a queda de lothar eralda

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A Saga de Mitrax

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A Saga de MitraxEm 1075 EGRR um grupo de elfos deixa a cidade de Sardannah rumo ao norte, para buscar ajuda, pois estava sendo atacada por dragões. Eles jamais poderiam imaginar que se tornariam peças fundamentais para os acontecimentos que levaram à queda da capital élfica, Lothar Eralda, frente a um exército de tuellais, elfos negros, liderados pelo príncipe regenado Bhorgerius.

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A Saga de

Mitrax

Page 2: A Queda de Lothar Eralda

A Queda de LotharEralda

Autor:

Sérgio Roberto de Paulo

Page 3: A Queda de Lothar Eralda

lrion, o rei de Sardannah, certa vez, teve um sonho: O

esplendor de Sursardawê havia retornado, em toda a sua magnanimidade. Por isso, diz-se, ele mandou os seus filhos ao norte, para que, desesperadamente, buscassem a salvação de seu povo condenado:

Era uma vez, no final do memorável ano de 1075 EGRR, uma pequena e inusitada caravana que seguia para o norte. Abandonaram o Vale de Sardannah, no extremo oeste de Andúrias, a quarenta quilômetros do Rio Fulcro, e atravessaram o lado leste de Alba Sularis e, depois, em balsa, o largo Planoin. Agora, seguindo pelo lado oriental de Alba Alberis, estavam a poucos dias do Baixo Megion, prestes a atingir o seu primeiro destino.

O observador desatento nada daria por aquele grupo, mas, a despeito de sua aparência simples, seus trajes humildes, aquele grupo de elfos continha príncipes. Na verdade, três príncipes do pequeno reino de Sardannah que, naquela época, não passava mais que uma cidade, onde apenas cinqüenta mil elfos habitavam. O primeiro, o líder da expedição, era Ismi Norge Thorna Sânamas, o príncipe herdeiro, filho primogênito de Ilrion. Ele era forte e belo. Fornido e dotado de uma longa cabeleira branca e lisa, que mantinha presa através de tranças. Além deste, estava Pliki Ploc Ismidi Kânoras, a jovem princesa, que ainda não havia passado pelo ingewê e, portanto, ainda não havia se fixado na fase notus. Se fosse humana, dir-se-ia estar na adolescência. Já o príncipe mais jovem era Mizi Sonta Zephir Orminias, que também tinha como fase predominante a bóreas. Ambos, Ismidi e Zephir, eram agitados e inconformados, o que exasperava o irmão mais velho e, às vezes, o fazia duvidar do sucesso da tarefa que lhe havia sido incumbida. Acompanhavam os três príncipes o velho e sábio Sinésios, que conduzia a carroça de suprimentos e que era o principal servo da Casa Sardannah, um homem de confiança de Ilrion e que acompanhara o crescimento de todos os filhos do rei. E, além deste, os notus Vandhoras – este o principal amigo de Sânamas – e Lêmenos, guerreiros invejáveis, e que tinham a missão de proteger os príncipes. Eram todos elfos da linhagem sursardawê, elfos loiros.

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Agora era noite, e aquele pequeno grupo de seis elfos estava acampado numa planície abarrotada de grandes pedras, ao nordeste de Alba Alberis. Sânamas, Ismidi, Vandhoras e Lêmenos reuniam-se em torno da fogueira recém acesa, enquanto que Sinésios e o jovem Zephir, a alguns passos dali, conversavam próximos à carroça. O elfo idoso procurava algo na carroça, enquanto que o bóreas não parava de falar:

-...e quando chegar em Lothar Eralda, vou ter um dragão. Vou treiná-lo para ser o mais feroz de todos. Aí eu vou expulsar os invasores de nossos ares!

Sinésios sorriu sem olhar para o menino, pois estava concentrado em procurar um objeto perdido. Mas objetou algo à fala de Zephir:

-Não é sábio treinar um dragão para ser feroz, pequeno príncipe!

-Mas ele vai ter que lutar contra os dragões da Moldária!

Diante dessa declaração, Sinésios achou melhor parar o que estava fazendo. Virou-se para o menino, ainda com um sorriso nos lábios e disse:

-Vamos, senta-te aí no chão que tenho algo a te contar...

-O que é?

-Sabes que nossas flechas não podem atravessar a couraça de um dragão cinzento, não sabes?

-É claro que sei! – exclamou o príncipe.

-E nem os nossos dragões verdes vencer um em combate, pequeno Zephir... – disse o ancião, olhando o menino fixamente nos olhos.

-Eu sei, mas...

-E quais são os únicos pontos fracos dos dragões da Moldária? Quais são os seus únicos pontos que podemos atingi-los?

-Bem, os olhos e a boca. Todo mundo sabe disso! E daí? – indagou ele, dando de ombros.

-E daí, principezinho, se quiseres derrotar um dragão cinzento, não precisas de uma montaria feroz, o que precisas mesmo é do dragão verde mais esperto, o mais ágil e astuto!

O menino franziu as sobrancelhas arqueadas para cima e pensou. Sinésios voltou a vasculhar a carroça e finalmente encontrou o que procurava: um pequeno objeto, que apanhou e o entregou a Zephir:

-Toma, este é o corno que foi usado na batalha de Beliária por Tezane, o herói sursardawê. Dizem que tem o poder de chamar o mais esperto dos dragões verdes.

Hesitante, o menino segurou o pequeno corno que cabia na palma da sua mão. Se o que Sinésios dissera fosse verdade, ele poderia usar o instrumento quando chegasse a Lothar

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Eralda e, no uigatuwu, fazer com que o mais esperto dos dragões o escolhesse. Assim, seus olhos brilharam ao segurar o corno com ambas as mãos, e sorriu agradecendo aos quatro ventos.

Sinésios ficou durante um longo tempo admirando o menino e suplicando aos mesmos deuses que ele jamais sofresse as decepções de vida que um dia experimentara.

Enquanto tal diálogo se processava, em torno da fogueira, outras malhas do destino se trançavam. Lêmenos subia na única árvore que havia ali, dizendo:

-Hoje é a minha vez de montar vigília!

Já Ismidi, com cara de emburrada, jogava alguns legumes dentro do caldeirão com água quente, que fora instalado sobre a fogueira. Vandhoras estava sentado sobre uma pedra, ao lado do fogo e Sânamas andava de um lado para o outro, preocupado e conversando com o melhor amigo.

-E o que dirás a ele? – indagou o guerreiro.

O príncipe não parava de andar e respondeu gesticulando:

-A verdade, o que mais? Direi que precisamos do lugar!

-Mas Sinésios disse que o rei Samadion é presunçoso e ambicioso. Jamais nos entregaria aquelas ruínas!

-Temos que tentar, não temos? – foi a resposta do príncipe.

Mas a próxima fala foi cheia de rancor:

-Não devíamos ter saído de Sardannah – reclamou Ismidi, - devíamos estar lá, lutando contra os invasores!

-Já discutimos sobre isso, Ismidi – foi a resposta do príncipe. – A decisão foi de nosso pai!

-Tudo isso está errado! Abandonar nosso lar!

-Que alternativa temos? – interpôs Sânamas.

-Lutar! – gritou ela, com uma voz muito mais alta que o normal.

Vandhoras notou que a elfa bóreas tremia.

-Lutar? – continuou o príncipe. – Com o que? Nem ao menos temos dragões!

-Pois vamos trazer dragões de Lothar Eralda e resistir!

Sânamas olhou para a irmã desanimadamente:

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-Vai levar meses para irmos e voltarmos e...

-E? – indagou ela, ainda a tremer de raiva.

-E o rei... nosso pai... se não houver alternativa...

O príncipe não completou a frase, mas Ismidi, que o mirava nos olhos, entendeu o que ele não disse:

-Não, os cavaleiros rubros não... Prometeste-me, Sânamas, prometeste que nós não nos ajoelharíamos a Région! Tu prometeste!

-Ismidi... talvez não haja alternativa... – explicou ele, mostrando as palmas das mãos.

Ela, com os olhos cheios de lágrimas, deu um salto e alçou vôo, ainda repetindo:

-Tu me prometeste!

E desapareceu nos céus.

Sânamas tentou acompanhá-la com os olhos, mas Vandhoras disse, para acalmá-lo:

-Relaxa, ela logo volta! Como sempre!

Mas o príncipe passou a olhar para um lado e para outro, praguejando, acreditando que nada mais dava certo na sua vida.

Vandhoras olhou para Zephir, que ainda conversava com Sinésios, logo adiante, alheio ao que se passava ali, e indagou ao príncipe, para desviar possíveis pensamentos hostis contra a irmã e, ao mesmo tempo, lembrando-lhe de outros problemas:

-Quando vai contar a eles?

Como se levasse um susto, ainda disperso na preocupação do que fazer com a irmã, Sânamas ficou ligeiramente desconcertado:

-Contar o que?

-O que? – estranhou o guerreiro. – Contar aos seus irmãos que eles não vão voltar. Que ficarão em Lothar Eralda!

O príncipe ficou uns instantes em silêncio, pensando. Depois respondeu:

-Não agora, Vandhoras. Vou contar quando chegarmos em Karnevion...

O guerreiro élfico balançou negativamente a cabeça.

-Não tenho certeza se não seria melhor ser sincero com eles, Sânamas...

O príncipe olhou o seu maior amigo com dúvidas e desassossego na alma, mas Vandhoras, percebendo o seu estado, concluiu que deveria ser sincero com ele também:

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-Sabes, amigo... gosto de teus irmãos. Se puder, vou ensinar tudo o que sei a Zephir e, quanto a Ismidi... ela... bem...

Vandhoras parecia hesitar, por isso Sânamas o encorajou a continuar:

-O que tem Ismidi?

-Sabes, ela tem mais de cem anos e... um dia, Sânamas, ela estava nos jardins do palácio... Eu a observava de uma sacada e ela não podia me ver. Fui por acaso, eu juro! Aí, então, ela... ela se transformou numa notus. Estava triste, sei lá! E, então, somente naquela vez, eu a vi como Kânoras... e, Sânamas, me perdoa, mas... Era a criatura mais linda que já vi na face desse mundo!

Quando acabou de falar, fez-se silêncio durante alguns segundos. Sânamas estava pasmo, mas, depois desse momento, ele começou a rir:

-Há, não acredito! Meu melhor amigo está apaixonado!

Vandhoras se sentiu ao mesmo tempo envergonhado e aliviado. Envergonhado por ter confessado aquela fraqueza e aliviado pelo príncipe ter recebido bem os seus sentimentos para com a sua irmã.

Mas o sorriso de Sânamas desapareceu. Ele pousou a mão num dos ombros do amigo e acrescentou:

-Mas sabes que terás que esperar muito, não é, Vandhoras? Ela não quer ser uma notus!

-Sei, sei... – disse o guerreiro, conformado. – Mas podes guardar esse pequeno segredo de teu amigo?

O príncipe o olhou com um misto de sentimentos, mas, depois, com sinceridade, respondeu:

-É claro.

Ismidi subiu e subiu. Subiu o mais alto que podia. A fogueira se transformou num mero ponto bruxuleante e, depois, desapareceu quando ela varou as nuvens brancas. Estava escuro, mas, quando emergiu na parte superior dessas massas esbranquiçadas, pôde ver o céu alaranjado diante de si, iluminado pelo Sol que havia se posto no oeste. Parou, flutuando, carregada pelo vento. Desejou seguir para lá, voar e voar até não mais poder. Depois desejou ir para o lado oposto, para o mar. Sabia que poderia alcançá-lo, atravessando as Montanhas de Fogo. Sabia que podia, mesmo que quase morresse de exaustão, mesmo que seu cérebro explodisse até quase não poder mais controlar o vento. Voar, agora, era tudo o que tinha, tudo o que lhe restava. Como poderia saber se seu pai nesse momento já não estaria morto, tendo o mesmo destino que sua finada mãe, que fora incinerada pelos malditos dragões cinzentos? Tudo o que podia fazer agora era voar, já que ninguém dava ouvidos ao que falava, já que ninguém se importava com as suas opiniões. Odiava a todos. Odiava principalmente Aara, a

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Rainha de Brenor, por haver reativado os cristais e, com isso, trazido os dragões de volta. Mas, agora, isso não importava. Poderia escolher a direção que quisesse, poderia rumar para qualquer lugar. Quem poderia lhe impedir? Os elfos notus não voavam e nenhuma flechapoderia lhe atingir agora. Estava livre, era livre agora. Jamais seria uma dríade. Lutaria contra o passar do tempo e o envelhecimento. Lutaria bravamente. Sempre seria livre. Lutaria bravamente por isso. Jamais aceitaria o ingewê. Por que um elfo poderia aceitar deixar de voar? Abriu os braços e sentiu o zéphiros que soprava forte. Não, jamais perderia a liberdade. Antes, se não tivesse alternativa, se Kânoras a dominasse, se mataria. Prometera isso a si mesma. Jamais Ismidi desapareceria de sua alma, voltando a morar no Vale de Aar. Não, jamais. Prometera isso a si mesma.

#######

Diante de uma centúria de guerreiros élficos portando armaduras folheadas em prata, o enrijecido rei Armond olhou fixamente para o portão que dava acesso ao mortal exterior. Montava o seu impaciente cavalo negro, que reluzia aos primeiros raios matutinos. O rei de Amazannah estava também de armadura, mas não usava elmo. Na cabeça, uma malha de aço brilhante envolvia toda a sua cabeça, boca e nariz, deixando apenas os seus cansadosolhos à mostra, tudo o que podia expor àquele hostil ambiente. Mas, sobre a malha, estava a vistosa coroa dos elfos dortas, ou, pelo menos, o que restou deles. A coroa tinha altas pontas losangulares, oito ao todo, distribuídas uniformemente ao longo da sua circunferência. E, na fronte, num desenho discreto, em baixo relevo, o símbolo de Amazannah: a serpente de duas cabeças com asas.

Os guerreiros estavam prestes a partir. Aguardavam, com o coração apertado e sentindo o cheiro da morte, apenas a ordem do rei. Ao lado deste, montado noutro cavalo igualmente negro, estava o general Adanius “Olho Vazado”, ou por vezes chamado “Olho Costurado”, o feroz militar élfico de face dura, exibindo orgulhosamente uma feia cicatriz no lado direito da face, que lhe atravessava o lugar onde outrora estivera o olho, cujo globo ocular tivera que ser extraído. Recusava-se a usar um tapa-olho, afinal era a lembrança viva que guardava daquela fera da floresta, um golrathar, que lhe fizera isso e que ele matara. Por isso, também não usaria elmo ou qualquer malha que lhe cobrisse o rosto.

Do outro lado do rei, montando uma égua branca irrequieta, que não conseguia parar quieta, apesar da habilidade da condutora, estava Nestzas, a heroína dríade dos amazanos, mas o elmo de longas asas lhe cobria o rosto, não permitindo o vislumbre de sua bela face.

Os demais soldados estavam a pé, parados no pátio anexo ao enorme portão de ferro, aguardando. Diante deles estava Oslovius, o capitão da guarda de Valzablas, a capital amazana, a cidade que se descortinava logo após a fornida muralha diante da qual estavam, que era alvíssima e se erguia a quase cem metros de altura. Estavam ali há pelo menos um minuto, estáticos e em silêncio. Apesar disso, o rei estava em silêncio e não proferiu a ordempara abrirem o portão. Ao invés disso, mantinha o olhar fixo e perdido adiante. Mas Oslovius percebeu o que ele fazia. Aquele rei jamais temeria sair da proteção do vale de Amazannah, não, ele não temia as criaturas da floresta. O que ele estava fazendo, na visão do capitão, era uma profunda oração. Provavelmente rezaria ao Bóreas, para que os conduzissem em

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segurança através da Floresta Infinita. Oslovius admirava a fibra do seu rei, mas não pôde contemplá-lo por muito tempo, pois ouviu uma voz vinda do seu lado esquerdo:

-Ei, Oslóvius, vou contigo!

Olhou imediatamente na direção que a voz lhe chegara e constatou o que mais temia: Kizi Tono Auaris Snevius estava ali, logo ao seu lado. O elfo bóreas, seu irmão mais novo, vestia uma calça e camisa simples, verdes, e uma sacola cuja alça lhe atravessava o peito. Sorriu sem graça para o irmão mais velho.

Oslovius abriu a viseira do elmo, olhou para um lado e para o outro e se aproximou do irmão. Agarrou-o firmemente pelo lado frontal da camisa e disse com voz ríspida:

-Já te disse que não sobreviverias um dia lá fora! Volta para casa!

-Eu não! – respondeu ele, teimosamente. – Onde fores, irei também!

-Tu és teimoso, Auaris Snevius. Se não fores, te dou uma surra agora mesmo! – e empurrou o menino. Ele caiu no chão de terra batida, levantando alguma poeira. Ficou olhando o capitão da guarda com raiva. Foi quanto o rei finalmente deu a ordem:

-Abri o portão!

Imediatamente, trombetas soaram do alto da muralha. Soldados que vigiavam em torres gritaram aos ventos:

-Atenção, o portão está sendo aberto! Atenção, o portão está sendo aberto!

E repetiram isso diversas e diversas vezes, enquanto que as duas folhas do portão lentamente se desdobravam para fora. E, quem estivesse no exterior, veria que, mesmo aquele portão com vinte e cinco metros de altura, era mesmo medíocre frente as duas estátuas que o ladeavam: tinham a forma de dois anjos de pedra, com oitenta metros de altura, segurando com ambas as mãos uma espada na vertical, com a ponta fincada no solo. Os anjos tinham os olhos fechados e as cabeças inclinadas para frente, sendo que as testas tocavam as extremidades dos cabos das espadas. Suas asas pareciam incrustadas na muralha, destacando dessa por uma desgastada pintura.

Os cavalos se puseram em marcha. Então, o capitão proferiu a sua ordem:

-Avante, dortases!

Os guerreiros passaram a se mover, em duas longas colunas, com um tilintar característico de suas armaduras de metal e, entre tais colunas, se movia uma outra coluna, formada de burros legando cargas, os suprimentos que os manteriam durante a longa viagem.

Mas Auaris estava inconformado e, quando apenas metade do contingente da caravana havia atravessado o portão, ele se levantou e alçou vôo. Fez o impensável: voou velozmente sobre a muralha. Mas os guardas estavam atentos e as trombetas soaram de forma diferente: como um alarme. Incontinenti, todos olharam para o céu e viram o jovem bóreas aparecendo no céu mais ou menos sobre o rei. Mas este não olhou o elfo durante

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muito tempo. Era experiente demais. Olhou sim, para outro lado, pois pressentira a presença de uma ameaça. E o que viu foi o bote fulminante de um jovem e robusto abutre de Armon. A ave de cinco metros de envergadura, numa fração de segundos, lançou-se sobre o jovem Auaris, agarrando-o firmemente com as presas e mudando violentamente a sua trajetória. Os guardas das torres prepararam os seus arcos. Alguns dispararam, mas erraram o alvo, pois a ave ziguezagueava voltando-se para o interior de Amazannah, em direção às Montanhas de Fogo. Mas Oslovius agiu rápido: correu de volta ao interior da muralha, enquanto retirava arco e flecha das costas. Depois se posicionou plantando ambos os pés firmemente no chão, enquanto mirava. Orou aos quatro ventos e atirou. A certeira flecha fincou-se no pescoço do animal, que soltou a sua presa. O elfo bóreas despencou rodopiando dos céus. Oslovius pode então apenas observar o irmão cair e torcer:

-Vamos, Auaris, vamos!

Mas o menino, que parecia desacordado, despertou a poucos metros do chão e fez com que os ventos amortecessem a sua queda. Mesmo assim, se chocou contra o chão de maneira que não se poderia considerar suave.

Oslóvius suspirou e, logo, ouviu a voz do seu general:

-Vai dar um jeito no teu irmão, capitão! – disse Adanius, posicionando o seu cavalo a poucos passos dali.

Oslóvius acenou para o último elfo da coluna. Quando esse se aproximou, ordenou:

-Sênetas, és ligeiro. Leva meu irmão para casa e o tranca lá. Depois nos alcança!

O soldado apenas meneou afirmativamente com a cabeça e em seguida marchou decididamente em direção ao menino, agarrando-o. Enquanto isso, o general e o capitão se juntaram à caravana. Essa seguiu lentamente à frente, atravessando o descampado com um quilômetro de extensão, para além do portão, uma área que fora desmatada pelo anjo Amazarak, o construtor da muralha, onde, por ação de um feitiço, nada mais crescia.

A caravana seguiria pela trilha anexa ao descampado, mas, logo no ponto inicial desta, já encontraram um obstáculo: uma esnajaade, uma criatura medonha que parecia um nó de serpentes. Na verdade, uma criatura de cujo centro partiam centenas de cabeças de serpentes, cada uma com um metro de comprimento. Aquela criatura se movia rolando, mas, agora, estava postada fixamente bem no meio do caminho, ameaçando quem ousasse passarpor ali.

-Me larga, Sênetas – gritou Aueris, debatendo-se inutilmente.

-Não adianta protestar! Recebi ordens de levar-te para casa!

E assim, carregou o menino debaixo do braço pelas ruelas ensombradas da cidade, enquanto ele ainda se debatia. Mas, aconteceu que Aueris conseguiu agarrar um pedaço de pau que havia no caminho. Era uma vareta fina, da espessura de um polegar, mas muito rígida.

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Ele conseguiu também, num gesto rápido, enfiar a vareta com força no elmo do soldado. Ele caiu para trás, sentindo dor e acabou largando o menino no chão. Mas se levantou logo, furioso.

-Ora, seu... – bradou Sênetas.

Mas o bóreas apanhou uma pedra no chão e atingiu a lateral do elmo do guerreiro. Mesmo assim, esse o agarrou pela camisa, mas Aueris ainda continuou batendo-lhe com a pedra, deixando-o tonto. Mas Sênetas era forte e levantou o menino. Levou-o até o encontro de uma parede, batendo as costas do menino com certa violência. Este não se fez de rogado e continuou a atacar o oponente com a pedra, enquanto esse o arremessava de novo contra a parede. Mas aquilo, longe de nocautear o bóreas, fê-lo apenas ficar furioso. Seu sangue lhe correu mais forte pelas veias e, como conseqüência, fê-lo se transformar num notus: Snevius.

Este olhou fixamente o oponente e ralhou entre os dentes:

-Agora que a briga vai ser pra valer, Sênetas!

Mas o guerreiro retrucou:

-Sou forte Snevius!

-Eu sou mais! – exclamou o irmão do capitão.

Seguiu-se uma longa luta constituída por socos, cotoveladas e pontapés, mas, após ambos estares quase sem forças, Snevius acertou um belo soco no queixo de Sênetas, deixando-o inconsciente.

Após isso, a única coisa que o jovem notus, muito resfolegante, pôde fazer foi admirar a armadura reluzente do guerreiro.

-Dai-me uma lança! – ordenou o rei, refreando o cavalo e desmontando.

-Uma lança para o rei! – repetiu o capitão.

Logo, uma longa lança de madeira apareceu de trás da centúria, sendo passada de mão em mão, até que chegasse às luvas do próprio Armond. Este segurou firmemente a arma e olhou fixamente o animal. Estreitou os olhos e se aproximou lentamente da esnajaade. Ao perceber a sua aproximação, a criatura emitiu ameaçadoramente múltiplos guinchos e virou a maioria das cabeças na direção do rei. Mas esse não se intimidou. Postou-se à distância da lança e a virou na direção do animal. Esse se sentiu ainda mais ameaçado, intensificando os guinchos e passou a se defender, lançando esporos envenenados das bocas. Os esporos atingiram a armadura, produzindo o som característico de osso batendo contra metal, mas eles não eram capazes de perfurar a camada de ferro que existia por baixo da cobertura de prata. Alguns dos esporos vieram na direção dos olhos, mas o rei virou calmamente a cabeça e eles se detiveram na malha de aço. Enquanto isso, Armond enfiou a lança por entre as cabeças da criatura, mergulhando-a naquele emaranhado, numa posição próxima ao solo, e dizendo para si mesmo:

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-Que pecado deves ter cometido no passado para voltares ao mundo nessa forma horrenda!

Quando elevou a lança, usando a sua admirável força, levantou a criatura junto. Então, simplesmente, carregou-a, pois estava espetada na ponta da lança e depositou-a dentro da mata, sem contudo matá-la.

Assim, quando retomaram a marcha, o último homem da caravana se juntou aos demais e Oslóvius suspirou aliviado.

#######

Cornélius elevou a cabeça e, da proa do barco, avistou as magnânimas muralhas de Lothar Eralda, a capital de toda a nação élfica na Era dos Grandes Reis e Rainhas. Seu coração bateu forte no peito, pois retornava à sua cidade natal, depois de um longo, longo tempo.

Ele estivera em Sepitha, como Aldebaran lhe recomendara, mas aquela viagem pouco adiantara, pois Alva Acrux não pudera lhe receber e Becrux Fabacê se limitara a apenas lhe encorajar a prosseguir, com um ar misterioso na face. Agora estava ali, sentindo que teria um árduo desafio pela frente. Mas seria discreto, muito observaria e ouviria, e pouco falaria, conforme lhe ensinara seu antigo mestre lumeraeano: Rigel.

Algumas horas pós ter entrado na cidade e se acomodado na casa de parentes, saiu em busca dos seus objetivos. Primeiro, se dirigiu ao local que abrigava a principal escola de arquearia da cidade: a sede da escola Túria. Ela ficava num prédio de madeira em formado toroidal que se confundia com um grupo de árvores enormes que estavam dispostas ao longo de um círculo de trezentos metros de diâmetro, formando um pátio onde, no passado, os aprendizes praticavam. Mas, lá chegando, Cornélius constatou que estava abandonada. Mas sua mente passeou em devaneio nas sendas do passado: Viu-se como um jovem notus aprendiz, tentando controlar a trajetória de seus dardos em direção aos alvos. Na primeira etapa da aprendizagem, os alvos eram fixos, o que é fácil demais para um arqueiro experiente, mas, na época em que era um iniciante ali, não era fácil acertar um alvo fixo a duzentos metros de distância.

Cornélius suspirou, sentindo os cheiros do passado.

Mas havia elfos morando ali. Um deles varria folhas que estavam espalhadas pelo chão. Ele informou que a escola não mais existia. Todos, agora, eram instruídos segundo os preceitos da escola Tamastha.

-... e os antigos mestres, Viriaus, Lorens, Samídhias... onde estão?

-O notus carregou a alma de Viriaus – informou o habitante do lugar. – Lorens já está no fim de seus dias, aguardando a morte num leito em sua residência. Somente Samídhias ainda leciona, mas em Tamastha!

Cornélius, então, decidiu dirigir-se até a sede dessa escola. Uma construção semelhante àquela de Túria, mas muito mais ampla. Quando ele adentrou o pátio, viu que ali estavam muitos dragões verdes sendo adestrados. Elfos notus e bóreas os seguravam pelas

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rédeas. Alguns se debatiam, as vezes emitindo tênues chamas, outros perseguiam curiosos,com os olhos, objetos brilhantes que os elfos penduravam nas pontas de longas varas. Mas os dragões verdes eram relativamente dóceis, particularmente com os elfos, aos quais tinham afeição natural, como os cães pelos gnomos.

Num dos extremos do pátio, havia um pequeno grupo de jovens arqueiros praticando em alvos fixos, sob a supervisão de instrutores e, dentre eles, estava o velho Samídhias, com as mãos unidas às costas. Cornélius não pôde deixar de sorrir ao se encaminhar ao encontro de seu velho mestre. Quando ele o chamou e este se virou, não o reconheceu imediatamente. Apertou os olhos, para ver se reconhecia o estranho que o interpelava, até que uma voz fraca e tremida apareceu entre os dentes gastos:

-Cornélius? És tu?

