente hospitalar e entendem que a garantia dos direitos e da cidadania dos
PTM se relacionam a um serviço de qualidade, sobretudo se internos no Sanatório Meduna.
Ademais, a compreensão de efetivação dos direitos, na ótica dos familiares, apresenta-se,
ainda, vinculada à qualidade das relações entre os usuários e os profissionais da equipe
institucional, que se deve caracterizar pelo respeito, afeto, atenção e educação, considerando
333
os enfermos nas suas particularidades e singularidades. Diz, então, José Filho, um familiar,
que
os direitos que [os usuários] têm, no meu entendimento [é] primeiro [...] o direito a ser cidadão, de ser bem tratado, [pois] mesmo como doente é um
cidadão ou cidadã e tem que ser bem tratado pelos parentes, pelos médicos,
pelo assistente social e por todos as pessoas que acompanham o tratamento.
Vê-se, nesse caso, a referência aos profissionais da equipe interdisciplinar, em
particular aos assistentes sociais e aos médicos, que procuram viabilizar os direitos do PTM
com informações e orientações acerca dos serviços e benefícios oferecidos pela instituição.
Assim, de acordo com as falas e gestos dos sujeitos entrevistados, fica evidente uma prática
profissional do assistente social voltada para os direitos dos usuários. Por outro lado, nos
depoimentos o hospital psiquiátrico aparece normalmente configurado como um refúgio para
os PTM, já que a outra opção que lhes resta é a própria rua, onde se expõem a inúmeros riscos
e ficam sem um tratamento que lhes assegure o bem-estar, notadamente nas crises agudas.
A “rua” é, com efeito, um espaço da marginalidade, com um sentido simbólico
negativado e associado às “coisas do mundo”, caracterizando-se, por isso, como um lugar de
contrastes, que traz o perigo e o estranho e o oposto da “casa”, o locus familiar e da
intimidade, onde se convive por laços de afetividade (DA MATTA, 1997). No geral, os
sujeitos da pesquisa demonstraram gostar do ambiente do hospital, referindo ser ele um lugar
até “bom”, no qual as necessidades básicas (alimentação, proteção, medicação, etc) são
atendidas e estão “protegidos” das ameaças que a rua oferece, como o abandono, a fome, a
violência, o desprezo, a solidão, os maus-tratos, os preconceitos, tudo isso que põe sua
integridade física e mental em maior risco. Nessas situações, o hospital assume, para o PTM
em crise, um caráter protetor, pelo menos em alguns aspectos:
Aqui [no hospital] é o melhor lugar para ela ficar, eu não me preocupo, acho que ela está bem “guardada” [...]. Ela estando fora do hospital, eu fico
temerosa em que possa acontecer alguma coisa com ela, [pois] na rua ela é
agredida (Maria Antônia, familiar).
A vida fora do hospital é ruim, discriminam muito a gente (Silvano, usuário).
Lá fora tem discriminação, principalmente em Timon, onde eu moro, é um
pessoal “besta”, às vezes até os parentes ficam criticando, mas eu não ligo
334
mais para isso, eles vão perder o tempo deles. Às vezes os próprios vizinhos
rejeitam a gente, é melhor ficar no hospital, quando a gente está em crise
(Silvano, usuário).
Apesar de um local historicamente causador de medo e repúdio e visto como um
ambiente abominável pelas suas estruturas de instituição fechada, o hospital psiquiátrico
continua, na maioria das vezes, como umas das únicas opções para as famílias, sobretudo as
de baixa renda, com PTM em crise aguda. Dessa forma, assume ele um papel, de certo modo,
“positivo, [...] que cumpre a função de refúgio nos períodos de sofrimento e [de viabilização]
do direito da família à co-responsabilidade pública com o cuidado e tratamento de seu
membro com problemas mentais” (VASCONCELOS, 1992 apud ROSA, 2000a, p.67). Com
efeito, nas falas, as famílias e usuários raramente mencionaram não gostar do hospital,
embora, quando alguns entrevistados o critiquem, isso se restrinja a algo que lhe desagradou,
como determinada atitude desrespeitosa de funcionários ou de profissionais, a perda de
objetos pessoais, problema de alimentação ou, ainda, a saudade de casa e a ansiedade pela
alta. Não mencionam, porém, que o ambiente hospitalar seja um local ruim ou hostil à sua
pessoa, como usuário de um serviço especializado de saúde.
Acho que sim, [que o hospital é bom] porque até hoje o meu paciente nunca me fez reclamação. Ele gosta do hospital, diz que as pessoas são todas boas
(Mirtes, familiar).
Então, aqui dentro [no hospital] ele tem mais direito a um bom tratamento, é
tratado como pessoa, como um ser humano, coisa que lá fora, dificilmente,
acontece. Não há respeito com o doente mental [na sociedade] (Otávio,
familiar).
Sou sempre bem recebido [no hospital] por onde ando, em todos os
pavilhões, no pátio, no refeitório, sou bem recebido, e por todos os plantonistas, enfermeiros, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais, eu me
sinto muito bem [quando internado] (Sergio, usuário).
De outro modo, internado o PTM, este período representa, para a família, a
possibilidade de um momento de descanso e de recarga das energias exigidas pela prestação
de cuidados intensos e contínuos. A família visita o PTM no hospital, e, durante a
permanência deste nesse estabelecimento de saúde, aproveita para cuidar um pouco mais de
si mesma, já que o enfermo se acha sob os cuidados de uma instituição médica. Muitas vezes,
335
o cuidador também prover o sustento da família e, para isso, trabalha fora de casa, de sorte
que entre deixar o enfermo sem tratamento especializado (pois não existe no Estado outra
forma tratamental que não a internação integral em crises agudas) ou na rua, o hospital se
constitui a alternativa para o período de crise, sabendo-se que ele receberá atenção pessoal e
social dos profissionais, além dos cuidados gerais e especiais.
Ora, conforme pontuado nos capítulos anteriores, no Piauí a criação dos serviços
psiquiátricos alternativos, como NAPS e CAPS, se têm dado muito lentamente, não havendo
por partes dos poderes constituídos estaduais e municipais um efetivo empenho no sentido de
investir recursos no estabelecimento desses serviços. Neste Estado (e na maioria dos outros),
o hospital psiquiátrico ainda assume o papel mais importante no tratamento em saúde mental,
inexistindo, aqui, CAPS que atendam aos PTM adultos, mas apenas um, Infanto-Juvenil,
localizado no HAA, e um NAPS para drogaditos, incluindo os alcoolistas, situado no Hospital
Municipal do Monte Castelo.
É nesse contexto que se diz que as idéias da Reforma Psiquiátrica no Piauí e no
Brasil ainda são muito incipientes, ficando mais na retórica. Nessa realidade, em que o
hospital ainda prepondera, os usuários são minimamente respeitados, como afirmam em suas
falas, expressões e vivências, apesar de a passagem por um hospital psiquiátrico ainda hoje
lhes acarrete e às famílias uma representação e uma significação muito fortes, que refletem-se
na vida pessoal, familiar e social. Esses reflexos impingem o estigma e o preconceito
historicamente vinculados ao PTM, tido como pessoa “perigosa” para a sociedade e a paz
social, exatamente como ocorria há séculos. De sorte que o fato de o enfermo encontrar-se
fora do hospital psiquiátrico, local secularmente constituído no mundo ocidental para seu
enclausuramento, é ainda visto como uma ameaça potencial à ordem.
Porque quando a pessoa está no Sanatório todos pensam que ali todos são loucos, mas nem todos são [há casos de usuários que se internam no
Sanatório por uso de drogas], [...] tem gente com condição de trabalhar lá
fora [...] então, essas pessoas têm o direito de ser respeitada e não ser difamada (Sérgio, usuário).
A partir do momento que é registrada uma internação em clínica
psiquiátrica, daí já se limita o acesso a emprego. A pessoa fica 15 dias e quando descobre que a pessoa usa remédio controlado [psicotrópico] ou
alguma coisa desse tipo perde o emprego, há uma certa rejeição. A mamãe
mesmo todo emprego que ela arranja ela esconde que usa remédio controlado, já começa daí, logo que descobre ela perde o emprego, e entra
novamente em crise. Na família também, acho que dentro da família, eu
336
seria muito hipócrita se dissesse que tudo voltaria a ser como antes, porque
não volta, porque a partir do momento em que a pessoa passa a ser internada,
desde o primo mais distante ao primo mais próximo, sempre há aquele comentário “ah, é a louca, é a doida” [...] [que se] vê sempre como uma
pessoa doente e nunca como uma pessoa normal, capaz de fazer alguma
coisa (Mônica, familiar).
Acho que [o PTM] é tratado com certa discriminação pela sociedade, devido
à doença que eles têm. Devido o comportamento que ele tem. Representando
para estes sujeitos [o fato de que] as pessoas já passam a vê-lo com outros olhos, um pouco atravessado [...], com desconfiança, medo [e] isso faz com
que as pessoas se afastem dele, [que] são rejeitados (Otávio, familiar).
Esse imaginário, construído e consolidado no meio social através dos tempos,
toma os PTM, mesmo no mundo moderno, como pessoas ameaçadoras para conviver nos
exteriores da instituição psiquiátrica, como a rua e a comunidade. Daí que os sujeitos
entrevistados (Sérgio, Mônica e Otávio) e outros sentem o peso da discriminação, que a
sociedade alimenta e reproduz, numa realidade que gera, freqüentemente, para eles e seus
familiares, situações discriminatórias que comportam até agressões físicas e estigmatizações
nos diversos espaços sociais, o que se dá pela persistência de um forte medo ao portador de
transtorno mental. Aliás, essas situações se associam à idéia de perigo constante para quem os
cerca, para quem com ele convive e para os que deles estão próximos.
Na verdade, apesar dos avanços da medicina e da psiquiatria, ainda são muitas as
dúvidas em torno dessa doença milenar. Com efeito, falta clareza a respeito de suas múltiplas
causas e manifestações, de modo que, a sociedade também não sabe das potencialidades e
habilidades do PTM como pessoa detentora de capacidades que precisam e devem ser
exploradas, valorizadas e estimuladas, para que assim ganhe o enfermo maior visibilidade
como ser humano e adquira o respeito da sociedade e da família, num contexto social mais
amplo, para além dos muros psiquiátricos, do qual ele é parte constituinte e constituída. Nessa
realidade concreta, o momento atual é o de cada vez mais buscar novas alternativas para o
enfrentamento do transtorno mental que, nas suas diversas manifestações físicas, orgânicas e
psíquicas, afeta homens e mulheres, ao longo de suas vidas, assumindo sempre diferentes
formas de expressão que alteram seriamente suas vidas pessoal, social e, sobretudo, familiar.
Por isso é que os profissionais, em especial o assistente social, mobilizam-se e
articulam-se aos demais, na direção de ultrapassar esses aspectos que estigmatizam,
historicamente, o transtorno mental. Com esse objetivo, as assistentes sociais do Sanatório
Meduna têm planejado e desenvolvido atividades de grupo com as famílias, visando discutir
337
as manifestações de transtorno mais comuns e a melhor forma de enfrentá-las, o que mostra a
importância do tratamento e de sua continuidade. Assim, a informação e o esclarecimento,
que preparam a família e o PTM para conhecerem melhor a doença e suas manifestações, têm
sido a estratégia mais usada ao abordar essa doença que, ao longo dos séculos, marca
severamente àqueles que as tem. Ademais, essa estratégia tem sido uma das maneiras de
assegurar e viabilizar o acesso dos PTM aos direitos e à cidadania que detêm. Aliás, nesse
sentido assinala Faleiros, E (2002, p.36) que
nesta proposta profissional os assistentes sociais têm um papel fundamental. Trata-se de romper o „dentro‟ do hospital psiquiátrico, da casa, do quarto, da
doença, inserindo os usuários no „fora‟, na sua casa, na cidade, na sociedade,
na vida cotidiana, nas trocas afetivas e sociais, no trabalho, no lazer, na
saúde, fortalecendo suas redes primárias e secundárias, fragilizadas ou destruídas por internações, medos, preconceitos, incompreensões. Trata-se
de trabalhar pela cidadania dos usuários, facilitando informação e acesso a
seus direitos econômicos, sociais, políticos; trata-se de mudar as relações de poder, aumentando seu poder de organização, para que tenham força para
pressionar e garantir direitos, denunciando os casos de violação.
4.2 Representações da prática do assistente social no Sanatório Meduna
Neste item, a tentativa é a de configurar as representações que o conjunto dos
sujeitos sociais envolvidos nesta pesquisa constroem acerca da prática do assistente social no
Sanatório Meduna. Essa apreensão será mediatizada pelas análises dos discursos dos sujeitos
participantes do estudo, protagonistas detentores de conhecimento e de práticas numa relação
de trocas e reciprocidades. Objetiva-se assim, vislumbrar as representações da prática
profissional do assistente social como “imagens construídas sobre o real” (MINAYO, 1998a,
p.108), considerando os limites do objeto e do material empírico a que se teve acesso e o
elaborado durante a investigação. Interessa, ademais, observar e compreender “imagens
sociais” que permeiam a profissão, corporificadas em vivências experimentadas pelo conjunto
dos sujeitos participantes da pesquisa, mas sempre levando em conta as impressões e saberes
de cada sujeito, na medida em que, segundo Lane 1995 (apud Teixeira, 1998, p.46), “os
significados produzidos historicamente pelo grupo social adquirem no indivíduo um sentido
pessoal, ou seja, a palavra se relaciona com a realidade, com a própria vida e com os motivos
de cada indivíduo”.
338
Nesse esforço, as representações aqui mostradas relacionam-se tanto aos aspectos
cultural e social do indivíduo e da sociedade quanto compreendem as atitudes, imagens,
opiniões e tudo que remete ao humano e ao social dos sujeitos concretos e históricos em
dados momentos e situações, quanto envolvem vários saberes, entre eles o popular, o senso
comum e os fragmentos do cotidiano. Aliás, afirma Guareschi (1998, p. 202) que
são diversos os elementos que costumam estar ligados ao conceito de RS: ele
é um conceito dinâmico e explicativo, tanto da realidade social, como física
e cultural. Possui uma dimensão histórica e transformadora. Junta aspectos culturais, cognitivos e valorativos, isto é, ele se constitui numa realidade
presente nos objetos e nos sujeitos. É um conceito sempre relacional e por
isso mesmo social.
As representações, enfim, são imagens que se manifestam de várias formas,
porque, conforme Minayo (1998a, p.108), “palavras, sentimentos e condutas se
institucionalizam [e] portanto podem e devem ser analisadas a partir da compreensão das
estruturas e dos comportamentos sociais, [mas] sua mediação privilegiada [...] é a linguagem,
tomada como forma de conhecimento e de interação social”. Envolvem, assim, várias
instâncias do conhecimento e da vida e não são necessariamente reflexos da consciência,
individual ou coletiva, sobre um objeto ou idéias a ela exteriores, mas devem reconstituir o
que lhe é dado, imerso num contexto de valores, emoções e regras da sociedade da qual faz
parte (TEIXEIRA, 1998). Ressalte-se, porém, que neste estudo não se tem a intenção de
engendrar uma discussão teórica sobre o tema das representações, mas apreender alguns dos
seus elementos mais importantes.
4.2.1 A compreensão do Serviço Social pelos assistentes sociais
Conforme exposto no capítulo precedente, no bojo da sociedade moderna e ao
longo dos anos o Serviço Social tem sido historicamente apreendido como uma profissão
socialmente determinada e inserida na divisão sociotécnica do trabalho, da ordem capitalista,
em face das necessidades sociais dos indivíduos e grupos que compõem essa realidade. O
Serviço Social, como um componente da organicidade, dialeticidade e totalidade da
sociedade, tem-se portado como um trabalho especializado e responsável pela elaboração de
respostas à questão social, nas suas mais variadas formas e manifestações, dentro de um
339
contexto social permeado por múltiplas contradições e adversidades próprias do mundo
capitalista, projetando-se na direção de contribuir para a leitura e interpretação dessa realidade
em cuja complexidade se insere. Para isso, no seu processo de transformação, precisa assumir,
nos planos teórico e prático, uma atitude investigativa, crítica e competente.
Pode-se dizer que a inserção do assistente social nos diversos campos de atuação
profissional, de acordo a historicidade e a dinamicidade das relações sociais presentes na
realidade institucional e social, assume diferentes posturas, tem variadas percepções e procede
a divergentes análises dessa realidade. Assim, dependendo de dadas conjunturas e
circunstâncias, objetivas e subjetivas, o assistente social empreende diuturnamente ações para
transformar o cotidiano de suas práticas em possibilidades efetivas de mudanças da sociedade,
nas instituições e nas relações entre indivíduos e grupos sociais. Na verdade, como já se disse
anteriormente, não se pode afirmar que o Serviço Social, como prática, tenha na sociedade
uma postura profissional exclusiva de defesa ou dos interesses dos setores dominantes ou dos
mais empobrecidos. É que o exercício profissional não se exaure na imediaticidade social, já
que é uma unidade complexa e dialética, permeada por múltiplos processos, interesses e
forças que se expressam na singularidade histórica das sociedades brasileira e mundial.
No Sanatório Meduna, o Serviço Social tem assumido, historicamente, o
enfrentamento, no cotidiano hospitalar, das diversas demandas sociais e das várias
manifestações do transtorno mental, mantendo vínculos, produzindo significados e realizando
mediações com o contexto social mais amplo, como categoria que atua imersa no universo
dos usuários, familiares e demais profissionais da equipe técnica interdisciplinar que, no
âmbito institucional, requerem sua intervenção. Por esse ângulo, como sujeitos envolvidos
nesta pesquisa, os assistentes sociais têm, no cotidiano da profissão, posição relevante no
conjunto das práticas sociais desenvolvidas na instituição, até porque atuam na linha de frente
do tratamento e na abordagem direta e indireta aos usuários e familiares, na relação com a
direção e os demais profissionais da equipe interdisciplinar no desvendamento e
enfrentamento da realidade social.
Num movimento contínuo e dialético, o assistente social, nos diversos cotidianos
institucionais, de um modo geral age sobre as necessidades humanas e sociais, sobretudo as
demandadas pelos grupos e segmentos mais pauperizados e excluídos e que não têm
oportunidade de usufruir a riqueza socialmente produzida, para responder a essas
necessidades na perspectiva dos direitos e da cidadania desses segmentos. Essa ação
profissional, por ser interventiva, atua nas diversas dimensões do tecido social, mediando
340
relações, processos estruturas e movimentos que envolvem aspectos da particularidade,
singularidade e totalidade histórica dos objetos da prática profissional, em seus conteúdos
objetivos e subjetivos, materiais e espirituais, imediatos e mediatos.
Nessa direção, buscando contribuir para o enfrentamento e a resolução das
demandas interiores e exteriores à profissão de Serviço Social, diariamente postas, o
assistente social desenvolve inúmeras atividades, que o desafiam constantemente a
posicionar-se pela efetivação dos princípios do Código de Ética Profissional. Na realidade
especifica do Meduna, esse profissional assume diversas atividades, voltadas para os PTM e
familiares e os outros profissionais da equipe, entre as quais se destacam os encaminhamentos
de altas, o atendimento individual do usuário e da família, prestando-lhes informações
variadas (situação do quadro clínico, óbitos, acesso a benefícios sociais, remoção hospitalar
para outras unidades de saúde, etc) e ainda formando e orientando grupos sócioeducativos que
discutem temas de interesse desses sujeitos sociais, visando a conscientizá-los dos seus
direitos e de sua cidadania.
Todas essas atividades, que envolvem a prática profissional, têm também o
sentido de promover a reintegração social, entendida esta como processo e resgate da
cidadania do PTM, considerado como ser humano e social capaz de relacionar-se e integrar-se
no ambiente familiar e comunitário e capaz de estabelecer e (re) estabelecer laços com a
instituição psiquiátrica, a família, a sociedade e o mundo, ainda que com singularidades,
limites e potencialidades caracterizadas como especiais. É que são, enfim, sujeitos portadores
de direitos, desejos, vontades e capacidades, a ser consideradas nas suas objetividades e
subjetividades e na integralidade como ser humano e social.
Essas e outras atividades do assistente social no Meduna dizem respeito ao fazer
profissional na instituição e comportam, no todo, diversos ângulos de ação. Essa apreensão do
fazer e do pensar do assistente social, articulado aos interesses e necessidades dos usuários e
seus familiares e dos outros profissionais, estão expressos nos diversos depoimentos, dados
durante as entrevistas e nas observações de campo procedida pela pesquisadora. É, pois,
assim, que a assistente social Sandra vê o Serviço Social e o conjunto das suas atividades no
Meduna:
A gente trabalha muito ligada ao paciente enquanto interno, realizando
orientação, informação, atividades educativas, práticas sócio-educativas, em
grupos e também individual, etc. Então, os objetivos estão mais voltados para prestar assistência ao paciente e também à família. A família,
341
orientando-a sobre a continuação do tratamento em casa, encaminhamento
para outras instituições, então o objetivo do trabalho do assistente social é a
família.
Como a entrevistada, a maioria das assistentes sociais do Sanatório Meduna
referiu-se à preocupação de orientar os usuários e a família, objetivando fornecer-lhe
informações acerca do tratamento, preparando-os para continuá-lo em casa. Para isso,
dedicam parte de seu tempo, na instituição, em atividades de grupo ou mesmo atendimentos
individuais aos usuários internos e familiares. Esses relatos e as observações feitas durante a
pesquisa mostram que, na instituição, as assistentes sociais são as profissionais que mais
trabalham com a família, porquanto, no cotidiano, interagem com esses sujeitos, mediando-
lhes as múltiplas relações. Assim, auto-representando-se como o profissional que é o “porta-
voz” da família, refere a assistente social Mariana que
eu percebo que a família pede, como que a gente até fosse um “porta voz” dela, que diga até como eles devem ser, às vezes elas se esquecem que eles
[PTM] são doentes, que eles fazem determinadas coisas não porque eles
queiram, ou esquecem, mas porque são eles, portadores de uma deficiência. [...] Eu vejo assim que a família quer que a gente diga para o paciente o que
deve fazer quando sair. “Olhe! diga para ele tomar o remédio”, ela pede,
para a gente ensinar tudo ao paciente. O que eu percebo dos outros
profissionais que atendem ao doente é que eles, quase todos, não falam com a família nenhuma e quando eles vão atender os pacientes eles descobrem
que junto com o paciente, com a doença do paciente, tem alguma coisa a ver
com a família do paciente, e só têm, eles [os outros profissionais], não pedem para falar com a família, eles passam para o Serviço Social. Então,
quase todos os profissionais que trabalham com saúde mental deveria ter um
momento com a família, eles deviam até conhecer melhor e a fundo.
No cotidiano institucional, o Serviço Social é ainda entendido pelas assistentes
sociais como o responsável pelo processo de reinserção social dos usuários. É que a profissão,
na auto-representação dos profissionais, objetiva, como já foi ressaltado, o (re)
estabelecimento dos laços do usuário com o meio e a família, porquanto um ser produtivo,
capaz, hábil e com potencial a ser explorado. Mariana, assistente social, diz que
a preocupação do Serviço Social é que ele [usuário] seja resgatado como pessoa, mostrando que ele tem que fazer parte de sua vida como um todo.É
claro que temos que levar em conta as limitações impostas pela própria
doença mental, cada doença tem uma limitação [...]. Então, eu vejo assim, o objetivo do Serviço Social seria a gente fazer com que ele [usuário] se
encontrasse como cidadão, que pode produzir enquanto pessoa que tem um
342
potencial [...]. Fazer com que ele se aceitasse, descobrisse que tem
capacidade para produzir alguma coisa.
De acordo com ela, o profissional de Serviço Social é aquele que procura
valorizar o usuário, na busca de que ele encontre a si como pessoa e cidadão e sinta-se
socialmente útil e capaz, no contexto das manifestações do transtorno mental em suas
variadas formas, concebendo-o como um agente propositor de mudanças. Mariana sabe que
existem e leva em consideração as limitações que o transtorno mental impõe aos seus
portadores, mas defende que estas sejam aceitas pelo PTM e não postas como empecilhos ao
desenvolvimento das suas capacidades e habilidades produtivas. Nas falas e expressões, a
assistente social se auto-representa como o profissional que faz a mediação (esta uma
instância de passagem entre o desvendamento da realidade social do PTM, os
condicionamentos que a determinam e as respostas aos seus problemas, necessidades e
interesses) entre os vínculos estabelecidos pela relação usuários, família, instituição e
sociedade, de sorte que é considerado, por excelência, “um mediador na relação usuário-
instituição, usuário-programa, numa dinâmica contraditória em que, cumprindo objetivos
previstos no âmbito institucional, vem buscando a identificação com os interesses das classes
subalternizadas com que trabalha” (YAZBEK, 1996, p.151). Nesses termos, o assistente
social é responsável pela mediação com a família e as outras instituições, visando facilitar a
vida dos sujeitos com os quais estabelece relações profissionais ao longo do tempo, no espaço
institucional onde atua, fomentando o processo de reflexão e ação desses sujeitos acerca da
realidade em que estão inseridos. Nesse espaço, amplo e contraditório, a assistente social é o
profissional que, por excelência, estabelece, nexos com o universo interno e externo no
Sanatório Meduna, na medida em que permeia e é permeado pelas relações sociais que
estabelece com os sujeitos, no espaço institucional, em toda a sua complexidade. Consoante a
isso, refere a assistente social Sandra que
no processo de tratamento o assistente social é um mediador, encaminha,
orienta a família a outros atendimentos. É o assistente social que facilita as
informações, a socialização de informações para os usuários. Então, hoje existe uma preocupação maior por parte do assistente social, por parte das
políticas sociais, em respeitar o doente mental como um todo, não vê só o
problema dele de forma limitada e isolada àquela doença, mas vê toda a
estrutura e todo o contexto em que o paciente se encontra. E isso veio com a Constituição de 1988 para cá, em respeitar os direitos [...] do paciente e da
família, como um ser humano.
343
Para Sandra, o profissional de Serviço Social é um mediador que articula,
encaminha, intervém e estabelece múltiplas relações e movimentos com a realidade social,
transgredindo-a, dentro da instituição, na sua imediaticidade, em busca de apreender-lhe as
particularidades e historicidades com uma postura crítica, reflexiva e ética. Essa mediação
representa para a profissão a possibilidade de compreender e analisar a realidade social para
além das aparências e do imediato, engendrando à prática um caráter de criticidade, que
revela as suas nuances e nexos. Essa fala expressa ainda que, no dia-a dia, é o assistente social
quem viabiliza aos sujeitos a democratização das informações e o acesso aos serviços sociais
internos e externos à instituição, promovendo seu trabalho na perspectiva do direito e da
cidadania desses sujeitos sociais, conforme lhes assegura a Constituição Federal. Na mesma
direção se capturam os seguintes depoimentos:
Entendo que hoje existe uma preocupação da equipe em alcançar os objetivos planejados, em prol do bem-estar dos usuários, no cotidiano,
visando respeitar os seus direitos e a sua cidadania (Josefina, assistente
social).
Tudo que acontecia com o paciente o assistente social estava lá, atuando,
agindo, fazendo melhorar a assistência ao paciente. Se o paciente fugisse, ou
passasse mal, existe sempre a preocupação em informar aos familiares do fato. Existe hoje a preocupação em se trabalhar em conjunto, visando o bem-
estar do paciente, pois antes esse trabalho em conjunto não havia. Mas hoje
os profissionais se juntam, atuam juntos, visando o melhor para o paciente, respeitando-o como pessoa [...]. Aqui é uma instituição que sempre respeitou
o paciente em primeiro ponto. Antigamente, eu era sozinha no Serviço
Social, hoje tem outras colegas com a mesma preocupação, em melhorar o
bem-estar do paciente (Mariana, assistente social).
Esses depoimentos das assistentes sociais Mariana e Josefina, assim como os
precedentes, dão conta de que, na instituição, existe a preocupação com o bem-estar,
entendido até como a busca dos direitos e da cidadania dos usuários e da qualidade dos
serviços de saúde oferecidos pelo Sanatório, reforçada com a ampliação do número desses
profissionais no hospital. Percebe-se ainda, ao longo dos anos, um empenho em desenvolver
um trabalho interdisciplinar em prol de melhorar a atenção ao PTM, valorizando-o como um
ser social e um cidadão. Aliás, ficou claro que antes da Constituição de 1988 e das mudanças
e exigências ocorridas com a Reforma Psiquiátrica no Brasil e no Piauí, as atividades, na
instituição, eram realizadas individual e isoladamente, sem comunicação e interação entre os
profissionais das diversas categorias, o que se vem alterando pois a postura profissional
344
individualizada se tem modificado com o tempo, adotando-se uma perspectiva de
interdisciplinaridade que objetiva melhorar a qualidade dos serviços oferecidos aos usuários e
familiares.