Cornélius abriu os braços e o abraçou.

-Há quanto tempo – disse o ancião, - quase não o reconheci! Que ventos o trazem?

-Vejo que estás de casa nova, mestre.

O comentário beirou o tom de inocência, mas foi o bastante para que Samídhias ficasse sério.

-Os tempos são outros, Cornélius – limitou-se a dizer. Depois sorriu de novo, tomou o antigo discípulo pelo braço e puxou-o para longe dali. – Vamos, vamos tomar alguma coisa, alguma coisa forte, como nos velhos tempos!

Havia, não muito longe dali, uma taverna servida por zéphiros. Samídhias sabia muito bem o que queria tomar: um conhaque tuê. Cornélius demandou apenas uma cerveja local, comentando:

-Desde quando tomas essa coisa?

-Ora, eu sempre tomei essa porcaria!

Ambos riram. Mas logo o elfo idoso pareceu ficar saudosista:

-Bons tempos aqueles, Cornélius. Tenho saudades de Túria!

-Mas o que aconteceu? Por que a abandonaram?

-Por que a abandonaram? – repetiu o idoso, com ar espantado. – Ei, estás me incluindo nisso?

-Não necessariamente, mestre...

Mas Samídhias nem deixou o elfo mais jovem falar:

-Pois eu te digo o que aconteceu – e esvaziou o bem torneado copo de vidro. – Os ventos cessaram, foi isso o que aconteceu! Eu não tive alternativa, eu... – e não disse mais nada. Ergueu o copo, um sinal para que os pequeninos zéphiros o servissem novamente.

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-De que estás falando, mestre?

-O cristal enfraqueceu... foi isso... – disse o ancião, parecendo triste. – Não tivemos alternativa além de abandonar a proposta Túria e ensinar no modo Tamasha...

-Mas, mestre, continuo atirando com a ajuda dos ventos. Sinto-os enfraquecendo aos poucos, mas ainda...

-Mas os jovens, Cornélius, os jovens, eles... O vento já não sorri para eles. Posso também atirar sob a bênção deles, mas os jovens... eles não conseguem mais!

Então, de posse de um novo copo, o mestre não bebeu, mas ficou em silêncio. Depois completou:

-A nação élfica está morrendo, Cornélius... – e abaixou a cabeça.

Cornélius não esperava por aquilo. Esperava que houvesse uma razão política para a extinção da casa Túria, uma espécie de disputa por poder. Mas aquilo... Contudo, pensando bem, ele sabia que havia uma alternativa:

-Mestre, há uma solução... Se Aara, a rainha de copas, tocar o cristal, ela poderá reativá-lo!

Mas Samídhias olhou o seu ex-discípulo com os olhos arregalados:

-Então ainda não soubeste das novidades?

-Que novidades? – indagou Cornélius, já alarmado, esperando pelo pior.

-A rainha de Brenor faleceu há alguns dias...

Cornélius quase não acreditou no que ouviu. Não tinha condições de falar nada.

-A notícia chegou ontem... pombos correio...

Cornélius teve que segurar na mesa. Levantou uma das mãos e demandou também um conhaque.

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No mesmo dia que atravessaram a ponte de madeira sobre o Mégion, avistaram, no meio da tarde, as torres chamuscadas e fossilizadas. Sânamas se deteve na contemplação da cidade fantasma durante um longo tempo. Sobre a vegetação rasteira, entremeada de árvores esparsas, as últimas construções de Sursardawê se elevavam aos céus como soturnas torres negras. Tais torres terminavam de forma irregular e lembravam ossos quebrados que foram colocados ali como um monumento ao triunfo do mal. O príncipe sardana teve que reunir forças para voltar a cavalgar e, em breve, estavam no interior das ruínas.

A maior parte das construções estava envolta em vegetação. Longas trepadeiras haviam tomado conta do que restava da antiga metrópole élfica, destruída pelas salamandras, mas a parte superior das torres – algumas delas ainda se elevavam a mais de cem metros de

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altura – se apresentava enegrecida, pois a madeira que as revestia havia há muito se transformado em carvão. Sânamas, impressionado, teve a impressão de ouvir o grito de desespero e dor proveniente dos elfos que pereceram ali, há dois mil anos atrás, incinerados pela ferocidade das elementais do fogo. Estariam as suas almas, perdidas, ainda aprisionadas na cidade?

Desmontou onde outrora estivera a praça central da cidade, um amplo local aberto, onde apenas o capim crescia. Então, rumou para a famosa torre de Sudartha, utilizada para os ritos fúnebres dos susardawenês. Ela ainda guardava sua majestade, mas o príncipe a sentiu taciturna e rancorosa. Hesitante, tocou-a por entre as trepadeiras e, sem se poder controlar, desabou em lágrimas.

Vandhoras estava ao seu lado. Vendo o amigo reagir daquela forma, colocou a mão no seu ombro e disse:

-Ora, Sânamas, isso foi há muito tempo atrás...

Mas o príncipe sardana sentia como se estivesse estado ali, com o calor do fogo em sua própria pele.

A despeito dos fantasmas do passado, resolveram acampar e ali mesmo passar a noite. Mas, assim que o Sol raiou, continuaram a seguir rumo ao norte. Ao atravessar o Mégion, não estavam mais na Meriovíngia, mas nas terras do que oficialmente se chamava Império de Bresul, mas que, na prática, deixara de ser um império desde o final do reinado de Alionor. A antiga capital do império, Aurianon, havia sido amaldiçoada pelo Rei de Espadas e agora estava desabitada. O controle do império, na época da rainha Aldária, fora transferido para Beliária e os soberanos dos reinos que compunham Bresul (Nargo Thar, Nargo Itliu, Khornabilis, Altosanco e a própria Aurianon) se tornaram vassalos do rei beliariano. Contudo, no século XI EGRR, o território de Aurianon era governado pelo rei de Nargo Thar e a situação política de Altosanco era complexa: não se podia afirmar que esse reino pertencia a Bresul, pois os chefes dos clãs das Montanhas da Lua jamais se curvaram diante de Beliária e nem ao menos poder-se-ia afirmar que esse reino pertencia ao grande reino de Brenor, pois a inserção de Altair no Conselho dos Reis era um tanto... instável.

Assim, o seu destino mais imediato era a Fortaleza da Pedra de Prata, situado na cidade de Tisdar, a capital de Nargo Itliu, lar do rei Samadion. Mas, muito antes de chegarem à capital, foram avistados e cercados por um grupo de vinte cavaleiros itliuanos, que vigiavam a fronteira. Sânamas se apresentou como o príncipe herdeiro de Sardannah e solicitou audiência com o rei. Assim, foram escoltados até as imediações da cidade. Tiveram que esperar lá durante mais de um dia, até que o rei se dispusesse a recebê-los. Mas, para a infelicidade dos elfos, Samadion não estava desacompanhado, pois coincidentemente, naqueles dias, estava recebendo a visita do seu irmão mais velho, Hestor, o rei de Nargo Thar, conhecido como o “cérebro” da casa Beliária.

Sânamas apresentou-se diante de Samadion de maneira humilde, inclinando-se diante do rei, acompanhado apenas de seus dois irmãos. O recinto estava abarrotado de

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soldados, o que indicava que o rei de Nargo Itliu não confiava nos elfos. Mau sinal. Outros nobres estavam presentes, além do rei, que, esguio, se postava de maneira ereta, diante do trono, vestindo uma elegante túnica negra de veludo. Ao seu lado esquerdo, sentada no trono, estava a sua esposa, a rainha Darvienne, que sorria para os sardanos, mas não de maneira amigável, e, do seu lado direito, também de pé, com os braços cruzados e fisionomia séria, Hestor, que parecia mais um auxiliar do que um rei. Sânamas se surpreendeu pela jovialidade de Samadion, pois esse não aparentava mais que quarenta anos, mas o seu irmão aparentava ser bem mais velho.

-Então sois os príncipes de Sardannah! – disse o rei Samadion, sorrindo, colocando uma estranha ênfase na palavra “príncipes”. Mas Sânamas percebeu o porque da ênfase, mantendo-se humilde:

-Não sei se podemos nos considerar príncipes, pois não sei se Sardannah pode ser apropriadamente considerada um reino, já que não passa de uma cidade incrustada nos domínios de Andúrias. Mas considero que tenho representatividade para falar em nome de meu... de minha comunidade, pois sou filho de Ilrion, filho de Isradir, filho de Sânamas, filho de Athlon.

-Há – disse Samadion sem abandonar o sorriso, - um descendente do maior rei élfico de todos os tempos! Que interessante! E o que o traz aqui?

-Sabedor da benevolência e do bom sendo dos brenorianos e bresulianos, viemos pedir ajuda. Sardannah está sendo destruída e dizimada por ataques sistemáticos de dragões cinzentos. O rei Ilrion acredita que tenhamos que abandonar a cidade.

-E o que temos a ver com isso? – indagou o rei.

-O local onde outrora se ergueu Sursardawê... acreditamos que podemos reconstruir a cidade e viver lá, pacificamente.

Ao ouvir o pronunciamento do príncipe, Hestor riu e Samadion sorriu ainda mais largamente, como se tivesse ouvido uma piada.

-Eu ouvi direito? Estás vindo aqui solicitando que entregue parte de minhas terras?

-Reivindicamos apenas uma pequena área em torno de Sursardawê...

Mas Samadion nem deixou o príncipe concluir a sua fala, interrompendo-o:

-Se pensas que vamos nos desfazer gratuitamente de parte das terras que nos pertencem estás enganado! – disse, agora seriamente, Samadion.

-Mas não utilizais aquelas terras. Estão abandonadas...

A contra-argumentação, desta vez, não partiu de Samadion, mas de Hestor:

-Essas terras nos pertencem por direito. As salamandras as conquistaram dos elfos, e nós as conquistamos das salamandras!

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-Devo lembrar-vos que vosso pai tinha nome élfico! – essa fora a última tentativa do príncipe, lembrando-se do rei Theobaldo Lothar, pai da rainha Isabel, que fora um aliado dos elfos.

-Um mero nome, nada mais! – disse o rei de Nargo Itliu.

Sânamas olhou espantado para todos: Samadion não conseguia tirar o sorriso dos lábios, assim como a rainha, e Hestor os observava com um olhar duro e pouco amigável. O príncipe não tinha ingênuas esperanças de conseguir aquelas terras gratuitamente, mas não esperava que a negativa se desse daquela forma.

-Está bem... – disse finalmente o príncipe. – Respeito vossas convicções. Mas continuaremos nossa jornada e nos apresentaremos diante da Rainha de Beliária.

-Esquece, filho – retrucou Hestor, com voz aparentemente suave, mas soando como uma advertência, - minha sobrinha jamais discordaria de membros de sua própria família!

Sânamas novamente estendeu o seu olhar a todos os presentes. Depois fechou os olhos e os reverenciou respeitosamente. Disse apenas:

-Muito obrigado.

Virou-se e deixou o recinto, acompanhado dos irmãos.

E, enquanto atravessavam a nave do recinto, Ismidi disse, aparentemente furiosa:

-Vais deixar por isso mesmo? Não queres que eu voe no pescoço desse rei de meia tigela?

-Fica quieta, Ismidi – disse o irmão mais velho. – Não piora as coisas!

E assim, se foram.

Mal haviam saído do salão de audiências, Hestor se aproximou do irmão e praticamente lhe cochichou no ouvido:

-Partamos imediatamente para Beliária. Temos que chegar lá antes deles. Se eu bem conheço Lianor, ela pode ceder toda metade de teu reino de mão beijada. Dize aos teus homens para retardar o avanço deles. Que destruam a ponte nordeste tão logo passarmos por elas. Terão que atravessar o rio se não quiserem escalar as Montanhas da Lua.

E assim, naquela mesma noite, os reis de Nargo Itliu, acompanhados de Hestor e uma horda de cavaleiros, partiram velozmente percorrendo a estrada que conduzia a Beliária.

#######

Amazannah se situava num vale incrustado na extremidade norte das Montanhas de Fogo, o qual era banhado pelo rio Angoin, que se precipitava através das montanhas, rumo norte, com violência, em cascatas espetaculares. O vale se situava em plena Floresta Infinita.

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Agora, o comboio liderado pelo rei Armond seguia para o sul, atravessando esse extremo da floresta. Não era uma longa distância até atingirem Samyaziat, menos que cem quilômetros, mas avançavam devagar, pois a única trilha que existia por ali, que também fora feita pelo lorde demônio Amazarak, era estreita e, em alguns trechos, quase nem existia. Assim, os elfos tinham que seguir quase em fila indiana e, em alguns trechos, mover a vegetação que tomava conta do caminho, pois é sabido que elfos respeitam a vegetação e evitam ao máximo cortar plantas ou árvores. Antes, amassam o mato e passam por cima, movem galhos e trepadeiras para os lados e passam entre elas, com agilidade e leveza, a despeito das robustas armaduras.

Mas, cerca de cinco horas após terem atravessado o portão de Amazannah, algo inusitado aconteceu. O último guerreiro élfico da filha aparentemente desmaiou, caindo no chão com grande estrondo, como se sua armadura se desfizesse. Imediatamente, os que estavam mais próximos, correram em seu auxílio. Abriram a viseira e, para o seu total espanto, nada encontraram dentro. Retiraram então o elmo e, para surpresa geral, não viram nenhuma cabeça ali, sendo que armadura, aparentemente, estava vazia.

Percebendo o alarido, o capitão Oslovius correu incontinenti para o extremo final da linha élfica. Mas, ao ver aquela armadura sem cabeça diante de si, intuitivamente adivinhou o que havia acontecido.

-Abri a armadura! – ordenou.

Os guerreiros imediatamente cumpriram a ordem. Abriram a lateral da peça de peito, que se abriu como a tampa de um baú e descobriram o que havia dentro.

Oslovius teve confirmados os seus temores:

-Auaris! – gritou, quase que automaticamente.

O menino élfico tinha um sorriso amarelo estampado na face. Havia saído da fase notus e um elfo bóreas é bem menor que um notus. Enquanto que o primeiro tem a estatura de um menino de dez anos, o segundo se parece com um homem adulto.

-O que eu faço contigo? – indagou Oslovius desanimadamente, mas como se falasse consigo mesmo.

Mas ele mesmo não precisou dar uma resposta, pois o rei, pessoalmente, apareceu ali, ainda montado em seu cavalo.

Armond olhou bem para o menino, enquanto que os guerreiros o ajudavam a se levantar.

-Vejo que temos um problema aqui... – comentou o rei, com voz suave e pausada.

-Majestade, eu posso explicar... – disse o bóreas, gaguejando levemente e um pouco trêmulo. – Eu... eu queria muito vir!

-Isso não é um piquenique, senhor Auaris! – advertiu o rei. – Desobedeceste o teu irmão e deves ser punido por isso! Mas a questão é... qual a punição justa para esse caso?

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Os olhos do rei eram firmes e profundos e Auaris entendeu o quanto estava encrencado. Por isso, abaixou a cabeça.

-Não posso alterar nossos planos originais em função da irresponsabilidade de um jovem bóreas. Por isso, te ofereço duas alternativas: Ou voltas para trás – Amazannah não está muito longe – enfrentando sozinho os perigos da floresta, ou segue conosco, sem armadura pois nenhuma lhe serve. Mas, advirto-te: poucas são as tuas chances de sobrevivência!

Os olhos de Auaris se arregalaram e ele não pôde evitar de sorrir animadamente:

-Escolho a segunda alternativa, Majestade!

Oslovius olhou para o céu e suspirou.

-Muito bem – completou o rei. – Mas essa é a tua punição: o risco. Teu destino não está em nossas mãos, mas corre por conta do imprevisível Eureus!

Então, sem mais nada dizer, virou-se e moveu o seu cavalo, deixando o inconseqüente Auaris com um sorriso bobo estampado no rosto.

#######

No dia seguinte, Cornélius levantou-se de madrugada. Na verdade, nem havia dormido direito. O seu antigo mestre o havia convidado a se tornar um instrutor na escola Tamastha, pois bons instrutores eram raros naquela época. Em princípio ele recusara, mas instruir os jovens na arte da arquearia fora justamente o que o levara de volta a Lothar Eralda. Assim, logo cedo, apresentou-se na escola e se inscreveu como instrutor. Mas, naquele dia, nem sequer começou a lecionar, pois, ainda na primeira hora do dia, um centurião real fez-lhe uma convocação:

-Cornélius de Sepitha – disse o centurião, postando-se respeitosamente diante dele, -a rainha o convoca a se apresentar no palácio de Eralda!

-A rainha? – estranhou Cornélius.

Ele não imaginava as razões que fariam a rainha convocá-lo. Era conhecido pela família real, mas não poderia ser considerado um elfo importante. Mesmo assim, dirigiu-se ao palácio, sendo acompanhado pelo centurião, sem nenhum questionamento. Lá, foi introduzido no salão de audiências, diante do trono do rei Godofredo, que estava vazio. Olhou os detalhes do trono, que era feito de madeira pintada ricamente talhada. Ficou absorto naquela contemplação, em meio a um mau pressentimento que não soube definir em que consistia, até ser “desperto” por uma voz feminina:

-Olá, Cornélius.

Quase tendo levado um susto, ele desviou o olhar e a contemplou, no alto da plataforma de pedra ao nível do trono, a uns dois metros acima do nível onde estava Cornélius. Há muitos anos que não a via, talvez duzentos anos, dado que, da última vez que estivera na capital, não estivera com ela. Era perceptível que envelhecera, mas continuava

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altiva, magnânima. De sua imagem exalava um poder difícil de ser mensurado, de tão extenso que era, o poder de uma inigualável feiticeira élfica. Trajava um longo vestido escuro, dum verde brilhante e profundo, um vestido ao mesmo tempo austero e requintado que –Cornélius bem o sabia – somente era utilizado numa única ocasião: o luto.

Em princípio, ele imaginou se ela guardaria a morte da rainha de Brenor, mas aquilo não fazia sentido. Não, seria outra coisa, outra coisa igualmente terrível. Pensando bem, a rainha, a mãe de Godofredo, estava pálida, sem o tênue verde habitual.

-Já estás a parte da tragédia que se abateu sobre esta casa, Cornélius? – indagou ela, com palavras medidas, com uma sonoridade perdida.

-Tragédia sobre esta casa? – repetiu o elfo.

-Vosso rei, Godofredo, está morto! – suspirou ela, com um olhar perdido.

Pela primeira vez, Cornélius sentiu pena da temida rainha. Mas estava desconcertado: haveria alguma ligação entre a morte de Godofredo e da Rainha de Copas?

-Esquartejado por um troll raivoso... – explicou ela, mesmo entes dele ter perguntado. Depois, esboçando um sorriso que Cornélius percebeu ter um quê de demência, completou: - Irônico, não?

-Gostaria de expressar os meus pesares, Majestade – suspirou ele.

Mas ela pareceu se recuperar. A fraqueza momentânea cedeu lugar a uma postura altiva e inquebrantável. Ela caminhou suavemente até o trono, como se flutuasse. Sentou-se e descansou os braços sobre as laterais do assento, revelando o porque o chamara:

-Dize-me uma coisa, Cornélius, és filho de uma denassê, não és?

-Bem o sabeis, Majestade – disse ele, humildemente, sem entender onde ela queria chegar.

-E acreditas que um filho de denassê pode ser aclamado como rei?

Então, Cornélius finalmente entendeu. Sabia porque estava ali e teve certeza de que teria que tomar muito cuidado com as palavras.

-Não, verdadeiramente, Majestade. Acredito que haja uma linha de sucessão natural que deve ser respeitada.

A rainha pareceu examinar o elfo minuciosamente. Dir-se-ia analisar a sua própria alma, pois ficou um longo tempo em silêncio. Depois, completou, com voz decidida:

-Pretendo assegurar que meu filho mais novo, Goldorius, assuma o trono. Quero saber se posso contar com o vosso apoio. O futuro de toda a nação élfica depende disso!

Então, não soube de onde, Cornélius ouviu uma voz que lhe brotou na mente, uma voz nítida, forte e branda: “Cuidado, ela mente!”. Ao mesmo tempo, notou que rainha olhou para além dele com espanto. Vagarosamente, virou o rosto e constatou que havia mais alguém

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ali, alguém que havia entrado imperceptivelmente. Com espanto, verificou que conhecia aquela pessoa. Diante deles estava, parada em pé no centro do recinto, deslumbrante, uma denassê: Decrux Sharraith.

A rainha se levantou, parecendo contrariada, e indagou com voz estrondosa:

-Estás aqui para o Conselho?

-Sim – limitou-se a responder a denassê, parecendo assumir um ar de desafio.

-Como Sepitha ousa a isso? – questionou Masdmastzas, a rainha feiticeira, com terrível voz. – Mandar aqui – que ousadia! – a mais belicosa das denassês!

-Sou a representante legítima de Sepitha no Conselho – respondeu a denassê, sem se deixar intimidar.

-Podes participar do Conselho como a representante de Sepitha, mas advirto-te: A coroa de Eralda não se curvará à Ordem de Crux!

E, como se fosse de fato uma advertência, os olhos da rainha faiscaram de um azul intenso, cegante, de tal forma que o entorno se tornou escuro e turvo. A rainha ergueu os braços e um vento que saiu do nada tomou conta do recinto. Uma sombra disforme se aproximou da denassê, agarrando firmemente o seu braço, obrigando-a a mergulhar a mão na própria túnica de tecidos esvoaçantes e retirar de lá a sua varinha. Assim, obrigada pela sombra, qual marionete, Cornélius viu a própria denassê jogar a sua varinha longe, pois a sombra lhe era invisível.

Depois, a rainha abaixou os braços e o vento cessou, deixando Decrux Sharraith sem fôlego, lutando para respirar, de joelhos no chão.

Foi quando entrou no recinto um guarda, que cochichou algo no ouvido da rainha. Cornélius correu para ajudar a denassê se levantar e a rainha, finalmente disse:

-Preciso me retirar agora. Pensai no que aqui foi dito!

E saiu.

-Estás bem? – indagou Cornélius.

-Não te preocupes comigo!

-O que está acontecendo, senhora?

Sharraith não respondeu imediatamente. Procurou-se sentar num banco e foi somente depois de alguns segundos que respondeu:

-Tua mãe, Cornélius...

-Que foi? Estive em Sepitha, mas não pude vê-la!

-Ela não podia te receber, estava inconsciente. Ela está nos seus últimos dias...

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-Tenho que vê-la!

-Não, Cornélius. Ela nos pediu para que insistíssemos que ficasse aqui!

-Por que, senhora Decrux?

Novamente, ela demorou para responder. Seu olhar parecia triste, algo inconcebível diante da sua costumeira combatividade:

-Tempos difíceis se aproximam, Cornélius. E tempos difíceis exigem decisões igualmente difíceis!

Cornélius a mirou profundamente nos olhos. Não entendia ainda o que estava acontecendo, mas tinha certeza que em breve saberia. Tinha certeza também que teria um papel relevante no desenrolar dos fatos e que, nesse momento, estava sendo definido o destino de todos os elfos da Micropella.

A rainha caminhou a passos rápidos através do labirinto das catacumbas. Era o único caminho possível até a torre de Musírias, em anexo ao palácio real, uma construção cilíndrica com arquitetura refinada que se elevava a duzentos metros de altura, no alto do qual fora transportado o cristal verde. Ela subiu as escadarias em caracol até o último andar, como se ainda estivesse na flor da idade, sem demonstrar qualquer indício de cansaço. Alguns diziam que a feiticeira rainha não andava propriamente, mas voava como uma bóreas, mas outros duvidavam daquilo. O fato é que, quando chegou à câmara no topo do prédio, lá estavam Moronnah, sua filha – uma das grã-sacerdotisas do cristal, acompanhada de mais duas feiticeiras do vento, além de três soldados élficos, três dos que acompanharam Godofredo até Marmórea.

-Trouxestes a flecha? – logo indagou a rainha, mal havia entrado no recinto.

Um dos soldados lhe entregou algo embrulhado num tecido grosso. Ela o apanhou e abriu rapidamente. Enquanto isso, o soldado disse:

-Os restos mortais de vosso filho, Majestade, estarão aqui em dois dias!

Mas a rainha pareceu não prestar atenção no que ele disse. Imediatamente dispensou os soldados e apanhou numa das mãos a flecha que matara a Grande Rainha de Brenor. Ela a ergueu e pôde nitidamente observar sua ponta manchada de verde do caldo murundum e de vermelho do próprio sangue da rainha. Não pôde deixar de sorrir, mas foi um riso ao mesmo tempo de satisfação e nervoso.

Aproximou-se do centro do recinto circular, segurando a flecha. Bem no ponto central, elevava-se um pilar de um metro de altura e, sobre ele, o cristal verde. O cristal tinha um formato peculiar: parecia uma espécie de bacia, com uns trinta centímetros de diâmetro e era constituído de material verde transparente. Mas, sua aparência geral se parecia muito com aquela que se tem quanto se tira uma foto de um objeto atirado na água, pois suas bordas eram irregulares, embora arredondadas.

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Havia água no interior do cristal e, embora a flecha não fosse pequena o suficiente para caber dentro, ela mergulhou a ponta manchada de sangue naquela água. Imediatamente, o objeto mágico se acendeu, iluminou-se como se fosse dotado de uma fonte de energia. Em seguida, Masdmastzas elevou os braços, e proferiu um profundo e poderoso sortilégio:

-Ó ventos, deuses dos ares, acordai! Caótico Eureus, arrebentai os portais que vos prendem! Belicoso Zéphiros, varrei do mundo os inimigos dos elementais do ar! Tépido Bóreas, inflamai os corações verdes ao combate! Sinistro Notus, acendei as almas que pertencem ao ar! Mas também vos elevai os deuses das trevas! Kaikias, Lips, Apeliotes, Skiron, saí das tumbas e impregnai o ar para a glória de toda a nação élfica!

E, conforme ela falava, com voz cada vez mais e mais poderosa, conforme ela recitava, exalando o ar de forma cada vez mais e mais estrondosa, um vento em espiral se elevava do cristal, cada vez mais rápido e intenso, até atingir velocidade incomensurável e formar um halo luminoso que se elevou aos céus, através de um orifício circular no teto, e fez com que grande quantidade de nuvens negras se concentrassem em torno, rodopiando qual destruidor quasar.

E aquilo foi tão grandioso e intenso que pôde ser observado ou sentido em todos os lugares do continente. As denassês, todas, sentiram as forças lhes faltarem. Todos os habitantes de Lothar Eralda fitaram espantadíssimos o céu, por longos minutos, enquanto durou o fenômeno. Até o rei Armond, a centenas de quilômetros dali, sentiu o corpo se arrepiar e sua alma gelar. E os dragões cinzentos, naquele dia, fugiram de Sardannah, deixando o rei Ilrion com a impressão que estava próximo o fim do mundo.

#######

A floresta no entorno era ameaçadora e sufocante. O calor fazia com que os elfos cozinhassem no interior das armaduras. Auaris não tinha esse problema, mas a paisagem parecia guardar terrores. Tinha uma sensação constante que de atrás de cada árvore sairiauma criatura apavorante. E, de fato, ao longo do dia, depararam-se com diversas criaturas que pareciam ter saído diretamente das trevas, como escorpiões leopardo, que tinham o tamanho de um cachorro e ferrões que seriam capazes de atravessar uma placa de ferro; morcegos vampiros com envergadura de um metro e plantas carnívoras gigantescas. Contudo, o verdadeiro obstáculo se apresentou no dia seguinte: logo de manhã, quando o rei sentiu um tremor lhe percorrer o corpo, no exato instante em que Masdmastzas reativava o cristal verde, sentiram uma súbita mudança no vento, que passou a soprar do sul. Todos sentiram, pois eram sensíveis ao vento. Então, detiveram-se em profundo silêncio.

E, então, Auaris viu quando Nestzas, a heroína, retirou o elmo, revelando a sua bela,mas dura face. Ela cheirou o ar profundamente e, séria, pronunciou:

-Sinto cheiro de kiches adiante!

O rei se alarmou e estreitou os olhos, olhando à frente. Em seguida, ordenou:

-Continuemos em passo lento. Vamos!

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Seguiram durante poucos quilômetros, mas, gradativamente, avistaram algo esbranquiçado que cobria o caminho por onde passariam. No princípio, parecia uma névoa que encobria o caminho, mas, conforme se aproximaram, ficou claro que ali estava um enorme ninho de kiches, um emaranhado de teias que se estendia até a vista não mais alcançar.

Do alto de seu cavalo, o rei fez um sinal para que parassem. Olho Vazado e Nestzas se acercaram do soberano.

-Deve ter pelo menos um quilômetro de diâmetro! – disse o general.

-Muito arriscado contorná-lo – afirmou a heroína. – Nos levaria às profundezas da floresta!

-Mas quem garante que o caminho segue reto por dentro do ninho? – objetou Adanius. – Se desviarmos do caminho, estaremos perdidos!

-Que tramas do destino colocou isso no nosso caminho? – comentou o rei, em baixo tom, parecendo falar mais para si mesmo que para outros.

Seguiu-se alguns segundos de silêncio. Mas o capitão Oslovius estava logo atrás, mantendo o irmão ao lado de si para não perdê-lo de vista. De repente, Auaris levantou o braço e falou impetuosamente:

-Posso voar sobre o ninho e orientar-vos!

O rei olhou para o bóreas como se ele fosse um inseto, mas estava pensando.

-Pode dar certo! – exclamou o general Adanius.

-Muito bem – disse o rei. – Talvez foi para isso que viestes... Aceitamos vossa oferta!

-Quando encontrares o outro lado da trilha – disse o general ao jovem elfo, - grita ou assovia. Vamos seguir o teu sinal!

Auaris já se punha em posição de iniciar o vôo, mas foi detido pelo irmão. Ao se virar para ele, o bóreas observou que o capitão lhe estendia uma adaga:

-Toma. Leva isso. Se alguma criatura voadora te catar, defenda-te!

Auaris pegou a adaga e a acomodou na cintura. Depois voou. Subiu rápido e contemplou toda a extensão do ninho. Era enorme e, como era comum, circular. Aquele emaranhado de teias e fios de kiche balançava ao vento em ondulações lânguidas, lentas, como se fosse a água do mar. Auaris percorreu toda a sua extensão e, quando estava sobre o meio, pareceu ter visto algo se mexer lá dentro. Uma kiche fêmea?

Não teve dificuldades de encontrar o outro lado da trilha e, quando o fez, assoviou, flutuando sobre a trilha. De repente, sentiu a presença de algo enorme às suas costas. Sacou a adaga, imaginando que se depararia com uma kiche e se virou. Mas era apenas uma preguiça gigante que atravessava a trilha muito, muito lentamente.

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Armond elevou a sua voz, de tal forma que toda a coluna de guerreiros o ouvisse:

-Estamos prestes a entrar num ninho de kiche. Lugar mais aterrorizador para os corações impuros não há. Mas os verdadeiros elfos não temem as kiches, pois elas são criaturas sagradas. Se, no caminho, vos deparareis com uma, ela analisará as vossas almas. Ela verá se algum dia cometestes pecado contra uma árvore ou planta. Porém um verdadeiro elfo jamais faz mal a uma árvore viva e então jamais será destroçado por uma kiche. E advirto-vos: não tentai cortar um fio sequer. Além de serem inquebrantáveis, se o fizéreis, atraireis a poedora de ovos! Também vos advirto a não tocar em qualquer ovo. Sigamos em frente, guerreiros, firmes e decididos!

Tendo dito isso, virou o seu cavalo e, lentamente, seguiu em direção ao ninho e, afastando os fios em seu entorno, desapareceu no interior do labirinto branco.

Foi seguido pelos outros que estavam montados e depois pelos soldados e pelas mulas. Quando Oslóvius se viu lá dentro, ouvindo os assovios do irmão, viu-se num mundo totalmente branco. Por onde quer que olhasse, para os lados, para cima e para baixo, tinha diante de si um emaranhado de fios brancos. Era difícil de andar ali, pois tinha-se que enfiar as pernas entre os fios que sobrepunham o chão e, ao mesmo tempo, afastar os fios que impediam a passagem tanto deles mesmos quanto das mulas. Eram fios grossos. Os mais finos tinham a espessura de um dedo. Os de maior diâmetro se assemelhavam a grossas cordas.

Ele calculou que levariam quase uma hora para atravessar aquilo e temia que seus companheiros não tivessem a alma tão pura quanto Armond esperava. Quanto a si mesmo, sabia que nunca havia derrubado, queimado ou mesmo partido uma árvore viva. Os elfos aprendiam desde cedo que poderiam usar a madeira para construir casas e objetos, mas apenas aquela que fosse retirada de árvores sem vida, e um elfo sabia claramente quando um vegetal estava vivo ou morto, ou ainda, simplesmente hibernando. Mas... quem garantia que as kiches, todas elas, destroçassem apenas os assassinos de plantas? Estavam agora no ninho de uma daquelas criaturas medonhas e, potencialmente, eram uma ameaça contra os ovos ali postos.

E, de fato, não demorou muito para que avistasse um grupo de ovos grudados entre os fios. Cada um deles era uma esfera circular esbranquiçada, mas semi-transparente, com cerca de trinta centímetros de diâmetro. Quanto mais próximo de nascer, mais transparente era a esfera. E Oslóvius observou que, em alguns deles, era possível ver o abdome dos filhotesque lá havia e constatou que eram da espécie com listras lilases. Alguns deles já se mexiam e o capitão sabia que, se tocassem neles, os ovos arrebentariam, libertando as criaturas.

Todos estavam temerosos, com os corações em suspensão. Quase nem respiravam. Andaram por vários minutos sem que nada acontecesse, mas, no meio do caminho, o capitão sentiu uma vibração nos fios, uma vibração numa freqüência muito superior a que o caminhar da caravana poderia produzir. Então soube que uma enorme kiche fêmea se aproximava rapidamente. De repente, a figura de uma enorme aranha de vinte metros de altura se materializou a poucos passos dos guerreiros. É claro que eles não poderiam correr. Lá da frente, veio a ordem:

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-Mantende-vos em marcha! Ignorai a criatura!

Foi o que fizeram, mas a kiche os observava, revirando os seus quatro pares de olhos e as inúmeras presas. A respiração agora era forte e entrecortada e o coração dos elfos batia rápido no peito, quase querendo explodir.

O inseto gigante os observou durante alguns minutos, mas depois agiu. Disparou um fio, tão rápido quanto um raio, que se prendeu na armadura de um dos guerreiros, puxando-o violentamente através dos fios. A armadura pouco ajudou, pois a kiche o destroçou, manchando uma grande área de verde.

Nesse momento, os soldados se desesperaram. Gritaram tentando correr. As mulas bufaram e escoicearam, pois não conseguiam se projetar à frente. Alguns elfos retornaram por onde vieram e se perderam na floresta, nunca mais sendo vistos.

Mas a maioria permaneceu e a kiche, parecendo satisfeita com a sua vítima, deu meia volta e desapareceu por onde havia chegado.

#######

A rainha élfica recebeu o sulista na sacada de seus próprios aposentos. Era noite. Melior Norae havia chegado a Lothar Eralda há cinco meses e se apresentado à rainha, dizendo ter experiência administrativa e diplomática, pois servira os reis de Alba Sularis. Mas a rainha leu a sua mente e logo constatou que ele estava mentindo. Contudo, a verdade interessou a portadora da coroa de Eralda muito mais que a mentira. Assim, fizera com que o humano se tornasse conselheiro da coroa.

Ela observava o contorno das árvores abaixo, iluminadas por parcas luzes. Não se virou para o visitante, apenas declarou:

-Cumprimos a nossa parte do acordo. Resta a vossa!

-Meu superior gostaria de lhe transmitir os pêsames pela perda inesperada. Não obstante, também cumprimos nossa contrapartida, pois um exército de duzentos mil brehellais de Ponta Chrometra atravessou ontem a fronteira entre Corbe e Tuê, liderados, é claro, pelo vosso neto. Eles foram devidamente equipados e treinados em Andhaor.

-Ótimo! – disse a rainha. – E por enquanto é só. Estás dispensado!

Mesmo sem ser contemplado pelo olhar da rainha, o homem se inclinou, fechando os olhos, e se retirou.

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No dia seguinte, os elfos de Sardannah atingiram a fronteira sul de Beliária, nas proximidades dos limites de Altosanco. Contudo, se depararam com uma situação inesperada. O segundo exército de Brenor fazia manobras ali e, logo, foram interceptados por cavaleiros.

-Não podeis passar! – disse o líder dos cavaleiros. – A fronteira está fechada!

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-O que aconteceu? – indagou Sânamas.

-Medidas de segurança em função do assassinato da Grande Rainha!

Sânamas ficou chocado e, por alguns instantes, não soube o que fazer. Não poderia seguir adiante. E, como se não bastasse, iriam conversar com a rainha de Brenor, caso a soberana de Beliária não os ouvisse. Agora não podiam mais contar com essa alternativa.

-Aconselho-vos a retornar ao Mégion – disse o cavaleiro, - e seguir viagem de barco. Estarão seguros até Karnevion!

Os elfos fizeram silêncio, parecendo hesitar. Instintivamente, Lêmenos levou a mão ao cabo da cimitarra, caso decidissem abrir caminho à força. Mas foi Sinésios quem falou (ao príncipe):

-Senhor, acredito que devamos fazer o que o oficial brenoriano está sugerindo. Vamos inverter a ordem de nossa trajetória e chegar a Lothar Eralda primeiro, eh?

Sânamas pensou por ainda mais alguns instantes. Depois, sentindo-se irremediavelmente arrastado pelos ventos do destino, finalmente aquiesceu.

#######

Na Floresta Infinita, ao norte, a caravana de Amazannah conseguiu atingir o entreposto abandonado já em plena noite. O entreposto era uma imensa plataforma de madeira construída por elfos sobre as árvores há séculos e que servia de abrigo aos viajantes. Não tinha cobertura, mas permitia um pleno descanso num lugar relativamente seguro. Os guerreiros se permitiram tirar os elmos, embora não a armadura, depois de limpar o lugar da presença de animais e insetos gigantes. Acenderam fogueiras lá no alto e comeram. Depois, alguns iniciaram a cantoria de velhas canções. Mas Auaris estava intrigado com o general. Contava-se muitas lendas sobre ele e, agora, o elfo bóreas o via a poucos metros, sozinho ali, lentamente saboreando um pedaço de pão com molho de berinjela.

O menino tomou coragem e se aproximou dele, indagando:

-Ei, general. Posso me sentar aqui, senhor?

Olho vazado mirou o menino de alto a baixo. Muita petulância. Ele devia ser mesmo ousado. Poderia mandá-lo embora, ou mesmo puni-lo pela ousadia, mas o menino tornara possível atravessarem o ninho da kiche com baixas mínimas. Então...

-Vai, senta. O que queres? – perguntou, rispidamente.

Bem, o menino tinha muitas perguntas a fazer. Tantas que não soube o que falar. Por fim, olhou para Nestzas, um pouco adiante, também sozinha, e disse:

-Ela não é muito de falar, não é?

-Quem, Nestzas? Há! Ela viu muitas coisas assombrosas nessa vida, garoto!

-É verdade que ela matou um turono?

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-Bobagem! – exclamou o general, rindo da idiotice do menino. – Ninguém nunca matou um turono, garoto. Aquelas criaturas não morrem!

-Mas é o que dizem! – explicou Auaris, abrindo os braços.

-Ah, é? E o que dizem de mim?

-Do senhor? – Auaris se surpreendeu com a pergunta, pois queria saber justamente se as histórias eram verdadeiras, mas não daquela forma. – Bem, dizem que... dizem que o senhor salvou o príncipe Eloar, que o senhor lutou contra o gamelotrur e o matou! É verdade?

O general riu de novo, mas foi do jeito espantado do menino, de seu vivo interesse. Mas depois olhou para o rei, que estava um pouco mais distante, na beira da plataforma, contemplando as estrelas, e ficou sério.

-Estás vendo aquele elfo ali?

Auaris olhou e indagou:

-Quem? O rei?

-Pois aquele, garoto, é o elfo mais infeliz que há na face desse mundo! Precisavas ver quando era jovem. Era intrépido e forte! Agora...

Auaris, então, viu que o general bebia algo num grande copo de barro. Devia ser algo forte, pois quando tragou um grande gole, lágrimas brotaram de seu único olho. Depois continuou o relato:

-Teve três belos filhos. O mais velho, o memorável príncipe Hator, era forte como um touro. E a bela Kasnamina... era um sonho de menina. Depois... depois a rainha foi devorada por uma fera, nem me lembro mais qual era... E, meses depois, naquele dia fatídico... Os três foram atacados, bem no pátio do portão, do lado de dentro da muralha, por aquele gamelotrur louco que, não sei como, conseguiu escalar a muralha... Talvez tenha subido por um dos anjos, sei lá! – e tomou outro gole. Continuou o relato olhando para o nada: - A criatura destroçou os três. Eu era um mero capitão da guarda e, na hora, fiquei revoltado... esqueci-me do medo e pulei sobre o animal. Tive sorte, perdi apenas um olho. O príncipe Hator já tinha lhe enfiado duas cimitarras, mas o bicho das trevas continuava a retalhá-los, manchando o chão de verde... Quando eu enfiei a minha lâmina na sua nuca, ele estava com o príncipe Eloar entre as mandíbolas... Salvei o príncipe, tu me dizes? Antes tivesse ficado no meu posto e deixado os arqueiros fazerem o serviço deles... Garanto que o príncipe estaria melhor agora...

Auaris se impressionou com o relato e não pôde deixar de mirar o rei. Ele, agora, fixava o horizonte, na direção sul. O menino imaginou o que o rei pensaria agora, e o que estava sentindo.

Armond, na verdade, estava preso em suas lembranças. Lembranças essas que dominavam a sua mente. E a imagem que predominava no seu imaginário não era a vívida

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lembrança dos rostos dos filhos, mas a da penumbra da cama de Eloar, o príncipe tetraplégico que mal mexia a cabeça e dependia de servos para continuar a respirar.

O rei de Amazannah não conseguia parar de pensar nas palavras das “feiticeiras”. Elas não eram propriamente feiticeiras, pois a arte da magia havia se perdido há muito tempo em Amazannah, mas Armond tentou de tudo com Eloar, inclusive feitiçaria. Elas foram encarregadas de extrair-lhe um pouco de sêmen, para a continuidade da família, mas fracassaram. No auge do desespero, o rei indagou-lhes se, mesmo tendo sido em vão a tentativa, se elas acreditavam ser possível o príncipe ter herdeiros. A resposta foi vaga, mas havia um fio de esperança ali, pois elas disseram: “É possível”. E aquelas palavras não paravam de lhe ecoar na mente. Teria desistido de tudo se não fosse elas. E agora... agora um novo sopro de esperança. O sonho. Sonhara que um neto seria gerado, mas que Eloar encontraria a progenitora em Karnevion. Assim, organizara a expedição. Rumava para a capital dos elfos e, lá, sabia que encontraria o destino de Amazannah.

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Um grupo de cinco batedores nublises, montados em troglodroms, atingiram o topo da colina. O que viram os espantou. Marchando em direção norte, banhados nas sombras projetadas pela Grande Muralha, vinha um extenso exército. As colunas eram tão longas que não se podia ver o fim. Mas os gigantes perceberam imediatamente tratar-se de brehellais e humanos, mas o estilo das armas era predominantemente meriovíngio.

-Vamos à Nubliset – disse um deles – avisar a princesa!

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O enorme veleiro élfico deixava o cais de Porto Bertha. Os sardanos trouxeram dinheiro e, por isso, puderam pagar as suas passagens até o porto de Silvânia, em Karnevion, onde já estariam perto de Lothar Eralda. Mas, é claro, não estavam contentes. Ismidi estava emburrada, apertando firmemente o parapeito do barco, no extremo da popa. Olhava para trás e para o sul e não se conformava em ter sido obrigada a abandonar a sua terra natal. A poucos passos dela, estava o príncipe Sânamas. Seu coração estava apertado no peito. Sentia-se um fracassado e um tanto culpado, pois uma impressão de ter falhado em sua missão o perturbava. Mas não havia desistido, deixaria os irmãos na capital élfica e depois retornaria. Conseguiria de alguma forma ter uma audiência com um dos soberanos brenorianos e obteria permissão para reocuparem Sursardawê. Conseguiria isso, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida. Mal poderia imaginar ele que os acontecimentos que viriam a seguir o desviariam enormemente de seus objetivos e que o destino lhe havia reservado um dos papéis de protagonistas para o futuro de toda a nação élfica.

Era o fim da tarde e os ventos pareciam sorrir para os viajantes, pois o Eureus soprava forte. Sinésius percebeu um aumento na potência dos ventos nos últimos dias e se sentia particularmente vigoroso, apesar da dilatada idade. Mas os experientes guerreiros também o notaram. Vandhoras e Lêmenos postaram-se no meio da proa, com os braços cruzados, um ao lado do outro, analisando o que estava por vir. Ficariam ali, dia após noite até chegarem, revezando-se, como bons vigilantes.

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-Já sei – disse Vandhoras rindo, em tom de deboche, observando a cara de poucos amigos do companheiro, - lamenta-te por não teres ficado em Sardannah, para lutar contra os dragões!

-Lamento o nosso fracasso na reconquista de Sursardawê! – respondeu o outro, laconicamente.

-O príncipe dará um jeito. Não confias nele?

-Deveríamos tomá-la a força! Deslocaríamos todo mundo para o norte e simplesmente invadiríamos. Queria ver nos arrancarem de lá. Meia dúzia de arqueiros bem postados naquelas torres daria conta de um exército!

Vandhoras, rindo ainda mais, debochando do amigo, deu-lhe um tapa nas costas de Lêmenos e argumentou:

-Sinto te decepcionar, Lêmenos, mas eles derrubariam as torres. Eles têm trebuchetes gigantes, lembras-te?

O elfo taciturno procurou na sua mente uma estratégia militar que desse conta dos trebuchetes, mas não encontrou. Lembrou-se também que essas máquinas de guerra disparavam projéteis incendiantes, e, como todo elfo, tinha medo do fogo. Mas, agora, sua mente se direcionou a outra questão. Uma dúvida mais imediata.

-Vandhoras, o rei ordenou que protegêssemos os príncipes, mas... Os pequenos ficarão em Lothar Eralda, enquanto que Sânamas retornará a Bresul. Com quem devemos ficar?

-Com o príncipe herdeiro, é claro, seu tonto. As crianças estarão seguras na capital!

E, enquanto esse diálogo se processava, o jovem Zephir não parava de falar dos dragões verdes. Sinésios a tudo ouvia pacientemente, sentado sobre uma cadeira de madeira, no meio de um grupo de outras vazias, que foram pregadas nas laterais do barco. Mas o menino tinha lá as suas angústias. E algo o perturbava particularmente:

-Sinésios, acha que um deles vai me escolher?

O ancião olhou bem para o menino, sorrindo. Ele se maravilhava com as preocupações das crianças. “Quando crescer mais”, pensou, “sua única preocupação será se alguma elfa irá escolhê-lo”.

-Deixa-me contar uma coisa, jovem príncipe. O amor é uma coisa muito poderosa!

Mas Zephir não entendeu onde o servo de sua casa queria chegar.

-O amor? – indagou ele, enrugando a testa e movendo as sobrancelhas arqueadas.

-Sim, Zephir, o amor. Pensas muito nesse dragão que um dia montarás, não é mesmo?

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-Sim, mas... o que isso tem a ver com o amor?

-Bem – explicou o ancião, - isso é uma espécie de amor. Esse dragão... bem, tu já o amas. E, uma vez que temos o amor no coração... ora, acontecem coisas.

-Acontecem coisas? – indagou o menino, pensativo.

-Sim. Quando temos o amor no coração, os acontecimentos se moldam às nossas expectativas, o destino se desdobra ao nosso favor!

-Ah, é? Puxa! – disse ele, cheio de sentimentos.

Mas Sinésius percebeu que o jovem ainda tinha algumas dúvidas quanto aquilo. Assim, resolveu lhe contar uma história. Uma história que começava com uma questão, a questão filosófica mais importante para um elfo, aquela que define toda a sua essência:

-De onde vêm as árvores, Zephir?

O menino não esperava por aquela pergunta. Ela pareceu ter brotado do nada e não ter nenhuma conexão com o que estavam falando.

-As árvores? – repetiu ele. Depois confessou: – O professor falou uma vez na escola, mas eu... eu não me lembro! Acho que não prestei atenção...

-Mas de onde imaginas que elas vêm?

Zephir pensou e depois concluiu:

-Da terra? Elas não brotam da terra?

Sinésius abriu um sorriso, o sorriso que devemos apresentar às crianças. O sorriso que as conquista e as transformam em boas pessoas e, é claro, em fortes guerreiras.

-Não, Zephir, não é da terra que brotam as árvores. As árvores não provêm do elemento gnômico, mas sim do ar. Por isso somos tão ligados a elas!

-Do ar? – admirou-se o menino. – Mas não há nada no ar!

-Aí é que te enganas, jovem príncipe! – respondeu o ancião. – O ar está pleno de pequenas partículas que, de tão minúsculas, não podem ser vistas. Pois uma árvore surge quando essas partículas se reúnem, se agrupam de forma densa. Então, a árvore emerge, plena e majestosa!

-Puxa! – exclamou o jovem príncipe.

-E quando elas morrem... bem, as partículas voltam, se espalhando pelo ar!

Então Zephir pensou, franzindo novamente as sobrancelhas, seriamente.

-A mamãe... ela... quando ela foi deixada na torre... O vento levou ela... Eu vi, Sinésius, fui lá quase todos os dias!

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O velho elfo olhou bem para o menino e teve que controlar as lágrimas. Não sabia que ele havia voado frequentemente para a torre mortuária da mãe, e acompanhado a decomposição do seu corpo. Mas uma pergunta do menino o tirou de tais pensamentos:

-Sinésius, a mamãe... ela está espalhada no ar?

O ancião se espantou com a percepção do menino. Jamais imaginou que ele era tão inteligente.

-Sim, Zephir! Vejo que entendestes! Ela está sim, espalhada no ar. Nesse momento, há partículas aqui, no ar que respiramos, que, um dia, pertenceram a ela. O espírito dela, embora refletido nas pedras fulfilliari do Vale de Aar, está contido em tais partículas. Ela está aqui, Zephir, em torno de ti, olhando por ti, protegendo-o na sua bênção!

O menino quase chorou. Tentou sentir a mãe e chegou à conclusão que isso não era tão simples. Mas Sinésius não queria perder o fio da meada:

-Voltando às árvores, Zephir, quando uma árvore cresce... bem, ela está fazendo com que essas partículas voltem a se constituir numa estrutura e... tu bem o sabes... as árvores possuem um espírito vivo, tal qual nós. E, quando a árvore atinge o seu tamanho pleno, também o seu espírito foi reconstituído, a partir de uma forma espalhada pelo ar, uma forma que as denassês e os magos de Lumerae chamam de estado não-localizado. E, assim, Zephir a madeira e o vento são dois estados de uma mesma coisa. Então, jovem príncipe, eu pergunto: o que faz com que algo que esteja completamente espalhado, completamente misturado com o ar, se integre novamente como uma estrutura e uma forma única? Como um ser individual?

É claro que o menino pensou e pensou. Tentou, estava curioso, mas soube que, por si mesmo, jamais encontraria a resposta. Mas não demorou muito para que Sinésios contasse aquele segredo:

-Existe uma força, Zephir, uma força que impregna tudo e está em todos os lugares. Uma força que faz com que as partículas se reintegrem, uma força que faz com que nossos espíritos retornem após a morte, em novos corpos renovados!

-Então mamãe voltará? – indagou o menino.

-Sim, Zephir, a rainha, vossa mãe, voltará! E, da mesma forma, o dragão que tanto desejas virá a ti, pois a força que atrai as partículas é a força do amor!

O menino sorriu, largamente, e, ao mesmo tempo, chorou. As lágrimas brotaram-lhe do rosto e teve que passar as costas das mãos sobre os olhos.

-Já ouviste a história de Osniárius e Isildir, não é?

O menino tentou fazer com que o sorriso suplantasse as lágrimas e respondeu:

-Bem, já ouvi a canção. Várias vezes. Mas nunca prestei atenção!

-Mas presta atenção agora. Não vou cantá-la, mas vou contar a história. E advirto-te, depois vou tomar a lição!

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-Tá bom... – disse o menino, ainda sorrindo.

-Bem, era uma vez os reis Osniárius e Isildir, que eram os soberanos absolutos dos elfos. Na verdade, os primeiros monarcas que os elfos tiveram.

-Eles existiram de verdade?

-Não sei, é uma lenda! Bem, Osniárius era um rei bom e justo, mas tinha muitos inimigos. Então, um dia, sofreu uma emboscada, e os inimigos o mataram. E não fizeram apenas isso, dividiram as partes do seu corpo e as espalharam por todo o mundo. A rainha Isildir, que o amava profundamente, ficou incomensuravelmente consternada. Mas ela sabia que a morte não era o fim, que o espírito do seu marido estaria ainda guardado nas suas partes. Então, durante séculos, percorreu o mundo todo e procurou atrás de cada árvore, debaixo de cada pedra, lutando bravamente contra os inimigos. Mas os ventos a instruíam, apontando em que direção estavam. Recolheu cada parte do seu amado e passou a costurá-las e, ainda, com a magia dos ventos, lhe soprar vida novamente. Então, o rei ressurgiu, reassumiu o trono e venceu os seus inimigos. Isildir se rejubilou, mas, ao mesmo tempo, chorou, pois, embora tivesse conseguido reviver o rei, ele já não era mais o mesmo. Porque, por mais que procurasse, uma parte lhe faltou: justamente o coração. Osniárius reviveu, mas já não era o rei bondoso. Tornou-se cruel e vingativo.

Zephir fez uma cara feia, decepcionado pela história não ter um final completamente feliz.

-E sabes o que isso quer dizer, Zephir?

-Eu sei lá? – respondeu ele.

-Que quando reencarnamos, quando nos integramos para uma próxima vida, nós não somos exatamente os mesmos, pois contamos com a experiência adicional de uma vida.

-Mas então nos tornamos maus?

O ancião riu:

-Não, é claro que não. Não é essa a essência da história! Faltou o coração, mas podia ser uma outra parte do corpo, como a unha do polegar esquerdo, por exemplo. Não, Zephir, não nos tornamos maus, exceto em casos de exceção. Tornamo-nos melhores, mais sábios, mais evoluídos, pois carregamos as experiências de nossas dores, de nossas decepções, mas também das nossas alegrias a da amizade que nutrimos.