O fortalecimento dessas preocupações faz do assistente social um dos
profissionais presentes e que acompanham mais de perto o tratamento do usuário interno.
Embora algumas vezes não seja ainda possível a participação em todo o processo de
admissão, normalmente é este profissional que monitora o tratamento até a alta, havendo,
nesse período, uma aproximação do usuário com a assistente social responsável pelas
atividades de rotina do Setor de Serviço Social no seu pavilhão. Durante o tempo da
internação, a assistente social torna-se-lhe uma referência, com a qual cria vínculos e
contatos, sendo com ela que conta para ouvi-lo e atendê-lo, demandas essas que acontecem a
todo o momento, exigindo-se uma atenção individual e social no sentido de encaminhar as
necessidades desses sujeitos de modo que esta passa a maior parte do trabalho em contato
com eles e suas necessidades.
Com efeito, o conjunto dos outros técnicos da equipe, por entender que a
assistente social conhece mais a realidade e o problema do usuário e da sua família,
cotidianamente encaminha demandas para o Setor de Serviço Social. As situações são
variadas e vão desde uma informação sobre como proceder para adquirir um benefício
previdenciário até a um encaminhamento de maior complexidade, que envolve a mobilização
de toda a equipe e de outros recursos. Aliás, há relatos que dizem que
eles [os outros profissionais] solicitam que a gente do Serviço Social
esclareça à família quanto à continuação do tratamento lá fora e as outras formas de tratamento, como CAPS, NAPS, Hospital-Dia, orientando a
família junto a outras instituições, como o INSS, ou com relação a beneficio,
dentre outras coisas mais (Sandra, assistente social).
Isso retrata que, no cotidiano institucional, a assistente social é considerada como
aquela que conhece e tem acesso às instituições que prestam outros serviços sociais à
comunidade, nas mais variadas áreas, inclusive os trâmites legais. Por isso, entendem que
saberá encaminhar a família e o usuário para o serviço mais adequado, além de orientá-los
sobre a aquisição de benefícios junto aos órgãos oficiais.
Ademais, a assistente social, atuando na teia das relações sociais numa realidade
diversificada, dinâmica e contraditória, algumas vezes precisa atender de pronto a essas
345
demandas, que chegam heterogêneas e a exigir soluções rápidas por parte do profissional da
área, sobretudo na saúde mental. Nessas circunstâncias, enfrentam no dia-dia conflitos,
dilemas e adversidades (materiais e espirituais) relacionados a elementos internos e externos à
instituição, como as condições estruturais de trabalho, a precariedade financeira das famílias,
o que os fragilizam, tornando-os mais vulneráveis ao transtorno mental, a ausência de um
sistema de serviços de saúde mental integrado que dê suporte ao PTM e sua família, carência
de recursos financeiros que, existentes, viabilizariam a promoção de ações básicas como
transporte e outras, sobretudo para os mais empobrecidos.
Enfim, no conjunto das dificuldades que permeiam a prática profissional do
assistente social, muitas escapam ao seu alcance, já que a solução depende da rede de serviços
sociais locais em que se encontra imerso, devendo então ele socializar os problemas com os
outros profissionais, sejam da área ou não, estabelecendo parceiras na resolução dessas
demandas. Não raro, muitas situações nem dizem respeito às responsabilidades do Serviço
Social na instituição, mas aos outros profissionais ou ao conjunto da equipe interdisciplinar,
sendo demandas que, na verdade, são uma responsabilidade coletiva dos trabalhadores da
instituição.
Mas é possível vislumbrar nos profissionais do Serviço Social, através de seus
discursos, ações e intenções, bem como nas observações cotidianas, um esforço para tentar
superar as limitações, melhorando a sistematização da sua prática e procurando entendê-la
como uma atividade humana, social, dinâmica e contraditória que busca relacionar-se com os
sujeitos com ela envolvidos nessa prática como sendo portadores de vontade, capacidade e
criatividade históricas. Assim, há, com certa freqüência, a avaliação de suas ações, em
reuniões, discussões e debates no interior do próprio Setor de Serviço Social e nas relações
com a equipe, a direção, os PTM e seus familiares.
Já se viu, nesta pesquisa, que “os profissionais inseridos no mercado de trabalho –
a partir da formação profissional ou do próprio contato contínuo com a realidade social - têm
demonstrado portar um potencial a ser resgatado, desenvolvido e aperfeiçoado”
(VASCONCELOS, A., 2000, p. 95). Isso sinaliza que, no cotidiano da prática profissional e
na totalidade das relações sociais no interior e exterior do Meduna, as assistentes sociais estão
cada vez mais dispostas a mudar, rompendo com posições mais conservadoras e imediatistas
do fazer, valorizando o pensar, o planejar e o avaliar as atividades, embora ainda se trate de
atitudes isoladas, com pouca visibilidade no contexto institucional. O importante é que tais
posturas devem ser potencializadas pelas assistentes sociais, reafirmando seus compromissos
346
com os sujeitos sociais que demandam por seus serviços e exercendo uma prática mais
reflexiva, crítica e propositiva, na direção das reais necessidades dos usuários.
Por fim, é salutar mencionar que normalmente as atividades da assistente social
são registradas no prontuário do usuário, na folha biopsicossocial, documentação que pode
oportunizar à prática um caráter de maior profissionalização, controle e racionalidade próprios
de um saber qualificado, que almeja sair do imediato para compreender o conjunto das
determinações e singularidades das demandas postas e repostas. Esse é um desafio constante,
pelo que os registros assumem, uma dimensão singular, por servir de subsídio ao médico e a
outros profissionais, já que relatam a história de vida e da doença do usuário. A esse respeito,
refere a assistente social Sandra que
os registros desses atendimentos e atividades vão servir para o parecer do médico, vai ajudar ao médico tirar algumas conclusões, é como se fosse um
parecer social que o assistente social dá sobre a paciente, com levantamento
sócio-econômico, e a situação como o paciente se encontra na família.
4.2.2 Representação dos usuários e de suas famílias para os assistentes sociais
Historicamente, o assistente social é o profissional que trabalha com os problemas
e as necessidades humanas e sociais advindas das relações entre os indivíduos e os grupos
sociais de uma dada sociedade em dados contexto e situações, mas, ao longo dos anos, a
parcela da população com a qual o Serviço Social majoritariamente trabalha é “aquela
formada pelos grupos subalternos, pauperizados ou excluídos dos bens, serviços e riquezas
dessa mesma sociedade” (CARVALHO, 1996, p. 52). Com efeito, na pesquisa realizada com
as assistentes sociais e na observação e análise dos seus discursos, falas e expressões, é visível
a construção objetiva a respeito de quem são os usuários do Serviço Social no âmbito do
Sanatório Meduna.
Os usuários do Sanatório Meduna são pessoas provenientes dos setores mais
pobres. Geralmente não têm renda nenhuma, passam por muitas necessidades econômicas e financeiras, faltando um pouco de tudo. É assim
a maior parte das pessoas, é pobre, apesar de também ter pessoas mais
abastadas, que se internam pelos planos de saúde particulares, mas que também demandam atenção do assistente social no hospital (Josefina,
assistente social).
347
Os usuários do Sanatório Meduna são doentes mentais crônicos, usuários de
drogas, são depressivos, alcoolistas, psicóticos e na grande maioria são
pessoas carentes, né? Com uma faixa salarial abaixo de 1 a 2 salários mínimos e às vezes até sem renda. São pessoas que vêm do interior, de
várias partes do Piauí e do Maranhão também. São pessoas muitos carentes,
não só financeiramente, mas carente de atenção, de informação e de tudo que
se possa imaginar (Sandra, assistente social).
A fala da assistente social Josefina expressa a representação de que, na maioria
das vezes, os usuários são pessoas de poucas posses e carentes de recursos financeiros para
custear o próprio sustento e o da família, passando até privações, embora afirme que nem
todos são marcados por esse traço34
, uma vez que há pessoas com melhores condições
econômicas e financeiras que se internam no Sanatório e necessitam da atenção e da
intervenção do Serviço Social. Já Sandra ressalta que, além da baixa renda e das carências do
usuário, uma parcela significativa vem de outros estados, como o Maranhão, e do interior do
Piauí, com diagnósticos variados (uso de drogas, como o álcool, depressão, esquizofrenias,
neuroses, distúrbios do humor e do sono, etc). Evidencia também Sandra que, além da
carência financeira, existe uma total ausência de informações acerca dos serviços sociais e
completa falta de atenção dos órgãos públicos no sentido de melhorar as condições de vidas
dessas pessoas. Para Gentilli (1998, p.193-4), em geral quem busca o assistente social são
usuários que se apresentam nas organizações onde o serviço social atende
estressado, angustiado, doente, inabilitado, sem dinheiro, sem habitação, sem
emprego, e de todas as formas possíveis que expressam o pauperismo, e merecem, senão atendimento, pelos menos respeito humano do assistente
social. Estas demandas reúnem, simultaneamente, questões objetivas e
subjetivas que são, ao mesmo tempo, singulares e coletivas.
Na verdade, o perfil do usuário do Meduna apresenta uma certa heterogeneidade,
sendo marcante a nota econômico-social da baixa renda e de muita pobreza, com carências
múltiplas e variadas. Trata-se de pessoas com fome não só de pão, moradia, educação, saúde,
lazer, informação, etc, mas também de amor, afeto e atenção, porquanto detentores de matéria
e espírito, de necessidades objetivas e subjetivas. Assim, o que caracteriza o grupo social e o
usuário com o qual trabalha a assistente social no Sanatório é, geralmente, uma vida de
34 O entendimento de pobreza nesse estudo é fundamentado numa compreensão que a tem para além do
significado de ausência das condições materiais, explicada a partir de uma pluralidade de aspectos que
envolvem o social, o econômico, o político, o cultural, enfim, aspectos materiais , objetivos e subjetivos. “Tal
proposição conduz, inevitavelmente, a pensar a pobreza como uma relação social de caráter multifacetado”
(LIMA, 2003, p.29).
348
privações de toda a ordem, situações com características singulares a cada PTM e respectiva
família e/ou ao conjunto desses sujeitos que experienciam no cotidiano do hospital Meduna e
guardam relações de aproximação ou diferenciação com a grande maioria dos indivíduos e
grupos que se configuram como clientela do profissional de Serviço Social, nos seus diversos
espaços de atuação, inclusive o da saúde mental, no ambiente do hospital psiquiátrico. Tal
universo de usuários e familiares incorpora, aliás, múltiplas nuances, entre elas a pouca
escolaridade, como revela a assistente social Mariana ao dizer que
no Sanatório Meduna acho que 90% dos usuários são, não sei ao certo, são pessoa pobres [...], mas a gente percebe que são compostos por pessoas da
classe média baixa, pobre. Pois muitos deles, 40% ou 50%, não recebem
benefício nenhum, ou seja, não têm renda nenhuma. É um usuário que é
pobre, é o usuário que não tem instrução nenhuma, são poucos os que sabem ler, se eles são alfabetizados, lêem algumas coisas, mas não fazem leituras
longas.
Pela baixa ou inexistente escolaridade, decorrente da falta de oportunidade de
freqüentar a escola e se alfabetizarem, é comum que esses sujeitos sejam duramente
penalizados com as parcas chances de ingresso no mercado de trabalho, agravadas pelo
estigma do transtorno mental, que o faz visto como incapaz de executar tarefas ou atividades
produtivas, sem condições de presença no mundo laboral, formal ou informal. São vidas
assim, timbradas pela pobreza e a doença, a quem o assistente social deve assegurar, no
cotidiano institucional, um mínimo de dignidade, necessária a qualquer ser humano. No
conjunto, os usuários do Meduna são, na maioria, do sexo masculino, em virtude do que se
lhe direciona um maior número de vagas, pois dos 200 leitos, capacidade atual do hospital,
126 o são para os homens. Diz a assistente social Josefina, ao tratar do perfil dos usuários, que
se trata de
pessoas carentes provenientes das classes sociais mais pobres, que busca
tratamento. São homens de baixa instrução, desempregados, que vive do
auxílio da Previdência, ou depende economicamente de outra pessoa da família.
Corroborando as análises anteriores, a assistente social descreve que, no geral, os
usuários, além de homens, têm pouca instrução, nenhuma renda fixa, pois não são
empregados mas dependentes do beneficio da Previdência Social. Este é, na maioria das
349
vezes, a única fonte de renda do PTM e, por conseguinte, da família, de modo que, se não o
tem, ficam, economicamente, sob o sustento de outro membro familiar. Ademais, nas falas
das profissionais de Serviço Social, os PTM aparecem como homens que desenvolvem o
transtorno mental ainda jovens sendo freqüente, na rotina do Sanatório, a internação dessas
pessoas. Há, é claro, mulheres na mesma situação, porém a expressiva parcela dos enfermos
se compõe de homens, com essas características.
São mais homens que mulheres, são homens de idade jovem, muitos de primeira vez, provenientes de todos os municípios do Piauí, desde ao mais
próximo até o mais longínquo. São pessoas que vêm também de grande parte
do Maranhão, ocorrem casos de usuários vindos ainda do Estado do Pará, dentre outros (Sandra, assistente social).
Em face dessa realidade, é normal que as vagas se destinem mais aos homens, nos
dois hospitais psiquiátricos da cidade de Teresina, o Sanatório Meduna e o HAA, sendo
preenchidas rapidamente e raramente ficando ociosas por muito pouco tempo, havendo, com
freqüência, escassez de vagas, de que modo o PTM entra numa lista de espera, “oficiosa”35
e
elaborada pelo Serviço de Admissão do HAA, como forma de controle, porque a demanda
sempre supera a oferta de leitos. Aliás, esse fato de a maioria dos usuários serem do sexo
masculino é uma constatação empírica, pois até o momento não existem sobre isso dados mais
consistentes e catalogados, embora a hipótese explicativa dessa masculinização dos
transtornos mentais deva-se aos altos índices de incidência de dependência química entre os
homens, o que aumenta, nesse segmento, a busca por internação psiquiátrica no Estado do
Piauí. No Meduna, é expressiva a procura por internações de homens com problemas
relacionados ao álcool e a outras drogas, o que ocorre bem menos entre as mulheres,
requerendo-se um estudo mais detalhado sobre a temática, que foge ao âmbito desta
investigação. Fica porém evidenciado, no dia-a-dia, que familiares dos usuários e os usuários
do serviço de saúde mental, independentemente do sexo, carecem não só de bens materiais,
mas também de atenção, carinho e afeto, além de informações básicas sobre como lidar, no
convívio doméstico, com o PTM, entendendo seu jeito especial de ser e suas crises, com todas
as manifestações que lhe são ou não peculiares.
35 Esse tipo de lista é feito, algumas vezes, como forma de controle, pelo Serviço de Admissão do HAA, porque
a demanda é sempre superior à oferta de leitos, ficando as famílias aguardando o surgimento de vaga para
internar o seu ente querido.
350
De modo geral, no universo das entrevistas realizadas com os usuários do
hospital, num total de 11 pessoas, 6 são do sexo feminino e 5 do masculino36
, estando 8 na
faixa etária de 28 a 40 anos e 3 entre 57 a 60 anos, sendo que 6 deles não concluíram o
primeiro grau, 2 o dizem ter e 3 o segundo, hoje denominados ensino básico. A média de
internações psiquiátricas varia entre 5 a 15 vezes somente no Sanatório Meduna, com
possibilidade de outras passagens pelo HAA, segundo dados referentes ao período de 1985 a
2003.
Das famílias entrevistadas na pesquisa, que assumem a responsabilidade pelo
PTM e exercem o papel de cuidador, do total de 11 pessoas 7 são mulheres, com idade de 20 a
40 anos e 4 são homens, entre 43 e 48 anos, em média. Tais dados indicam, no geral, que a
maioria dos cuidadores é do sexo feminino, geralmente parentes em primeiro grau, como mãe,
filha e esposa, sendo, assim, a mulher a responsável pela casa e pelo PTM, que não raro exige
cuidados intensivos e contínuos. Inclusive Rosa (2002, p.156) analisando Balbo (1987), já
refere que alguns estudos assinalam que o provimento de cuidados é qualificado “como um
trabalho invisível, pessoalizado, gratuito, leigo, solitário, requerendo qualidades relacionais,
psicológicas e emocionais, historicamente atribuídas ao sexo feminino”, figurando assim, na
maioria das vezes, a mulher como a principal cuidadora.
Pode-se, então, inferir que o universo dos usuários e familiares que utilizam os
serviços do Sanatório Meduna se constitui de sujeitos sociais, com particularidades no modo
de ser, expressar-se e significar o mundo, sem embargo das características comuns ao grupo.
Aliás, sobre o que pensam as assistentes sociais acerca dos usuários dos serviços de saúde
mental do Sanatório Meduna é inegável constatar mudanças significativas, com impactos na
maneira de agir e mediar a realidade pela ultrapassagem da superficialidade da aparência, na
busca de desvendá-la para além da imediaticidade. Nesse sentido, as profissionais, em suas
falas, expressam que esse conjunto de alterações se reflete na maneira de “olhar” os usuários,
vendo-o, hoje, sob uma perspectiva diferente e mais respeitosa, porquanto o têm como sujeito
de direitos e seres capazes de produzir. Nesse sentido, afirma a assistente social Sandra que
o doente mental hoje não é mais visto como antes, que era uma pessoa que se isolava, que era apedrejado, se escondia e se aprisionava. Hoje em dia, o
doente mental é visto como uma pessoa que precisa de tratamento, ele é mais
respeitado e por isso ele é mais valorizado e o tratamento é mais voltado
36
Embora a maioria empiricamente constatável seja de homens, buscou-se equilibrar o percentual entre os
gêneros, na escolha dos sujeitos participantes da pesquisa.
351
também para a família e não só para o paciente e todos que estão por perto, e
o assistente social participa desse processo.
Nesse trecho, a profissional faz referência às mudanças na maneira de a
sociedade olhar e tratar o PTM ao longo dos tempos, valorizando e enfatizando a participação
da família no processo de tratamento, no qual, principalmente na área da saúde mental, o
Serviço Social tem o importante papel de buscar a ampliação do horizonte de análise,
rompendo com as formas mais estreitas de percepção desses sujeitos sociais com os quais
historicamente mantém vínculos. Nessa direção, acentuar e reforçar o compromisso com os
direitos e a cidadania daqueles que, ao longo de décadas, foram e são sujeitos e foco de sua
intervenção profissional, como os PTM, é tarefa difícil, porém inarredável.
4.2.3 Representação da prática do assistente social para os usuários e seus familiares
No que concerne às análises e reflexões acerca da prática do assistente social,
expressa nas falas dos usuários e suas famílias, pode-se afirmar que muitas são as
representações sobre o significado do Serviço Social e o agir profissional do assistente social
no Sanatório Meduna. Nesse hospital, o assistente social é um profissional que atua
diretamente junto aos usuários e suas famílias, sendo por eles requisitado a todo o instante,
bem como pelos demais profissionais da equipe interdisciplinar, a fim de intervir e interagir
nas situações as mais diversificadas, o que leva à composição de uma imagem de que age em
amplos espaços da instituição e que se articula com os demais atores que o constituem.
Eu só sei que ela [assistente social] anda de setor em setor, procurando saber
daquelas pessoas [os usuários], falando com aquelas pessoas, para saber se ela está melhorando, se está piorando, em que ela pode ajudar a pessoa. Eu
imagino assim que a assistente social está trabalhando a fim de procurar
saber sobre o comportamento da gente dentro do hospital (Antonio, usuário).
Antônio, como se vê, tem uma percepção difusa do papel do assistente social,
representado por ele como o profissional que dialoga com os usuários internos e se preocupa
com seu estado, voltando sua ação para a melhora do quadro de saúde do interno, mantendo,
para isso, contato com os diversos pavilhões do hospital, os quais visita rotineiramente para
acompanhar o tratamento. Já pelo “olhar” dos familiares pode-se referir que
352
o assistente social faz muita coisa [...]. É [quem] liga para a família, fala com
a gente. Bom, eu acho que uma assistente social, o serviço dela seria se
preocupar com o paciente, em termos da medicação, de tudo, do acompanhamento diário do tratamento, da aparência física, corte de cabelo,
higiene em geral (Maria Eduarda, familiar).
sei que é importante o assistente social, [que] acompanha o tratamento do paciente desde a admissão até a alta, eu sei que ela faz algumas outras
coisas, só não está bem claro, não (Maria Antonia, familiar).
Assim como os usuários, as famílias expressam, que a assistente social é o
profissional que com ele se preocupa e lhe acompanha o tratamento. Nas falas de Maria
Eduarda e Maria Antonia fica enunciado que a assistente social é responsável pelo cuidado
com o usuário interno, chegando a mencionar a atenção com a higiene pessoal e a aparência,
embora tais tarefas sejam do Serviço de Enfermagem, falha de percepção esta que talvez
ocorra em razão de a assistente social estar sempre muito próxima ao usuário, orientando-o
também acerca desses e outros cuidados essenciais com a saúde. Esse fragmento revela ainda
que a assistente social tem um amplo leque de atividades, sendo uma delas a de contatar a
família, estabelecendo com ela vínculos constantes, até porque é o profissional que
“acompanha o tratamento do enfermo da admissão até a alta”. No entanto, uma das
representações mais freqüentes sobre as assistentes sociais é associar-lhe a prática profissional
ao ato da ajuda, entendendo-a pelo ângulo mais amplo possível, como pontencializadora de
ações, que reivindica e agiliza, na defesa dos direitos dos usuários e das famílias.
Para poder entender o que se passa na minha cabeça, no meu íntimo e saber
por que eu fiquei com trauma, alguma coisa pode ter retorno, né? Então, com
a força e com a ajuda da assistente social, tudo pode voltar ao normal. Ela ajuda esclarecendo se tenho dúvidas, se faço perguntas ela me responde, fica
mais fácil me familiarizar. Quando a assistente social chega perto de mim,
parece uma pessoa da família [...]. Todas as vezes que estamos com dificuldade, ela com muito carinho expande para a gente o que estamos
necessitando (Raimunda, usuária).
O assistente social reivindica direitos do paciente, ela ajuda no que a gente pedir, no caso da medicação, tratamento dos funcionários, ela pode ajudar
indicando um psicólogo para a gente, conversando com a gente, dando
atenção (Francisco, usuário).
Na representação de Raimunda, usuária com freqüentes internações no Meduna, a
assistente social é vista como um profissional que auxilia, orienta, ouve e aconselha o PTM e
353
a família, de modo que lhe canaliza e potencializa as reivindicações, nas relações
estabelecidas com os diversos sujeitos, tornando-as mais humanitárias. Já Francisco constrói a
imagem da assistente social como a que facilita o acesso aos direitos e o viabiliza através do
encaminhamento aos outros membros da equipe interdisciplinar. Aliás, a convivência diária
na instituição psiquiátrica permitiu observar que existe uma relação amistosa do usuário com
o hospital, particularmente com as assistentes sociais, à medida do desenvolvimento do
tratamento, tornando-se o profissional uma referência, ou seja, uma pessoa a quem tem acesso
fácil e com quem pode contar no dia-a-dia e que, segundo Yazbek (1996, p.152), “oferece o
suporte, o apoio para o enfrentamento das situações adversas que vivenciam, individual e
coletivamente”, tanto no Sanatório quanto fora dele. Esse apoio da assistente social do
Meduna ao PTM e à família têm natureza informativa, educativa, psicológica e psicossocial, o
que significa, para eles, uma dimensão profundamente objetiva e subjetiva. Daí que, para
alguns familiares de usuários ou responsáveis entrevistados, é a assistente social o profissional
da ajuda, já que se preocupa com a família, orientando-a em diversos aspectos.
O que eu quero é que o assistente social me ajude e me oriente bastante
sobre isso, é tentar me ajudar a fazer com que ele vá se tratar nos Alcoólicos
Anônimos. Acho que ajuda a fortalecer mais e a encorajar mais o paciente,
dá assistência para eles nos aspectos moral e outros, dá assistência em tudo que for necessário (Augusta, familiar).
Acho que é assim, eles dão orientação ao paciente, né? Por exemplo, como deve comportar no hospital, como deve ser em casa [...] Então, eu acho que a
função do assistente social é isso, é tentar ajudar ao paciente e também a
família, orientando sobre o tratamento, sobre a participação da família,
[tanto] que às vezes ela chama, dá conselhos (Rosemary, familiar).
As expressões desses sujeitos, familiares de usuários do Sanatório Meduna,
reafirmam a representação dos próprios PTM, que percebem a assistente social como a pessoa
que ajuda à família, dispensando-lhe atenção e orientando-a a si e ao usuário, quando interno,
com informações e encaminhamentos para outras opções de tratamento. Revela ainda que a
assistente social, ao orientar a família e ao usuário, reforça a importância de ela participar do
tratamento, com continuação após a alta, para que não fiquem vulneráveis a uma recaída e a
uma reinternação.
A experiência do assistente social no Sanatório Meduna é ainda representada pelo
viés da mediação. Essa visão dele como mediador ocorre na dinamicidade da realidade na
354
qual o profissional lê, reflete e interpreta o contexto social mais amplo, sendo instigado a
avançar para além da sua imediaticidade e aparência, intermediando as múltiplas relações,
constituídas no cotidiano da prática profissional. Por isso, o usuário Sérgio afirma que
a assistente social é uma pessoa que dentro do hospital auxilia ao paciente
em qualquer aspecto. Quando tem alta, o assistente social é quem resolve o problema do paciente, para avisar a família, para quando também há um
problema com o paciente, este fala com o assistente social, e ela resolve
falando com a diretoria, se for o caso. Ela procura solucionar os problemas das pessoas dentro do hospital, a pessoa procura ela quando sente alguma
coisa, e ela fala com o psiquiatra, com a psicóloga, para procurar ajudar
aquele paciente.
Essa fala expressa que a assistente social intermedeia as relações sociais entre o
usuário, a família, a instituição e a sociedade, com base no compromisso com os interesses, os
direitos e a cidadania daquele. É por isso que esse profissional é considerado um elo, na
verdade um mediador, que facilita a passagem necessária ao acesso e à garantia dos direitos e
à cidadania dos usuários dos serviços sociais. É que, como diz Yazbek (1996, p.150), “o
assistente social é o intermediador direto tanto no atendimento concreto às necessidades
apresentadas, como no responder pelo componente sócioeducativo que permeia a produção
dos serviços assistenciais”. Assim, a busca de ajuda através do assistente social não se
restringe somente ao plano da “escuta”, da “orientação” e do “cuidado”, como revelam as
falas e narrativas dos sujeitos. Os usuários Sérgio e Silvano, por exemplo, declaram que
ela faz essa intermediação com todos os setores do hospital, e isso é ótimo porque o hospital sem assistente social fica “neutro”, porque o psicólogo não
vai procurar resolver esse tipo de problema do pavilhão e no hospital é o
assistente social que faz.
eu confio perfeitamente nas assistentes sociais, quando preciso de alguma
coisa; então, uma instituição psiquiátrica sem assistente social ou qualquer
outro hospital sem uma assistente social, então neste hospital está faltando uma peça principal, porque ela é uma intermediária entre ela [a instituição] e
a direção e entre os setores do hospital.
Para Sérgio e Silvano, a mediação da assistente social com os outros setores e os
outros profissionais do hospital representa, em última instância, a possibilidade de efetivar
nexos não só com as “esferas” da instituição, mas também com a sociedade, estabelecendo
contatos diversos e buscando novas formas de sociabilidade. Por essa razão, com base nas
355
situações narradas e representadas e talvez pelo fato de os usuários se encontrarem em uma
instituição fechada, o assistente social torna-se o principal responsável pelo intercâmbio dele
com o mundo exterior, sendo assim um profissional com reconhecido acesso ao sistema de
comunicação institucional, via telefone ou carta, através do qual contata os familiares ou
responsáveis, em qualquer momento, sempre na defesa dos seus interesses. Com efeito, no
universo institucional, a assistente social é o “canal de escoamento” dos anseios e
necessidades dos PTM, nas múltiplas mediações que estabelece ao elaborar e viabilizar as
respostas pretendidas. Nessa direção, as famílias têm a mesma avaliação, a respeito do papel
mediador do assistente social na instituição:
Eu acho que ela busca junto com o hospital, com os diretores, busca uma
solução para o melhorar para aquele paciente. Às vezes a família não vem, e
o paciente pede para ela ligar para a família acompanhar, né? Avisa quando o paciente está de alta, ela está ali para isso, né? para fazer aquele
intercâmbio com a família e entre a família, né? Ela contribui muito, porque
sempre a assistente social ela procura sempre colocar o paciente numa situação melhor, pelo menos ela tenta, ela tenta fazer a união do paciente
com a família, né? [...] Geralmente a assistente social é que está mais ligada
à família e a sociedade (Severino, familiar).