O rapazinho ficou pensativo, com as estrelas já despontando no céu. Tinha, por hoje, muitas coisas em que pensar e sonhar. E, coincidentemente, na proa, os dois elfos guerreiros começaram a cantar. Cantar o lamento que, talvez, fosse o mais popular: a triste canção de Osniárius e Isildir, que, em geral, os elfos cantavam às vésperas de grandes combates. Em princípio, os dois cantaram em uníssono, mas, aos poucos, os marinheiros notus e os serviçais zephiros pararam para contemplá-los. E, gradativamente, enquanto o barco atravessava a estrelada noite, firmemente embalado pelos ventos favoráveis, os marinheiros os acompanharam, embora os zephiros, mudos, apenas os observassem, com lágrimas nos olhos:

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Triste e belo foi o destino de Isildir

Nas estrelas estava escrito o porvir

Sobre como o rei Osniárius caiu

Como se desintegrou e depois ressurgiu

Pois por tuellais foi dividido

Mas o amor da rainha jamais foi ido

Seu corpo pelo mundo foi espalhado

Seu espírito se dissolveu pelos prados

Mas a rainha, forte e radiante,

Com o seu amor seguiu adiante

Recolheu os pedaços

E os ventos lhe mostraram os traços

O rei reconstruiu em fúria

Usando só linha e agulha

Mas o coração, bem que o chamou

Por mais que procurasse, jamais o encontrou

Mas, mesmo assim, o rei se levantou

E os inimigos assassinou

E, cruel e voraz,

Do amor foi incapaz

E, cruel e voraz,

Do amor foi incapaz...

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Estavam quase fora da floresta. A vegetação, agora, apresentava-se mais esparsa. Iriam atingir os campos com baixas e esparsas árvores retorcidas de Samyaziat em breve, sem maiores problemas. Contudo, assim que avistaram tais campos, o último desafio da caravana amazarana se apresentaria.

Ele parecia esperá-los. Era negro e rosnava. Estava nervoso, em pé, descrevendo pequenos círculos em torno de um ponto imaginário, ponto esse situado bem sobre a trilha por onde passariam. Parecia um demônio a desafiá-los. Estava com os pelos eriçados e, em todas as oito patas, as unhas se apresentavam projetadas a frente, fora dos nichos onde normalmente eram guardadas. O felino bufava e seus olhos, mal aparecendo por entre os inúmeros chifres, pareciam pairar sobre as sombras de um passado funesto.

Assim que o rei o viu, parou e o fitou por um longo tempo. Toda a caravana parou também, aguardando ordens. Mas as ordens não vieram. Como considerar aquele animal como algo não significativo depois de tudo o que aconteceu? Pois o rei o viu como um fantasma, um demônio que se reencarnava e se recompunha, sempre a desafiá-lo, sempre atomar-lhe parte de sua alma. Esse demônio imortal pode ter-lhe tirado os filhos, mas – ele jurou para si mesmo – não destruiria a raça Dortas.

Então, Armond, lentamente, desceu do cavalo. Levou a mão ao cabo da espada, sem desviar os olhos do animal, que parecia esperar por um desafiante. Foi quando Nestzas se aproximou do soberano de Amazannah e, subindo a viseira do elmo, disse, ajoelhando-se:

-Concedei-me a honra de matá-lo, Majestade!

O rei hesitou, pois queria destroçar o animal ele mesmo, mas um coro de vozes se elevou entre os elfos, que passaram a proferir o nome da heroína:

-Nestzas! Nestzas! Nestzas!

Armond, então, pensou que um rei não deve agir segundo os sentimentos, mas deve ter a mente clara para discernir com o raciocínio. Assim, com um sutil gesto de cabeça, consentiu. Nestzas dirigiu-se até uma mula e retirou, de uma espécie de aljava de tecido, uma galatina, uma arma que era uma espécie de intermediário entre uma lança e uma cimitarra, uma peça de metal leve, com dois metros de comprimento. Sua extremidade anterior é que tinha a forma de uma cimitarra, sendo levemente curva e com o fio se estendendo pela lateral.

Então, corajosamente, ela marchou em direção à criatura soturna.

Ao pressentir a aproximação, o gamelotrur parou de rodar e esperou sua desafiante. Ele se encontrava praticamente fora da floresta e, naquele local, já não havia tantas árvores.

Os elfos também se aproximaram, para ver melhor, formando um grande semi-circulo em torno da arena de batalha. Nestzas parou a uns trinta metros do gamelotrur, mas ele não a atacou. Parecia esperá-la pacientemente, racionalmente. A heroína estreitou os

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olhos e respirou fundo. Ela já vira dentes e garras como aquelas penetrarem na mais resistente das armaduras e sabia que não estava segura. Sentiu-se praticamente nua, tendo apenas a galatina como sua única defesa.

Ela, então, como a provocá-lo, girou a arma no ar, com grande habilidade, descrevendo complexas voltas do instrumento em torno do seu corpo. Até que deteve a galatina na tradicional posição de espera pela batalha iminente – colocando-a na posição que os elfos dortas chamavam de ipsiuê: o braço esticado em tensão, o corpo posicionado de forma elegante, a galatina com a lâmina encostada no chão.

Aquele foi o sinal para o início de uma espécie de ritual. Como era costume dos amazaranos, os elfos iniciaram uma canção. Primeiro, antes de qualquer palavra, passaram a bater compassadamente suas lanças no chão e as espadas e cimitarras contra a placa peitoral das armaduras, produzindo um som cadenciado, como o bater do coração. Depois, enquanto Nestzas passava a lentamente circular em órbita do gamelotrur – que passou a rosnar ameaçadoramente, os guerreiros passaram a entoar:

Um elfo dortas jamais chora

Um elfo dortas jamais tem piedade

Um elfo dortas jamais sonha

Um elfo dortas jamais sente a dor

Um elfo dortas age com a mente,

Sempre clara e serena,

Sem se importar com passado ou futuro,

E, assim, vence os seus terrores!

E, assim, com a mente clara e serena, afastando os sentimentos do coração, a heroína amazarana enfrentou a criatura. Não se poderia dizer que o gamelotrur teve alguma chance. Nestzas esperou pacientemente o ataque, mesmo a canção ter se repetido várias vezes, provocando racionalmente o animal. Sabia que iria vencer, pois certamente ele agiria pela raiva e pelo medo. Assim, quando ele saltou sobre ela, projetando múltiplas garras e dentes, ela friamente mirou o seu ponto fraco: a boca que, inadvertidamente, a criatura abriu escancaradamente. Foi ali que ela mergulhou a galatina, enterrando-a profundamente. O animal soltou um som que era uma espécie de mistura entre urro e gemido, enquanto abocanhava o braço da dríade, mas tinha a arma quase toda dentro de si, então, em grande espasmo, morreu.

Nestzas se elevou, sob alaridos, tendo o braço direito coberto de sangue verde, encontrando o olhar entristecido do rei.

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Há muito a floresta ficara para trás. Fora substituída pela imensa savana desolada das terras de Samyaziat. Mas, naquele momento, bem no meio do dia, tiveram que parar, pois Nestzas caíra do cavalo. Ao socorrê-la, notaram que estava ardendo em febre. O rei chamou Imilra, aquela que, dentre os elfos amazaranos, mais se aproximava a uma feiticeira. Ela, ainda portando a armadura, examinou a heroína e o prognóstico não foi um dos melhores. Não haviam conseguido retirar a parte da armadura que cobria o braço ferido de Nestzas, pois os dentes do glimurdrom haviam amassado o metal, de forma que ele penetrasse nas carnes da guerreira. Ela dissera que estava bem, mas agora havia sinais claros de infecção. Imilra olhou desanimadamente para a heroína e para o rei, balançando negativamente a cabeça. Eles sabiam o que teriam que fazer. Mas, Nestzas, ainda lúcida, disse da maneira mais dura que podia:

-Não admito que me cortem o braço. Prefiro a morte!

Mas o rei não a encarou de forma complacente. Assim, ela se dirigiu a ele, se esforçando para falar:

-Eu vos suplico... Majestade... Concedei-me o direito da dignidade!

O rei pensou. Olhou para a curandeira e esta continuou balançando negativamente a cabeça. Mas ele estava diante da maior heroína de seu reino.

-Está bem, Nestzas – disse ele. – Tuas chances são mínimas. Tenho certeza que o conhecimento das feiticeiras do vento de Lothar Eralda pode te curar, mas Karnevion ainda está longe. Tens uma pequena chance de sobreviveres à viagem. A escolha foi tua!

A guerreira, então, tentou sorrir. Depois virou o rosto e se deixou adormecer. O rei se dirigiu à curandeira:

-Vê o que consegues com o que tens.

Virou-se e se afastou, caminhando pela pradaria. Escalou uma pequena elevação e olhou para o longe. Sabia muito bem onde estava. Estava nos campos de Eloiê, no norte de Samyaziat. Estava bem no local onde, outrora, Zoraie, o príncipe de Ewê Dortas e futuro primeiro rei de Amazannah encontrou o anjo Amazarak, no final da Era dos Elfos. O príncipe fugia com parte do povo dortas para o norte, sendo perseguido por uma divisão do exército salamandrino. Segundo os relatos orais e livros escritos posteriormente, o anjo estava ali, prostrado de joelhos, segurando a sua espada como apoio. Ele sofria não se sabe porque. Mas Zoraie, longe de fugir, teve a coragem de falar com o anjo caído. O que disse não foi registrado pelos relatos, mas ele conseguiu a proteção do anjo, que concedeu aos dortas todo o vale que era protegido pela muralha que construíra, bem no encontro da Floresta Infinita com as Montanhas de Fogo e, além disso, Amazarak se projetou solitariamente contra aquela divisão salamândrica, dizimando-a por completo.

Armond suspirou. Daria um braço para saber o que Zoraie disse ao anjo. Certamente o auxiliaria em sua missão. Quando chegasse a Lothar Eralda, tudo o que mais precisaria seria

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de argumentos. Como poderia ele convencer alguma princesa élfica desposar um jovem notus deformado e tetraplégico?

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Ao alcançar a torre fúnebre, os ventos se transformavam em redemoinhos, fazendo com que o cheiro da podridão de elevasse, intenso, como se fosse um fantasma palpável. O velho (mas fornido) Ben Zeloar ainda não havia se acostumado com aquilo. Para um brehellai cujas sobrancelhas curvas, embora tivesse orelhas pontudas, revelava a sua condição de sangue misturado, mesmo depois de aqueles anos todos servindo o Conselho Karneviano, não compreendia como os sangue puros élficos suportavam placidamente aquele cheiro. Para ele, a forma com que humanos e gnomos tratavam os seus mortos, enterrando-os, era mais racional. Mas ele sabia que, para um elfo, isso se tratava de um sacrilégio, já que suas crenças religiosas determinavam que os corpos dos mortos deveriam ser levados pelos ventos. Daí, construírem enormes torres feitas de madeira e alvenaria, como aquela, com centenas de metros de altura, onde deixavam os corpos para se decomporem livremente em contato com o ar.

Nesse momento, o corpo do rei era içado por cordas extensas, até o topo da Torre de Elaar, onde se encontrava o sepulcro da família. O corpo estava envolto em grossas mantas verdes, sendo que não se podia ver nem o rosto. Dizia-se que não havia sobrado muita coisa, já que Godofredo havia sido esquartejado por um troll vermelho furioso.

O corpo foi depositado sobre o piso da plataforma que antecedia o sepulcro, que se localizava um nível acima, sendo que, para acessá-lo, dever-se-ia subir uma escadaria. Quatro soldados vestidos em armaduras prateadas adornadas apanharam o corpo, segurando nas bordas do manto, mas, quando Bem ensaiava um passo à frente, ao lado de Decrux Sharraith, foi interpelado pela rainha:

-Esta é uma cerimônia familiar. Apenas os membros da família subirão!

Disse isso olhando firmemente para a denassê, como a desafiá-la.

-Mas todos os membros do Conselho estão aqui, Majestade – objetou o brehellai, respeitosamente, - na expectativa de acompanhar a cerimônia...

-Já disse que se trata de uma cerimônia familiar! – bradou a rainha, com voz firme e forte, dando as costas aos demais, sete, ao todo, os membros do conselho.

Então, a rainha subiu a escadaria, sendo seguida pelos soldados que seguravam o corpo do rei, e, depois, pelos seus dois filhos mais novos: a feiticeira Moronnah e o jovem bóreas Goldorius. Os membros do conselho, então, se viraram e passaram a descer as escadarias em forma de espiral. Mas, assim que Ben Zeloar se pos em movimento, uma voz o deteve.

-Ben Zeloar...

Ele procurou a origem da voz e se surpreendeu ao constatar que provinha da denassê.

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-Senhora Sharraith – disse, inclinando-se e fechando os olhos.

-Concede-me a tua companhia para descer as escadas?

Ele refletiu por um segundo, imaginando qual seria o motivo daquilo, mas finalmente aquiesceu. Desceram então por último, um tanto distantes dos demais, passando pelos arcos claros requintados da torre, que antecediam pátios laterais lúgubres e – na opinião do brehellai – fedorentos.

-Há muito tempo estás como líder do conselho, não é mesmo? – indagou a denassê. – Um feito notável para um brehellai.

Ben ouviu aquilo desconfiado. Ela era uma denassê, uma entidade quase santificada pelos elfos, mas a sua fala beirava o preconceito. Mas ele já estava acostumado com isso, após décadas de convivência com os puro sangue karnevianos. Mas a má impressão desapareceria no instante seguinte:

-Um feito que somente pode ter uma origem: o bom senso e a prudência de um ser justo.

Ben parou e ousou encarar a denassê, mantendo, contudo, uma atitude de respeito.

-Não entendo onde quereis chegar, senhora...

-Sabes que estamos em uma situação delicada aqui...

-Estais vos referindo à sucessão? Não vejo, senhora, nenhuma complicação nisso. A lei é bem clara nessas circunstâncias: o único descendente do rei Godofredo, Bhorgerius, é um criminoso, o que o torna impedido. Nesse caso, o poder volta à rainha mãe, a qual já declarou que abdicará em favor do filho. Assim sendo, Goldorius será o próximo rei de toda a nação élfica!

Mas o que ouviu em seguida o chocou:

-Goldorius é um tuellai!

-Senhora! – interpôs o presidente do conselho.

-Goldorius é um tuellai – repetiu a denassê, - e, portanto, não passará no teste. A rainha sabe disso e não permitirá que eu conduza a cerimônia.

-Senhora, com todo o respeito... isso é descabido. A lei exige o teste. Além do mais, Goldorius jamais apresentou qualquer sinal...

-O rei Godofredo também era um tuellai. Tomava uma poção que escondia as características.

Ben precisou tomar fôlego, pois percebeu que há vários segundos não respirava.

-Senhora, eu... não sei o que dizer... Mas... se Goldorius não puder assumir... quem será o próximo rei?

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-O que a lei diz nesse caso, Ben?

Ele pensou, e depois concluiu:

-Haveria necessidade de convocar um Concílio Geral... O que não acontece há dois mil anos... Mas seria necessário a vinda de representantes dos reinos distantes... e isso seria um longo processo...

-Os reis de Amazannah e Sardannah estão a caminho – disse a senhora Sharraith, de forma segura.

-Senhora?

-Becrux Fabacê implantou um sonho na mente desses reis e eles estão a caminho.

Ben Zeloar engoliu a seco. Cabia ao presidente do conselho convocar o Concílio Geral.

-Deves convocar o Concílio, Ben Zeloar. Mas advirto-te: Masdmastzas tentará te impedir. Tentará trazer-te para o seu lado e impor o nome de Goldorius a força. E advirto-te também que as feiticeiras do vento jamais estiveram tão fortes. A magia que reativou o cristal foi uma magia negra, constituída a partir da morte de uma Grande Rainha!

#######

Mas os ventos pareciam favorecer os enviados sardanos que, agora, penetravam sem dificuldades na estonteante cidade de Lothar Eralda. As crianças estavam de boca aberta e talvez ficassem com o pescoço duro por olhar para cima. Mesmo Sânamas, que já conhecia a cidade, não podia deixar de se admirar por suas imponentes torres esbranquiçadas, manchadas apenas por plantas trepadeiras que teimavam em se içar às alturas. Ou ainda Sinésios, cujas lembranças – segredos que ele mesmo guardava – traziam lágrimas aos seus olhos.

Eles atravessavam as ruas que, nessa hora, estavam muito movimentadas e Vandhoras estava muito atento com relação aos jovens elfos. Ele não queria que os entusiasmados Zephir e Ismidi se perdessem na multidão ou saíssem correndo – nem mesmo voando – atrás de alguma distração.

-Vamos nos apresentar ao palácio de Eralda, meu senhor? – indagou Sinésios.

-Não. Primeiro quero ir até a Torre dos Ventos. Temos muito a agradecer... e a solicitar!

Nesse momento, atingiam a praça principal da cidade, um grande largo na forma circular, cujo piso era constituído por uma madeira grossa impermeável – retirada de árvores mortas, como a antiga arte élfica sabia fazer, com antigos símbolos pintados. Símbolos oriundos das primeiras manifestações escritas élficas, provenientes de eras onde nem mesmo a escrita desse povo estava desenvolvida.

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Foi quando um banco de elfos bóreas passou voando em velocidade através do ar, em grande ruído recheado de gritos e risos, a baixa altitude, quase atingindo a altura daqueles que estavam na praça. Zephir imediatamente identificou-os:

-Olha! Isnazeti! – exclamou o menino apontando e sorrindo.

E, então, o príncipe sardano fez menção de alçar vôo também, para acompanhá-los, mas foi firmemente agarrado por Vandhoras:

-Ei, espera aí, valente domador de dragões, tua hora ainda não chegou!

-Me larga, Vandhoras! – protestou ele. – Quero ver os dragões!

-Dragões? Que dragões? Por acaso viu algum? – e o guerreiro élfico disse isso olhando para Ismidi, vigiando-a, temendo que ela também alçasse vôo. Mas ela contemplava os isnazeti se distanciando sem muito interesse. Parecia um tanto triste naquele instante.

-Mas eles são isnazeti! Estão indo caçar dragões e eu quero ir com eles!

-Poderás ser um isnazeti se quiseres. Mas antes terás que te submeteres a um treinamento!

-Treinamento? Isso é muito chato!

Mas Sânamas nem ouvia o que se passava entre os irmãos e o amigo. Parecia compenetrado. Parou diante da escadaria de arquitetura refinada que antecedia a Torre dos Ventos, a principal construção da cidade, e que se localizava na sua região central. Uma construção de trezentos e noventa metros.

Mas ele não olhava para o alto. Não era o topo da torre que lhe interessava. Não era aquela visão proporcionada a quem se dirigisse à sua sacada mais alta de onde – dizia-se –podia-se ver toda a floresta de Karnevion. Não. Ele fitava agora o vão de entrada, que estava aberto. Aquele formato elíptico, que terminava numa ponta superior. A entrada de dez metros. Alguma coisa lhe dizia que, depois de entrar ali, sua vida mudaria para sempre. Mas ele não sabia exatamente em que aspecto.

-Vossa Majestade? – indagou Lêmenos, olhando bem para o príncipe absorto.

-Hã... – murmurou Sânamas. – Hã, vamos entrar...

E deu um passo à frente, subindo as escadarias. Os demais o seguiram, sendo que Vandhoras ainda segurava Zephir pela roupa. Mas este, ao contemplar o vão que se apresentava diante de si, a nave principal da torre, não pôde deixar de suspirar:

-Uau! – exclamou ele, olhando para o alto.

De fato, a vista era deslumbrante: A nave era circular e tinha o formato cônico, lembrando um elmo, sendo que a sua parte central se elevava a cento e cinqüenta metros. O lugar era extremamente iluminado pela luz que penetrava os vitrais, que se espalhavam pelas pareces. E aqueles vitrais refratavam a luz de tal forma que ali dentro parecia ser mais

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iluminado que o ambiente externo. Uma larga escada em espiral se projetava para cima, contornando as paredes externas do ambiente, até desaparecer para além do teto do recinto. As laterais de tais escadas eram finamente requintadas, com elementos vazados cuidadosamente esculpidos na forma de folhas e ramos talhados com precisão milimétrica.Algumas feiticeiras do vento presentes entoavam velhas canções, enquanto diversos cidadãoslotharianos ali oravam aos ventos, a maioria deles de olhos fechados e com o rosto inclinado para cima e, por vezes, com os braços abertos. Sentiam a manifestação do vento que por ali circulava, incitado pela forma de caracol da torre. Mas o que mais impressionava Sânamas eram as pinturas. Era a segunda vez que estivera ali, mas a sensação que experimentava agora, era tão intensa quanto a primeira vez que as vira: imagens em tinta sobre algumas partes das paredes, enormes, velhas gravuras da história de Athlanda e dos primeiros elfos. Imagens de elfos que dançavam, imagens dos deuses-vento voando sobre elfos, imagens fluídicas dos deuses ressuscitando mortos ou tecendo as teias do destino. As imagens não pareciam pertencer a esse mundo. Não tinham contorno muito bem definido, mas, antes, pareciam brilhar. Elfos, ventos e deuses. Reis também. Lá estava a imagem que mais impressionava Sânamas. Uma representação do maior rei élfico da história: Athlon. Ele montava um cavalo branco e, com olhar decidido, rumava velozmente para o leste, brandindo uma espada no ar. Acompanhava-o, logo abaixo, o deus Zephyros, usando uma armadura escura, parecendo conduzi-lo e fortificá-lo. Acima, outro deus, o Bóreas, todo vestido de branco, media a coragem do rei utilizando um tecido mágico.

Elfos dançando – pintura no interior da Torres dos Ventos, em Lothar Eralda – por William Blake.

Sânamas suspirou diante daquela cena enorme diante de si, como se ele estivesse naquela realidade. Na verdade, sentiu um calor contra a face, um calor inexplicável, como se, ele mesmo, estivesse em batalha contra uma legião de salamandras.

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-O sangue do velho rei te corre nas veias, Sânamas – disse Sinésios, parando ao seu lado.

-Gostaria de ter um décimo da sua dignidade e coragem! – disse o herdeiro de Sardannah.

Sinésios sorriu. Moveu-se para frente de Sânamas, ficando frente a frente com ele, e disse, olhando bem aos seus olhos:

-Em todos os meus oitocentos anos de existência, jamais vi um elfo tão corajoso quanto vossa Majestade!

O príncipe já ia retrucar alguma coisa, mas percebeu uma transformação na face do ancião. Ele olhava, espantado, alguém atrás do príncipe. Sânamas virou-se para verificar o que o velho sardano havia visto e constatou que estava diante de uma dríade, a mais bela dríadeque já havia visto.

Imediatamente, ao lado do príncipe, sem que este entendesse, Sinésios se pôs de joelhos e, com a cabeça baixa, disse à elfa:

-Minha senhora!

-Não, não faze isso – disse Decrux Sharraith. – Já se foi o tempo em que as denassês eram uma novidade em Karnevion!

Percebendo que estava diante de uma denassê, Sânamas também se ajoelhou, mas ela imediatamente disse:

-Ninguém mais se ajoelha diante das magas da Ordem de Crux!

-Perdoai-nos, senhora – disse o príncipe, com a cabeça baixa. – Mas os sardanos ainda seguem as velhas tradições!

Sharraith estendeu os braços e obrigou Sânamas a se levantar. E assim também o fez Sinésius.

-Deveis ser o herdeiro de Sardannah – disse a denassê.

-Sim – respondeu o príncipe. Então, iria perguntar como ela o sabia, mas, antes que pudesse articular as palavras, pensou que a indagação seria tola, já que ela era uma denassê.

Então, ela uniu as mãos nas costas e passou a contornar o príncipe, parecendo examiná-lo:

-Sei porque veio – disse ela.

-Como? – indagou ele.

-Vosso pai, o rei Ilrion, teve um sonho, não é?

-Como sabeis?

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-Posso tocar-vos? – indagou ela, após dar uma volta inteira em torno do príncipe sardano.

Sânamas olhou para Sinésios, que também mirava intrigado a denassê. Mas, sem saber o que responder, o príncipe concordou.

A denassê o tocou, com ambas as mãos no peito, e fechou os olhos. Depois de poucos segundos os reabriu, abruptamente, com o peito arfante, como se tivesse levado um susto. Sânamas também se assustou. Sentiu como se o seu íntimo fosse invadido, desvelando coisas que até ele mesmo temia e não conhecia. Mas Sharraith logo se recuperou, fechando as pálpebras durante dois segundos e depois reabrindo-as:

-Temos uma situação muito complicada aqui... – disse ela, um tanto vagamente.

-Perdão, senhora? – indagou o príncipe, sentindo, agora, algo diferente. Seus instintos se puseram em alerta, pois sentiu-se atraído por ela. Algo que um príncipe não devia sentir.

-Há uma crise no governo de Karnevion – explicou ela, - com a morte do rei Godofredo. Em breve haverá um concílio. Espero que Vossa Majestade nos ajude, optando pelo melhor futuro possível para a nação élfica!

-Ajudar? Eu? – estranhou ele. – Senhora, sou apenas um nobre de uma pequena cidade situada a mais de mil quilômetros daqui. Algo totalmente desimportante diante do trono de Kalina.

-Ah – suspirou Sharraith, parecendo se regozijar com as palavras do príncipe, - a modéstia. Uma característica própria e exclusiva dos grandes líderes.

-Se teremos um concílio – ousou dizer Sinésios, - então, meu senhor, tereis um voto, como legítimo representante de Sursardawê!

-Estou aqui apenas para buscar ajuda ao nosso povo, Sinésios – lembrou o príncipe, olhando para o ancião. Depois voltou-se à denassê, e completou: – E depois... não estou a par das questões de estado de Karnevion!

Mas Sharraith somente tinha mais uma coisa a dizer:

-Quando chegar a hora, sabereis como proceder – e se virou, e se foi.

Sânamas ficou olhando alguns instantes para ela, como que hipnotizado. Por segundos, ficou a contemplá-la se distanciando. Nisso, Vandhoras se colocou ao lado do príncipe e disse, sorrindo:

-Uma dríade muito impressionante, não é?

Mas Sânamas estava absorto:

-Como?

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-Ora, meu príncipe – explicou o guerreiro, - vi como olhavas para ela. Acho que um coração aqui foi atingido!

-Não sejais engraçado, Vandhoras – replicou Sânamas. – Estás dizendo isso porque és tu que estás com o coração dilacerado!

Mas o príncipe não esperou pela resposta do guerreiro, pois adiantou-se e pôs-se a orar pelo Notus.

#######

Ben Zeloar aproximou-se da plataforma do trono. Seu coração estava apertado no peito, sentindo uma grande responsabilidade sobre os ombros e, é claro, puro medo. Afinal, quem não a temia?

-Mandastes me chamar, Majestade? – indagou ele, encostando um dos joelhos no solo e olhando para o chão.

Masdmastzas se levantou do trono, sob um vestido de tecido verde escuro – sinal de luto – e, sorrindo, dirigiu-se ao conselheiro:

-Ben Zeloar... O presidente do Conselho de Kalina... um brehellai reconhecido em toda a nação pelo seu bom senso!

-Em que posso servir-vos, Majestade? – disse ele, respeitosamente.

Masdmatzas passou a olhar para as próprias mãos, colocando-se de perfil em relação ao conselheiro. Continuou, num tom propositalmente vago:

-Conheceis a índole da Senhora Sharraith, mão é mesmo?

Ben Zeloar pensou, seriamente, depois arriscou:

-Por acaso, vos referis ao seu caráter impetuoso?

-Se caráter bélico! – quase gritou a rainha. Depois continuou com voz amena: -A Ordem de Crux trama tomar a coroa de Kalina!

-Senhora? – indagou o conselheiro, espantado.

-A morte de Godofredo foi orquestrado pelas denassês!

O brehellai ficou desconcertado:

-Majestade... o que dizeis é... é muito grave... tendes certeza!

Rapidamente, como um raio, atravessando uma distância de três metros em um segundo, a feiticeira rainha estava face a face com o conselheiro:

-Como poderia uma rainha da nação élfica estar enganada sobre o que quer que seja?

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-Bem... – disse ele, ainda desconcertado, balançando levemente a cabeça de um lado para o outro. – Ora... a situação é gravíssima! Crimes devem ser punidos, mas... mas... estamos nos referindo a uma denassê!