Como se vê, a assistente social assume uma postura que, no ambiente hospitalar,
se confunde com o processo de interlocução com o usuário, a instituição, a família e a
sociedade, numa relação dinâmica cujo objetivo é colaborar com o tratamento do interno,
restabelecendo, quando possível e necessário, laços de sociabilidade e de aproximação da
família com o ente querido e deste com a sociedade. Além disso, a assistente social também
aconselha, educa e ouve o usuário, orientando-o acerca de seus direitos, tendo em
consideração a realidade de sua cidadania, sendo comumente representado como aquele que
vivencia, junto com o PTM e sua família, situações reais de suas vidas em meio às
singularidades e potencialidades desses sujeitos.
Ela educa o paciente, mais ou menos com poucas palavras, orientando o
paciente. Acho que ela se encarrega de transmitir a notícia nossa para a
família da gente. Quando preciso de alguma coisa, pergunto a ela, e ouve meu problema, oh!, mas aquilo me dá uma alegria grande porque a assistente
social me recebeu e me deu atenção (José Filho, usuário).
Porque está sempre presente nas horas mais difíceis, dando atenção ao
paciente [...], sempre me aconselhando a tomar a medicação em casa, e me
ajudam a nunca mais voltar pra cá [...]. Ela ajuda em tudo, no lado material e
espiritual, dando conselhos (Joaquina, usuária).
356
Nos discurso de José Filho e Joaquina, ambos conferem ao assistente social o
conhecimento e a compreensão das necessidades e particularidades dos usuários, como
sujeitos de direito. É que a profissional, com as atividades que desenvolve, presta apoio,
material ou não, ao usuário, por isso o aconselha a auto-ajudar-se, a participar do tratamento,
atenção que o deixa feliz, por sentir-se bem ao ser ouvido.
Deixe-me pensar [...]. O assistente social dá conselhos e orienta sobre como
tomar o medicamento, ela ter uma melhor convivência em casa, fazer alguma coisa, trabalhar e não pensar coisas ruins (Marcelo, familiar).
A família assimila tal qual o usuário que o profissional de Serviço Social, no dia-
a-dia de sua prática e na relação com o PTM, age orientando-o a aderir ao tratamento, bem
como a uma melhor convivência em casa. Na verdade, a assistente social não tem como
resolver todos os problemas dos sujeitos que lhes demandam a intervenção, mas, sem dúvida,
a sua prática é um instrumento a serviço dos interesses e necessidades dos usuários e famílias,
na perspectiva da sua cidadania, dentro ou fora da instituição. É, assim, o assistente social,
para usuários e familiares, a pessoa que desenvolve atividades para solucionar os seus
problemas, sendo um defensor deles como seres humanos e cidadãos, uma vez que se
preocupa com seu bem-estar, quer quando internados, quer no contexto social, inclusive na
dimensão sócio-educativa
No contexto das representações comuns aos entrevistados destaca-se, no
cotidiano institucional, a visão do assistente social como o profissional em que o usuário e a
família depositam confiança, porquanto é um facilitador e um intermediador da sua relação
com o mundo exterior. É, pois, o profissional que ajuda o usuário no tratamento, facilita-lhe a
alta, intermedeia o contato com a família e a sociedade, sendo tida como a pessoa, educada e
compreensiva, que trata os demais com atenção e carinho, sobretudo os usuários e familiares,
transmitindo a segurança de que tudo será resolvido o mais rápido possível, como deseja o
PTM. Nesse sentido, o assistente social, na expectativa do usuário e da família, esclarece
qualquer tipo de dúvida, inclusive o que os outros profissionais não sabem responder,
encaminhando-o ao setor certo.
Ela se encarrega de cuidar de cada paciente em termos de quando está de alta
se encarrega de avisar para a família. Quando ninguém lhe dá atenção, quando você procura a todos, o médico, a família, um amigo e todos lhe dão
357
as costas, então você tem que recorrer ao assistente social de imediato e
contar o problema que você está passando (Cassandra, usuária).
Esse depoimento revela uma certa angústia, pois refere que algumas vezes a
necessidade da escuta não é atendida. Ante essa ausência de reciprocidade e sentindo não ter
os direitos assegurados plenamente, tanto no hospital quanto fora dele, Cassandra projeta, na
figura do assistente social, a imagem da pessoa em que pode confiar e que transmite apoio e
afeto, quer na sociedade, quer na família, direitos que são seus e dos usuários. Outros
compartilham da mesma opinião, assinalando que
mesmo dentro do hospital, ela [a assistente social] é uma pessoa amigável, quando está trabalhando faz amizade com a gente (Silvano, usuário).
o assistente social conversa com todas as pessoas internadas, trata bem as pessoas (Conceição, usuária).
Cassandra, Silvano e Conceição, os três com várias internações, afirmam que a
assistente social é alguém confiável e que está do lado deles, sendo valorizada como uma
defensora dos seus direitos e do seu bem-estar. Significa dizer que eles encontram nelas, as
assistentes sociais, sinais de uma relação amigável, respaldada na confiança e cumplicidade,
construída ao longo dos anos. Aliás, no conjunto dessas representações, a família também
elabora relações sociais estáveis com a assistente social, no cotidiano do hospital, evocando
igualmente laços de amizade e confiança, que se fortalecem com o tempo.
Você não os trata mal, Adriana, é sempre como se fosse uma amiga, quer
dizer, a assistente social tem que ser como se fosse uma amiga para o
paciente, poder confiar em você. É, você não mente para ele, então ele sente firmeza no que você fala e diz (Rosemary, familiar).
Nas representações formuladas pelos usuários e familiares e captadas em suas
falas e expressões sobre vários aspectos da vida, fora ou dentro da instituição, a assistente
social aparece como a profissional a quem se dirigem, na esperança de uma informação ou
orientação. É como se ela fosse um “porto seguro” ao qual pudessem atracar, a qualquer
momento, com segurança, ou mesmo um “guardião” de seus interesses, uma vez que, aos seus
olhos, trata-se de um profissional sempre disposto a norteá-los sobre o tratamento em geral
(causas, modalidades, continuidade, alternativas, etc), articulando e mediatizando a relação
358
usuário, família, instituição e sociedade, posto que defende, preferencialmente, os seus
direitos e a sua cidadania.
Esse imaginário de usuários e familiares confere ao profissional de Serviço Social,
em alguns momentos e circunstâncias, um significado de “super herói”, capaz de conhecer e
intervir sobre a realidade social, na sua complexidade, contribuindo para solucionar os
impasses que norteiam a relação usuário, instituição e sociedade, num contexto de múltiplas
adversidades, como as ausências de direitos e políticas públicas que assegurem o bem-estar
dos cidadãos, em particular daqueles mais empobrecidos e expostos às mazelas sociais.
Assim, chega a ser imaginado com “superpoderes”, equiparando-se à figura da mãe, que
incansavelmente enfrenta os desafios da vida em prol daqueles com que historicamente se
relacionam. Com efeito, a usuária Raimunda diz que
dentro do hospital, ela é como se fosse uma “mãe”, um herói, ela associa a pessoa [usuário] à família, então é importante isso aí, porque às vezes
estamos nos sentindo tão sozinho e ela chega com uma boa notícia.
Mas essa visão da assistente social como portadora de “superpoderes”, no
enfrentamento, em sua prática, da dureza da realidade social, na mediação com as diversas
categorias e com um universo social marcado por adversidades, não é elaborada apenas pelos
usuários e familiares. Isso decorre do fato de que o seu espaço ultrapassa o âmbito da
instituição, sendo peculiar, na sua vivência cotidiana, a busca de respostas a demandas e
necessidades dos diversos grupos sociais e o estabelecimento de contatos, com outras
instituições, para o bom desenvolvimento do exercício profissional. Então, na falta de uma
rede de serviços sociais com qualidade e amplitude, que dê maior suporte ao trabalho,
sobretudo após a alta do usuário, o assistente social é desafiado, diuturnamente, a vencer essas
barreiras, conclamando outros profissionais e instituições que possam, de algum modo,
responder aos anseios e dificuldades do PTM. Isso contribui para, em dados momentos e
situações, afirmar a imagem de “super herói”, ao assistente social, pelo menos no Meduna.
Outro aspecto que chama a atenção, no cotidiano do Sanatório, é que a assistente
social, no exercício da profissão como membro da equipe interdisciplinar, é, algumas vezes,
identificada, pelos sujeitos da pesquisa, com outras categorias da instituição, principalmente
com o psicólogo. Os depoimentos, a seguir reforçam a afirmativa:
359
Ela trabalha se preocupando com a educação, dando conselho, orientando.
Então, quando a família não vem, eu procuro a assistente social e ela tem
outras ocupações mais. Ela tenta tranqüilizar a gente, transmite paz pra gente por causa do jeito dela, do comportamento calmo dela, porque ela é uma
psicóloga, né?, né verdade? O assistente social é meio psicólogo, parece
também, não só parece como transmite pra gente um pouco de paz e fé
(Silvano, usuário).
Eu acho que o assistente social faz uma pesquisa psicológica para entender o
que se passa pela cabeça do paciente, para entender qual é o problema do paciente, saber a vida da pessoa na rua, em casa, se trabalha [...]. Você para
mim é uma excelente “psicóloga”. Dá atenção, sorri, é dinâmica, não tem
medo deles, não teme que eles te batam (Raimunda, usuária).
No imaginário das famílias, a assistente social é também associada ao psicólogo
porque, além das suas diversas atividades e atribuições privativas, pratica, no ambiente
institucional, outras ações que também são próprias a outras categorias, como a dos
psicólogos, podendo-se destacar, entre as que se dão no atendimento de rotina, o hábito de
ouvir atentamente o usuário e a família, e o aconselhamento, em abordagens individuais ou
em grupos. Significa dizer que a assistente social é o profissional que atua no campo das
múltiplas facetas e aspectos, porquanto trabalha com a dimensão social, econômica, política e
cultural, sem mencionar os elementos da subjetividade dos sujeitos sociais. Assim, sua prática
objetiva, entre outros aspectos, oferecer suporte psicossocial aos usuários do serviço de saúde
mental, que tem as relações abaladas pelo transtorno de que são vítimas. Por isso, para as
famílias, a assistente social é vista como a profissional que conversa e dialoga intensamente
com o usuário. Essas imagens estão expressas nas entrevistas de Mônica e Rosemary,
representantes de familiares:
Então, o assistente social é com se fosse um psicólogo, que está ali abrindo a
mente, orientando, conversando, para ele já sair daqui pronto para se engajar na sociedade. Eu não sei se o assistente social é como eu estou colocando,
porque eu vejo o assistente social como uma espécie de psicólogo, então está
ali para ajudar, creio eu que contribua com o tratamento porque, quando o
paciente está só medicado ele [usuário] vai sair ainda aéreo, sem noção de nada, se tem uma pessoa [assistente social] orientando ela vai sair daqui
ciente de fazer alguma coisa, de melhorar em alguma coisa a sua vida, sai
mais consciente (Mônica, familiar).
Mas eu acho que o serviço de uma assistente social para mim é quase como
se fosse uma psicóloga. Porque eu entendo que ela está ali para ver e assistir
o paciente em qualquer situação desde que ele entrou até ele sair [...] Então, deve acompanhar com aquele acompanhamento psicológico do paciente
(Rosemary, familiar).
360
Para esses familiares, a ação do profissional de Serviço Social se respalda no
compromisso com o tratamento do usuário e com as suas necessidades, visando promover-lhe
a sociabilidade e a recuperação, respeitando os seus direitos específicos e de cidadão. Na
verdade, essas representações sobre o fazer da assistente social se dão, na prática, por conta
não só de uma certa aproximação entre as duas profissões, mas também pelo trabalho
interdisciplinar presente no Sanatório Meduna, daí que às vezes, no ambiente institucional,
sejam comparadas e até confundidas. Mas, embora isso de fato ocorra, no dia-a-dia as
assistentes sociais têm clareza do seu papel e o exercem com autonomia, norteadas pelas
diretrizes da profissão, daí que buscam contribuir com os usuários no seu tratamento,
potencializando-lhes desejos e anseios, a fim de assegurar os seus direitos e a sua cidadania,
raio próprio de atuação do Serviço Social.
4.2.4 Os assistentes sociais na visão dos outros profissionais
Dentro do universo institucional foi visto que a prática do assistente social aparece
representada em diversas posturas. Não obstante, pode-se observar também que esta é
percebida e reiterada pelos outros técnicos e na visão da direção como o profissional da
família, aquele que, no cotidiano, é protagonista nas intervenções junto ao grupo familiar. É
que é ele o responsável pelo intercâmbio entre a família, a instituição e a sociedade, tal qual
expressam uma psiquiatra e um dos diretores do Sanatório:
Acho que de uns tempos para cá a família tem participado mais, o Serviço
Social tem conseguido trazer a família, né? para assistência psiquiátrica ao portador de transtorno mental, em um trabalho conjunto com o profissional
psiquiatra. Acho que é um intercâmbio muito interessante, que de uns
tempos para cá vem funcionando e a gente percebe claramente no dia-a-dia uma resposta, né? Vê-se concretamente que na evolução do paciente, a alta é
mais precoce, na resolução dessa alta a gente vê que o paciente não fica
muito tempo após a alta, geralmente ele sai dentro do prazo previsto da alta
marcada, então eu acho que diminui aquela expectativa do paciente que já está bem e vai sair ou não. E durante a internação eu acho que o paciente é
melhor assistido pela família, e isso é fundamental (Fátima, psiquiatra).
Existe um resultado positivo quando a família participa. É diferente quando
o paciente recebe assistência da família durante a internação, no sentido de
que a gente discutir alguns casos mais difíceis de resolução, com isso, o paciente só tem a ganhar com isso. Acho que isso tem sido feito pela
361
assistente social, que desde antigamente passou a atuar junto à família (Luis,
ex-diretor).