A rainha, então, afastou-se alguns passos, dando as costas ao seu interlocutor. Parou e disse de forma controlada:

-O Conselho deve nomear Goldorius como o rei absoluto dos elfos... imediatamente!

-Senhora... temos que seguir a lei... o teste...

-Idiota! – gritou ela, virando-se novamente. – O teste é conduzido pela representante de Sepitha! Sharraith controlará o teste para que o príncipe não seja aprovado!

Ben Zeloar estava sem fôlego. Olhou perdidamente para o ar vazio. Não sabia o que fazer. Quem estaria dizendo a verdade? Sharraith? Goldorius seria um tuellai? Masdmatzas? A denassê forçaria um resultado falso do teste? E, para complicar ainda mais a situação, a rainha ameaçou:

-Tens vinte e quatro horas para a nomeação, Ben Zeloar. Caso não o faças, serei obrigada a garantir o trono que é direito de meu filho a força!

#######

Sardannah possuía uma grande casa em Lothar Eralda. Uma mansão com trinta quartos administrada por Lorthos, um dos tios de Ilrion. Lorthos fazia parte do conselho e era o principal embaixador de Sardannah na capital. Sânamas, os príncipes e os demais acompanhantes se hospedaram ali. Lorthor ficou extremamente feliz com a surpresa, mas se mostrou preocupado com a situação de Sardannah. O príncipe herdeiro, na verdade, nem sabia se o pai ainda continuava vivo. Mas tinha fortes sentimentos de que sim, mas, ao mesmo tempo se sentia culpado por não haver ainda conseguido um destino seguro para os sursardawês e, naquela noite, não dormiria direito, pois tinha o coração inquieto. Assim, passou a noite deitado, com os olhos abertos, olhando para o teto, ouvindo o desconcertante som de um vento irregular que soprava do oeste, fazendo o teto tilintar.

#######

#######

Cornélius foi o primeiro a chegar ao pátio naquele dia. Nem havia raiado ainda e o local estava deserto. Seu coração estava apertado, aparentemente temendo seu primeiro dia como professor. Algo um tanto incompreensível, dado que já não era mais um amador. Mas é claro que não era isso que o afligia. Já era a terceira flecha que disparava, em direção a um alvo situado a cem metros de distância e a terceira que errava, cravando o dardo a um centímetro do ponto correto. Disparara, dessa última vez, do modo tamastha1 dessa última vez, mas o resultado fora praticamente o mesmo. Se tivesse atirado apenas uma vez, restaria a

1 Tamastha e tamasha são palavras sinônimas. Quando foi criada, os elfos sursardawês denominavam a escola de arquearia como tamastha, mas os dortas como tamasha.

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dúvida, mas foram três. Era inegável: os ventos estavam ficando irregulares, irracionais. Assim, de repente, bateu-lhe um medo.

Mas não pôde refletir muito sobre isso. Aos poucos, o pátio foi recebendo elfos. Os primeiros foram alguns jovens bóreas que observaram Cornélius durante algum tempo. Este não sabia se seriam ou não os seus alunos, assim, deveria esperar um mestre mais graduado para orientá-lo. Os bóreas, então, começaram a rir de diversas coisas, conversando entre si.

E, logo, os mestres apareceram. E vieram também vários isnazeti. Como sempre, chegaram voando, em grande velocidade, fazendo algazarra. Pronto, pensou Cornélius, agora o ambiente está uma bagunça, barulhento demais para uma boa aula! Mas não demorou muito para que ele avistasse Samídhias dentre a multidão caótica que se formava. Caminhou até ele e perguntou, um tanto indignado:

-É sempre assim?

O ancião demorou para entender, mas logo o seu rosto se iluminou e respondeu:

-Não, não, Cornélius. Vi que vieste para dar aulas, mas hoje é dia de Eloar, não haverá aulas!

-Eloar? – indagou o elfo, sem imaginar que aquilo poderia acontecer. É claro, todos sabiam que aquele dia era dia de Eloar, a cerimônia em que dragões verdes escolhem um elfo bóreas, mas ele, é claro, nem havia pensado nisso.

O pátio estava ficando cheio de eraldianos, rapidamente. Os professores da escola tratavam de dar alguma organização à coisa, separando os candidatos do restante da população, mas essa não era uma tarefa fácil, visto que todos queriam estar em todos os lugares. Diversos elfos notus passaram a erguer os postes eliaru, encaixando-os em buracos, através de cordas, nos quais se mantinham na verticalidade. Tais postes, feitos de madeira reta e polida, tinham cerca de dez metros de altura e sua extremidade superior continha uma roda, disposta no plano horizontal, na qual se amarravam fitas coloridas, cada uma com um comprimento entre um e dois metros. Os bóreas que conseguissem montar num dragão, fazê-lo voar e apanhar uma fita no eliaru concorriam a prêmios. Contudo, essa tarefa não era fácil. Primeiro, tinha-se obviamente que ser escolhido por um dragão, depois dever-se-ia montá-lo –difícil – mesmo sendo o primeiro contato que o elfo teria com o animal. Depois, ainda mais difícil, deveria fazê-lo voar e controlá-lo para apanhar a fita. Na verdade, era raro alguém conseguir isso, sendo que, no ano de 1074, ninguém o havia conseguido.

Zephir e Sinésios chegaram ao pátio da escola tamasha justamente no momento em que o primeiro dragão era conduzido ao centro do ambiente pelos professores.

-Vem, Sinésios, corre, já vai começar! – disse o menino sardano, animado, ao ancião.

Sinésios mal conseguia acompanhá-lo, estava arfante. Zephir o fizera acordar muito antes do nascer do Sol, para levá-lo até o Eloar, e também o fizera correr como um louco pelas ruas de Lothar Eralda. E, durante o trajeto, o bóreas não parara de falar, e nada o deteria mesmo agora:

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-Olha, Sinésios, um dragão! Quem ele vai escolher? Ei, é grande!

De fato, o primeiro dragão era adulto. Um formidável dragão verde. Sua pele era verde clara, coberta de escamas. O corpo não era coberto de grossas placas de couro como os dragões cinzentos, mas os verdes eram majestosos. Não eram tampouco os maiores dragões da micropella, mas se destacavam pelo longo pescoço e cauda, os mais longos de todos. A cabeça era relativamente pequena, as menores dentre todos os dragões, tendo dimensões próximas a de um homem com o corpo encolhido, mas, a despeito disso, eram muito inteligentes. A empatia entre essa espécie de dragão e os elfos era histórica e vinha de épocas remotas, muito antes da Era dos Elfos.

O primeiro dragão a entrar no pátio tinha o dorso coberto de longas barbatanas, em forma de chicote, com uma espessura de um pulso humano e com aproximadamente trinta centímetros de comprimento. Ele estava enfeitado com muitas fitas, mas todas em cor lilás, embora cada uma com um tom diferente.

-O primeiro dragão a entrar não participa da cerimônia, Zephir – explicou o ancião. –Trata-se de um dragão adulto, que é o patrono dos mais jovens. Simbolicamente falando, é claro.

Mas o menino não prestou muita atenção na explicação. Os seus olhos estavam arregalados e vidrados no que acontecia. Sua face estava animada, interessadíssima.

-Vamos, Zephir, vamos procurar um lugar onde poderemos ver melhor!

Contornaram o círculo de elfos que se formava em torno da região central do pátio, indo para o outro lado, onde havia menor densidade populacional. Logo, os dragões que realmente participariam da cerimônia foram trazidos. Todos eles, como manda a tradição, ainda filhotes, embora não muito pequenos. Apenas suficientemente grandes para carregar um elfo bóreas. Na verdade, dizia-se que, se um elfo quisesse ser um montador de dragões, deveria obter o seu na fase bóreas. Elfos que já se fixaram na fase notus não se davam bem com dragões. Em primeiro lugar, esses normalmente os rejeitavam e, em segundo lugar, não era muito seguro para um notus montar um dragão pela primeira vez, pois os elfos nessa fase não podem voar. Dever-se-ia, antes, estabelecer um elo de confiança com o dragão. Algo forte o bastante para que ele nunca deixasse o montador cair, ou, se acontecesse, o resgatasse no ar.

Zephir estava animadíssimo e, certamente, não poderia deixar de perguntar um coisa a cada segundo:

-Sinésius, podemos ter dois dragões?

-Não – explicou o ancião. - Definitivamente, não. Somente um, é a tradição! Olha, se um dragão o escolher e se o aceitares, nenhum outro jamais fará o mesmo. Eles sabem quando alguém já é um aiê-juellai2. Portanto, quando um dragão escolhe um elfo é bom pensar bastante antes de aceitar, pois é para toda a vida!

2 Montador de dragões, geralmente arqueiros.

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Zephir refletiu sobre aquilo, mas, vendo que vários jovens bóreas se posicionavam em forma de círculo em torno dos dragões, tendo os espectadores atrás, veio com a nova pergunta:

-Qual deles tu escolherias?

O ancião olhou bem para os animais. Cada um tinha características diferentes dos outros. Ele analisou todos eles e respondeu:

-Bem, não somos nós que escolhemos, são os dragões, mas, se pudesse escolher um, eu ficaria com aquele – e apontou para o seu favorito.

-Mas o da esquerda é maior e mais forte! – objetou o menino.

-Sim. Mas lembras-te do que te disse no barco? Devemos ficar com os mais espertos!

Zephir mirou bem o animal escolhido pelo ancião. De fato, ele observava a todos atentamente, parecendo analisar os espectadores e não demonstrava nem medo nem nervosismo. Mas foi o último dragão que chamou a atenção do bóreas: um dragão pequeno e franzino e, ainda por cima, com uma asa deformada. Tinha dificuldades até para andar, sendo que os professores notus que o conduziam tinham que puxar forte a corda que o prendia no pescoço.

-Olha, Sinésius, aquele é aleijado! Por que está aqui?

-Não é tão incomum vermos dragões aleijados, Zephir – explicou o ancião. – Quando os ovos são chocados no interior do ventre de uma ondina, bem... há uma mistura lá dentro porque as ondinas guardam a semente de vários animais. Nesse caso, os dragões podem nascer aleijados. Mas esse aí... bem, ele é muito aleijado! Sua asa direita é muito pequena! Ele jamais voará! Deve ser um mascote da escola já que não teria outra utilidade.

-Puxa! Não sabia sobre as ondinas!

O menino pensou novamente, exibindo uma fisionomia compenetrada. Depois, de repente, de forma animada, indagou:

-Posso competir, Sinésius? Posso? Posso?

E fez aquela carinha que as crianças fazem quando querem alguma coisa. Sinésius temeu deixá-lo participar, mas tinha coração mole. Contudo, advertiu-o:

-Sabes que provavelmente não será escolhido, não é? És novo aqui, ora, acabaste de chegar! Há muitos competidores e é certo que os dragões estranharão o teu cheiro. Somente te deixo participar se me prometeres que não vais ficar chateado se não fores notado, está bem? E depois... bem, podes participar outras vezes! Estão fazendo um eloar todos os meses!

O bóreas nem notou que Sinésius se referira a um tempo longo de permanência em Lothar Eralda, pois somente tinha olhos para os dragões. Quase sem pensar, respondeu:

-Eu prometo, eu prometo, eu prometo!

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Então, Sinésius, mais pensativo do que seguro, assentiu com a cabeça. E Zephir não esperou por mais nada. Simplesmente abriu caminho por entre a multidão, como um raio, e se posicionou com os outros bóreas.

A cerimônia estava prestes a começar. Havia apenas seis dragões ali, incluindo o aleijado e mais de trinta bóreas. Estes, gritavam e pulavam, incluindo o irrequieto Zephir. Os professores tiveram trabalho para aquietá-los. Mas conseguiram e os dragões foram soltos.Em princípio estavam mordiscando e brincando uns contra os outros, mas, logo, apitos soaram e eles ficaram curiosos. Então, os bóreas começaram a gritar chamando-os por diversos nomes, os quais eles não estavam habituados:

-Ei, verdão!

-Rosnas, vem cá!

E coisas do tipo. Mas os nomes não importavam. Os dragões estavam curiosos com os meninos (na sua maioria) e algumas poucas meninas. Zephir não parava de gritar e pular. Chamava aquele que Sinésius escolhera, que parecia ser o mais esperto de todos:

-Vem, Esperto, vem!

E, de fato, o Esperto foi o primeiro a escolher alguém, mas não foi Zephir. Ele rapidamente se aproximou de um menino bóreas aparentemente bem mais velho que o sardano, abaixou a cabeça e permitiu que o escolhido o tocasse na fronte, acariciando-o. É claro que Zephir ficou desapontado e, um tanto triste, ficou alguns segundos absorto, observando o encontro do menino com o seu, agora, dragão.

Mas havia outros e, após se recobrar daquele instante, voltou a gritar, feliz novamente. Mas, aos poucos, foram se formando os pares. Um a um, os dragões escolheram os seus condutores e, como era de se esperar, Zephir foi sumariamente ignorado. Sinésius observava atentamente o jovem príncipe e esperava que aquela experiência não lhe fosse traumatizante. Mas os príncipes devem, desde cedo, acostumarem com contrariedades, pensava o servidor da Casa Sardana, afinal, ninguém mais que os soberanos vivem não sob suas próprias vontades, mas daqueles a quem reinam sobre.

Contudo, nesse instante, o ancião sentiu uma espécie de desconforto intenso, como quase todos os outros elfos experimentaram ali, pois fez-se silêncio, um silêncio profundo, conforme os pares formados se afastavam – os dragões conduzidos, por cordas que traziam prezas aos pescoços, pelos seus respectivos futuros aiê-juellai – silêncio esse que encobria apenas um único e solitário som: o uivo sôfrego do último deles, o mais improvável dos dragões, o filhote aleijado que restara, desprezado por todos os bóreas ali posicionados.

Sinésius encarou fixamente o animal e estreitou os olhos, reparando melhor nele, mas os bóreas, aos poucos, foram se dispersando, um a um, pois ninguém queria ser o juellai de um dragão aleijado, que jamais poderia voar. Saíram a despeito do animal esticar o pescoço ao ar, gritar, exalando um pouco de fumaça pela boca, dirigir o olhar para os meninos elfos. O animal parecia sofrer, pois devia pressentir qual seria o seu destino: passar o resto da vida numa cocheira escura ou simplesmente ser abandonado. Ele andava com dificuldade, pois os

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membros também pareciam mal formados e, cada vez que se aproximava de alguém, este se afastava. O público também se dispersou, até que o último a ficar ali, como que hipnotizado por uma miríade de pensamentos e sonhos, foi Zephir.

O dragão, então, aproximou-se do príncipe, mas este, parecendo ter medo, recuou, andando de costas. O dragão implorou para que fosse escolhido, mas o coração do menino estava constrangido. O seu sonho era ser um bravo aiê-juellai, possuir um dragão forte e belo e aquele ali representava a antítese de tudo que desejava na vida.

Assim, optando pela própria felicidade, o menino deu meia volta e passou a andar rápido, quase correndo, se afastando do dragão. Mas esse, como pôde, foi atrás, implorando.O menino conseguiu se afastar uns trinta metros mas algo o fez se deter. Parou, simplesmente, ainda de costas para o dragão. Sinésius arregalou os olhos. Ainda estava longe do menino e, agora, estava no contrafluxo das pessoas que procuravam deixar o local.

-Não, Zephir, não – murmurou ele, tentando abrir caminho por entre os elfos.

E o menino se virou.

-Não, Zephir, não – disse, agora de forma audível.

O menino olhou bem para o dragão, enquanto este procurava se aproximar.

Então, Sinésius gritou:

-Não, Zephir!

Mas era tarde demais. Lentamente o menino, sem saber porque, elevou o braço, e a cabeça do dragão encostou na sua cabeça. Sinésius parou, estático e atônito, a vinte metros do menino, já sem mais ninguém ali.

#######

Sâmanas não procurou perder tempo. Já naquela manhã, bem cedo, ladeado por Vandhoras e Lêmenos, entrou a passos firmes no salão de audiências da rainha. Assim que recebeu o pedido para uma audiência, ela assentiu imediatamente, pois tinha particular interesse no encontro. Um breve e objetivo encontro.

Após saudar a rainha com uma humilde reverência, o príncipe explicou o porque ali estava e qual era a situação do povo sardano.

-Reinvindicamos a posse da cidade de Sursardawê e temos a expectativa do vosso apoio!

A rainha, sentada rigidamente sobre o trono, com ambas as mãos nas laterais, sorriu.

-Os filhos da casa sursardawenê são bem vindos em Lothar Eralda. Vossa reinvindicação ajusta e terá o apoio da coroa de Kalina, contudo, príncipe, chegaste numa hora delicada na história da nação élfica.

Sânamas, é claro, estranhou:

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-Complicada, Majestade?

-Sim, a morte de Godofredo instaurou uma crise. Temos fortes indícios de um complô maras contra esta casa! – disse ela, com voz firme.

-Complô maras? – indagou o príncipe e depois pensou por alguns segundos, após o que continuou: - Um complô vindo de Sepitha?

-É exatamente de onde vem. Sepitha pretende desacreditar o príncipe Goldorius para que este não assuma a coroa!

-Mas... e as denassês? – indagou um perplexo Sânamas.

-São essas justamente as conspiradoras! – declarou a rainha, com voz estrondosa, mas segura de si.

Nesse momento, Sânamas nada disse. Estava boquiaberto.

-Diante das circunstâncias – disse a rainha, levantando-se e assumindo posição altaneira, - Kalina apoiará Sardana se os elfos sursardawê se puserem a favor da coroação de Goldorius no Conselho!

Sânamas ousou mirar os olhos da rainha. Tinha que buscar ali a verdade. Se o que Masdmastzas dizia era a verdade, algo terrível havia acontecido: as amadas e respeitadas denassês, figuras quase deificadas entre os elfos, haviam se convertido ao mal. Mas a rainha poderia estar mentindo. Nesse caso, o que deveria fazer?

Mas a rainha esperava uma resposta. Ela estava altaneira e fornida sobre a plataforma do trono, examinando o príncipe.

Contudo, Sânamas fora ensinado por seus pais a se portar nessas circunstâncias. Assim, tinha uma resposta pronta:

-Apazigua os vossos anseios, Majestade. Os sursardawês jamais apoiarão qualquer trama visando desqualificar um legítimo herdeiro ao trono. Estaremos ao lado – lutaremos se necessário – do que for legítimo e dentro da lei!

Masdmastzas fitou atentamente o príncipe, analisando-lhe o espírito.

#######

Ismidi fora deixada sozinha, mas fora por vontade própria. Não quis ir ao Eloar com o irmão, embora Sinésius insistisse. Tampouco concordou em acompanhar Sânamas na audiência com a rainha. Não faria mais coisas que detestava. Sozinha é que se sentia livre e feliz. Então fez o que mais gosta: voou.

Subiu vertiginosamente – era como gostava – com os braços abertos e olhos fechados, rodopiando estonteantemente, sentindo o abençoado vento no rosto, um vento que a cariciava, como um namorado, e a fazia se sentir feliz.

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Logo sentiu a umidade na pele. Era o momento de abrir os olhos e era sempre uma surpresa: era quando atingia as nuvens, em geral banhada pela luz do Sol a nascer, que era quando mais gostava do vôo, pois o cheiro era memorável. Então viu a paisagem que valia a pena, pela qual valia a pena viver: os raios de luz amarelada se chocando e espalhando por entre as alvíssimas nuvens, as moradas dos deuses, banhadas pelo silêncio celestial, pela ausência das criaturas brutas.

Sentia-se como um anjo e costumava imaginar que as nuvens seriam novas terras, sobre as quais se poderia caminhar, palco de dramas insolúveis e inacessíveis às criaturas da terra, como os notus. Os notus não eram elfos, Ismidi pensava. Não, os elfos são aqueles que podem voar, os verdadeiros seres dos ares.

E as nuvens sobre Karnevion eram belas demais. Irregulares e ao mesmo tempo arredondadas, pareciam esperar em silêncio alguma coisa. “Alguma coisa vai acontecer!”, intuiu a jovem elfa. Mas o que ia acontecer não importava. O que importava era o momento.

Entretanto, esse pensamento continha uma armadilha na qual sempre caía: importava a sua casa, o seu pai, o seu país e até os seus irmãos. Olhou para o sudeste, mas as nuvens não permitiam a visão da terra. E depois... Sardana estava muito, muito longe. Seu pai ainda estaria vivo? Sardana ainda estaria em pé?

Decidiu subir ainda mais para ver além. Então, subiu e subiu. Queria ver o arco, o seu amigo. Sempre se lembrava que duvidara da sua existência. Tudo começou com uma “aula” de Sinésius, o tutor dela e de seus irmãos: ele dissera que o mundo era uma bola e que morávamos sobre a sua superfície. Ismidi teimara que não podia ser porque, se fosse, nós escorregaríamos dela e cairíamos no nada. Ela era uma recém bóreas, uma aiêbor, e então ele lhe colocara um desafio: se voasse muito alto, poderia ver que o mundo é redondo. E foi assim que ela fez: voou tão alto quanto pôde, até os ventos não mais puderem carregá-la, até onde o frio era quase insuportável e onde se ficava muito cansada. Então o viu, como o via agora. E ficou maravilhada, pois ele era maravilhoso, o contorno do mundo. Ismidi, naquele dia, o viu pela primeira vez: o senhor contorno, o arco o qual Sinésius se referia.

-Como vai, Senhor Arco? – balbuciou ela, respeitosamente, diante do encontro entre o céu e a terra.

O Senhor Arco era sábio e lhe dava conselhos. Era sensato e seu único amigo. Certa vez, ficara muito tempo conversando com ele e então, como era difícil de respirar ali, acabara desmaiando, em pleno ar. Então, caiu inconsciente. Mas algo estranho aconteceu, algo improvável. Ao invés de se esborrachar contra o duro solo, fora salva por Vandhoras. Ele montara num dragão e simplesmente a pegara no ar. Mas como ele poderia ter sabido que ela caía para morte? Nem ele mesmo sabia explicar aquilo, conforme revelou posteriormente. Mas o fato é que... quando acordou... estava nos braços dele, braços fortes e seguros. E... quando olhou para ele... bem, se lembrava disso, mas não era ela mesma. Não, era Kânoras que estava nos seus braços e ela... ela era diferente e o que sentia...

Não, Ismidi, tira isso da cabeça. Não esses pensamentos eram proibidos. Não podia se permitir que eles aparecessem de novo. Não eram seus, eram de Kânoras e Ismidi odiava

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Kânoras. Ela era o seu grilhão. Sendo Kânoras, jamais poderia novamente estar ali, jamais poderia novamente conversar com o Senhor Arco.

Mas jamais seria Kânoras. Se dependesse de Ismidi, ela jamais veria a luz do Sol, porque ela representava a morte e, por isso, ela era má.

“Preciso distrair a minha mente!”, pensou ela. Assim, desceu, pois queria ver a cidade de Lothar Eralda do alto. Atravessou, então, as nuvens novamente, dessa vez de cima para baixo e a viu. Chamavam-na a maravilha dos pântanos e Ismidi viu que realmente eramajestosa. Um tanto difícil separá-la da floresta, para os olhos de um humano, mas perfeitamente vistosa para uma elfa. Assim, viu suas muralhas externas, que formavam um círculo imperfeito a alguns quilômetros das construções propriamente ditas. Depois a muralha interna, que contornava a cidade. Ambas eram feitas de pedras e alvenaria, mas perfeitamente harmonizadas com a floresta, repletas de zigue-zagues, para que nenhuma árvore centenária ou decanária fosse derrubada. Sobre elas, dezenas de casinhas para abrigar os arqueiros.

As construções, no interior da cidade, casas e edifícios, tinham vários estilos, frutos de uma história complexa, desde lares comuns, com estilo muito próximo do humano, até os imensos palácios e torres. Estas, não estavam distribuídas regularmente ao longo da cidade, mas posicionadas de forma aleatória. Isso, longe de outorgar à cidade uma aparência rústica, fazia com que ela se parecesse mais com algo natural, o que lhe dava peculiar beleza.

Lothar Eralda havia sido fundada pelos primeiros elfos na Micropella, ainda na Era dos Gnomos, portanto, tinha mais que 4000 anos. No início de sua história, era apenas um posto de trocas do antigo Império Fétreo, onde os gnomos mantinham servos humanos e élficos. Isso explicava as construções humanas ali existentes e também a Garganta de Gdolhah, uma antiga mina a céu aberto que, agora, se constituía numa abertura no chão, de formato circular, com meio quilômetro de diâmetro e quase duzentos metros de profundidade. Ali, em nichos nas paredes internas, estavam as centenas de lares de brehellais que habitavam a cidade. Mas a garganta ficava no extremo sudoeste da cidade e era considerada uma espécie de subúrbio sem importância.

Os palácios, por sua vez, com uma arquitetura refinada, algo entre o gótico e o coríntio, mas sempre com a cor branca predominante, estavam harmonicamente distribuídos na região central. Estes, bem como as construções mais suntuosas, foram construídos quando os elfos dominaram a cidade, já na Era dos Elfos, e tais construções foram feitas de forma que estivessem praticamente misturados com a vegetação, notadamente as árvores mais frondosas, as quais ainda viviam entrelaçadas com os palácios.

Mas os edifícios mais impressionantes eram as torres, as torres mortuárias e os templos dedicados aos deuses-vento. Ismidi as observou do alto e ficou um tempo a decidir sobre qual delas pousaria. Escolheu, finalmente, Musírias, a Torre dos Ventos. Para lá voou, pousando sobre o seu topo. Ficou a observar seus semelhantes lá em baixo, minúsculos, como formigas, e ficou a imaginar o que o Senhor Arco diria sobre o futuro dos elfos.

#######

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Quando Sânamas retornou à casa sardannah, Sinésius o esperava ansiosamente. O príncipe logo percebeu que teria outro problema pela frente.

-Fala com ele, Sânamas. O menino está jogado na cama desde que chegamos, chorando. Tentei falar com ele, mas ele não me escuta. Talvez tu possas...

-E ele disse porque fez isso?

-Não, já te disse. Fechou-se em si mesmo!

Sânamas respirou fundo. Já não bastavam os problemas que tinha, do seu distanciamento cada vez maior do que viera fazer no norte e agora isso? Mas ele foi até os aposentos do seu irmãozinho e o encontrou da maneira exata com que Sinésios descrevera. Estava com o rosto enfiado no colchão, estendido na cama.

-Zephir? – chamou o príncipe.

-Vai embora – respondeu o menino élfico, com voz abafada.

Sânamas sentou-se na beira da cama.

-Ouve, irmão, agora não adianta ficar assim. Vamos pensar numa solução.

O menino virou-se para ele, abruptamente, com um misto de dor e ódio na face.

-Vai embora, Sânamas... – ele disse, mais triste que irado.

-Vamos conversar? – insistiu o irmão mais velho.

O menino não respondeu. Sânamas não sabia como começar, então, começou por aquilo que talvez não fosse o mais adequado.

-Por que escolheste aquele dragão, Zephir?

O menino olhou para o outro lado, como se quisesse esconder o rosto. Depois falou, hesitante:

-Eu... eu não sei... acho que foi por instinto, sei lá... Ou então fiquei com pena dele!

Pena do irmãozinho era o que o príncipe sentia agora. Mas então olhou para a cara tristonha de Zephir e emendou, lembrando-se de algo:

-Sabes, Zephir, papai tinha um cavalo, não é?

-Aquele doido que morreu de velho?

-Sim, esse mesmo!

-Tu te lembras, Zephir, que ele salvou o papai na batalha do Meio Fulcro?

-Mas eu não tinha nascido ainda!

-Sim, isso é certo, mas ouviste a história, não é?

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-Sinésios me contou umas cinco vezes...

-Mas uma coisa que talvez ele não tenha te contado é que aquele cavalo foi um rejeitado. Quando jovem e selvagem, não deixava ninguém montá-lo. Ele parecia ter raiva dos elfos, pois, elém de derrubar quem tentava montá-lo, os coiceava, se conseguia. Chegou-se a cogitar sacrificá-lo, mas o rei, nosso pai, não permitiu. Então, ele decidiu tomar o cavalo para si mesmo. Foi derrubado muitas vezes, mas insistiu. E, então, como se fosse um prêmio dos ventos, aconteceu aquilo: ter a vida salva em batalha.

Sânamas contou aquilo olhando para o nada, tentando se lembrar dos detalhes, como se tivesse as cenas da batalha diante de si. E Zephir o mirava, admirado. Mas, depois que o irmão terminou de falar, ele ficou pensativo, afinal não sabia porque ele havia contado aquela história.

-Entendeste o que isso quer dizer? – indagou o príncipe.

Zephir pensou novamente, mas finalmente disse:

-Eu não!

-Quer dizer, Zephir, que nunca sabemos quando alguém fará a diferença. Por isso, não devemos julgar ninguém, nem mesmo qualquer criatura. Por mais repugnante, aleijado ou estúpido que alguém lhe pareça, como saberás que não será essa mesma criatura que fará alguma coisa definitiva, que mudará o curso dos ventos?

Zephir novamente pensou, olhando ele agora para o nada. Sânamas se levantou, danto um tapa no ombro do irmão e se retirou. O menino se levantou também e correu para fora. No caminho, lembrou-se do nome do cavalo do rei de Sardannah. Logo chegou ao pátio da casa. O dragãozinho aleijado estava amarrado com uma corrente numa coluna de concreto. Uma fumaça branca saía de suas narinas, mas ele não era maduro o suficiente para cuspir fogo.

Tão logo Zephir apareceu no pátio, o dragão não desgrudou os olhos dele e, a julgar pelos seus sinais, pareceu feliz com a presença do menino. Zephir se colocou ao lado dele e passou a abrir a trava que prendia a corrente.

-Vou te libertar – disse o menino. – E o seu nome será Random!

O dragãozinho aproximou a sua cabeça do peito do principezinho, como querendo fazer um carinho.

-Vamos ver se tu podes fazer a diferença!

Então Zephir se afastou, apanhou um graveto que estava caído no chão e o atirou contra o dragão. O graveto simplesmente o atingiu e caiu, sem que o animal tivesse qualquer reação.

-Pega o graveto! – insistiu o bóreas.

Mas o dragão pareceu não entender. Ficou ali, simplesmente, olhando o menino.

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Zephir ainda estava invadido por uma miríade de sentimentos. A sensação de que perdera a grande oportunidade da sua vida em obter um dragão forte e poderoso, o qual poderia montar e realizar grandes feitos. Ele sabia que, uma vez que um dragão o escolhesse, nenhum outra jamais o faria. Assim, a sensação de que Random jamais faria algo além que rastejar pelo chão se apoderou do seu peito. Tomado por esse sentimento, apanhou uma pedra do chão e a atirou o mais forte que podia contra o dragão. Obviamente aquilo não o machucou, pois a pedra apenas atingiu a sua couraça. Mas Zephir ficou fora de si. Apanhou outra pedra e outra, uma maior que a outra, e passou a atirá-las todas contra o animal. Ele gritou. Foi um guincho, típico de um jovem dragão, um guincho de dor, talvez não uma dor física, mas uma dor do coração. Ele tentou recuar, mas o menino foi para cima dele jogando mais pedras, gritando:

-Seu imprestável! Seu imprestável!

Random fechou os olhos e encolheu a cabeça. Mas a emoção foi muito forte para o menino, que já estava exausto devido aos dias anteriores de viagem. Então, o principezinho caiu no chão, inconsciente. Aos poucos, o dragão abriu os olhos e viu o menino estirado no solo. Então, acercou-se dele, arrastando a pata aleijada, e deitou-se o seu lado, estendendo o longo pescoço em torno do seu corpo, como a protege-lo.

#######

Pela quinta vez, já perdendo a paciência, Cornélius corrigiu a postura do neófilo. Era loucura atirar assim. Acertar o alvo parecia extremamente improvável. Mostrou como se fazia para o aluno. Atirou à moda Tamastha. A flecha se cravou no alvo, mas... uma sensação estranha se apoderou do seu coração. Uma sensação de não estar fazendo a coisa certa. Algo lhe dizia que a questão não era apenas a eficiência do estilo de atirar. Era algo mais, mas o que seria? “A extinção da nação élfica”, disse-lhe uma voz interior. “Bobagem!”, pensou.

Talvez fosse melhor desenvolver a habilidade dos novatos em atirar rápido. Se eles atirassem muitas flechas, a probabilidade de acertar seria maior. Observou, então, os demais, posicionados ao longo de uma coluna, cada um deles atirando no próprio alvo. O desempenho deles era uma tragédia.

-Não parai de atirar! – gritou o professor. – Rápido! Rápido!

Então, eles procuraram retirar os dardos o mais rápido que podiam das aljavas e, atrapalhadamente, os inseriam nos arcos. Mas havia um que estava fazendo diferente. Cornélius não o conhecia, mas sua expressão indicava que procurava sentir o ar tocando-lhe a face. “Instinto túria”, pensou. Aproximou-se do jovem notus. Olhou para um lado e para o outro e lhe cochichou no ouvido:

-Fecha os olhos e sente o ar!

O jovem se espantou com o conselho, mas fez o que o mestre disse.

-Ora ao Notus... – prosseguiu. E, depois de alguns segundos, completou: - Agora, atira!

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A flecha não se cravou no alvo, mas perto. Contudo, Cornélius ficou extremamente satisfeito e feliz. E, então, sentiu que fizera a coisa certa.

-Aos diabos com Tamastha! – murmurou.

Assim, fez com que os alunos parassem e começou a ensiná-los ao estilo túria. Sentiu-se bem fazendo isso, mas o fato não passou incólume. Ao final do dia, foi chamado pelo diretor da escola e advertido. O diretor falou, falou e falou. Falou sobre o fato de que os ventos já não eram favoráveis, que o mundo estava entrando na era dos ares sombrios e que a arquearia à moda túria poderia levar a nação élfica à ruína. Mas Cornélius não prestou atenção. Enquanto o diretor falava ele pensava. Qual seria de fato a verdade? Realmente adviria a era dos ventos sombrios ou era uma verdade criada por tuellais, implantada, talvez, pelo rei Godofredo, que as denassês acreditavam ser um apeliotes?

Não sabia qual era a verdade. Sabia somente uma coisa: teria que descobri-la.

#######

Mais tarde, Cornélius compareceu à reunião aberta do Conselho. Seria a ocasião em que o príncipe Goldorius seria testado para a averiguação de sua aptidão para assumir as coroas élficas unificadas: a coroa de Kalina, o supremo título élfico, cujo portador seria o soberano absoluto de todas as nações élficas e a coroa de Eralda, a coroa do rei de Karnevion. O recinto consistia de um anfiteatro, com uma arquibancada em formato de meia circunferência constituída de vários níveis, suficiente para acomodar cerca de quinhentos elfos. Diante erguia-se uma espécie de palco, sobre o qual estava uma grande mesa circular de madeira, onde os membros do conselho se sentavam. Dessa forma, as reuniões poderiam ser acompanhadas pelo público. No evento desse dia, contudo, apenas alguns convidados puderam entrar, apenas aqueles que tinham alguma descendência nobre. E Cornélius estava ali, afinal, ele era o filho mais velho de Acrux Alva.

Logo ao lado da mesa circular, estava uma poltrona almofadada. Ali deveria se sentar o candidato à coroa e, segundo a tradição, ele deveria ser testado por uma denassê. Decrux Sharraith o faria, pois fora designada por Sepitha como a representante da Ordem de Crux.

Quando Cornélius chegou ao recinto, a maioria dos conselheiros já estava sentada em seus respectivos lugares. A arquibancada já estava quase toda tomada, de forma que o elfo arqueiro teve que se contentar com um lugar não muito próximo do palco. A sua volta estavam elfos de diversas fases e raças: fadas e silfos, que voavam pelo local em grande algazarra, elfos zephyros, que se mantinham em silêncio ou choravam, bóreas, que gesticulavam e falavam alto. Mas a maioria eram elfos notus. Os dortas, de cabelos negros e bem cortados, devem ter sido os primeiros a chegar, pois se concentravam nos lugares mais próximos do palco. A maioria deles era fria e calculista e Cornélius – bem como a maioria dos sursardawês – não gostava muito deles. Mas Cornélius sabia que aquela era uma atitude adquirida através dos anos pelos dortas karnevianos, dentre eles os que compunham a família da rainha Masdmastzas e do príncipe Goldorius, mas os dortas amazaranos eram mais selvagens e, por isso, Cornélius simpatizava com eles. Mas não havia amazaranos ali, somente descendentes que migraram há anos a Karnevion.

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Já nos lugares mais afastados estavam os sursardawês, de longos cabelos finos e louros, guerreiros e orgulhosos da linhagem de Athlon e os irreverentes maras, de cabelos vermelhos. A maioria dos maras vivia em Karnevion Ocidental e eles não eram nada amigos da família da rainha. Cornélius sabia que alguns deles faria o possível para que Goldorius não subisse ao trono. O problema era que Decrux Sharraith era uma maras, assim como todas as denassês. Assim, Cornélius era, na verdade, um mestiço, pois tinha o sangue maras de sua mãe e o sursardawenê de seu pai, do qual herdara a maioria das características físicas.

Além dos elfos de diversas linhagens, estavam ali alguns sacis e curupiras, os quais, mal comportados, gritavam e caçoavam dos demais. E foi nesse momento que entrou no recinto, para tomar o seu lugar no conselho, o idoso saci Muruvius, o representante dos sassiminaras. Ele atravessou o palco pulando, com alguma dificuldade, devido à avançada idade, a qual poucos sabiam qual era, mas era conhecido que ele era mais velho que a líder das denassês e talvez fosse o elfo mais velho da Micropella. Cornélius suspeitava que ele beirava os 1500 anos de idade. Apesar disso, e de sua cabeleira acinzentada, sua fisionomia não parecia tão mal e sua pele escura não estava tão curtida pelo tempo. Ele se sentou mansamente e, com atos comedidos, examinou o conteúdo do seu caximbo. Mas Cornélius não pôde ver se ele reabasteceu o instrumento com fumo, pois um curupira se levantou a sua frente e ficou gesticulando com os braços em riste. Logo, um bando de bóreas surdardawês que estavam logo atrás de Cornélius começou a gritar:

-Senta aí, seu filho de uma salamandra!

É claro que o curupira não gostou do insulto – embora a descendência dos curupiras em relação às salamandras fosse uma hipótese científica válida – e se virou, inflamando a cabeça:

-Seus fracotes idiotas! – gritou ele, com a voz saindo das chamas. – Quereis que vos incinere?

Mas Cornélius olhou para ele com a cara feia e o curupira se sentou novamente. E foi nesse instante que ele observou, entrando no recinto, a família real sardana. Sânamas entrou na frente, ao lado de Vandhoras, seguido de Lemenos, os jovens príncipes e finalmente Sinésios, apoiando a mão no ombro de Zephir. Cornélius observou que o menino estava com cara de poucos amigos, bem como a irmã. Já o príncipe herdeiro parecia preocupado. O elfo arqueiro não conhecia os jovens, mas gostava de Sânamas, que, na verdade, lhe salvara a vida numa ocasião no passado.

Porém, nesse instante, as suas divagações foram interrompidas. De repente, o barulho intermitente de conversas múltiplas que imperava no salão enfraqueceu, e um murmúrio de baixo volume se estabeleceu. Tudo em decorrência da entrada da família real eralda. Masdmastzas, é claro, entrou na frente e caminhou a passos decididos e firmes a frente, ocupando o seu lugar na mesa do Conselho. Em seguida entraram os seus filhos, o príncipe bóreas Goldorius e a jovem sacerdotisa dos ventos Moronnah, que estava vestida de preto. Ainda entrou o experiente notus, Vinedion, irmão da rainha e representante dortas no Conselho. Cornélius também conhecia muito bem a sua fama: frio, lógico e calculista. Apesar da idade, os cabelos eram impecavelmente pretos, impecavelmente cortados, curtos, e

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impecavelmente lisos. Com maneiras ponderadas, ele se sentou em seu lugar e, como fazia tipicamente, uniu as pontas dos dedos das mãos, indicador com indicador, mindinho com mindinho, polegar com polegar... Nesse instante, Cornélius descobriu que não gostava dele. Aliás, ele era alvo de chacota de muitos sursardawês, já que esses eram um tanto mais selvagens. E, por mais que tentasse, não conseguia compreender os dortas karnevianos, tão lógicos, frios e suspeitadamente hipócritas.

O jovem príncipe, e candidato a rei, foi auxiliado pela irmã a se sentar no trono, posicionado a cerca de cinco metros da mesa redonda do Conselho. Ele parecia pouco a vontade. Mirava o entorno com olhos nervosos, que se moviam agitadamente. Mas, até aí, era compreensível, afinal ele era apenas um bóreas, não havendo ainda se fixado na constância da fase notus, ou, pelo menos, era o que aparentava.

Moronnah foi a última a se sentar à mesa. Ela era estranha, na visão de Cornélius, pois ele não conseguia senti-la. Sempre apresentava uma fisionomia neutra, sem expressão e, para uma feiticeira do vento, isso lhe outorgava um alto grau de mistério. Mas logo, Ben Zeloar, o brehellai, presidente do Conselho, se levantou e bateu com um grosso pedaço de madeira na mesa.

-Vamos iniciar a sessão! – declarou.

Então, todas as falas do recinto cessaram e os que estavam em pé se sentaram, exceto, é claro, vários eureus que permaneceram voando pelo ar.

-Conforme é tradição, - continou Ben Zeloar, de forma calma e pausada - o herdeiro ao trono de Kalina deverá se submeter ao Teste de Essência, a fim de se verificar quais são os ventos que sopram ao espírito do possível novo rei. Devo declarar que a solicitação feita pela rainha Masdmastzas para que a sacertotisa Moronnah realizasse o ritual foi rejeitada pelo Conselho. Assim, caberá, como sempre foi feito desde a coroação da rainha Ithrannah, à representante das denassês no Conselho, neste caso, a senhora Decrux Sharraith.

Nesse momento, Cornélius olhou para Masdmastzas. Ela não parecia nada contente com a decisão do Conselho em manter a denassê na condução do teste. Mas, o que de fato ela temia?

Sharraith se levantou, nas suas vestes cinzentas esvoaçantes. Ela parecia serena, mas também preocupada. Caminhou até o jovem príncipe, que olhava para ela assustado. Mas ela se moveu devagar demais. O ar a estaria impedindo?

Colocou-se, então, ao lado do príncipe e, com a palma da mão, tocou-lhe a testa. Logo entrou em transe e proferiu, sob o silêncio do recinto:

-Oh, Eureus, Zephiros, Bóreas, Notus, permitai-me revelar a essência deste elfo!

Imediatamente, o corpo do príncipe começou a tremer. No início, o tremor foi sutil, mas logo se intensificou, sendo acompanhado de abundante sudação. Com os olhos vidrados, Goldorius se transformou num zéfiros, depois começou a arfar, como se estivesse com falta de ar. Depois se transformou num bóreas novamente, com o tremor mais intensificado. Em

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seguida, ele começou a babar pela boca, lançando uma espuma branca levemente esverdeada, até que se transformou num notus. Até aí o ritual se processou como o esperado, pois ele servia inclusive para mostrar o notus que o príncipe seria no futuro, mas o que se passou dali em diante espantou a platéia.

O príncipe, na fase madura, começou a delirar, mas não foi um delírio compreensível. Antes, um conjunto de murmúrios e chiados lúgubres. Seus olhos estavam brancos e sua pele tornou-se de um verde mais intenso, até que, para o desconserto de todos, um skiron surgiu diante dos seus olhos. Tinha cerca de um metro de altura, tal qual o príncipe bóreas, mas o rosto demoníaco, os olhos vermelhos, e uma expressão de maldade. Havia garras no lugar dos dedos e a pele era coberta de uma fina camada de pelos. Boa parte da platéia se levantou, espantada. Alaridos, gritos e lamentos ecoaram no ar. A visão era espantosa, mas, a julgar pelo propósito do teste, aquela era a sua real forma. Assim, Goldorius era, na verdade, um tuellai.

O demônio passou a se debater violentamente na poltrona, tentando se libertar, mas ele estava seguramente preso pelo encantamento da denassê, do qual tuellai algum poderia sair. Contudo, mesmo assim, uma confusão geral se estabeleceu no recinto. Diversos bóreas e zéphiros se transformaram em eureus e saíram voando em zigue-zague. Outros se transformaram em zéphiros e correram atrapalhadamente, trombando nos demais. Os curupiras presentes, incendiaram as suas cabeças, aumentando a confusão, enquanto que vários notus gritavam, em alusão ao nome tuellai do príncipe:

-Goldorai! Goldorai! Goldorai!

Nesse instante, Ben Zeloar levantou-se e, novamente, bateu com a madeira na mesa.

-Calma! Calma! Assentai-vos! A situação está sob controle.

Então, Sharraith conseguiu fazer com que o skiron perdesse a consciência, desmaiando e, após alguns minutos ainda de confusão, os que permaneceram no local se aquietaram. Mas, enquanto isso acontecia, Masdmastzas levantou-se e, com voz poderosa, gritou, apontando para Sharraith:

-Isso foi uma farsa! Acuso a denassê de ter forjado o teste!

Na verdade, esse fora um movimento calculado. A rainha planejara já o que faria caso o teste revelasse a real natureza do príncipe. Mas, cumprindo o seu papel, Ben Zeloar, o brehellai, olhou para Masdmastzas e declarou:

-Esta é uma acusação grave. Estais questionando a honestidade de uma sagrada membra da Ordem de Crux! Tendes consciência disso, rainha de Eralda?

-Sim! – respondeu ela, firme e altiva.

-Então, segundo a lei, serei obrigado a convocar o Concílio dos Reis Élficos!

Cornélius observou atentamente a reação da rainha. Ela sorriu sutilmente, revelando ser o que realmente desejada. Era a única chance de que dispunha para reverter o veredito do teste. Se o Concílio aceitasse a denúncia, poderia conseguir a coroação do príncipe e mais: a

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condenação da própria denassê, sob a acusão de traição. Ela parecia confiante. E estava mesmo, pois ainda tinha várias cartas na manga, ainda não reveladas.

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Os dias que se seguiram foram recheados de movimentos diplomáticos. Em princípio, todos acreditavam que o Concílio deveria ocorrer somente depois de meses, uma vez que teriam que convocar o distante rei de Amazannah, contudo, chegou a notícia que Armond já se dirigia a Lothar Eralda, estando a apenas alguns dias de distância. Paralelamente, Ben Zeloarcomunicou a Sânamas que, sendo ele o herdeiro direto de Sardannah, poderia substituir o pai no Concílio. Assim, depois de muita insistência do presidente do Conselho, o príncipe sardano aceitou a incumbência.

Além disso, poucos dias depois do resultado do teste, Masdmastzas conclamou Sâmanas para um encontro e prometeu-lhe Sursardawê em troca de seu voto a favor de Goldorios. Sabiamente, Sânamas não disse que sim nem que não e prometeu levar em consideração a proposta. E a rainha faria o mesmo com Armond. Mas Ben Zeloar desejava uma saída diplomática para a crise, e foi ter com a rainha. Ela, é claro, o recebeu de forma fria e irônica:

-Satisfeito com o resultado do teste, Ben Zeloar? – indagou ela, dando-lhe pouca importância.

-Na verdade, não, majestade, mas... – parou por uns instantes, buscava as palavras adequadas. – A situação é grave, mas... acredito que tenho uma solução diplomática, uma solução que, acredito, poderia evitar qualquer conflito.

-Saída diplomática? – indagou a rainha, duvidando do conselheiro. – E qual seria?

-Poderíeis ficar com a coroa de Eralda, não o príncipe Goldorius, mas vós. O concílio escolheria o rei de Kalina.

A rainha se ajeitou no trono onde se sentava e, imediatamente, pôs-se a rir:

-Ah, queres mesmo que aceite tal coisa absurda?

-Governaríeis, majestade, toda Karnevion! – tentou explicar Ben, mantendo posição humilde.

A rainha se levantou, coberta de ira. Colocou-se em posição altiva, sobre a plataforma do trono de Eralda, e bradou:

-Traidor! Não entendeste nada desde o início, não é, brehellai? Eu sou a rainha de Kalina, eu sou a senhora absoluta dos elfos!

E, ao mesmo tempo em que falava, ergueu os braços, e um vento forte começou a soprar contra o conselheiro. O vento tinha tal intensidade que o obrigou a retroceder e sair do recinto. Era o fim da saída diplomática.

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Decrux Sharraith estava diante da estátua do misterioso Notus, em posição de oração. Sua face estava inclinada para frente, com a testa tocando as mãos unidas e os olhos profundamente fechados. Seu coração estava apertado. Sabia que algo ia acontecer, algo de ruim. Algo que precisava enfrentar. Estava angustiada e inquieta e rogava para que o deus lhe apaziguasse os sentimentos.

O recinto – o salão central da Torre dos Ventos – estava estranhamente deserto. Estava sozinha ali, mas, logo, sentiu uma presença atrás de si. Virou-se e constatou quem estava ali. Era a rainha Masdmastzas em pessoa, a uns dez metros de distância. Observava-a com um misto de deboche e raiva.

-Conseguiste o que querias, não é mesmo? – indagou a rainha, o mais ironicamente possível.

Sharraith tentou se manter calma e racional. Sabia que estava diante de uma poderosa feiticeira. Ela era uma poderosa maga, mas agora entendia tudo: o cristal verde fora reativado com um poder funesto, que dera força às feiticeiras do vento. Sarraith sabia agora que as feiticeiras karnevianas eram seguidoras dos deuses tuellai: o kaikias, o lips, o apeliotes e o skiron. E, nesse momento, o poder de Masdmastzas já devia ser forte o suficiente para enfrentar uma denassê. Assim, ela sabia que não poderia sair dali sem lutar, uma luta de vida e morte.

Então, virou-se vagarosamente. Viu que os olhos da rainha exalavam fogo e também o porque estava ali. Assim, não perdeu tempo com conversas. Rapidamente, retirou a varinha de dentro das vestes. Tinha uma pequena chance daquela contenta nem se iniciar. Por isso, gritou:

-Coagulatio!

Mas Masdmastzas foi rápida. Talvez esperasse por aquilo. Antes mesmo que o encantamento a paralisasse, abraçou-se e um redemoinho espesso se formou em torno de seu corpo, protegendo-se da ação da varinha.

A denassê se levantou como pôde, o mais rápido que podia, para enfrentá-la de frente. Mas a rainha já tinha preparado o contraataque e, num gesto expondo as palmas das mãos, projetou um jato de ar contra o peito de Sharraith, o que a jogou vários metros para trás. Caiu pesadamente contra o chão duro e liso e, segurando firmemente a varinha para que não caísse, foi deslizando pelo chão, pela ação da inércia, durante vários segundos.

Decidida, Masdmastzas caminhou firmemente em direção a ela, com faíscas verdes projetando-se entre os dedos.

Sharraith levantou-se novamente e, mesmo antes de estar em pé, tentou um elemento que era forte contra elfos:

-Igni!

Um jato de fogo saiu de sua vainha. Espesso e incandescente. Mas o vento produzido pela rainha foi mais forte e apagou as chamas. Adicionalmente, Masdmastzas manipulou o

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vento, torcendo o ar com ambas as mãos em forma de concha, até que, das correntezas formadas, surgiu um monstro de vento, da mesma espécie que Aara e Aldebaran enfrentaram nas passagens subterrâneas ao norte de Karnevion. Rapidamente, o monstro conseguiu agarrar a varinha da denassê, apanhando-a desprevenida, e a arremessou longe, pouco antes de se desfazer no ar.

A rainha sorriu e, calmamente, confiante, disse:

-Ora, estás desarmada agora!

-Esqueces que também sou uma feiticeira! – respondeu Sharraith, procurando demonstrar firmeza na voz.

Assim, ambas posicionaram as mãos em gestos de manipular o ar e, estudando uma a outra, passaram a circular lentamente em torno de um ponto central.

-Sabes que este é um momento histórico na saga dos elfos sobre a Micropella, não é? – disse Masdmastzas, para provocar.

-Jamais os tuellais conseguirão a posse do Vale de Aar! – exclamou a denassê, sabedora das intenções da rainha.

-Mas estou prestes a remover o meu maior obstáculo! – disse a rainha, com ironia na voz.

-Se eu tombar aqui, outras denassês te derrotarão!

-Ah, é mesmo? Quem? Acrux Alva em seu leito de morte? Ou Futulê, a aleijada? Talvez Rubídea, aquela menina tão doce? Ou então Fabacê, a fraca?

Sharraith procurou raciocinar. Aquela batalha estava perdida. Não sabia onde estava a sua varinha. Clamava por ela, mas ela não vinha, não respondia. Poderia lutar como uma feiticeira do vento, mas estava em campo inimigo, dentro da especialidade de sua adversária. Não, não poderia vencê-la. Teria que pensar em outra coisa. Não derrota-la aqui e agora, mas deixar uma marca nela, algo que garantisse a sua derrota futura.

-Prepara-te para te ajoelhares diante de Mitrax! – gritou a rainha, pouco antes de lançar outra frente de deslocamento de ar.

Um vento de 150 quilômetros por hora se chocou contra a denassê. Mas ela abriu os braços energicamente, para fender o jato de ar. Mas, mesmo assim, teve que absorver a imensa quantidade de movimento e, então, deixou-se rodopiar no ar, elevando-se a grande altura. Mas então, conjurou o espírito das valkírias, e o que era vento se transformou num cavalo alado de ar. Ela o cavalgou em direção à rainha e, literalmente, a atropelou.

Masdmastzas foi pega de surpresa e se feriu. Grandes hematomas surgiram e, do canto da sua boca, fluiu sangue verde. Mas ela se levantou e verificou que o cavalo alado havia se desfeito. Sharraith procurava conjurar outro feitiço. Sabia qual era pois dominava completamente os gestos. Era a projeção do sufoco. Então, contra-atacou na mesma moeda e os jatos projetados por ambas as feiticeiras se encontraram em grande estrondo.

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Um grande vácuo se formou no espaço entre elas. O suficiente para atraí-las para ali, uma contra a outra, violentamente. Seus corpos se misturaram, mas Masdmastzas se recuperou antes e tratou de socar a oponente.

Os golpes atingiram dolorosamente a denassê, o bastante para jogá-la no chão. A rainha, que estava de pé, andou uns passos em sua direção e comprimiu o pescoço de Sharraith com a sola da bota. Sharraith aplicou-lhe um golpe na perna, derrubando a oponente no chão. Então, ao se levantar, reuniu toda a força que tinha, concentrou o máximo que seu cérebro permitia e disparou um novo feitiço.

Ao mesmo tempo, Masdmastzas conjurou todos os ventos tuellais e os despejou contra a denassê. Novamente, ambos os ventos projetados se encontraram, jogando violentamente ambas para trás. A rainha saiu rodopiando, com a cabeça se alternando com os pés, quase perdendo a consciência e voando trinta metros para trás. Já Sharraith foi jogada com violência contra uma parede, batendo fortemente as costas e vindo a cair no chão.

A rainha se sentiu estranhamente fraca e, pela primeira vez, sentiu que poderia perder a luta. Mas mesmo assim, conjurou novamente os ventos e um grande redemoinho tomou conta do recinto arredondado. Sharaith foi arrastada com ele e passou a rodar pelo entorno interno do saguão da Torre dos Ventos, como uma pena pega por um tornado.