Esses depoimentos revelam que, no Sanatório Meduna, o assistente social é
reconhecidamente o profissional responsável pela assistência e atendimento à família, no que
diz respeito ao processo de tratamento e funcionamento da instituição. A fala de Fátima
expressa que a assistente social vem, ao longo dos anos, mobilizando a família para participar
mais ativamente do processo de tratamento, com reflexos positivos para o PTM, que têm hoje
uma sua alta mais precoce, passando, por sua vez, menos tempo internado. Assim, a assistente
social tem atuado junto à família, no sentido de esta participar mais, sentido-se mais
responsável no tratamento, passando o PTM interno a ser mais bem assistido, o que tem uma
grande importância. É que, como se sabe, antes da implantação do Serviço Social na
instituição, a família era uma figura praticamente ausente no processo de tratamento
psiquiátrico, que na época assumia um caráter mais asilar baseado e voltado para as
abordagens, sobretudo, medicamentosas. Nas últimas duas décadas, tem havido uma maior
aproximação da família com o Sanatório Meduna, por mérito, sobretudo, do assistente social,
que a envolve no tratamento do PTM, levando-o a recuperar-se mais rapidamente, sem
mencionar que houve ainda, como exposto no capítulo anterior, um redirecionamento na
intervenção do grupo de profissionais, mais postura pautada pela interdisciplinaridade.
Nesse mesmo sentido, a fala da direção da instituição aponta que a presença da
família no tratamento é positiva, na medida em que o caso de cada usuário pode ser melhor
discutido, contexto em que os familiares recebem um maior suporte informativo sobre as
manifestações do transtorno mental, sendo a presença da assistente social fundamental no
processo de interlocução com essa entidade. Como bem expressou Rosa (2000a), essa postura,
do papel positivo da família, no tratamento do transtorno mental, objetiva superar a mais
tradicional da família, tida como mero informante e visitante, com pouca ou nenhuma
participação no tratamento do ente querido com transtorno mental.
Verifica-se que, no universo institucional, por estar engajado em várias atividades,
a assistente social, para encaminhar as questões que lhe são demandadas cotidianamente pelos
usuários, a família, os outros profissionais e a sociedade, vê-se premida a uma abordagem
mais coletiva e orientada para uma interdisciplinaridade na qual possa, como já foi pontuado,
socializar os problemas, as dificuldades e implementar os caminhos para a sua solução. Ao
mesmo tempo se verifica, na prática, o direcionamento, para o Setor de Serviço Social, de
362
tudo o que não é dos outros setores, pois, muitas demandas a ele chegam, ainda que não sejam
de sua competência. Assim se expressa um dos diretores, que diz que
hoje principalmente o foco [do Serviço Social] [...] é o atendimento à família, o contato com a família e faz até o intercâmbio que não deveria
fazer, porque os outros profissionais não fazem. Por exemplo, o médico não
conversa com a família, até coisas que seria para o médico conversar com a família o Serviço Social termina assumindo, porque o médico não tem
tempo, ou não se dispõe. Principalmente em relação à família, termina
assumindo [o Serviço Social] o papel de outros profissionais. Tem coisas como explicar patologias, medicação, duração do tratamento, essas coisas
são estritamente técnicas, o médico é que deveria explicar para a família,
mas isso nem sempre acontece (Carlos Silva, diretor técnico).
Esse depoimento evidencia que o assistente social, além de assumir a
representação do profissional da família, é ainda associado, sobretudo na visão da direção,
como aquele que recebe demandas as mais variadas, tendo, no seu processo de intervenção,
que encaminhá-las e, para isso, desdobram-se para superar as adversidades que permeiam a
instituição e a realidade social mais ampla, marcada pela complexidade e a contraditoriedade.
Nesse contexto de múltiplas faces e contradições, que norteiam e permeiam a prática
profissional do assistente social, este é representado, em muitas situações e momentos, como
um “descascador de abacaxi”, ou seja, aquele que resolve qualquer tipo de problema não
encaminhado devidamente pelos demais setores. Por conseguinte, para não entrar no “jogo do
empurra-empurra” do usuário de um lado para outro, termina absorvendo atribuições de
outros setores, sob a lógica de que precisam otimizar suas atividades especificas na
instituição. Assim, refere um dos representantes da direção do Sanatório Meduna
acho que termina acontecendo que o Serviço Social termina virando um
“descascador de abacaxi”, na verdade, no sentido de que os problemas que
não são resolvidos são colocados para o Serviço Social (Carlos Silva, diretor
técnico)
Esse é um aspecto que necessita ser melhor trabalhado nas relações profissionais
que o assistente social estabelece na instituição, no sentido de aperfeiçoar os objetivos de um
trabalho interdisciplinar que potencialize as competências do saber específico a cada área do
saber e ao mesmo tempo caminhe coletivamente.
363
Existe ainda o entendimento, da direção de que o assistente social sabe resolver os
conflitos que tangenciam a prática, no dia-a-dia. Este profissional, é, na verdade, visto e
reconhecido, pelos demais e pela direção, com capacidade de negociação e de articulador de
conflitos, cuja intervenção busca compreender as intercorrências, pelo que suas
resolutividades se dão na maioria dos casos, após ouvir as partes interessadas. Intermedeia
assim a melhor solução, procurando não causar maiores constrangimentos para os envolvidos
e tentando vencer as barreiras objetivas e subjetivas, sendo o profissional que persiste no
sentido de resolver os problemas no âmbito institucional e no intuito de superar os variados
empecilhos. Assim, diz um dos diretores do Meduna que
um outro aspecto [que] é notado no trabalho do Serviço Social, pelo menos
no que eu observo aqui, é a tentativa de resolução de problemas concretos
dos pacientes, os mais variados, ou para conseguir atendimento na cidade dele, ou conseguir um modo do paciente ser transferido para a cidade de
origem, ou conseguir que a família venha, esse tipo de coisa que o Serviço
Social sempre está lutando e buscando, mas que é difícil pela falta de suporte social do Estado e do Município, porque a gente carece muito de atividade
social pública [refere-se aos serviços psiquiátricos], então o trabalho do
assistente social no hospital fica triplicado, porque ele tem que “remar contra
a maré” (Carlos Silva, diretor técnico).
“Remar contra a maré” significa que esses profissionais, no exercício de sua
prática institucional, têm que enfrentar e ultrapassar os diversos entraves, dilemas e conflitos
de ordem econômica, política, social e cultural, de ordem objetiva e subjetiva, almejando criar
possibilidades e alternativas para imprimir uma leitura na direção de compreender essa
realidade complexa, que vulnerabiliza os sujeitos sociais com os quais mantêm relações e
possa desencadear ações propositivas que fortaleçam-lhes os direitos e a cidadania.
Ademais, todas essas representações transformam-se, no cotidiano institucional,
em necessidades, requisições e demandas reais e concretas dos usuários, familiares e demais
profissionais, que exigem do assistente social um posicionamento teórico-técnico que as
encaminhe da forma mais exitosa possível. Aliás, nesse processo de enfrentamento das
demandas, o profissional de Serviço Social se vê desafiado, em sua prática, a encarar
situações as mais variadas, cercadas das múltiplas adversidades inerentes ao contexto social,
hospitalar, profissional e interdisciplinar. É que tais óbices, como se vem pontuando, se
relacionam, de um lado, à quase completa ausência de uma rede de serviços em que o usuário
possa continuar o tratamento e, de outro, à precária condição econômica, financeira e social
364
das famílias, despreparadas para lidar com o transtorno mental e suas manifestações
peculiares.
Nota-se, portanto, por parte das assistentes sociais, um esforço em elaborar
respostas às solicitações do cotidiano da prática profissional, encaminhando-as dentro das
possibilidades objetivas, subjetivas e técnicas da realidade institucional e social, no sentido de
assegurar o acesso dos PTM aos direitos e à cidadania, em sintonia com o projeto construído
pela própria categoria, nas últimas três décadas. Esse esforço não tem sido fácil, mas um
desafio constante não só para as assistentes sociais do Meduna, mas a todos os profissionais
de Serviço Social que lutam por novas atitudes sociais em direção a mudanças imediatas ou
históricas na sociedade, nas instituições e nas relações com os sujeitos da prática profissional,
em especial os PTM e suas famílias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo objetivou identificar, compreender e analisar, a prática do assistente
social na área da saúde mental na cidade de Teresina, no Estado do Piauí, interrelacionando-a
com a cidadania e os direitos dos usuários e seus familiares. Buscou, assim, a partir das
múltiplas vivências concretas, falas, gestos e expressões experimentadas por esses sujeitos,
resgatar e (re) construir o processo da prática profissional do assistente social, ressaltando a
sua interlocução, seus nexos, vínculos, relações e afinidades, com a viabilização da cidadania
e dos direitos dos portadores de transtornos mentais (PTM) que usam os serviços
especializados nessa área.
Na trajetória percorrida por esse estudo, foi possível perceber e identificar que o
Serviço Social, como uma profissão historicamente determinada e inscrita na divisão
sóciotécnica do trabalho, surgiu e institucionalizou-se no Brasil, como uma especialidade do
trabalho, na década de 1930, no seio do bloco católico e vinculado ao Estado, objetivando
principalmente propagar os ideários da Doutrina Social da Igreja e atuar, “suavizando”, os
efeitos da questão social, que desde os primeiros anos do século XX vem requerendo um
enfrentamento do Estado. Na verdade, o Serviço Social emergiu num contexto de múltiplas
conturbações econômicas, políticas e sociais, marcado por grandes transformações, com o
capitalismo se afirmando como modo de produção, sendo necessária e urgente a intervenção
estatal no reordenamento da sociedade, regulando-a, para, em última instância, assegurar a
implantação do processo de industrialização, a acumulação capitalista e a “suavização” das
tensões sociais.
Nesses termos, historicamente a profissão de assistente social, concebida como
uma das formas institucionalizadas de agir no cotidiano da vida social, se vê responsável pela
elaboração de resposta à questão social, que se metamorfoseia ao longo das décadas,
assumindo novos contornos e tornando-se mais complexa, exigindo outras intervenções, mais
elaboradas e planejadas, fora dos limites da caridade e da filantropia. Assim, nas diversas
sociedades, como a brasileira, nos meandros do sistema de produção capitalista,
historicamente marcado por múltiplos conflitos, complexidades e contraditoriedades, o
assistente social participa como elemento constituinte e constituído desse processo,
influenciando e sendo influenciado por esses conflitos, contradições, relações, dilemas,
366
entraves e vínculos, atuando, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, do
conjunto do jogo de forças políticas que norteiam e embasam as relações e práticas sociais, na
qual está inserido.
Foi possível analisar que os profissionais de Serviço Social inserem-se no
contexto mais amplo das relações sociais de produção e por isso, mesmo socialmente
determinados, não assumem, no desvendamento da sociedade e no enfrentamento da questão
social, uma só postura e atuação sob um único modo de pensar e agir, nem intervém a partir
de uma única perspectiva e horizonte. Os rumos e sentidos imprimidos à sua prática
profissional são permeados e influenciados pelos reflexos, lutas e contradições da sociedade,
dos indivíduos e dos grupos sociais. Ou seja, a inserção do profissional nos diversos contextos
acontece dentro e de acordo com a historicidade e a dinamicidade da sociedade e de suas
relações mais amplas, podendo, assim, como profissional, a assumir diversas posturas e
pensamentos no modo de conceber a sociedade, a profissão e a realidade social, ao interagir
com e atuar sobre ela.
Dessa forma, nesta pesquisa, pôde-se verificar que a profissão de Serviço Social
vem, ao longo dos anos, atuando em vários campos ocupacionais, tendo diversas posturas,
rumos e relações profissionais com os grupos e segmentos sociais, sobretudo com aqueles
mais empobrecidos, empenhando-se na defesa dos seus interesses, em especial os
concernentes à garantia dos seus direitos e da sua cidadania. Esse entendimento, não chega a
ser uma novidade no âmbito do Serviço Social, pois a postura profissional por esse prisma
vem, no Brasil e no Piauí, sendo retomada com muito mais força, amplitude e significação
sobretudo nas últimas três décadas, alimentados pelas discussões da construção de novas
bases e rumos para a profissão, levadas a efeito por expressiva parcela de assistentes sociais
em todo o continente latino-americano e no Brasil. Estes adotam compromissos sociais, éticos
e políticos na direção de efetivar e defender a cidadania e os direitos dos usuários dos serviços
e das políticas públicas, na perspectiva dos seus interesses e necessidades, numa postura que
marcou os anos de 1970, fase em que se fortalecia, no Brasil e na América Latina, o
Movimento de Reconceituação do Serviço Social (MRSS), que sacudiu a profissão, levando-a
a repensar suas bases teórica, metodológica, política e ideológica.
Nesses termos, o assistente social, dentre os diversos campos em que atua, tem
entre um deles a área da saúde mental. As incursões do Serviço Social nessa área deram-se
pioneiramente no Estados Unidos da América, no início do século XX, fato que vem se dando
no Brasil desde a década de 1930 e no Piauí desde o início da década de 1960. Nessa atuação
367
junto aos PTM, estabelecem vínculos com esses sujeitos e intervém no processo de tratamento
no âmbito da instituição psiquiátrica, auxiliando a sua composição e viabilização.
Neste estudo, a análise da prática profissional do assistente social permitiu
apontá-la de modo geral, como uma unidade dialética inserida na contraditoridade,
singularidade e totalidade históricas de uma dada sociedade, a qual vem, nas últimas décadas,
estreitando laços na direção da garantia da cidadania e dos direitos, como uma bandeira de
luta da categoria. Dessa maneira, no que concerne às questões que nortearam essa pesquisa,
pode-se afirmar que, assim como no Brasil, no Piauí os assistentes sociais, com sua prática
canalizem, de alguma forma, conscientemente ou não, para favorecer os anseios e
necessidades dos usuários dos serviços sociais. Pelo menos no plano das intenções, foi
possível identificar e analisar que o profissional age sintonizado com a noção de direito e de
cidadania, sendo essa relação defendida também pelas assistentes sociais do Sanatório
Meduna e fortalecida sobretudo após o advento do processo de redemocratização do país, da
promulgação da Constituição Federal de 1988 e da elaboração do conjunto de leis que regem
e regulamentam a profissão no Brasil, norteando o processo de formação e de sua intervenção
nas várias áreas onde atua. É certo que se, de um lado, as análises revelaram uma defasagem
entre o direito real e o legal, entre a intenção e a ação, entre o pensar e o fazer profissional,
por outro existe cada vez mais, entre os assistentes sociais, em particular os do Sanatório
Meduna, um compromisso real e efetivo em direcionar suas práticas profissionais para a
cidadania e os direitos dos usuários dos serviços sociais oferecidos, pelo Estado e pela
sociedade à população brasileira e piauiense, em especial à população pobre e destituída de
condições dignas de vida.