Mas a rainha, enfraquecida, estava tonta e despencou, tocando um dos joelhos no chão, bem como as duas mãos abertas. O redemoinho também enfraqueceu, libertando a denassê. Esta, então, se equilibrou no chão e estava prestes a desferir o golpe final. Contudo, nesse momento, entrou no recinto a sacerdotisa Moronnah.

Vendo o estado em que se encontrava a mãe, desferiu um encantamento contra a denassê. Usou toda a força que tinha, sabendo do poder da adversária, mas Sharraith também estava enfraquecida e, para vencer Masdmastzas, abdicara de todo o poder de defesa. Assim, ao ser atingida, o ar lhe faltou. Foi violentamente arremessada para trás, novamente, mas, desta vez, não resistiu. O impacto contra a estátua do Notus, que foi destruída, quebrou-lhe a espinha e o pescoço e, antes mesmo de atingir o chão, já estava sem vida.

Masdmastzas engatinhou pelo piso frio, ao mesmo tempo feliz e ao mesmo tempo temerosa, pois sentiu que parte do poder lhe fora tirada. Moronnah caiu de joelhos no chão, atônita do que fizera. Por mais que soubesse que Sharraith era uma opositora da família, para todos os elfos, a condição sagrada de uma denassê era fato bem arraigado. Assim, ela chorou e se lamentou do que fizera.

E, no mesmo instante que Decrux Sharraith pereceu, Alva Acrux tremeu no seu leito, agarrando as cobertas enrijecendo os dedos; Ecrux Futulê acordou banhada em suor do pior de seus pesadelos; Rubídea Guacrux deixou cair a própria varinha, sendo acometida de uma tontura profunda; e Becrux Fabacê, no alto do monte Lumerae, teve que se segurar numa coluna, para não despencar no chão. Aldebaran levou a mão sobre o coração, sentindo-o palpitar e experimentando falta de ar; Mintaka e Alnitaka se entreolharam espantadas; Castor, nos estábulos da cidadela, também se alarmou, e os cavalos ficaram agitados. Rigel, tendo a deslumbrante visão de Aurianon às suas costas, olhou para todos os lados, parecendo

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desorientado. Meissa, andando por uma estrada na Necrovíngia, parou, cheirou o ar e teve funestos presságios. Já Alnilan, sentada sobre uma poltrona, bem no ponto central da pirâmide de Lumerae, usando o blindero, estremeceu. Como consequência, duas criaturas astrais, um magout e um valdeltron, conseguiram passar pelos portais e se reconstituíram na atmosfera da Micropella.

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No dia seguinte, segura com a remoção de sua maior opositora, Masdmastzas convocou grande assembleia de cidadãos eraldos na sala do trono e diante de todos, sentou-se no trono, enquanto que duas feiticeiras do vento lhe colocaram a coroa de Kalina na cabeça, e, em seguida, declarou-se a rainha absoluta dos elfos, sob o discurso que agia de forma extrema para colocar ordem no reino. Ben Zeloar estava presente e, naturalmente, não gostou do que viu. Tinha uma decisão a tomar. Como presidente do conselho, poderia seguir o caminho de uma cômoda anuência, ou então desafiar a decisão da rainha, mantendo a convocação do Concílio, correndo o risco de ser considerado traidor e morto por isso.

Mas havia um fator novo. Um fator que estava no seu bolso. Como para se certificar que aquele pequeno objeto de fato existia, que não havia sido um mero sonho, ele o apanhou, escondido no meio da multidão que ovacionava a rainha. Era um pequeno pedaço de papel amassado. Ele o desdobrou e o leu pela décima primeira vez. Não. Era mesmo aquelas palavras. Um pequeno número de palavras, pertencentes a um recado assinado por Sharraith Decrux. Um pequeno número de palavras, mas muito convincentes e impactantes: Sânamas é a reencarnação de Athlon. Palavras que, a primeira vista, poderiam parecer insanas, isto é, se não fossem escritas por uma denassê.

Amassou de novo o papel e tomou a sua decisão.

Mas, nesse mesmo dia, a caravana amazana chegou a Lothar Eralda. O rei Armond foi o primeiro a descer do cavalo. Pessoalmente, agarrou o primeiro soldado que viu do lado de dentro das muralhas e ordenou-lhe providenciar ajuda médica para Nestzas. Há dias ela estava inconsciente, sobre o seu cavalo. O braço fora acometido de infecção generalizada e o mais otimista dos seres não apostaria que ele poderia ser salvo. Mas a heroína amazana foi levada até as feiticeiras do vento, sendo acompanhada do rei e de Adanius Olho-Vazado.

E, tão logo a rainha soube da chegada de Armond, se dirigiu até a torre dos ventos. Moronnah confirmou que Mestzas poderia ser salva, bem como o seu braço restaurado, contudo, para que o fizessem, Masdmastzas exigiu a lealdade de Armond. Este, deconhecendo a real situação de Lothar Eralda, ajoelhou-se diante da rainha e as feiticeiras fizeram o seu trabalho.

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Em frontal desafio à rainha, Ben Zeloar manteve a convocação do concílio. Marcou-o para o dia 5 de dezembro, após os funerais de Sharraith Decrux. Durante as cerimônias, estranhou o fato de que nenhuma outra denassê ou representante de Sepitha ter

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comparecido, mas a rainha estava lá. Masdmastzas havia declarado que o deus Notus havia matado a denassê, possivelmente porque ela cometera atos indignos de sua posição, e que se sentia constrangida pela sua morte. Contudo, Ben Zeloar pressentia qual era a verdade.

E, ao longo do funeral, os dois mal se falaram, mas quando Masdmastzas passou por ele, o pouco que ela disse foi o suficiente:

-Sabes que, após o Concílio, serás declarado traidor e serás amarrado na torre mais alta, onde teu corpo apodrescerá, até que seja levado pelos ventos!

O conselheiro nada respondeu, limitando-se a inclinar a cabeça, em pretenço sinal de respeito a uma rainha, até que ela prosseguiu o seu caminho. Mas o mais difícil agora seria convencer o príncipe sardano a aceitar a coroa de Kalina.

-O que estás a me dizer? – indagou o príncipe, atônito, horas depois, na casa sardana.

-Olhai com os vossos próprios olhos – respondeu Ben Zeloar, estendendo-lhe o pedaço de papel.

-Mas isso é somente um pedaço de papel com algumas palavras rabiscadas!

-Trata-se de um documento legítimo assinado por uma denassê – insistiu o conselheiro.

-Não sou a reencarnação de Athlon, isso é ridículo! – declarou o príncipe.

O brehellai balançou a cabeça, já impaciente. Já estavam ali há quase uma hora. Mas, junto aos dois estava também Sinésius, um velho conhecido de Ben Zeloar.

-Dize-me, Sinésius – indagou este, - quais seriam as características de um elfo que fosse a reencarnação de Athlon?

Peculiarmente, Sinésius acompanhava a discussão dos demais com um sorriso nos lábios e ele pareceu bastante a vontade para responder à pergunta:

-Bem... coragem, piedade, força, compreensão... exatamente as características do herdeiro de Sardannah!

-Isso já me basta! – declarou o conselheiro.

-Esperai aí – disse o príncipe. – E se eu não quiser assumir a coroa?

Ben Zeloar, então, se aproximou de Sânamas e, mirando profundamente os seus olhos, disse:

-Bem, então... o que mais nos resta? O reino será dominado pelos tuellais, pelos ventos negros e as trevas se abaterão sobre todos os elfos!

É claro que Sânamas ficou abalado com aquela resposta e nada disse. Então, o conselheiro acrescentou algo mais:

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-A decisão é vossa, majestade... – e saiu.

Em 4 de dezembro, pela primeira vez depois do estado de coma, Nestzas abriu os olhos. Naturalmente, a primeira pessoa que viu foi a princesa feiticeira Moronnah. Ela parecia compenetrada, distante e nada feliz. Nestzas já havia sentido a sua presença por dias, como uma sombra que lhe acompanhava em sonhos. Não tinha muita certeza acerca de onde a sua consciência estivera. Talvez vagando pelo mundo dos mortos. Mas agora... agora é que de fato recobrara a consciência e podia dizer que estava desperta. Mas não se deteve muito no exame de sua salvadora, tinha algo mais urgente a fazer. Reunindo as forças de que dispunha, tentou mexer os dedos. A princípio, seu braço parecia dormente, mas, aos poucos, os dedos se mexeram e a amazana percebeu que o seu braço estava inteiro e operante. Assim, suspirou aliviada. Moronnah, então, percebeu que ela estava desperta e se aproximou do leito.

-Obrigada! – sussurrou, humildemente, a heroína amazana.

-Não me agradece – disse a feiticeira, com uma voz isenta de sentimento. – No futuro, odiarás ter sido curada.

É claro que Nestzas não compreendeu aquela fala. Tentou refletir para verificar se não estava sonhando, se não estava ainda vagando no limbo, entre o denso mundo dos vivos e o plano astral dos mortos. Mas se sentia lúcida.

-Como? – indagou.

Moronnah trabalhava separando frascos e misturando poções. E, sem olhar para a elfa dortas, respondeu, sob uma fisionomia misteriosa e gélida:

-Foste curada contra todas as expectativas. Os deuses claros teceram teu futuro como uma aleijada. Foste curada pelo Skiron, então, vossa alma foi sacrificada. A partir de agora, não serás mais dona de teu próprio corpo. Pelo menos não totalmente. Como fui eu quem te curou, quando eu quiser, teu corpo obedecerá a minha mente e não a tua. Farás coisas que não quererás fazer, pois o teu corpo será fiel ao meu pensamento, não importa a que distância estivermos.

Disse isso e se foi, abandonando a guerreira amazana sozinha no quarto escuro e úmido, situado nos porões da Torre dos Ventos. Nestzas tentou se levantar, mais ainda estava muito fraca para isso. Então, analizou as palavras da feiticeira. Ela estaria de fato dizendo a verdade? Não era muito crível que perderia o comando do próprio corpo, mas... aquela parecia ser uma poderosa feiticeira dos ventos. Mas havia algo errado com ela, algo que Nestzas não podia vislumbrar totalmente. Uma espécie de tristeza, algo beirando a solidão.

O dia do Concílio começou agitado. Uma série de reuniões políticas foram realizadas tanto pela rainha como pelo presidente do conselho. Logo após Masdmastzas declarar-se rainha de Kalina, ela nomeou Vinedion como rei de Eralda, ou seja, de Karnevion, garantindo assim, dois votos no Concílio. Ben Zeloar esperava que o rei dos sassiminaras comparecesse ao

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conselho, mas o que veio foi apenas uma carta, chegada no dia anterior, nomeando o velho Muruvios como o representante dos sacis no Concílio. Mais uma vez ele considerou muito estranho e, pela primeira vez, sentiu que os caminhos entre Karnevion Ocidental e Oriental estavam bloqueados de alguma forma. Mas ele sabia que podia contar com o voto de Muruvios e, é claro, Sânamas, isto é, se ele se convencesse a assumir o trono. Assim, dentre os cinco membros do Concílio, quem teria o voto de minerva seria Armond, e foi por isso que Ben Zeloar o convocou a uma reunião logo após o amanhecer. E não foi nada fácil convencê-lo.

-O quê? – protestou ele. – Votar em Sânamas? Mas prometi meu voto à rainha!

O conselheiro lhe estendeu o papel assinado por Sharraith. Ele o examinou espantado e depois concluiu:

-Isso é ridículo! Masdmastzas é a legítima governante e... reencarnação de Athlon? Como isso é possível?

Ben Zeloar, então, explicou toda a situação. Disse que acreditava que toda a família de Masdmastzas era composta por tuellais e que o teste provara que Goldorius era um.

-Mas, se eu faltar com a minha palavra... o que será do nome de minha família?

Sânamas e Sinésius também estavam presentes. O príncipe ainda não havia dito que aceitaria a coroa, mas, mesmo assim, Ben Zeloar estava agindo como se ele o tivesse feito.

Mas a situação parecia desesperançosa. O voto de Armond seria em favor de Masdmastzas, o que daria a vitória a ela e o conselheiro estava disposto a impedir isso a qualquer custo. E, de fato, ele ainda tinha uma carta na manga.

-Sei porque estás aqui, rei Armond – disse ele, num tom misterioso.

-O que quer dizer com isso?

-Sua família inteira foi trucidada, com excessão do príncipe Eloar. Ele se tornou um aleijado entrevado na cama, mas ainda tendes alguma esperança de que vossa dinastia possa sobreviver através dele...

Enquanto falava olhava para o rei. Como ele empalidescia, constatou que estava atingindo em cheio o alvo.

-Vieste aqui em busca de uma esposa digna de vosso filho – continuou, calmamente.

Armond demorou a responder. Parecia imaginar onde o conselheiro pretendia chegar. Mas, finalmente, confirmou:

-Sim. É isso. E daí?

Então, Ben Zeloar olhou firmemente para Sânamas e concluiu:

-O príncipe Sânamas possui uma irmã em idade de ingewê...

-Ismidi? – indagou Sânamas, atônito. – Não, Ben, isso não!

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-Se não o fizermos estaremos desgraçando toda a nação élfica, Sânamas! – gritou energicamente o conselheiro.

-Não, Ismidi não... – balbuciou Sânamas, olhando para o chão, quase falando somente para si mesmo.

Já Sinésius se acercou do príncipe e tentou consolá-lo:

-É necessário, Sânamas. E depois, ela também compreenderá... isto é, no seu devido tempo. Ela está crescendo...

-Se Ismidi for prometida para vosso filho – indagou Ben Zeloar, - aceitaríeis votar em Sânamas?

Armond pensou novamente. Depois de quase um minuto, andando de um lado para o outro, respondeu:

-Prometo pensar... Prometo decidir, da melhor maneira que o bom senso o permitir, se me preservo como perjuro ou garanto a sobrevivência de minha dinastia!

Ben Zeloar percebeu que estava prendendo a respiração por um longo tempo. Depois da fala do rei, ele se permitiu respirar. Ainda havia alguma esperança. Mas houve uma condição imposta por Sânamas:

-Mas não será Ismidi a prometida, e sim Kânoras! – declarou o príncipe.

-Kânoras é a fase notus da princesa? – indagou o rei de Amazannah.

-Sim – respondeu Sinésius, também ancioso por dar um fim àquele episódio.

-Bem – disse o rei, - considerando que ela está no ingewê, seria aceitável espera-la se fixar na fase notus, mas vou pensar!

Ben Zeloar olhou para o príncipe sardano e verificou que ele não estava nada contente. Ele olhava para o chão com um misto de revolta e preocupação e o conselheiro ficou imaginando que dificuldades ele teria em convencer a irmã a desposar o príncipe aleijado. Mas aquela fisionomia do príncipe... bem como o seu corpo robusto... Ben Zeloar teve uma forte sensação de estar frente a frente com o próprio Athlon.

Logo após o meio dia, aconteceu o Concílio, no mesmo anfiteatro em que ocorrera a reunião do conselho. Todos os cinco membros já haviam ocupado os seus assentos em torno de uma mesa de madeira redonda. Ben Zeloar notou que, enquanto Muruvius parecia totalmente tranquilo e à vontade, fumando o seu caximbo, Sânamas parecia incomodado naquela cadeira e o conselheiro notou que ele não fora feito para ficar sentado. Então, Ben Zeloar, de certa forma, sorriu por dentro, pois sabia que Athlon raramente se sentara no próprio trono.

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-Como o teste não aprovou o príncipe Goldorius como sucessor da coroa de Kalina, este concílio foi convocado para decidir sobre o futuro da nação élfica, conforme está previsto na lei – declarou Ben Zeloar, dando início à sessão. – Após esse evento, a senhora Masdmastzas declarou-se rainha de Kalina. Então, este concílio deve deliberar sobre isso. Contudo, um fato novo e importante se colocou.

O conselheiro, que, na verdade, embora precidisse também o concílio, não tinha poder de voto, então mostrou o documento de Sharraith ao público e anunciou:

-Este é um documento legítimo da senhora Sharraith Decrux declarando que o príncipe Sânamas é verdadeiramente a reencarnação de Athlon, o maior rei dos elfos!

Um murmúrio se levantou entre a multidão. Ben Zeloar olhou para Masdmastzas e observou o ódio em sua face.

-Portanto – continuou o conselheiro, em voz alta, para se sobrepor às vozes da multidão – o Concílio deve decidir entre o príncipe Sânamas e a senhora Masdmastzas!

Agora o conselheiro observou o príncipe sardano. Ele ficou em silêncio, não protestou contra o anúncio. Aquilo foi um alívio pois indicava que ele havia aceito sua condição de reclamante da coroa. A consersa que tivera a sós com Sinésius por certo tivera resultado.

-Devo considerar, em primeiro lugar, que ambos os reclamantes irão votar em si mesmos, assim, em princípio, teríamos um voto para cada lado.

Agora, notou que eles trocaram um olhar. Masdmastzas o fuzilava com os olhos, enquanto que Sânamas estreitava os olhos e não se mostrava intimidado.

-Agora, passo a palavra ao representante sassiminara, solicitando-lhe o voto.

A multidão, agora em silêncio, observou o velho saci dar uma longa baforada no seu caximbo, olhando para o teto. Depois, bem lentamente, declarou:

-Se o minino é a rincarnação do Athlon, eu voto nele, uai!

Ben Zeloar quase não pode esconder o sorriso. Então, logo passou a palavra a Vinedion. Este, com a frieza que lhe era peculiar, disse, sem pressa:

-Não acredito que o príncipe sardano seja a reencarnação de Athlon. Não há provas disso. A rainha Masdmastzas é a legítima proprietária da coroa de Kalina!

Bem, como o conselheiro brehellai previa, foram dois votos contra dois e, consequentemente, caberia de fato a Armond dar o voto de minerva. Ben Zeloar olhou para ele. Ele parecia seguro e o conselheiro notou que já havia tomado a sua decisão.

-Vosso voto, majestade – solicitou.

Armond se levantou lentamente e o brehellai notou o enorme esforço que teve que fazer nesse simples ato, pois ele parecia ter, sobre os ombros, o peso de toda uma nação.

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-Considero a rainha Masdmastzas a verdadeira detentora dos direitos de Kalina –declarou o rei amazano, lentamente.

Nesse instante, o publico voltou a se manifestar, com ovações e protestos por parte de simpatizantes dos dois lados. Masdmastzas sorriu discretamente, enquanto que Ben Zeloar sentiu o peito lhe apertar.

-Contudo... – prosseguiu o rei – ...o fato de que o príncipe Sânamas é a reencarnação de Athlon precede sobre todos os direitos. Voto em Sânamas!

Apupos e vais se inverteram, enquanto que a rainha se viu com as mãos trêmulas e a face fortemente esverdeada. Não contendo a ira, ela se levantou e bradou:

-Vós sois todos traidores e pagareis por isso!

Mas Ben Zeloar não se deixaria intimidar por aquela fala.

-Protestar contra a decisão do Concílio é que pode ser considerado traição!

-Pois sabeis – continuou Masdmastzas, altiva – que um grande exército comandado pelo meu neto se aproxima de Lothar Eralda, um exército impossível de ser vencido. Bhorgerius colocará todos os traidores no seu devido lugar e assumirá a coroa de Kalina!

-Declarar apoio a um elfo que é reconhecidamente um tuellai é ato de traição! –declarou o conselheiro. – Guardas!

Logo, um grupo de seis lanceiros com armaduras de prata ornada se apresentaram e cercaram a rainha.

-Estareis confinada em vossos aposentos até terdes um julgamento justo! – disse em seguida.

Mas a rainha não resistiu. Poderia ter dizimado os lanceiros, mas saiu do recinto acompanhada por eles, mantendo o ar majestoso.

Assim, Sânamas tornou-se o décimo segundo rei dos elfos3, desde que a coroa de Kalina foi confeccionada pelas feiticeiras maras quando a cidade de Kalina Lothar nem mesmo existia, no início da Era dos Elfos, há cerca de três mil anos atrás.

#######

Nas semanas que se seguiram, Sânamas preparou as defesas da cidade. Os ferreiros, nas forjas, trabalharam dia e noite. Além disso, o rei ordenou que todo o alimento disponível em Karnevion fosse trazido para a capital. Também mandou construir um grande número de carroças, e abarrotou-as de provisões. Organizou centros médicos de emergência e multiplicou

3 A lista dos reis élficos de Kalina é: Kaellar I (17-693 EE); Kaellar II (693-815 EE); Athlon (815 EE – 0 ES); Scilion (0-14 ES); Easárius (14-99 ES); Ithrannah (99-707 ES); Bhorgus (707-116 EGRR); Albion (116-457 EGRR); Eiliannah (457-712 EGRR); Masmarath (712-933 EGRR); Godofredo (993-1075 EGRR); Sânamas (1076 EGRR – 94 ERM). As siglas significam: EE – Era dos Elfos; ES – Era das Salamandras; EGRR – Era dos Grandes Reis e Rainhas; ERM – Era dos Reis Magos.

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as catapultas nas regiões das muralhas. Adicionalmente, aumentou o número de batedores e vigias distantes, para acompanhar o movimento do inimigo. Assim, a população de Lothar Eralda passou o final do ano sob tensão, e viu o surgir de 1076 EGRR. Mas, no dia 16 de janeiro, o exército tuellai finalmente chegou às imediações da cidade, após longo percurso, atravessando o portão central da Grande Muralha. Durante o trajeto, Bhorgerius foi apenas vigiado de longe pelos gigantes, afinal se tratavam de elfos e o rei Herminiar não queria provocar uma guerra com tais elementais.

Os tuellais, nos dias que se seguiram, trataram de cercar a cidade, espalhando-se pela floresta e, no dia 18, as primeiras flechas foram disparadas. Como era tradição entre os elfos, os dois lados começaram a se insultar, na região próxima ao portão leste da cidade. Alguns apeliotes lançaram as suas flechas contra a guarda da muralha e essa respondeu. Contudo, ainda estavam muito longe uns dos outros para que houvesse algum tiro certeiro.

Mas foi o suficiente para o rei convocar uma reunião com os principais líderes presentes na cidade e, ao final desta, quando Vandhoras estava saindo, ao passar ao lado de Sânamas, este o segurou firmemente pelo tecido da camisa e disse:

-Dá-me tempo!

Vandhoras compreendeu que os preparativos das defesas da cidade ainda não estavam prontos e concordou com um aceno de cabeça. Então o rei o soltou, dando-lhe um tapa no ombro, mas revelando uma fisionomia preocupada.

Depois disso, Vandhoras chegou à muralha bem no instante em que os insultos lado a lado atingiram um máximo, com alaridos, apupos e chingamentos quase ensurdecedores. Ele se colocou ao lado de Cornélius e Lêmenos e observou o movimento inimigo. Cornélius estufava o arco, observando algo à frente. Então Vandhoras viu que alguns tuellais ousavam dar alguns passos para fora da floresta, atingindo a clareira que antecedia o portão da muralha. Cornélius disparou a flecha, que veio a se encravar no chão, no meio das pernas de um apeliotes, que recuou. Em seguida, Vandhoras ouviu:

-Droga! – praguejou Cornélius.

-Era pra acertar aonde? – indagou Lêmenos, achando o tiro perfeito.

-No pé! Entre os dedos! – exclamou Cornélius, parecendo irado.

Em seguida, apontou para um brehellai que gritava a plenos pulmões:

-Seus maricas e covardes! Descei dessa muralha e vinde brigar como elfos!

Ajeitou o arco na vertical e depois na horizontal, procurando a melhor posição. Atirou uma vez e errou.

-Droga!

Por mais que se esforçasse, por mais que orasse e se concentrasse, os ventos não lhe eram favoráveis. Nunca sentira o ar ser-lhe tão desfavorável assim. Atirou novamente e novamente errou:

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-Droga! Droga!

Lêmenos e Vandhoras trocaram um olhar. O elfo arqueiro realmente estava irritado.

Finalmente ajeitou novamente o arco e firmou os pés novamente no chão. Iria atirar ao estilo tamastha e assim o fez. A flecha cravou-se vem no meio da testa do brehellai, fazendo-o calar para sempre.

-Droga! Era para vazar-lhe a orelha!

Mas uma outra flecha veio em resposta. Cornélius observou a longa curva que fazia, tomando a trajetória de sua direção. Estudou o seu movimento, e desviou-se na última hora, ao ponto de sentir o deslocamento de ar que ela provocava, ao passar a poucos milímetros de sua face.

Então, ficou preocupado. Os ventos favoreciam o inimigo, claramente. Foi acometido, então, pela sensação de que não poderiam vencer aquele exército.

Mas não pôde permanecer muito tempo com aqueles pensamentos. Logo, um estranho objeto saiu de dentro da borda da floresta: um enorme aríete de ferro, armado sobre um carro de madeira. Vinha puxado por quatro trolls verdes que usavam armadura, contra as quais as flechas pouco valiam. Estava claro que o portão não resistiria muito tempo o assédio daquela máquina e tão pouco daria tempo de incinera-la com flechas incendiárias, pois os trolls se moviam rápido, atravessando o espaço de 100 metros que os separavam do portão.

Foi quando Vandhoras teve uma idéia. Ele pulou sobre a amurada e berrou a plenos pulmões:

-Covardes, na verdade, são os tuellais!

E, andando sobre a amurada, como num desafio, continuou:

-Enfrentarei o vosso maior campeão, em troca de um dia de trégua!

Fez-se silêncio.

Ambos os lados aguardaram um movimento. Até mesmo os trolls pararam, depois que ouviram um assobio produzido por um apito.

O silêncio se prolongou por vastos trinta segundos. Mas, depois desse período, um kaikias furioso saiu da floresta, berrando:

-Quem ousou me desafiar?

Vandhoras apanhou uma corda e, através dela, deixou-se deslizar muralha abaixo, atingindo o chão em dois segundos. Cornélius teve o instinto de impedi-lo, mas Lêmenos procurou tranquiliza-lo:

-Não te preocupes.

-Mas aquele kaikias vai trucidá-lo! – protestou Cornélius.

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-Acredita-me, aquele é Vandhoras, o maior herói sardano. O kaikias não tem chance!

Vandhoras caminhou a passos firmes na direção do tuellai. Este, um ser élfico deformado e fornido, com cerca de dois metros e meio de altura e o dobro do peso do oponente, com placas de couro que lhe eram naturais cobrindo o corpo, por baixo de um traje de tecido fino, manipulava no ar, ameaçadoramente, uma grande espada. Já Vandhoras retirou as suas cimitarras que se encontravam cruzadas às costas e se deteve a alguns passos do kaikias, ao ponto de insultá-lo um pouco mais.

-Queres desistir? Ainda há tempo!

Várias flechas já haviam atingido o aríete, que começou arder em chamas. Mas poucos se importaram com aquilo, mais interessados na luta. Mas, quando Vandhoras pronunciou aquela frase provocativa, o kaikias não esperou mais e ergueu a sua espada sobre a cabeça e, com toda a força, a arremeteu, de cima para baixo, contra o elfo notus. Queria fender o sardano ao meio. Contudo, o tuellai era lento demais e este pôde se desviar elegantemente, dando um passo para o lado.

-Eu acho que conheço aquele kaikias – balbuciou Cornélius, em cima da muralha.

-Tens certeza?

-Sim. É um membro de uma famosa família de kaikias. São quatro primos se não me engano: os Gorgonai.

Mas, no campo, Vandhoras havia aplicado um golpe que fez com que uma das cimitarras cortasse um pedaço de uma das orelhas do Golgonai. Esse respondeu brutalmente, desferindo vários golpes com a espada. Nos mais vigorosos, Vandhoras se desviou novamente e, nos menos, interpôs as suas cimitarras, impedindo com que os golpes lhe atingissem.

-Estás deixando em descoberto as áreas sensíveis de teu pescoço – advertiu Vandhoras. – Se quisesse, já poderia ter te matado!

O notus sursardawê disse aquilo não propriamente para caçoar do adversário. Foi, de certa forma, sincero, e não queria humilhar um outro elfo – tuellai ou não – de uma forma muito vergonhosa. Mas, é claro, o kaikias ficou ainda mais irritado e passou a atacar como um louco e de forma displicente.

-Se Vandhoras matá-lo – continuou Cornélius, - os primos vão buscar vingança!

Mas o kaikias disparou sobre Vandhoras tudo o que tinha. Aplicou uma sequência de golpes praticamente se jogando em cima do notus. Ora, Vandhoras era o maior herói sursardawê e tinha duas cimitarras, assim, os golpes pouco efeito tiveram. O notus se defendeu de todas e, no final, o kaikias caiu no chão, devido ao próprio peso. E, mais uma vez, Vandhoras estava de pé, ao seu lado, evitando desferir um golpe fatal, mas dizendo:

-Teu flanco direito ficou desguarnecido. Sabes que poderia enfiar a lâmina ali, entre tuas placas protetoras!

O kaikias se levantou e berrou:

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-Eu vou te matar!

E agora, disposto a liquidar o oponente, o tuellai pulou para cair sobre o sursardawê, com a lâmina da espada voltada para baixo. Mas Vandhoras já havia lidado com aquele golpe várias vezes na vida e, como já tinha avisado duas vezes, estava na hora de por fim à contenda.Assim, simplesmente, deu apenas um passo para trás, o suficiente para a espada do inimigo se fincar no chão. Depois disso, o tuellai tentou retirá-la de lá. Tentou uma vez, duas... mas não conseguiu. Então, olhou para Vandhoras com cara de bobo. Este apenas deu de ombros e, logo em seguida, desferiu um chute no queixo do kaikias, que caiu para trás, com as pernas para o alto, abandonando a espada fincada no chão.

-Não devias ter usado tanta força! – comentou Vandhoras, segurando no cabo da espada do inimigo.

Depois disso, passou a vibrá-la, até que saísse do chão, ao som do regozijo dos elfos eraldos. Mas, nisso, o kaikias já se levantava e sua fisionomia estava desorientada, sentindo que estava desarmado. Mas o sardano, mais uma vez, foi elegante e jogou a espada para o inimigo. Esse, por alguns instantes, se mostrou surpreso, mas depois, atacou mais uma vez com toda a raiva. Contudo, Vandhoras já lhe avisara duas vezes e, então, ao se desviar agilmente da espada que fora projetada a frente na horizontal, enterrou uma das cimitarras no pescoço do inimigo. Este, então, caiu novamente para trás, lentamente, mas para nunca mais se levantar.

Os eraldos foram ao delírio, enquanto que os tuellais se calaram. Vandhoras guardou a cimitarra restante e se virou, erguendo os braços em saudação aos companheiros. Sua comemoração era mais por ter ganho um dia de trégua, seguindo o pedido do rei, do que propriamente por ter vencido um campeão inimigo. Mas, quando já estava para retornar à muralha, ouviu Lêmenos gritar a plenos pulmões:

-Cuidado! Atrás de ti!

Vandhoras se virou e o que viu o gelou da cabeça aos pés. Gelou, pois não tinha diante de si outro kaikias ou algo ainda maior como um troll a lhe desafiar. Não, muito pelo contrário, era algo de aparência frágil, mas muito, muito aterrador: um esqueleto, portando elmo, uma espada leve e escudo, um esqueleto animado e com cara de poucos amigos. Aproximava-se do elfo rapidamente, girando agilmente a espada.

Vandhoras ficou por aguns instantes atônito, mas apanhou a cimitarra que lhe restava e, após dar alguns passos para trás, firmou posição para se defender. Olhou atentamente para o opositor e balbuciou:

-Como se luta contra essa coisa?

O esqueleto atacou e as lâminas se encontraram. Ele era forte, ao contrário do que aparentava. E era ágil também, pois desferiu uma série de golpes muito rápidos. Vandhoras teve que usar tudo o que tinha para se defender. Não havia tempo de se desviar, a única chance que tinha era a lâmina de sua arma.

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Assim, seguiu-se uma sequência de dezenas de golpes, tão rápidos como jamais foi visto em toda a história das guerras élficas. Faíscas saíam do metal das espadas e o seu movimento mal podia ser acompanhado pelos olhos, enquanto que os oponentes dançavam, levantando poeira da terra.

Vandhoras sabia que não poderia sustentar aquela posição por muito tempo. Estava ficando cansado, enquanto que o esqueleto parecia animado por mil anjos. Assim, pensou. Não havia expressão naquela face de crânio, apenas uma impressão de escárnio e deboche. Não havia medo, não havia dúvidas. Que chances teria?

Então, pensou numa solução. O esqueleto parecia mais leve que ele. Teria que derrubá-lo, para alterar as regras do jogo. Contudo, para poder fazer isso, teria que parar a lâmina do inimigo. Mas lembrou-se do turmaur4, o movimento clássico ensinado pelos espadachins tesalianos, os maiores guerreiros de espada da Micropella. Assim, tentou um movimento ensaiado: No instante em que o esqueleto lhe deferia um golpe de cima para baixo, inclinou-se um pouco para trás, para ser atingido com menor força, então, interpôs a lâmina da sua espada. Ambas as lâminas se encontraram, sem que ricocheteassem. Então, Vandhoras usou toda a força que ainda lhe restava e forçou a espada do oponente para trás e para o alto. O esqueleto caiu na armadilha e não tentou retirar a sua, forçando-a para a frente. Então, Vandhoras fez o que havia planejado: deu uma ombrada na caixa toráxica do esqueleto, fazendo-o cair para trás, jogando-se em cima dele.

O que aconteceu em seguida foi totalmente inesperado.

Vandhoras jamais poderia compreender o que sentiu: um ardor dilacerante percorreu todo o interior do seu corpo, tal qual finíssimas hastes de metal a lhe percorrer os vasos sanguíneos. Passou a tremer, se contorcer, acabando por rolar de cima do esqueleto e cair de costas no chão duro. De seu corpo saía uma fumaça esbranquiçada e um leve odor de pele queimada. Ainda tremendo – de forma a sua nuca bater violentamente contra o chão –passou a babar. Os olhos estavam fora de órbita e as idéias confusas. Ele não o sabia, mas havia sido eletrocutado.

O esqueleto, por sua vez, ficou inanimado no chão e parcialmente desconjuntado. Já Lêmenos, vendo que o seu companheiro não poderia se levantar por si mesmo, pulou para fora da muralha, descendo pela mesma corda que Vandhoras havia usado anteriormente. Cornélius o acompanhou de forma de, em poucos instantes, eles estavam carregando o herói sardano de volta à cidade.

E, enquanto tudo isso acontecia, os tuellais gritavam em júbilo, acreditando que Vandhoras havia morrido. Lêmenos, não aguentando aquilo, enquanto carregava o companheiro, gritou:

-Covardes! Traidores! Ele havia ganho o desafio contra o kaikias!

4 Movimento em que o combatente obriga o oponente a levantar a sua espada, comprimindo-a com a sua.

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Mas os tuellais souberam respeitar a trégua de um dia, afinal, Bhorgerius não queria ser conhecido como um covarde.

#######

Assim, Lothar Eralda ganhou um dia de trégua. Por volta do crepúsculo, o rei Sânamas foi visitar o amigo Vandhoras. Este tomava um chá, sentado numa poltrona e enrolado sob cobertas, mas já estava recuperado.

-O que foi aquilo, Vandhoras? – indagou o rei.

-Não tenho a mínima idéia. Nunca vi aquilo na vida.

-Era forte?

-Tinha a mesma força que um elfo nornal... ou talvez menos, mas era muito ágil. Rápido nos golpes. Contudo... um tanto previsível. Mas há uma coisa que precisas saber: ele não se cansava. Acho que poderia ficar dias lutando, sempre com o mesmo vigor.

O rei ficou preocupado e pensativo. O inimigo possuía armas e recursos desconhecidos e ele mal havia se revelado. Então Sânamas imaginou se o esqueleto não seria animado pela ação dos ventos negros, os quais Bhorgerius conjuraria.

Mas, no dia seguinte, logo de manhã, o inimigo se insinuou novamente. Mal o Sol raiara e outro aríete se sobressaiu para fora da floresta. Vinha empurrado por quatro trolls verdes usando armadura e, diferentemente do anterior, era inteiramente feito de ferro.

Logo, as trombetas das torres de vigia soaram e várias vozes gritaram:

-Ariete! Ariete!

Vandhoras e Lêmenos se apressaram em subir para a muralha e avistaram o aparelho de cerco. Cornélius, que já estava lá, observava uma insígnia em sua lateral: o par de asas de anjo, indicando que fora construído em Barad-dhur.

-Maldito Belial! – exclamou o elfo arqueiro.

-É totalmente feito de ferro! – comentou Lêmenos. – Não podemos incendiá-lo!

Mesmo assim, algum comandante ordenou que os arqueiros atirassem e, logo uma chuva de flechas caiu sobre os trolls e o aríete. Como se fosse um denso enxame de insetos, as flechas passaram a se chocar contra as armaduras e superfície da máquina de guerra, contudo, no máximo, as riscavam. Mesmo a famosa flecha com ponta de broca de diamante de Cornélius foi quase imperceptível ao se chocar contra a lateral do elmo de um troll.

O aríete continuou a ser empurrado, sem perda de velocidade, apesar do impacto e do quase insuportável barulho de dezenas de flechas por segundo atingindo superfícies metálicas.

Mas o dia ainda não estava perdido, pois, sobre a muralha leste da cidade, estava, naquela manhã, a dortas Nestzas. Seu braço já estava curado novamente, embora ela

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desconfiasse que ele jamais seria o mesmo. E mesmo depois que chegara a Lothar Heralda, sofrera terrivelmente com o tratamento, a base de remédios ardentes e vermes famintos. Por dias delirara e sua mente percorrera caminhos que preferia esquecer. Mas agora, ali, diante do aríete que se aproximava, tudo o que podia pensar era que já perdera a conta de quantas vezes já havia lutado contra trolls do pântano no passado e ela sabia que, melhor do que espadas, lanças e cimitarras, a melhor arma contra essas criaturas era uma boa e velha corda.

Como havia várias cordas enroladas sobre a muralha, que permitiam o rápido acesso ao lado de fora, ela apanhou uma e desenrolou outra. Assim, facilmente atingiu o lado externo da muralha, levando um bom rolo de corda sobre o ombro esquerdo. Em seguida, correu em direção ao aríete. Os trolls, com as cabeças baixas devido ao esforço, não perceberam a sua aproximação, de forma que, logo, já atingira o seu objetivo.

A plataforma ligada às quatro rodas da máquina ficava a dois metros do chão, mesmo assim, Nestzas a galgou com apenas um pulo. As flechas cessaram, para não atingi-la e ela, então, passou a desenvolar a corda, cortando-a em pedaços. Depois, passou a amarrar alguns pedaços em vários pontos do aríete.

-Quem é aquela dortas? – indagou Lêmenos.

-Conheço-a – comentou Cornélius. – Aquela é Nestzas, a heroína de Amazannah!

Foi somente então que os trolls perceberam a sua presença e pararam. Um deles, o que estava a frente, a esquerda, projetou o braço para apanhá-la. Ela se encontrava no espaço entre e plataforma e o pesado cilindro de ferro fundido que ficava suspenso por múltiplas correntes e foi por ali que o troll enfiou o braço, fungando como um porco. Mas Nestzas sabia que ele faria isso, então, foi só colocar o seu plano em ação. Ela havia feito laços nos extremos das cordas, assim, quando o troll projetou a mão em sua direção, ela se desviou e enfiou o laço em seu pulso, apertando-o. Dessa forma, ele não pode recolher novamente o seu braço, ficando ali amarrado. E, é claro, os trolls verdes não são lá muito inteligentes, sendo capazes de, no máximo, reconhecer até mil palavras, e, ainda, eram incapazes de desfazer um nó. Assim, ele passou a puxar o seu braço repetidas vezes, mas aquela corda era resistente o suficiente para não se romper.

Mas os outros trolls não ficaram parados. Durante todo o tempo, tentarama agarrá-la, mas Nestzas era rápida. E com todos fez a mesma coisa: eles projetavam os braços em sua direção e ela simplesmente fechava os laços em torno dos seus pulsos. Assim, os quatro ficaram presos, de forma previsível e monótona.

Aqueles laços não os impediria de continuar a empurrar a máquina de guerra, mas aqueles eram trolls do pântano e eles jamais se conformariam com aquela situação, pois estavam irados e gostariam imensamente de ver as tripas de Nestzas para fora. Porém, a situação deles não era muito favorável e a heroína sabia que o que havia feito não era o suficiente: quando a raiva passasse, eles voltariam a sua missão original. Assim, teve que provoca-los.

Foi até a parte de trás da plataforma, enquanto que os dois trolls daquele lado estavam concentrados em tentar se libertar e, no meio deles, disse:

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-Bom dia, senhores!

O espanto deles foi tão grande, que ficaram vários segundos a pensar, olhando para ela, com cara de bobos. Mas finalmente um deles tentou agarrá-la novamente, sem sucesso, é claro e o outro, um pouco mais esperto, lembrou-se que levava uma clava pendurada na cintura, uma enorme clava do tamanho de Nestzas e abarrotada de protuberâncias ponteagudas. Pois ele apanhou a clava com a mão que estava livre e a posicionou para acertar a elfa dortas. Mas ela já esperava por aquilo e, pouco antes dele desferir o golpe, ela correu em direção do outro troll. Foi desta maneira que o primeiro deferiu um vigoroso golpe bem na lateral do rosto do companheiro.

O agredido ficou alguns segundos abobado, pois a pancada fora tão forte que lhe arrancou o elmo, mas logo depois ficou furioso e retirou também a sua clava da cintura e uma briga entre eles se instaurou, onde eles se acertavam na metade dos golpes e a outra metade acertava o próprio aríete, que teve várias partes amassadas.

Mas Nestzas não estava satisfeita. Agora ela iria cuidar dos trolls na parte dianteira da máquina. O primeiro troll a ser preso estava desesperado para se soltar. Tentava se empurrar para longe do aríete forçando o seu pé contra a lateral da plataforma, tornando o seu rosto ainda mais verde, devido à enorme pressão sanguínea que irrigava a sua face. Bem, Nestzas se posicionou perto do seu pé e disse:

-Devias lavar isso de vez em quando. Está fedendo!

Bem, aquele era o pé esquerdo dele. Ele devia ser canhoto, pois era a mão esquerda que fora enlaçada. Isso significava que sua mão direita estava do outro lado e ele não podia agarrá-la com essa mão, consequentemente, ele fez o que Nestzas esperava: tentou chutá-la com o pé esquerdo. Mas ela rapidamente enlaçou o seu pé também e ele, então, ficou em situação deplorável. Agora tinha tanto sua mão esquerda presa como também o pé e ele teve que se manter com apenas um dos pés no chão. É claro que ele ficou ainda mais furioso e passou a tentar balançar desesperadamente toda a máquina.

Agora só faltava uma coisa para completar os planos da heroína.

A essa altura, um dos trolls na parte trazeira do aríete já havia matado o outro e ainda tentava se libertar. Desesperado, parrou a agredir violentamente tudo o que havia a sua frente com a sua clava. Despejou a sua raiva contra o próprio aríete, particularmente contra a o cilindro móvel e esse, lentamente, mas com amplitude crescente, passou a oscilar irregularmente.

Mas o objetivo de Mestzas era o outro troll da frente. Ela simplesmente parou a sua frente, olhou em seus olhos e disse:

-Tu és bonito!

Bem, aquilo era impensável para um troll verde do pântano, uma ofensa muito grave, pois eles prezavam a feiura e os mais fedorentos tinham destaque na sua sociedade.

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Previsivelmente, ele ficou ainda mais furioso e tentou agarrar a elfa, mas essa se esquivou para baixo, desceu agilmente a plataforma bem ao lado do troll e se escondeu debaixo do aríete.

Mas aquele troll estava de fato muito bravo, assim, não havendo espaço suficiente para que entrasse debaixo do aríete, tentou erguê-lo usando toda a força que tinha. A máquina de guerra era pesada, mas, devido a uma combinação de efeitos – o troll com o pé amarrado que puxava seu próprio corpo para tentar se afastar da plataforma; o pesado cilindro de ferro que oscilava e o esforço do último troll em tentar erguer a máquina – fez com que o aríete virasse, esmagando o troll que estava com o pé preso.

Mas aconteceu que o terreno tinha uma leve inclinação, pois o aríete tombou para o lado que corria o rio Enuin, o afluente do rio Sanco que banhava as cidades élficas de Silvânia e Lothar Eralda, conforme a heroína amazana planejara. Assim, sendo, como o cilindro ficou por baixo e tinha seção transversal circular, o aríete aracou, em princípio lentamente, a rolar, o que fez com que o último troll fosse puxado para cima, com cara de bobo, pois ele não havia ainda entendido o que havia acontecido. E assim, o aríete rolou a ladeira cada vez mais íngreme, cada vez mais rápido, levando os trolls junto.

Nestzas, que havia ficado deitada no chão, pôde apenas ouvir o som surdo do metal batendo nas pedras e os ossos dos trolls sendo quebrados.

Quando todos na muralha entendenderam que aquele era o fim de mais uma tentativa do exército inimigo, passaram a gritar em júbilo, levantando os braços contra o céu:

-Nestzas! Nestzas! Nestzas!

Os primeiros a gritar foram os elfos dortas amazanos, que conheciam a heroína, mas depois todos os demais se juntaram a esses.

Após o que fizera, a elfa se apressou a voltar a muralha, escalando com facilidade a corda que havia ali deixado. Então, atingiu o topo interno da muralha e procurou caminhar o mais discretamente possível até a próxima escada, já que ela não gostava de homenagens. Mas, no caminho, passou por Cornélius, Vandhoras e Nêmenos e, então, esse lhe disse:

-Belo trabalho, Nestzas!

Mas essa nem se dignou a olhá-lo e, com cara de poucos amigos, respondeu:

-Fui péssima! Braço ruim!

Os elfos sursardawês riram e Vandhoras indagou:

-Ei, Lêmenos, o que achou dela?

-Bem – respondeu o sardano, - séria e antipática como todo dortas, mas graciosa!

Mas a alegria dos defensores da cidade durou pouco. Mal o nome de Nestzas desapareceu das vozes dos elfos, cerca de trezes torres de assalto de madeira, suficientes para transpor a muralha da cidade, apareceram por dentre as últimas árvores da floresta. Os arqueiros prepararam as suas armas, inflamando as pontas das armas. Mas, antes mesmo das

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primeiras flechas serem disparadas, ouviu-se o som nítido e forte de uma trombeta. E aquele não era uma trombeta qualquer, pois todos os elfos conheciam o seu som: era a trombeta de Kalina, feita com um dos cornos de um carneiro sagrado do Vale de Aar – era o sinal de que o rei de Kalina iria se pronunciar. As torres de assalto, instantaneamente, pararam.

Vandhoras imediatamente procurou a presença de Sânamas por todo o pátio interno, e o viu já próximo do portão, transmitindo um recado a um soldado que, rapidamente, subiu sobre a muralha e anunciou ao inimigo, em alto e bom som:

-O rei Sânamas deseja se encontrar com o príncipe Bhorgerius diante do portão da cidade!

Houve um silêncio mortal. Vandhoras desceu da muralha e foi ter com o rei:

-Sânamas – disse ele, - isto é, vossa majestade, irei convosco!

-Não, Vandhoras – respondeu o rei, conhecendo o temperamento do companheiro. –Irei sozinho. Sei o que estou fazendo. Fica aqui. É uma ordem!

Longos minutos se passaram sem que nada se mexesse, sem que nem um som fosse produzido. Nem mesmo o som de pássaros era ouvido. Dir-se-ia que o tempo ficou em suspensão. Mas Sânamas sabia que seria assim. E, então, deu ordens para que o portão fosse aberto e saiu. Saiu sem nenhuma arma, vestido com uma roupa simples. Sua aparência seria a de um sardano comum, não fosse um único detalhe: a coroa de Kalina estava sobre a sua cabeça.

Caminhou, sozinho, por cinquenta metros em direção à floresta, e parou. Esperou pacientemente. E, logo, Bhorgerius em pessoa saiu da floresta, caminhando também, tendo ao lado dois apeliotes fortemente armados. Caminhou decididamente em direção ao rei, apoiando de vez em quando no solo o seu longo e adornado cetro de metal, onde folhas e espinhos estavam esculpidos em alto relevo. O príncipe vestia um longo vestido preto, também todo adornado com fios de prata, mas era extremamente pálido. Os seus cabelos, longos, mas não muito, eram finos e densamente escuros, e teimavam em sempre lhe cair pela testa, tapando parcialmente os olhos. Assim, o príncipe tinha a mania de jogar o rosto para trás, e retirar os cabelos com a mão livre.

Os apeliotes se detiveram a alguma distância de Sânamas e o príncipe parou diante deles. O sardano não foi o primeiro a falar. Com ironia, Bhorgerius fez uma mesura diante do rei de Kalina, inclinando-se, fechando os olhos e dizendo:

-Que os ventos saúdem o poderoso rei de Kalina!

-Tenho uma proposta a fazer – respondeu Sânamas, num tom frio.

Passou a observar atentamente o príncipe. Viu como ele não podia evitar de olhar insistentemente para a coroa.

-Uma proposta – repetiu Bhorgerius. – Que curioso!

Então, lentamente, o rei tirou a coroa da própria cabeça e a estendeu ao inimigo.

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-Quereis a coroa, não é?

Observou atentamente a reação do príncipe. O seu pai lhe ensinara a identificar quando alguém deseja muito alguma coisa, principalmente quando se trata de ganância e desejo de poder. Os olhos do tuellai brilharam e Sânamas percebeu um leve tremor – algo característico de alguém que deseja ardentemente um mero objeto. É claro que a coroa era atraente, pois era feita da mais pura prata adornada e tinha várias pedras de esperalda encravadas. Mas Sânamas era um guerreiro sursardawê, rústico o bastante para não se importar com meros objetos.

-Pois é vossa! – completou.

Bhorgerius ficou desconcertado, embora procurou esconder isso. Já ia estender a mão para agarrar avidamente a coroa, mas Sânamas a recolheu, dizendo:

-Mas tenho uma condição: podereis tomar essa coroa e reinar em Lothar Eralda sobre todos os elfos sem nenhuma resistência. Mas me concedei três dias para tirar minhas forças da cidade, e de Karnevion também, bem como todos os cidadãos que quiserem ir comigo!

E, do alto da muralha, quase não acreditando no que via, Cornélius murmurou:

-Ele está se rendendo!

-Não é possível! – exclamou Lêmenos.

-Mas por que me daríeis tudo de mão beijada? – indagou o príncipe, desconfiado.

-Não quero que o solo de Karnevion seja manchado de verde! – respondeu o rei, firmemente.

Bhorgerius pensou por alguns instantes. Na verdade, o que Sânamas lhe oferecia era o melhor que podia esperar do desfecho do episódio. Aceitando a rendição, além de conquistar a coroa de Kalina, conservaria o seu exército e ele sabia que precisaria contar com todas as forças que dispunha se quisesse também conquistar Karnevion Ocidental e o Vale de Aar, pois, embora os ventos tivessem mantido as valquírias longe, ainda teria que derrota-las, o que não era uma tarefa fácil. Por fim, suspirou alardeantemente e, retirando os cabelos dos olhos, enfim disse:

-Aceito vossa oferta. Tereis os vossos três dias.

E arrancou a coroa da mão do rei.

Agora, diante de tantos elfos, Sânamas não era mais o rei de Kalina. Ele, então, deu meia volta e ficou a imaginar quem ele seria agora, o quão distante estava do seu objetivo inicial e, de fato, quem o seguiria para fora de Karnevion.

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No resto do dia e no dia seguinte, os elfos eraldos prepararam para partir. Embora Sânamas houvesse perdido a coroa, a grande maioria da população resolveu segui-lo,mantendo-se fiel a sua liderança, na procura de um novo lar, pois todos eles se convenceram que o exército de Bhorgerius era invencível e não queriam viver sob a égide de um tuellai.

E foi no dia segunte à da redenção que Ismidi soube que fora prometida ao príncipe amazano. Sinésius fora encarregado de lhe reportar o fato e, como era de esperado, ela ficou revoltada, ao ponto de deixar o ancião sardano falando sozinho e sair correndo. Vandhoras estava na sala de entrada da casa sardana, quando Ismidi passou furiosa por ele. Ele, então, decidiu ir atrás dela e conseguiu lhe agarrar pelo braço, no pátio, antes que ela saísse voando.

-Me larga, seu animal! – gritou ela, tão selvagem quanto um gamelotrur.

-Ouve-me, Ismidi! – disse, firmemente, o guerreiro sursardawê. – Sânamas teve que fazer aquilo, estás me ouvindo?

-Aquele desgraçado do meu irmão! Ele não tinha o direito!

-Ouve o que tenho a te dizer – disse Vandhoras, com uma voz baixa, olhando para todas as direções, como se fosse dizer algo que ninguém poderia ouvir.

-Me larga! – gritou ela, tentando, ainda, se libertar.

-Sânamas somente concordou que tu desposasses Eloar após o ingewê, estás me entendendo!

-Jamais serei uma notus! – disse ela, com raiva.

-Ouve, Ismidi, a probabilidade disse acontecer...

-Já aconteceu outras vezes... A filha da rainha de fogo, esqueci-me o nome dela!

-Isso é uma lenda, Ismidi!

-Não é! Sinésius me contava essa história quando eu não passava de uma eureus!

-Ouve, Ismidi – disse Vandhoras, sacudindo-a, como se quisesse que ela caísse na realidade – pode demorar, mas, um dia... um dia serás uma notus. Mas eu vou te ajudar e prometo, prometo, Ismidi, que jamais desposarás o príncipe amazano!

Ismidi, então, espantada, se aquietou, indagando:

-Como assim vais me ajudar? Como?

-Quando chegar a hora... vamos fugir! – disse ele, com os olhos brilhantes pelas lágrimas.

Ismidi desviou o olhar. Estava pensando. Depois disse:

-Mas isso é traição! Sânamas vai ter que te condenar à morte!

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-Não, Ismidi – respondeu o guerreiro, balançando negativamente a cabeça. – Ele jamais vai nos achar!

Ismidi olhou nos seus olhos, desorientada. Depois puxou o braço, repentinamente, e conseguiu se libertar. Deu um passo para trás, como a se afastar de uma coisa funesta. Depois deu as costas a Vandhoras. Depois deu um passo à frente, mas depois se virou novamente e disse:

-Aceito a vossa oferta. Quando chegar a hora, vamos fugir!

E saiu voando, desaparecendo rapidamente nos céus, deixando o conterrâneo ao mesmo tempo pensativo e espantado consigo mesmo, pelo que havia feito.

E, no último dia de trégua, a última caravana partiu de Lothar Eralda, tendo os reis Sânamas e Armond à frente, montados em cavalos. Vandhoras iria participar da equipe de proteção da caravano, acompanhando-a na lateral, a pé. E, quando o rei passou ao seu lado, ele indagou:

-Para onde vamos, meu rei?

Sânamas lhe deu uma resposta curta, forte e significativa:

-Roc-hai!

O elfo ficou espantado. Uma série de sentimentos lhe percorreu o corpo.

-Roc-hai? – balbuciou, quase não acreditando nas palavras do rei.

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