Foi visto que, no cotidiano institucional, marcado por relações contraditórias, a
prática profissional é perpassada por inúmeros limites, dificuldades e barreiras (materiais e
espirituais), de modo que, a assistente social tem que responder às demandas que chegam e
são heterogêneas, porquanto vindas de diversos setores (dos usuários, famílias, instituição,
outros profissionais, sociedade), requerendo-lhe a intervenção no desvendamento e
enfrentamento da realidade social. Vivencia, então, o profissional, situações as mais variadas
e estabelece vínculos com o universo interno e externo do Sanatório Meduna, na medida em
que permeia e é permeado pelo conjunto das relações sociais, articulando com os sujeitos
sociais mencionados múltiplos nexos ao longo dos tempos. Ademais, viu-se que, em face da
complexidade do contexto institucional, a assistente social atua na teia das relações, como
integrante da equipe interdisciplinar, para superar as demandas cotidianamente impostas, para
368
o que firma parcerias com os demais profissionais de Serviço Social e os das outras áreas, até
porque não raro muitas das demandas que chegam ao assistente social dizem respeito à equipe
interdisciplinar, por serem uma responsabilidade de cunho coletivo (portanto, não individual,
nem de uma só categoria profissional). Nesse movimento dinâmico e contraditório do
cotidiano do exercício profissional, as assistentes sociais exercem, no Meduna, um papel
fundamental, tentando socializar e resolver os problemas e dificuldades com os demais
técnicos e a direção, visando, em última instância, atender às necessidades e os interesses do
PTM na sua relação com a instituição e a sociedade.
Viu-se também que, no cotidiano da prática profissional, o assistente social
contribui, no Sanatório Meduna, para o processo de tratamento e recuperação do PTM como
sujeito de direito e cidadão, desenvolvendo atividades voltadas para eles e suas famílias, a fim
de conscientizá-los dos seus direitos e de sua cidadania e almejando sua reintegração social,
esta um resgate do ser humano complexo, com capacidade de relacionar-se e interagir no
âmbito familiar e social mais amplo, como protagonista e sujeito histórico. No conjunto das
atividades e do fazer profissional no âmbito institucional, as que mais mobilizam as
assistentes sociais são os encaminhamentos de alta, os atendimentos de abordagem individual
e grupal com os usuários e as suas famílias (que têm, entre outros objetivos, socializar,
democratizar e prestar informações sobre temas diversos do interesse desses sujeitos, como os
relacionados ao quadro de saúde geral do PTM, óbitos, acesso a benefícios sociais,
transferências para outras Unidades de Saúde, outros serviços de saúde), os esclarecimentos
acerca da continuação do tratamento dentro ou fora da instituição (após alta), o oferecimento
de capacitação e oportunidades de lazer, recreação, vivências afetivas, a preparação da família
para o convívio com o PTM, fortalecendo os seus laços afetivos e a educação para a
cidadania. No desenvolvimento dessas atividades, o profissional busca articular-se com os
demais técnicos e leva em conta as particularidades, limites e potencialidades desses sujeitos,
detentores de vontades, desejos e capacidades que podem ser potencializadas para alcançar
sua afirmação como um ser histórico e humano.
Ao traçar um perfil sintético dessa população, o estudo demonstrou que esses
sujeitos, oriundos das diversas classes e segmentos sociais, sobretudo os mais empobrecidos,
são pessoas com carências múltiplas, não só de bens materiais, mas de moradia, saúde,
educação e alimentação dignas, além de informação, carinho e amor. Não raro, têm um perfil
heterogêneo, com baixa ou nenhuma escolaridade, marcadas pelo traço da pobreza e do
estigma do transtorno mental, que buscam e exigem da instituição e das assistentes sociais e
369
dos outros profissionais, de modo mais consciente, a garantia do tratamento e do acolhimento
sempre que dele precisar, baseados na atenção e no respeito. Enfim, que lhes sejam, no âmbito
institucional, assegurados um mínimo de dignidade, extrapolando o tratamento meramente
medicamentoso, excludente e segregador, que historicamente vinca as sociedades brasileira e
piauiense.
Destarte, na direção de compreender os significados do transtorno mental e das
demandas e necessidades que lhe chegam, em suas singularidades e totalidades históricas, a
assistente social ao longo das últimas duas décadas, em consonância e sintonia com o
contexto mais amplo da profissão, vêm assumindo, no Sanatório Meduna, uma postura mais
comprometida com a cidadania e os direitos dos usuários do serviço de saúde mental,
buscando para isso atuar numa perspectiva da interdisciplinaridade, a fim de superar um ação
mais individualizada, que caracterizou os primórdios da profissão na instituição, o que vem
sendo aprimorado e fortalecido.
Nas análises dos discursos, expressões e vivências dos sujeitos entrevistados,
verificou-se que constroem no cotidiano institucional diversas representações (imagens) sobre
o assistente social e o seu fazer profissional no Meduna. Dentre essas representações, destaca-
se a de que o assistente social é um “mediador e articulador” das relações entre a instituição, o
PTM, a sua família, a equipe interdisciplinar e a sociedade, considerado como o profissional
que busca compreender os contextos institucional e psicossocial da população usuária dos
seus serviços e que intervém nas mais variadas situações, a fim de garantir a satisfação dos
interesses e necessidades dos PTM como cidadania e como direito, levando em conta as
condições objetivas e subjetivas da realidade social, institucional e profissional.
O assistente social foi tido como “o profissional da família” por ser o mais
próximo a ela e do usuário, fornecendo-lhes as informações sobre os aspectos gerais do
tratamento, encaminhando as altas, etc. É, assim, como se um “porta voz” da família, que a
orienta e apóia, porquanto conhecedor dos trâmites burocráticos das outras instituições, com
acesso ao sistema de comunicação via telefone, pelo que assegura o contato do PTM com ela
e o mundo exterior à instituição e desta com outras instâncias da sociedade. Analisou-se que,
na visão dos usuários e seus familiares, o assistente social é o profissional com quem se pode
contar a qualquer momento e que sabe escutar atentamente suas queixas e anseios,
preocupando-se com seu bem-estar e acompanhando de perto o tratamento. O assistente social
apareceu como aquele que aconselha e orienta o usuário e sua família, fortalecendo suas
reivindicações e oferecendo-lhes suporte informativo, educativo e psicossocial, ajudando-os
370
nos aspectos objetivos e subjetivos por compreender suas necessidades e particularidades
como sujeitos de direitos.
Enfim, o assistente social é a pessoa na qual o usuário e a família depositam
confiança, que transmite carinho e afeto. É, para eles, uma espécie de “guardião” dos seus
direitos e de sua cidadania, sendo visto como um “porto seguro”, a que podem a qualquer
momento atracar, já que sempre se dirigem a ela na esperança de receber informação,
orientação e ter realizados seus desejos, vontades, anseios e necessidades, como usuários e
cidadão.
Levando em consideração o conjunto dos depoimentos dos sujeitos envolvidos na
pesquisa, as observações e análises levantadas ao longo deste estudo e, por fim, a vivência da
pesquisadora no cotidiano do Sanatório Meduna, pode-se aferir que a prática profissional do
assistente social no referido hospital vêm contribuindo, de algum modo, para a garantia e
ampliação dos direitos e da cidadania do PTM, como sujeito social especial dotado, portanto,
de necessidades e capacidades objetivas e subjetivas que devem ser desveladas,
compreendidas, respeitadas, valorizadas, pontencializadas e atendidas. Destarte o assistente
social, no Meduna, encontra-se, geralmente, em sintonia aos reclamos da sociedade, da
profissão e dos movimentos da área da saúde mental que lutam por novos rumos nas relações
entre Estado, organismos privados, sociedade, ainda que numa conjuntura desfavorável,
marcada por crises e dilemas de toda ordem e natureza.
Essa sintonia conduz a categoria dos assistentes sociais, no novo milênio, a
ampliar a responsabilidade profissional e continuar a fortalecer a perspectiva de atuação em
prol dos interesses e da defesa dos usuários dos serviços e das políticas públicas, agregando
forças para superar os entraves e dificuldades impostos à profissão na atual conjuntura
econômica, política e social que atravessa o país e o Piauí. Esta conjuntura, norteada pelos
ideários neoliberais, que se hegemonizam em quase todas as nações, intervém na forma de
gerenciar os recursos e investimentos públicos e sociais, em regra no sentido de sua
eliminação ou redução, o que se torna um desafio a ser enfrentado pelo Serviço Social e pelas
outras profissões no mundo, no Brasil e no Piauí.
371
BIBLIOGRAFIA
372
AGUIAR, Antônio Geraldo de. Serviço Social e Filosofia: das origens a
Araxá. 5 ed. São Paulo: Cortez, 1995.
ALVES, Paulo César; MINAYO, Maria Cecília de Souza (orgs.). Saúde e
doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro: FioCruz, 1994.
AMARANTE, Paulo (org.). Psiquiatria Social e reforma psiquiátrica. Rio de
Janeiro: Fio Cruz, 1994.
_____. (coord.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no
Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Fio Cruz, 1995.
ANDRADE, Maria Pepita de Vasconcelos et al. A prática do Serviço Social no
Rio Grande do Norte: relatório preliminar. Maceió: Universitária/São Paulo:Cortez,
1985.
ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno de. Cotidiano e Pobreza: a magia da
sobrevivência em Teresina (1877-1914). Teresina: Fundação Monsenhor Chaves /PMT,
1995.
ARCOVERDE, Ana Cristina Brito. Questão social no Brasil e Serviço Social.
Capacitação em Serviço Social e Política Social: Reprodução social, trabalho e Serviço
Social, Brasília, NED/CEAD-UNB, 1999, mód. 2, p.75-86.
ARRETCHE, Marta. Estado federativo e políticas sociais: os determinantes
da descentralização. São Paulo: Revan, 2002.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. Normas
brasileiras sobre documentação. Rio de Janeiro, 2002.
BARBOSA, Fabrício César Moura, MORAIS, Sônia Maria Dias de. A prática
do assistente social nos hospitais de Teresina: na perspectiva da cidadania. Teresina:
2000. Monografia de graduação em Serviço Social.
BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos
ontológicos. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2003.
BATTINI, Odária. Atitude investigativa e formação profissional: a falsa
dicotomia. Serviço Social e Sociedade, São Paulo: Cortez, 1994, n. 45, p.142-6.
BEHRING, Eliane Rossetti. Contra-reforma do Estado, seguridade social e o
lugar da filantropia. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, Cortez, 2003, n. 73, p.101-19.
BEREZOVSKY, Mina. Serviço Social médico na administração hospitalar:
análise teórica e levantamento da situação em hospitais de São Paulo. 2 ed. São Paulo:
Moraes, 1980.
373
BERGER, Peter L. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento.
16 ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
BRANT, Gilda Aparecida Deliberado. Dados para uma análise da prática profissional na área
da saúde mental. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, Cortez, 1984, n. 16 p. 86-95.
374
BRAVO Maria Inês Souza. Serviço Social e reforma sanitária: lutas sociais e
práticas profissionais. São Paulo: Cortez, 1996.
_____. As políticas brasileiras de Seguridade Social: saúde. Capacitação em
Serviço Social e Política Social: política social, Brasília, NED/CEAD- UNB, 2000, mód. 3,
p. 104-15.
BRASIL, Ministério da Saúde. Coordenação Geral de Documentação e
Informação. Legislação em Saúde Mental, 1991-2001, série E, n. 4.
CARDOSO, Fernando Henrique. Autoritarismo e democratização:
contrapontos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário.
Petrópolis: Vozes, 1998.
CARVALHO, Maria do Carmo Brant de, NETTO, José Paulo. Cotidiano:
conhecimento e crítica. 4 ed. São Paulo: Cortez, 1996.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 3 ed.
Rio Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
CERQUEIRA FILHO, Gisálio. A “questão social” no Brasil: crítica do
discurso político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre cidadania e modernidade. Praia
Vermelha: estudos de política e teoria social. Rio de Janeiro, Escola de Serviço, 1997, n.1.
COHN, Amélia, ELIAS, Paulo Eduardo. Saúde no Brasil: políticas e
organização de serviços. 4 ed. São Paulo: Cortez/CEDEC, 2001.
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DAGNINO, Evelina (org.). Os anos 90: política e sociedade no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
DEMO, Pedro. Metodologia cientifica em ciências sociais. São Paulo: Atlas,
1981.
DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: um estudo de psicopatologia
do trabalho. 5 ed. São Paulo: Cortez, 1992.
DRAIBE, Sônia. (org.). Para a década de 90: prioridades e perspectivas de
políticas públicas. Brasília: IPEA/IPLAN, 1990.
375
ENCONTRO Nacional de Pesquisadores. Anais. Brasília: ABEPSS, 2000, v.
III.
ECO, Humberto. Como se faz uma tese. 17 ed. São Paulo: Perspectivas, 2002.
FALEIROS, Eva T. Silveira. Serviço Social e Saúde Mental. Revista Inscrita,
Rio Janeiro, Ideal, maio/2002, n. 8 p.31-6.
FALEIROS, Vicente de Paula. Natureza e desenvolvimento das políticas
sociais no Brasil. Capacitação em Serviço Social e Política Social: Política social, Brasília,
CEAD/UNB, 2000, p. 43-56, mód.3.
_____. Questões presentes para o futuro. Serviço Social e Sociedade, São
Paulo, Cortez, 1996, n.50, p. 9-39.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da língua
portuguesa. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
FERNANDES, Ângela Viana Machado. Cidadania, democracia e cultura
política: Brasil e Espanha em análise. VAIDERGORN, José (org.). O direito a ter
direitos. Campinas/SP: Autores Associados. 2000, p. 53-73. Coleção Polêmicas de Nosso
Tempo.
FOUCAULT, Michel. Historia da loucura na idade clássica. São Paulo:
Perspectiva, 1972.
_____. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
_____. Microfísica do poder. 9 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
GENTILLI, Raquel de Matos Lopes. Representações e práticas: identidade e
processo de trabalho no Serviço Social. São Paulo: Veras, 1998.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo:
Perspectiva, 1961.
GONÇALVES, Lúcia Maria Rodrigues. Saúde Mental e trabalho social. São
Paulo: Cortez, 1983.
GUARESCHI, Pedrinho A, JOVCHELOVITCH, Sandra (org.). Textos em
representações sociais, 4 ed, Petrópolis: Vozes, 1998, p.191-225.
GUIMARÃES, Simone de Jesus. Serviço Social e Igreja Católica pós-ditadura.
São Paulo: PUC, 1995. Projeto de doutorado.
376
_____. A prática institucionalizada do assistente social em Teresina:
possibilidades e limites de uma ação identificada com os interesses populares. São Paulo:
PUC, 1987. Projeto de Mestrado.
_____. Serviço Social e Igreja Católica no Brasil pós-ditadura. São Paulo: PUC, 1998. Tese
de doutorado em Serviço Social.
GUIMARÃES, Humberto. Para uma psiquiatria piauiense. Teresina: COMEPI, 1994.
377
HAGUETTE, Teresa Maria Frota. Metodologias qualitativas na sociologia. 5
ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
IAMAMOTO, Marilda Villela, CARVALHO, Raul de. Relações sociais e
Serviço Social no Brasil:esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 8 ed. São
Paulo: Cortez/CELATS, 1991.
IAMAMOTO, Marilda Villela. Renovação e conservadorismo no Serviço
Social: ensaios críticos. 4 ed. São Paulo: Cortez, 1997.
_____.O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação
profissional. São Paulo: Cortez, 1998.
_____. O trabalho do assistente social frente às mudanças do padrão de
acumulação e de regulação social. Capacitação em Política Social e Serviço Social: Crise
contemporânea, questão social e Serviço Social, Brasília: NED/CEAD-UNB, 1999, mód.
1 p. 112-28.
ISKANDAR, Jamil Ibrahim. Normas da ABNT: comentadas para trabalhos
científicos. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2003.
KOMEYAMA, Nobuco. Filantropia empresarial e entidades da sociedade
civil. Capacitação em Serviço Social e Política Social: O trabalho do assistente social e as
políticas sociais. Brasília. UNB/CEAD-UNB, 2000, mód. 4, p. 199-213.
LIMA, Antonia Jesuíta de. As multifaces da pobreza: formas de vida e
representações simbólicas dos pobres urbanos. Teresina: Halley, 2003.
LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise
marxista. São Paulo: Cortez, 1985.
LANE, Silvia Tatiana Maurer. Usos Abusos do conceito de Representação
Social. SPINK, Mary Jane P. O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na
perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense: 1993, p.58-82.
MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: medicina social e constituição
da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
MATINELLI, Maria Lúcia. Serviço Social: identidade e alienação. 4 ed. São
Paulo: Cortez, 1995.
MARSHAL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar,
1967.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (Feuerbach). 8 ed. São
Paulo: Hucitec, 1991.
378
_____. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2002.
MARX, Karl. O 18 de brumário e as cartas a Kugelman. 5 ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1986.
_____.Contribuição para a crítica da economia política. São Paulo:
Estampa/Mandacaru, 1989.
MELMAN, Jonas. Famílias e doença mental: repensando a relação entre
profissionais de saúde e famílias. São Paulo: Escrituras, 2001/Coleção Ensaios
Transversais.
MENDES, Eugênio Vilaça (org.). Distrito sanitário: o processo social de
mudanças das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. 2 ed. São Paulo:
Hucitec/Abrasco, 1994.
_____. Uma agenda para a saúde. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O conceito de representações sociais
dentro da sociologia clássica. GUARESCHI, Pedrinho A, JOVCHELOVITCH, Sandra
(orgs.). Textos em representações sociais. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1998a, p.89-111.
_____. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 5 ed. São
Paulo: Hucitec/Abrasco, 1998b.
_____. (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 20 ed.
Petrópolis: Vozes, 2002.
MOTA, Ana Elizabete (org.). A nova fábrica de consensos: ensaios sobre a
reestruturação empresarial, o trabalho e as demandas ao Serviço Social. São Paulo:
Cortez, 1998.
_____. Políticas sociais e setores por segmentos. Capacitação em Serviço
Social e Política Social: Política social, Brasília, CEAD/NED, 2000, mód. 3, p.167-81.
MOURA Alexandrina S. de (org.). O Estado e as políticas públicas na
transição democrática. São Paulo: Vértice, 1989.
MONTANÕ, Carlos Eduardo. O Serviço Social frente ao neoliberalismo.
Serviço Social e Sociedade. São Paulo, Cortez, 1997, n. 53, p.102-25.
NAHUZ, Cecília dos Santos, FERREIRA, Lusimar Silva. Manual para
normalização de monografias. 3 ed. São Luís, s/e, 2002.
NETTO, José Paulo. A crítica conservadora à Reconceituação. Serviço Social
e Sociedade, São Paulo, Cortez, 1981, n. 5 p.59-75.
379
_____. Notas para a discussão da sistematização da prática e teoria em
Serviço Social. ABESS. n. 3. São Paulo: Cortez, 1989a, p.141-161.
_____. Serviço Social e Marxismo. Serviço Social e Sociedade São Paulo,
Cortez, 1989b, n. 30 p.89-102.
_____. Capitalismo monopolista e serviço social. São Paulo: Cortez, 1992.
_____. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós
– 64. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1996a.
_____. Transformações societárias e Serviço Social: Notas para uma Análise
prospectiva da profissão no Brasil. Serviço Social e Sociedade, n. 50. São Paulo: Cortez,
1996b, p.87-132.
_____. A construção do projeto ético-político do Serviço Social frente à crise
contemporânea. Capacitação em Serviço Social e Política Social: Crise contemporânea,
questão social e Serviço Social, Brasília, CEAD/NED, 1999, mód. 1, p.93-110.
NOGUEIRA, Alexandre Barbosa. Avaliação do programa de saúde mental
comunitária do Piauí. Rio se Janeiro: UFRJ/IP, 1993. Tese de doutorado em psiquiatria.
OLIVEIRA, Carlos Francisco Almeida de. História da psiquiatria no Piauí.
Teresina: UFPI / RMP, 1995. Monografia de Residência Médica em Psiquiatria.
PERRUSI, Artur. Imagens da loucura: representação social da doença
mental na psiquiatria. São Paulo: Cortez/ Recife: Universitária, 1995.
PONTES, Reinaldo Nobre. Mediação e Serviço Social: um estudo preliminar
sobre a categoria teórica e sua apropriação pelo Serviço Social. 2 ed. São Paulo: Cortez,
1997.
RAMOS, Francisco Ferreira. Memorial do Hospital Getúlio Vargas: contexto
histórico-político-econônimico-sócio-cultural (1500-2000). Teresina, 2003.
RAMOS, Rocemilda Alves. Prática do assistente social nos Centros de Atenção
Psicossocial: um estudo das representações sociais. Recife: UFPE, 2003. Dissertação de
mestrado em Serviço Social.
RESENDE, Heitor (org.). Cidadania e loucura: política de saúde mental no
Brasil. Petrópolis: Vozes, 1987.
ROSA, Lúcia Cristina Santos. O impacto do transtorno mental e o provimento
de cuidado na família. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000a. Tese de Doutorado em Serviço
Social.
380
_____. As condições da família brasileira de baixa renda no provimento do
cuidados com o portador de transtorno mental. VASCONCESLOS, Eduardo Mourão
(org.). Saúde mental e Serviço Social: o desafio da subjetividade e da
interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2000b, p.263-88.
_____. Os saberes construídos sobre a família na área mental. Serviço Social e
Sociedade, São Paulo: Cortez, 2002, n. 71, p.138-64.
RODRIGUES, Mavi Pacheco. Serviço Social e Reforma Psiquiátrica em
tempos pós-modernos. Praia Vermelha: estudos das políticas e teoria social, Rio Janeiro,
Escola de Serviço Social, 2002, n. 6, p.94-119.
RUSSO, Jane. O mundo psi no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
SÁ, Celso Pereira. A construção do objeto de pesquisa em representações
sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.
SADER Emir, GENTILI Pierre (org.). Pós-neoliberalismo. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1995.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na
ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
SANTOS, Antonio Gonçalves. A prática do Serviço Social nas instituições.
Serviço Social e Sociedade São Paulo: Cortez, 1980, n. 2, p. 114-26.
SANTOS, Wilson Freitas. Assistência psiquiátrica no Piauí: histórico.
REVISTA da Associação Piauiense de Medicina. V.19. n.1, Teresina, 1973. p. 39-45.
SARACENO, Benedetto. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à
cidadania possível. 2 ed. São Paulo: Te Corá, 2001.
SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho cientifico. 22 ed. São
Paulo: Cortez, 2002.
SPINK, Mary Jane (org.). O conhecimento no cotidiano: as representações
sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1995.
SERVIÇO Social Crítico. Problemas e perspectivas: um balanço latino
americano / Centro Latino de Trabalho Social. Tradução: José Paulo Netto. SP:Cortez /
CELATS, 1986.
SERRA, Rose Mary Sousa. A prática institucionalizada do serviço social:
determinações e possibilidades. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1986.
381
SILVA, Jaqueline Oliveira.(org.). Práticas do Serviço Social: espaços
tradicionais e emergentes. Porto Alegre: Da Casa Editora, 1998.
SILVA, Ademir Alves. As Relações Estado-sociedade e as forma de regulação
social. Capacitação em Serviço Social e Política Social: Reprodução social, trabalho e
Serviço Social, Brasília: NED/CEAD-UNB, 1999, mód. 2 p.57-71.
SILVA FILHO, João Ferreira da. Psiquiatria Comunitária: a sexualidade e o
poder disciplinar. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, Cortez, 1984, n. 16, p.80-96.
SILVA, Maria do Rosário de Fátima e Silva. A política e organização no novo
sindicalismo: análise de experiências dos trabalhadores urbanos em Piauí (bancários e
comerciários). São Paulo: PUC, 1997. Projeto de pesquisa de doutorado.
SIMIONATTO, Ivete, NOGUEIRA, Vera Maria Ribeiro. Pobreza e
participação: o jogo das aparências e as armadilhas do discurso da agencias
multilaterais. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, Cortez, 2001, n. 66, p. 145-64.
SOARES, José Gutemberg Ferreira. Clidenor de Freitas Santos: psiquiatra,
humanista, sonhador. ANAIS do congresso regional de medicina do Estado do Piauí. v.
4. Teresina, 2000, p. 143-49.
SOARES, Maria Zilda Silva. Rompendo correntes: representações sociais
sobre a reforma psiquiátrica. João Pessoa: UFPB, 2002. Dissertação de mestrado em
Psicologia.
TRIVIÑOS, Augusto Nivaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais:
a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.
TEIXEIRA, Sônia Fleury et al. Reforma Sanitária: em busca de uma teoria.
São Paulo: Cortez, 1989.
TEIXEIRA, Solange Maria. Representações sociais da profissão de Serviço
Social: um estudo de caso junto ao alunado do curso na UFPI. São Paulo: PUC, 1998.
Dissertação de mestrado em Serviço Social.
TELLES, Vera da Silva. Sociedade e construção de espaços públicos.
DAGNINO, Evilina (org). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1994, p.91-101.
VASCONCELOS, Ana Maria de. A prática do Serviço Social: cotidiano,
formação e alternativa na área da saúde. São Paulo: Cortez, 2002.
_____.A prática profissional dos assistentes sociais e o projeto hegemônico do
Serviço Social. VII Encontro nacional de pesquisadores em Serviço Social: o Serviço
Social e a questão social: direitos e cidadania. ANAIS. v.3. UNB. Brasília, 2000, p.94-102.
382
VASCONCELOS, Eduardo Mourão. Estado e políticas sociais no
capitalismo: uma abordagem marxista. Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez,
1988, n. 28, p. 5-35.
_____.Eduardo Mourão. Políticas sociais no capitalismo periférico. Serviço
Social e Sociedade. São Paulo, Cortez, 1989, n. 29, p.67-104.
_____. Serviço Social e interdisciplinaridade: o exemplo da saúde mental.
Serviço Social e Sociedade. São Paulo, Cortez, 1997, n. 54, p.132-57.
_____. (org). Saúde mental e Serviço Social: o desafio da subjetividade e da
interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2000.
VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1977.
VERAS, Adriana Maria Rodrigues de Carvalho, MOREIRA, Mardionísia
Rocha Machado. A prática do Serviço Social no Hospital Areolino de Abreu: esboço de
um resgaste histórico. Teresina: UFPI, 1997. Monografia de graduação em Serviço
Social.
YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. 2 ed. São
Paulo: Cortez, 1996.
WANDERLEY, Luis Eduardo W. A questão social no contexto da
globalização: o caso latino-americano e caribenho. WANDERLEY, Mariângela Belfiore,
BOGUS, Lúcia, (orgs.). Desigualdade e questão social. São Paulo: EDUC, 1997, p. 49-
159.
383
ANEXOS
384
ANEXO I – JORNALZINHO “O IDEAL” PROZUZIDO PELOS USUÁRIOS DO
MEDUNA
O I D E A L
“A OCUPAÇÃO É O MÉDICO DA NATUREZA”
(GALENO)
JORNAL MENSAL DO SERVIÇO SOCIAL E DO SERVIÇO
TERAUPÊUTICO OCUPACIONAL DO SANATÓRIO MEDUNA.
ANO 82 Nº 04 MARÇO TERESINA -
PIAUÍ
LEITOR!
Lançamos mais uma edição no nosso
JORNAL, que trás vários assuntos. O nosso
jornal é elaborado pelo Serviço Social e Serviço
Terapêutico Ocupacional, contando com a
participação de todos os pacientes. Nesta edição,
mudamos um pouco a estrutura do jornal,
seguindo a opinião dos nossos pacientes que
continuam participando ativamente do nosso
trabalho. E como eles, esperamos contar sempre
com a sua participação caro leitor.
(S.
SOCIAL )
I V I N H A Ç Õ E S
A D I V I N H A Ç Õ E S
- Por que o boi baba?
- O que é, o que é, que tem barriga pra
trás?
- O que é, o que é, que para ver os dentes
tem que tirar a roupa para ver o corpo
tem que tirar os dentes?
SUA MAJESTAD – O ÁLCOOL
SUA MAJESTADE – O ÁLCOOL
? ?
385
RESP: ADIVINHAÇÃO
01- Por que não pode cuspir.
02- É a perna.
03- A espiga de milho.
Conheceis-me?
Eu sou o príncipe que aparece nas alegrias o companheiro de todos os gozos modernos
o mensageiro da MORTE, o príncipe que governa o mundo.
Estou presente em todas as reuniões e nenhuma
delas se efetua sem minha presença - meu nome é
DOM ÁLCOOL.
386
387
388
389
390
391
Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas
Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo