a relaÇÃo de soberania entre a irlanda e o paÍs de gales no segundo ramo do mabinogion
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Monografia de Graduação em HistóriaTRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
BRUNO COSTA OLIVEIRA
A RELAÇÃO DE SOBERANIA ENTRE A IRLANDA E O PAÍS DE GALES NO SEGUNDO RAMO DO MABINOGION:
BRANWEN, FILHA DE LLYR
VITÓRIA 2004
BRUNO COSTA OLIVEIRA
A RELAÇÃO DE SOBERANIA ENTRE A IRLANDA E O PAÍS DE GALES NO SEGUNDO RAMO DO MABINOGION:
BRANWEN, FILHA DE LLYR
Monografia apresentada ao Professor Doutor Ricardo da Costa, do curso de graduação em História, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em História.
VITÓRIA 2004
SUMÁRIO
Apresentação ............................................................................................... 4 Recortes Espacial .............................................................................................. 5 Cronológico ........................................................................................ 7 Temático ............................................................................................. 9 I – A História ............................................................................................... 10 II – A Obra ................................................................................................... 17 III – Branwen, Filha de Llyr ........................................................................ 23 IV – Mitologia .............................................................................................. 31 IV. 1. Mitologia Galesa ...................................................................... 35 IV. 2. Soberania .................................................................................. 37 IV. 3. Força ......................................................................................... 39 IV. 4. Prosperidade ............................................................................. 40 IV. 5. A Deusa Mãe ............................................................................ 41 Conclusão ..................................................................................................... 43 Bibliografia ................................................................................................... 44
LISTA DE MAPAS – Mapa 1 .................................................................... 5 (Internet: www.brathair.cjb.net) Mapa 2 .....................................................................11
(Celtic Art and Culture, página da Internet: http://www.unc.edu/depts/art/verkerk/celtic/celtic/index.html)
Mapa 3 ...................................................................... 13
(Celtic Art and Culture, página da Internet: http://www.unc.edu/depts/art/verkerk/celtic/celtic/index.html)
Apresentação
A proposta deste trabalho monográfico é estudar a matriz cultural
celta contida dentro dos quatro capítulos iniciais do Mabinogion.
Analisaremos mais de perto o segundo texto, de nome Branwen, Filha de
Llyr. Nele identificaremos fatores de proximidade entre Gales e a Irlanda,
bem como vários temas recorrentes da mitologia celta, destacando elementos
de disputa e de manutenção de soberania.
O Mabinogion é um relato galês, composto em uma data imprecisa. Foi
escrito dentre os séculos XI e XIII, mas refere-se a épocas mais antigas, de
crenças ancestrais dos celtas1. Contém relatos sobre assuntos como a invasão
romana e a invasão saxã, ambas na Bretanha, e contém peças do início do
ciclo arturiano.
Para nos guiar por essas terras tão misteriosas, por épocas ainda mais
obscuras, lançaremos as mãos habilidosas dos Senhores Jean Markale e
Mircea Eliade. O primeiro é um renomado estudioso dos temas célticos, com
uma enorme bibliografia sobre diversos assuntos referentes à cultura céltica.
Eliade, por sua vez, é um habilidoso trabalhador de um campo muito delicado,
o mito. Ele é especialista em compreender os sentidos analógicos do mito, e é
conhecedor de mitos das mais diversas origens. As outras bibliografias que
serão utilizadas atuarão mais como referências, a diversos assuntos que
surtirão dúvidas durante o percurso do trabalho. Apoiaremos-nos em
dicionários de mitologia, línguas e História, assim como livros teóricos sobre
1 ZIERER, Adriana. Resenha do Mabinogion. In. Brathair. Home-Page. Endereço: http://www.brathair.cjb.net
mito, cultura e religião. Os compêndios de História não deixarão de ser
consultados em busca de esclarecimento sobre os acontecimentos da época.
Recorte Espacial –
Mapa 1
Expansão Celta nos tempos primordiais
O povo celta ocupou áreas por quase toda a Europa, em um longo
processo migratório que os levou do oriente indo-europeu, seu ponto de
origem, até o extremo ocidente europeu, a Irlanda e a Península Ibérica. Seus
primeiros traços na Europa são encontrados no sítio de Hallstat, situado na
Áustria, e que dá nome a essa civilização da Primeira Idade do Ferro, que
ocupou aquela área por volta de 900 a.C. 2 Entre 900 e 600 a.C., surgiu uma
nova civilização denominada La Tène pela arqueologia, caracterizada pelo
desenvolvimento de técnicas que permitiram a entrada na Segunda Idade do
Ferro. Nessa fase o mundo céltico conheceu sua maior extensão, reprimida
duplamente entre a expansão das tribos Germânicas e a pressão de Roma3.
As suas primeiras migrações dentro da Europa (séculos X-XI a.C.) os
levaram à França, Espanha e Grã-Bretanha.4 Nas ilhas Britânicas,
especialmente no País de Gales, e na Irlanda, podemos identificar a
permanência de traços da cultura céltica presentes até épocas muito recentes,
na forma de lendas épicas e folclore.5
O nosso recorte espacial será situado na Irlanda e no País de Gales.
Estabeleceremos uma ligação étnico-cultural entre essas duas localidades que
são o cenário utilizado na fonte, muito embora o trabalho de resgate cultural
possa ser utilizado em diferentes níveis para referenciar a todo o mundo
céltico.
2 ELUÈRE, Cristianne. La Europa de los Celtas. Barcelona: Ediciones B, 1999. 3 ELIADE, Mircea. História das Crenças e Idéias Religiosas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 4 Id. 5 Ibid.
Recorte Cronológico -
A surpreendente continuidade cultural demonstrada pela
arqueologia permite ao historiador da religião céltica
utilizar fontes tardias, em primeiro lugar os textos
irlandeses redigidos entre o século VIII e o século VI,
bem como as lendas épicas e o folclore ainda sobrevivem
na Irlanda, até o apagar do século XIX.6
O Mabinogion é uma fonte que descende de uma tradição oral de bardos
fortemente presente na cultura céltica. Embora as versões que tenham
sobrevivido até os dias atuais tenham sido escritas por volta do século XI até o
século XIII, as histórias referem-se a acontecimentos muito anteriores.
Podem-se encontrar referências no corpo do texto à época da dominação
romana (I a.C. - V d.C.), invasão saxônica (V-VI) e a épocas muito antigas,
que remontam a crenças ancestrais celtas7, que podemos situar entre a
Antigüidade Tardia e a Alta Idade Média.
O capítulo do Mabinogion que será estudado refere-se a um passado
mítico, no qual nem a presença romana é identificada. Trata-se de um recuo
temporal de difícil precisão. Não se tratando de um estudo voltado para o
acontecimento, o fato histórico, e sim os traços culturais8, a delimitação
cronológica ficará realmente pouco definida.
6 ELIADE, Mircea. História das Crenças e Idéias Religiosas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 7 ZIERER, Adriana. Resenha do Mabinogion. In. Brathair. Home-Page. Endereço: http://www.brathair.cjb.net 8 As delimitações temáticas serão mais profundamente abordadas logo à frente no texto.
Outro período será abordado mais especificamente, que é a época na
qual foi escrita a obra, delimitamos entre os séculos XI e XIV.
Realizaremos um resgate da história da Bretanha para
contextualizarmos o período da escritura do Mabinogion, bem como fazermos
a ligação entre ele e o período referenciado na obra.
Recorte Temático –
A abordagem temática da pesquisa se dará num plano cultural, tratando
de um aspecto importantíssimo na cultura céltica que é o mito, a grande força
dos celtas.9 O mito foi a forma de fazer História, a maneira como recordam o
passado. O mito, segundo Markale, transcende a esfera da verdade. Ele é real
e a sua existência independe da sua veracidade, assim como sua função sócio-
cultural. Segundo Mircea Eliade, o mito é uma “tradição sagrada, revelação
primordial, modelo exemplar”.10
Jean Markale nos dá exemplo do mito Arturiano, presente em pelo
menos metade da fonte utilizada, e diz que o mito pode ser interpretado de
diversas maneiras, pois Artur é o mito do rei supremo, do enviado
predestinado, do homem que dorme e que um dia acordará para salvar o
mundo, além de ser o marido traído que divide sua soberania com o seu povo
na forma do amante da rainha. Pode-se aprender, nessas histórias, a forma
como a mente dos celtas funcionava.11
Diferenciadamente dos trabalhos em história cultural medieval, que
trabalham com fontes provenientes de uma elite que compunha uma parcela
muito limitada da sociedade entre nobreza e clero, o Mabinogion descende de
uma tradição de cunho Oral, tradicional, mantido pela tradição dos bardos. Tal
aspecto confere à obra um caráter de estudo cultural mais completo,
abrangente no sentido de se avaliar a cultura de um povo.
9 MARKALE, Jean. The Celts – Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993. 10 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. 11 Id.
I – A História –
A História de Gales está marcada pelas constantes invasões que
sucederam à Ilha Britânica, dos romanos aos normandos. A defesa de sua terra
foi uma constante em toda a história dos bretões, refletida em suas histórias de
guerras sucessivas.
Os romanos invadiram a ilha pela primeira vez em 55 a.C., após Júlio
César ter vencido os Gauleses no continente. César chamou a todos de brittani
por analogia aos membros de uma tribo Gaulesa12. Após a invasão realizada
por Cláudio em 43 d.C. os romanos estabeleceram um controle maior sobre a
Bretanha. Dividiram a ilha em duas províncias, redivididas em quatro
posteriormente: Camulodunum (Colchester), Lindum (Lincoln), Eboracum
(York) e Glevum (Gloucester). Organizaram a forma de exploração,
predominantemente rural, com a aristocracia estabelecendo vilas em grandes
latifúndios. Estabeleceram comércio com o continente, exportando produtos
têxteis.13
A Águia Romana estendeu suas asas até a Ilha, mas até lá só chegaram
as pontas de suas penas. Por aproximadamente 500 anos os romanos
mantiveram algum tipo de domínio, mas nunca chegaram a manter o controle
de toda a região. A ilha da Irlanda, a Caledônia (atual Escócia) e a província
galesa de Powys nunca foram totalmente dominados, e algumas dessas regiões
nem chegaram a conhecer a presença romana. O imperador Adriano chegou a
construir uma muralha que cortava toda a ilha e que conteve a descida dos
pictos e escotos das terras ao norte. Somente a nobreza bretã adotou os costu- 12 OLIVEIRA, Bruno e COSTA, Ricardo. Visões do Apocalipse anglo-saxão. In. Brathair. Home-Page. Endereço: http://www.brathair.cjb.net 13 Id.
Mapa 2: Divisão da ilha em tempos romanos.
-mes romanos e embora o Latim fosse a língua oficial, ela nunca chegou a
substituir o bretão.14
Após os romanos deixarem a ilha, os pictos e os escotos encontraram o
caminho livre e foram os primeiros a atacar, indo pelo mar e por terra,
atravessando a mal-guarnecida muralha de Adriano, como atesta o monge
Gildas em se de Excídio. 14 14 MARKALE, Jean. The Celts – Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993.
Como ela (a Bretanha) era totalmente ignorante na arte da guerra,
gemeu em assombro por muitos anos sob a crueldade de duas
nações estrangeiras – os escotos do noroeste e os pictos do
norte.15
Os bretões, então, não contavam mais com a ajuda de Roma, que
já os havia socorrido três vezes após sua partida. Para ajudá-los contra
esses novos inimigos, como Gildas nos conta, o orgulhoso Vortigern
contatou Hengist, o saxão:
Então, todos os conselheiros, junto com aquele tirano
orgulhoso Vortigern, rei bretão, estavam tão cegos que,
pensando estar protegendo seu país, selaram seus
destinos convidando para estar entre eles, como lobos no
rebanho de ovelhas, os ferozes e impiedosos saxões, uma
raça cheia de ódio de Deus e do homem, para repelir as
invasões das nações do norte. Nunca nada foi tão
pernicioso ao nosso país, nada foi mais infeliz.16 Que
palpável escuridão deve ter envolvido suas mentes,
escuridão desesperada e cruel!17
15 GILDAS. A Destruição Britânica e sua Conquista. In. COSTA, Ricardo (Org.) OLIVEIRA, Bruno (Trad.). Testemunhos da História, Documentos de História Antiga e Medieval. P. 133. Vitória: EDUFES, 2002. 16 O grifo é meu. 17 GILDAS. A Destruição Britânica e sua Conquista. In. COSTA, Ricardo (Org.) OLIVEIRA, Bruno (trad.). Testemunhos da História, Documentos de História Antiga e Medieval. P. 127. Vitória: EDUFES, 2002.
Os próprios saxões tornaram-se os algozes dos bretões. Junto
com vizinhos de etnias próximas, os anglos e os jutos, os saxões
estabeleceram longo domínio da ilha que agora é chamada de
Inglaterra, a terra dos anglos.
Mapa 3: Início da ocupação saxã
A resistência bretã contra os saxões iniciou-se com o próprio
filho de Vortigern, Guortemir (Gwerthevyr). Ele, diferentemente de seu
pai, lutou contra os saxões, derrotando Hengist diversas vezes. Ele
matou o chefe saxão Horsa, possivelmente filho de Hengist. Guortemir
pediu em seu leito de morte que fosse enterrado em um porto para que
pudesse evitar que os saxões voltassem a invadir.18 Infelizmente ele foi
enterrado em uma colina em Lincoln.
Após a morte de seu filho, Vortigern iniciou tentativas de
negociação com os saxões. Hengist convidou os chefes bretões para um
banquete, no qual negociaram alguma forma de paz, mas que era na
verdade um embuste para matar a todos. No famoso episódio, Hengist
teria gritado: “Em Saxones enimeit saxas” (Saxões, saquem suas
facas!). Pela traição ele obteve de Vortigern as terras que passaram a se
chamar Essex, Sussex e Wessex (Saxões do Leste, Sul e Oeste). 19
O País de Gales permaneceu durante longos séculos como um
dos últimos redutos de povoação de origem celta, junto à Irlanda e à
Cornuália. Desde a saída dos romanos do continente no século V, os
bretões permaneceram em uma guerra sem fim contra os anglo-saxões,
que tentavam dominar as últimas regiões de controle bretão, ou seja,
Gales e Cornuália. Jean Markale nos conta que essas duas regiões
foram separadas quando os saxões dominaram o vale do rio
Gloucester.20 Gales passou a ser o centro de resistência bretã,
especialmente o reino de Gwynedd, ao Norte. 21
O domínio anglo-saxão estendeu-se por vários séculos e só foi
rivalizado pela última onda de invasão bárbara, realizada pelos
normandos. Dinamarqueses, Vikings, escandinavos, homens da região 18 Podemos encontrar menção à tradição do rei morto continuar a proteger o seu povo no Mabinogion de Branwen, quando Bran pede para ter sua cabeça enterrada em Londres, voltada para a França, impedindo assim a invasão provenmiente do continente. (CIRLOT, Victoria (Trad.). Mabinogion. P. 40. Madrid: Siruela, 1988). 19 MARKALE, Jean. The Celts – Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993. 20 MARKALE, Jean. The Celts – Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993. 21 Id.
do extremo setentrional da Europa iniciaram suas atemorizantes
incursões ao ocidente europeu no século VIII e as intensificaram no
nono século, iniciando um processo de assentamento nas terras
atacadas.22
A resistência bretã que persistiu bravamente, com muitas perdas,
encontrou um período de certo abrandamento. No início do século XI,
Guilherme (William) da Normandia23 conquistou a Inglaterra com
fortes reflexos para os bretões. Os anglo-saxões, ameaçados pelos
normandos, aliviaram os ataques no País de Gales para defenderem-se.
Mas os normandos não pararam pelas terras inglesas, avançaram
até Dyfed e Ceredigion, fortificando esses territórios galeses com torres
de pedra e protegendo a si mesmos com suas intransponíveis armaduras
de cota de malhas.24 Os Galeses, após um período de lutas,
estabeleceram uma relação com os novos invasores. Havia uma certa
afinidade entre os bretões e os normandos, assegurada pela presença de
bretões armoricanos nas tropas de William. Tal afinidade possibilitou
um intercâmbio de idéias entre normandos e galeses.
Esse período teve duas principais influências no Mabinogion. A
primeira foi a tradição novelística francesa que aportou na ilha junto
com Guilherme e a dominação normanda, de clara influêcia na narrativa
do Mabinogion. A segunda influência foi um período de renascimento
céltico, provocado por uma relativa paz na ilha.25 O Chefe galês dessa
22 BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1989. 23 Guilherme I, O Conquistador, Duque da Normandia e rei da Inglaterra; 1066-87. (LOYN, Henry R (Org.). Dicionário da Idade Média. P. 181. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990). 24 CIRLOT, Victoria (Trad.). Mabinogion. P. 40. Madrid: Siruela, 1988. 25 MARKALE, Jean. The Celts – Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993.
época, Gruffyd ap Cynan, rei de Gwynedd, estabeleceu uma trégua com
os irlandeses, estreitando laços afins pela cultura e etnia, mas separados
por séculos de conflitos.
Nesse período foi escrito o Mabinogion.
II – A Obra –
Os contos do Mabinogion não são obra de uma única mão.
Evoluindo através dos séculos desde tempos imemoriais, foram
narrados e recontados pelos contadores de histórias. Seu conteúdo
perpassa por diversos episódios dos mitos e da História da Bretanha
Céltica. Os contos criam uma atmosfera fantástica e preservam muito
do mundo primitivo do mito celta. Eles representam o heroísmo e o
idealismo da literatura céltica.
Somente no século XII, quando algum mestre bardo os codificou
pela primeira vez na forma escrita, eles tomaram a forma que
conhecemos hoje. O Mabinogion não era muito conhecido até a sua
primeira tradução para o Inglês, realizada em 1838 por Lady Charlotte
Guest. Ela foi a principal responsável pela divulgação do texto, pois até
então os textos estavam fechados desde o século XIV e pouco se sabia
ou comentava sobre eles.
O Mabinogion foi encontrado no Livro Vermelho de Hergest26,
um pequeno manuscrito do século XIV mantido no Colégio Jesuítico
em Oxford. Outro manuscrito mais antigo também o contém, embora
somente alguns fragmentos tenham sobrevivido: é o Livro Branco de
Rhydderch (c. 1325). Fragmentos do texto aparecem em vários outros
26 “...The Red Book of Hergest [Welsh Llyfr Coch Hergest] is one of the most important of all medieval welsh manuscripts (c. 1382 – 1410), containing the texts of Mabinogi and the seven other narratives usually included in the Mabinogion. [...] also contains poetry of the Gogynfeirdd, histories, grammars and proverbs, but not religious works or laws.” (MacKILLOP, James. Dictionary of Celtic Mythology. P. 238. New York: Oxford University Press, 1998.
lugares. O mais antigo acredita-se ser o ‘Peniarth 6’ que data de c.
1225.
As histórias foram escritas da maneira em que encontramos por volta do
fim do século XII, mas são muito mais antigas. Algumas histórias pertencem
às distantes épocas do passado celta pagão e ao período da unidade Galo-
Bretã, em épocas anteriores mesmo à invasão romana.
Os primeiros estudos foram empreendidos por pesquisadores que
podemos chamar de “velha escola”. 27 Seus membros mais conhecidos são W.
J. Gruffydd, Proinsias Mac Cana e Keneth Jackson. Eles apresentavam uma
análise mais sincrônica ao texto, buscando sua relação com outros textos da
época, confrontando os dados de uns e de outros. Os pesquisadores mais
modernos, chamados de revisionistas, trabalharam com uma visão diacrônica
do documento. Eles entenderam o documento mais como uma expressão
artística de sua época do que o relato de coisas que teriam acontecido no
período ao qual o texto se refere. Esses revisionistas ateram-se mais às
estruturas do texto, olhando-o com o ponto de vista de críticos literários.28
Estudiosos galeses tendem a favorecer amalgamas mais antigos,
maximizando a contribuição de seus antepassados à obra. Já os franceses
argumentam que o texto teria sido escrito por volta de 1200 a 1250, também
procurando aumentar a contribuição ao texto dos novelistas franceses. Ifor
Williams propôs a data de 1060 d.C. como provável para a finalização da obra
e utiliza vários argumentos para tal assertiva: a escassez de palavras francesas
no texto; a referência a antigos costumes; o período pacífico entre 1055-1063,
que teria incentivado o intercâmbio das histórias entre bardos por toda a ilha.
27 A Bibliografic Essay. In. Internet... 28 A Bibliografic Essay. In. Internet...
O título Mabinogion foi atribuído por Lady Charlotte. Antes disso, os
textos simplesmente faziam parte de um mesmo manuscrito. O termo aparece
no final das quatro primeiras partes dessa maneira: “Assim termina esse Ramo
do Mabinogi”.A palavra galesa ‘mab’ significa ‘filho’ 29. Portanto, Lady
Charlotte concluiu que ‘mabinogi’ significava ‘histórias para crianças’ e que
‘mabinogion’ era o seu plural. Existem outras interpretações sobre o
significado do título, outra seria a de que mabinog refere-se ao ‘estudante
bardo’ e mabinogi (com o plural mabinogion), portanto, seria um ‘conto
pertencente ao repertório de um mabinog’.
Os relatos foram compostos a pedido de senhores galeses, que agiram
como verdadeiros mecenas, encomendando esses escritos 30. Os autores foram
bardos 31, embora os manuscritos tenham sido mantidos por clérigos. Eles
trabalharam baseados em uma tradição oral muito antiga mantida pelas escolas
bárdicas 32. Foram também influenciados pelo forte movimento novelesco
medieval 33, que teve seu auge na França e desembarcou na ilha com os
normandos. A obra tem o objetivo de resgatar o passado heróico dos bretões
em uma época de restabelecimento do reino de Gales.
O movimento novelesco medieval teve seu auge na França, a partir do
século XII. O movimento fez parte de uma literatura vernacular desenvolvida 29 Mab, mab- [Welsh, son, boy] Prefix used in welsh patronymics. Mutated formas: ap, ap-; fab, fab-; vab, vab-. Cf. Irish and Scottish mac, mac-. (MacKILLOP, James. Dictionary of Celtic Mythology. P. 276. New york: Oxford University Press, 1998). 30 CIRLOT, Victoria (Trad.). Mabinogion. P. 40. Madrid: Siruela, 1988. 31 Os Bardos eram zeladores da tradição, da memória da tribo. Eles eram intimamente ligados à tradição druídica e foram seus conservadores após a destruição sistemática das ordens. (CARR-GOMM, Philip. Elementos da Tradição Druídica. Rio de Janeiro: Ediouro, 1994. 32 “In time, Welsh bards formed the Bardic Order, or Bardd Teulu, serving kings and princes for more than 1000 years, forming a distinct segment of society with its own privilege”. (MacKILLOP, James. Dictionary of Celtic Mythology. P. 30. New york: Oxford University Press, 1998). 33 A épica francesa medieval faz sua aparição no final do século XI com a Chanson de Roland. Segue com grande sucesso com os temas de Chrétien de Troyes, seu maior expoente. Chega na ilha britânica por intermédio dos normandos no século XIV. (LOYN, Henry R (Org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.)
nas cortes e para as cortes através da prática do mecenato. Apoiou-se em
fontes escritas, combinando-as com elementos da cultura popular, incluindo os
mitos, o folclore e outras tradições orais. Inicia-se com o Chanson de Roland,
a primeira obra da novela francesa, escrita no século XI. Obteve seu auge com
Chrétien de Troyes, que compôs entre 1165 e 1190 um corpus de cinco
romances octassilábicos. A temática arturiana é marcante na maioria das
obras, que se inspiram em fontes célticas.34
Muitos dos acontecimentos narrados estão presentes nas Tríadas,
relatos muito mais antigos sobre a história dos bretões. As Tríadas consistem
em relatos narrados em grupos de três, personagens ou acontecimentos. As
Tríadas são a materialização de uma tradição oral antiqüíssima, com claras
funções mnemotécnicas (por isso o agrupamento de três em três). Pode-se
dizer que as Tríadas são formas diferentes de narrar os acontecimentos
contidos no Mabinogion, além de diversos outros fatos da História da Irlanda
e de Gales.
É interessante notar que nos quatro principais e primeiros ‘Ramos’ do
texto não há menção a Arthur. Além dessas quatro histórias, o Mabinogion
contém duas histórias da Bretanha (“O sonho de Maxem” e a “Lludd and
Llevellys), outras duas muito interessantes (“O sonho de Rhonabwy” e
“Culhwch e Owen”) e os três contos finais (“A Dama do Lago”, “Geraint,
filho de Erbin”, “Peredur, filho de Efrawc”) que mostram marcada semelhança
com certos contos medievais.
A maioria dos personagens dos Quatro Ramos – as únicas histórias que
são referidas como Mabinogi – vem de dois distintos clãs de deuses. Bran,
Branwen e Manawyddan são filhos de Llyr, o deus mar e rei mítico dos
34 LOYN, Henry R (Org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
bretões antigos, que mais tarde será citado por Shakespear, em Rei Lear.
Manwyddan é mais familiarmente conhecido como Mannanán Mac Lir, que
guia sua carruagem através das ondas para sua casa na Ilha de Man.
Gwydion, Arianrod e Llew Llaw Gyffes são filhos de Dôn – equivalente
galês da Irlandesa Danann (matriarca dos Tuatha de Danann). Llew é o
mesmo que Lugh Lamfada, o mestre de todas as artes, que destrói o titânico
Balor, líder dos Fomori.
O Mabinogion é dividido em onze relatos denominados Ramos. Os
quatro primeiros Ramos são relacionados à tradição mitológica da epopéia
irlandesa, o que demonstra uma grande ligação cultural entre a Irlanda e o País
de Gales. São eles: Pwyll, príncipe de Dyvet; Branwen filha de Llyr;
Manawyddan, filho de Llyr; e Math, filho de Mathowny. Esses Quatro
primeiros ramos estão intrinsecamente ligados por laços de parentesco entre os
personagens, e pode-se estabelecer uma certa seqüência de acontecimentos
entre eles. A sua temática é justamente os laços matrimoniais, de família e a
forma como os reinados se estabeleceram e mudaram de direção. Na obra
pode-se encontrar diversas referências às formas de organização político-
social de Gales e da Irlanda. É muito interessante a forma como se relacionam
essas duas regiões, ora como aliados, ora como inimigos.
O quinto relato é mais independente e refere-se a uma época bem
anterior. É o Sonho de Maxen, na verdade Magnus Maximus, imperador da
Bretanha em 383. A história gira em torno de um sonho que o personagem
tem. Trata-se de um relato pseudo-histórico, com muitos elementos intrusos da
narrativa galesa. O relato que se segue, chamado Lludd e Llevelys, também é
independente dos outros e tem afinidade com o anterior por seu caráter
pseudo-histórico. Esse ramo nos conta o mito da criação de Londres e
acontecimentos na vida de Lludd e seu invejoso irmão Llevelys.
Os três relatos seguintes são de uma tradição arturiana muito antiga. O
sétimo relato do Mabinogion, Kulhch e Olwen é o primeiro relato artúrico do
Ocidente Europeu e nos trás elementos de uma tradição artúrica muito antiga,
anterior aos Ciclos Arturianos da Baixa Idade Média 35. Em seguida o Sonho
de Rhonabwy nos traz um belo conto arturiano com menções de
acontecimentos históricos, como a batalha do monte Badon, assim como
personagens históricos como Gildas 36 e Maelgwyn 37.
O nono relato, A Dama da Fonte, se passa na corte de Artur, mas o
personagem principal é Owein, personagem recorrente na literatura galesa.
Junto aos últimos dois relatos que finalizam o Mabinogion (Peredur, Filho de
Evrawc e Gereint, Filho de Erbin), é considerado uma adaptação galesa de
temáticas trabalhadas em novelas de Chrétien de Troyes. São amálgamas
narrativas de temáticas centrais utilizadas por Chrétien e temas lendários
característicos de Gales.
35 Esses três últimos relatos podem ser relacionados com os textos de Chrétien de Troyes respectivamente: Ivain ou o Cavaleiro Real; Perceval ou o Conto do Graal; Erec e Enide. Fazem parte da tradição arturiana medieval e são considerados tão originais quantos os contos de Chrétien, pois teriam sido captados em uma mesma origem, e não seriam cópias uns dos outros. (ZIERER, Adriana. Resenha do Mabinogion. In. Brathair. Home-Page. Endereço: http://www.brathair.cjb.net)
36 Gildas foi um monge bretão que viveu no século VI. Sua principal obra é seu De Excídio Brittaniae et Conquestu, traduzido como a Destruição da Bretanha e sua Conquista. Esse escrito é o primeiro a relatar os acontecimentos após a saída dos romanos da ilha britânica, em 410. (OLIVEIRA, Bruno e COSTA, Ricardo. Visões do Apocalipse anglo-saxão. In. Brathair. Home-Page. Endereço: http://www.brathair.cjb.net)
37 Rei bretão citado por Gildas como o mais poderoso de sua época. Ele foi o rei de Gwynedd, província ao sul de Gales. (OLIVEIRA, Bruno e COSTA, Ricardo. Visões do Apocalipse anglo-saxão. In. Brathair. Home-Page. Endereço: http://www.brathair.cjb.net)
III - Branwen, Filha de Llyr –
O conto de Branwen, Filha de Llyr, é o segundo dos mabinogi. Ele nos
conta uma história de alianças, disputas de poder e vingança entre os bretões
(homens da Ilha de Fortes) e irlandeses (homens de Iwerddon). A história gira
em torno do casamento de Branwen, irmã de Bendigeit Bran (o rei de toda a
Ilha de Fortes [Bretanha], coroado em Llundein [Londres]), com Matholwch,
o rei de Iwerddon (Irlanda).
Logo no começo do conto somos apresentados à família de Bran, que é
filho de Llyr, o deus mar presente em diversas culturas celtas, especialmente
na Irlanda. Esse já é um ponto de afinidade com a cultura irlandesa que está
presente no texto. O deus Llyr, ou Lleyr é bastante adorado na Irlanda, nada
mais natural para um povo insular, em contato constante com o mar. Bran,
enaltecido por ter sido coroado rei de toda a ilha, tem seus irmão por
companhia em um prodigal fim de tarde, no alto de um penhasco a “observar
as ondas do mar”. Praticamente uma reunião familiar de Llyr, o mar, com seus
filhos: Bran, Branwen, Manawyddan. Nyssyen e Evnyssyen também os
acompanham, são meio-irmãos de Bran por parte de mãe, indicando que
Penardim (mãe de Bran, pouco citada na história) teria se casado outra vez
com Eurosswydd.
Bran 38 é um importante personagem na mitologia galesa. Ele representa
uma importante faceta da soberania que remete ao deus indo-europeu Aryama.
Ele é o grande protetor, o senhor da alimentação, espiritual e material. Sua
figura nos remete também ao Teutates gaulês, o Dis Pater da classificação de
38 “Celtic sea-deity, later described as a king of Britain. A leading figure in early Welsh narrative.” (MacKILLOP, James. Dictionary of Celtic Mythology. P. 36. New york: Oxford University Press, 1998).
Júlio César.39 Na história ele representa a verdadeira soberania sobre a ilha.
Sua incrível estatura que não o permite caber nem em uma casa nem em um
barco 40 parece simbolizar sua grande importância entre os homens de seu
tempo.
Branwen 41 é uma das três matriarcas da ilha e a jovem mais bela do
mundo.42 Ela é o pivô de toda a história, tendo sua mão requisitada por
Matholwch, sendo castigada pelos irlandeses e vingada por sua família. Ela
representa a soberania reconhecida na figura da mulher.43 Em uma sociedade
em que muitos guardavam o nome da mãe e não o do pai, sendo inclusive as
heranças distribuídas matrilinearmente44, a mulher recebe um alto valor.
Manawyddan 45 é o equivalente galês de Mananann MacLer. Ele é o
senhor dos mares. Um deus de prosperidade ligado ao elemento água. É o
herói do mabinogi que leva o seu nome, participando ativamente em outros
dois dos quatro primeiros ramos.
Nyssyen e Evnyssyen são os irmãos de Bran por parte de mãe. Eles são
apresentados como irmãos de índoles opostas. O primeiro era bom, procurava
a paz quando a cólera havia chegado a níveis elevados. Ele não aparece muito
nessa obra, dando espaço aos feitos voluntariosos de seu malvado irmão.
39 MARKALE, Jean. The Celts - Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993. 40 CIRLOT, Victoria (Trad.). Mabinogion. P. 36. Madrid: Siruela, 1988. 41 “Title Character of Branwen, the second branch of the Mabinogi.” (MacKILLOP, James. Dictionary of Celtic Mythology. P. 46. New york: Oxford University Press, 1998). 42 CIRLOT, Victoria (Trad.). Mabinogion. P. 38. Madrid: Siruela, 1988. 43 ZIERER, Adriana. Resenha do Mabinogion. In. Brathair. Home-Page. Endereço: http://www.brathair.cjb.net 44 MARKALE, Jean. As Três Facetas da Mulher Celta. In. Os Celtas. Número especial da revista O Correio. Rio de Janeiro: FGV, 1973. 45 “Principal sea-deity and also otherworldly ruler of Irish and Goidelic traditions.” (MacKILLOP, James. Dictionary of Celtic Mythology. P. 285. New york: Oxford University Press, 1998).
Evnyssyen é apresentado como o irmão mau, que enfrentava os irmãos quando
mais se amavam.46
É Evnyssyen que inicia os conflitos na história, demonstrando uma
personalidade bastante vingativa e voluntariosa. Ao saber que a mão de sua
irmã havia sido entregue a Matholwch, o rei da Irlanda, sem a sua permissão,
ele se revolta e, sem maiores esclarecimentos vinga-se. “E mutilou os cavalos
até o ponto de que era impossível fazer algo com eles”. 47
Esse ato é tomado como uma imensa afronta por Matholwch, que sem
se despedir, retira-se a caminho de volta para Iwerddon. Os mensageiros de
Bran o alcançam e oferecem reparação. Bran, mesmo sem ter sido o
responsável pela afronta, oferece grandes recompensas, numa demonstração
de um grande desejo de bons relacionamentos com seus vizinhos. A
recompensa, além de novos bons cavalos domados e grandes riquezas, inclui
um caldeirão mágico, que tinha a seguinte virtude: “se hoje te matam um
homem, coloque-o dentro e no dia seguinte ele estará melhor que nunca, salvo
que terá perdido o poder da fala.” 48 O tema do caldeirão, que na literatura
celta possui um caráter sagrado e mágico, é recorrente e está relacionado à
fartura e à vida. 49
De volta a Iwerddon, Branwen inicia uma bela vida na corte, sendo
muito generosa com todos os nobres que a ela acudiam, presenteando-os todos
com belos e valiosos dons. Ela vive bem por todo o primeiro ano de sua
permanência, até que a corte de Matholwch descobre a afronta feita a ele pelo
irmão de Branwen. Os nobres revoltam-se e exigem vingança sob ameaça de
uma verdadeira guerra civil. Matholwch resolve puni-la, obrigando-a a 46 CIRLOT, Victoria (Trad.). Mabinogion. P. 27. Madrid: Siruela, 1988. 47 CIRLOT, Victoria (Trad.). Mabinogion. P. 29. Madrid: Siruela, 1988. 48 CIRLOT, Victoria (Trad.). Mabinogion. P. 31. Madrid: Siruela, 1988. 49 Id.
cozinhar para toda a corte e ainda a levar uma bofetada do açougueiro
(carniceiro) na orelha todos os dias. Essa punição é citada nas tríadas como
uma das três bofetadas malgradas da Bretanha. É malgrada, pois por motivo
dessa bofetada, a Irlanda e Gales são devastados por uma grande guerra.
Branwen sofre essa punição por três anos sem que sua família tome
conhecimento, pois Matholwch impede que qualquer barco vá para Gales e
prende todos os bretões que estavam presentes em Iwerddon. Branwen
consegue se comunicar com seu irmão treinando um pássaro, um estorninho
que pousava em sua janela, ensinando-o a encontrar seu irmão e a entregar a
mensagem que ela o enviara.
O texto segue narrando como a comitiva dos bretões aporta na Irlanda.
Bran, o grande chefe, atravessa o mar a pé, pois nunca coube em um barco.
Ele é seguido pelos homens de cento e quarenta e quatro distritos (ou 154 em
outra passagem do texto). Os irlandeses que, até então eram tratados em
relação de igualdade no texto agora assumem um papel de inferioridade
mediante as tropas da Bretanha.
Aparições de Personagens Bretãos Aparições de Personagens
Irlandeses
Homens Mulheres Homens Mulheres
90 21 34 1
Territórios Citados
Bretões Irlandeses
45 25
Ao realizar o trabalho de contagem lexicográfica dos nomes e lugares
(quadro 1 e 2 acima) verificamos um pé de igualdade até aproximadamente
este trecho da história. Essa igualdade numérica refletia no texto uma tentativa
de estabelecer um contato amistoso com seus vizinhos. A partir do momento
em que Bran fica sabendo das agruras de sua irmã e reúne suas tropas para
marchar contra Iwerddon, a balança do poder tende para o lado bretão. É o
simbolismo dos bretãos resgatando a sua soberania (Branwen) à força.
Ao saber da chegada dos bretãos, os irlandeses não se vêem com
alternativa, senão fugir para além de um rio intransponível e destruir a ponte50.
Uma tentativa acuada de se isolar. É quando Bran mostra o seu poder e
transforma-se em ponte para o seu próprio exército, utilizando sua enorme
estatura para cruzar toda sua tropa para além do rio.
Nesse ponto podemos notar uma nova tentativa de estabelecimento da
paz com seus vizinhos. Ao invés de trucidar seus inimigos, agora à sua mercê,
Bran aceita um tratado de paz. Os irlandeses prometem construir a Bran uma
casa que o caiba dentro, já que nenhuma até então o era capaz.
Evnyssyen, desconfiado como o texto o mostra, suspeita dos irlandeses
na véspera da festa que inauguraria a casa, que era tão grande que cabia toda a
hoste dos bretãos a um lado e a dos irlandeses do outro. Evnyssyen descobriu 50 “The Irish flee across the river Shannon, and destroy the only bridge after them”. (MacKILLOP, James. Dictionary of Celtic Mythology. P. 278. New york: Oxford University Press, 1998).
a armadilha dos irlandeses e matou todos os homens que estavam escondidos
em sacos que seriam de farinha, pendurados nas colunas.
A festa inicia sem que ninguém saiba dos planos de emboscada, nem
mesmo os irlandeses sabiam que o plano havia sido descoberto. Evnyssyen,
por vingança da armadilha, atira seu próprio sobrinho Gwern, filho de sua
irmã com Matholwch, no fogo ardente. Esse ato surpreende a todos e causa o
maior tumulto jamais visto.51 Os irlandeses surpreendem-se com todos os seus
homens mortos mas utilizam o caldeirão mágico que Bran havia dado a eles.
Com o intermédio desse artefato mágico eles começam a sobressair na luta
que se desenrolava, pois tinham um contingente infinito. Evnyssyen
arrepende-se de ter sido o causador de tanta destruição e sacrifica-se, passando
por irlandês morto ele também é colocado no caldeirão. O caldeirão parte-se
em quatro, junto com Evnyssyen, e os irlandeses perdem seu grande trunfo.
Os bretões triunfam.
Dessa grande batalha restam apenas sete sobreviventes. Bran, que foi
envenenado por uma lança que atingiu o seu pé, pede aos seus companheiros
que cortem a sua cabeça52 e a levem até Llundein e a enterrem na Gwyn Vryn
(Colina Branca). Os sete sobreviventes são: Pryderi; Manawyddan; Gliuieri
Eil Taran; Talyessin; Ynawc; Grudyeu, filho de Muriel; e Heilyn, filho de
Gwyn Hen.
51 CIRLOT, Victoria (Trad.). Mabinogion. P. 39. Madrid: Siruela, 1988. 52 O culto à cabeça cortada é recorrente na cultura celta, remontando a períodos muito antigos, representados pela cultura La Tène. Segundo Markale, em Women of The Celts, o episódio da ‘Hospitalidade da Cabeça’ tem muitas analogias com a Procissão e o Banquete do Graal, sendo a cabeça uma fonte de alimento para Branwen e os sobreviventes, assim como o cálice sagrado. (MARKALE, Jean. Women of The Celts. New York: Inner Traditions, 1975.).
Branwen, ao perceber tanta destruição na ilha de Iwerddon e na
Bretanha, sente-se culpada e morre de desgosto. “Exalou um grande suspiro e
seu coração se quebrou.” 53
Os sete sobreviventes, ao retornarem para sua terra natal descobrem que
a Bretanha, na ausência de Bran, foi tomada por Casswalan de Caradawc, o
filho de Bran que ficou a cargo de governá-la. Sem grandes perspectivas, os
sete heróis sobreviventes da grande guerra com a Irlanda retiram-se e
aproveitam da hospitalidade da cabeça de Bran.
Eles vão para um lugar chamado Gwales, em Penvro. Lá encontram um
lugar muito agradável com uma grande sala que tinha três portas. Uma dessas
portas dava para a Bretanha e não poderia ser aberta no prazo de oitenta anos,
que a cabeça permaneceu com eles, como se estivesse viva, provendo a todos
de suas necessidades. Esse período é uma clara compensação aos esforços
heróicos desses sete sobreviventes. Eles que haviam lutado bravamente, ao
retornar viram seu poder destituído e, ao invés de lutar por ele de volta,
retiram-se por oitenta anos, retornando somente para enterrar a cabeça na
colina que serviria de esconderijo.
O conto apega-se bastante ao tema da disputa da soberania, tema caro
em uma Gales constantemente ameaçada por sucessivas invasões. Contamos
no texto quantas vezes são feitas referências a cargos relativos ao governo,
seja o de rei, de nobres ou administradores e chegamos ao número de
dezenove vezes (quadro abaixo). Em dezesseis páginas de texto os cargos
serem citados dezenove vezes retrata uma grande preocupação em explicitar
os cargos dos personagens.
53 CIRLOT, Victoria (Trad.). Mabinogion. P. 49. Madrid: Siruela, 1988.
Cargos de Governo Citados
19
Outro aspecto analisado no texto tem relação com sua função
mitológica de explicar as origens das coisas. Contamos quantas origens são
entremeadas no corpo do texto, desde origens de provérbios até nomes de
lugares, e comportamentos humanos. A presença de seis (quadro abaixo)
situações de origens presentes no texto confirma a tese de Eliade sobre as
funções do mito, já discutidas neste trabalho.
Origens Citadas
6
IV - Mitologia –
O mito cosmogônico é verdadeiro porque a existência do
mundo esta aí para provar.54
Assim é o campo da compreensão do mito. O mito trata por excelência
de histórias sagradas. A fronteira do natural é constantemente cruzada por seus
grandiosos personagens. A grandeza dos atos desses Entes Sobrenaturais é
justificada por sua natureza divina, sagrada.55 A compreensão dos mitos
depende de um aprofundamento interpretativo que seja capaz de decifrar as
analogias empregadas na construção dos argumentos dessas maravilhosas
histórias.
Para atingirmos o âmago da compreensão de um pensamento por vezes
tão distante de nossa realidade somos obrigados a escolher nossas ferramentas
cuidadosamente. Não devemos tratar friamente o conhecimento que nos é
colocado à frente pelo contato com a fonte. Desempenhando o papel do
historiador de compreender o passado, devemos nos despir das pré-
concepções sobre esse passado. Esse é o processo, a ferramenta, que o
historiador do mito pode dispor que mais o aproxima da realidade que ele
estuda. A hermenêutica imaginativa apregoa que ao analisarmos, por
exemplo, um texto de época, devemos tentar imaginar como aquela realidade
funcionava, levando em consideração que ela era diferente da que o
historiador se encontra.56 Entender como as pessoas se relacionavam, como
54 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. P. 12. São Paulo: Perspectiva, 1972. 55 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. P. 12. São Paulo: Perspectiva, 1972. 56 COSTA, Ricardo da. O Conhecimento histórico e a compreensão do passado: o historiador e a arqueologia das palavras. Texto inédito, cedido gentilmente pelo Professor Doutor Ricardo da Costa.
pensavam, sentiam. Devemos buscar o sentido que o autor do texto quis passar
e também imaginar o resultado para aqueles que o liam. Devemos, portanto,
observar as nossas pré-compreensões antes de qualquer reflexão sobre o que é
apreendido.
O círculo hermenêutico consiste num processo que nos auxilia a obter
uma leitura mais profunda e desapegada de antigos preconceitos. Trata-se de
um processo de leitura sistemática que se inicia com uma reflexão sobre as
idéias existentes sobre o assunto antes mesmo de a primeira leitura ser feita.
Devemos avaliar o que já sabemos e evitar procurar no texto informações que
confirmem os velhos pensamentos. As novas informações obtidas ao fim da
leitura podem ser então utilizadas para se formar os novos conceitos. Esses
conceitos devem ser, então, reconfrontados com as leituras posteriores, seja do
mesmo documento ou de outros que se referem ao mesmo período, ou tema.57
Somente no início do século XX os eruditos ocidentais começaram a
estudar a perspectiva do mito vivo. Até então o mito era tratado como uma
fábula, uma história fantasiosa sobre aquilo que não poderia acontecer.58 Os
Gregos foram os primeiros a relegar o mito à esfera do inverossímil,
despojando o mito de seu valor religioso. Eles opuseram o Logos ao Mythos.
Em uma busca de um racionalismo capaz de explicar todas as coisas
renegaram a existência do que não pudesse ser provado. A tradição judaico-
cristã continuou o processo de descreditação do mito. Relegou o mito à esfera
da ilusão demoníaca, somente aceitando como verdade o que fosse validado
pelos seus dois testamentos. 59
57 COSTA, Ricardo da. O Conhecimento histórico e a compreensão do passado: o historiador e a arqueologia das palavras. 58 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. 59 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
A visão sobre o mito que os gregos, os romanos e os racionalistas
ocidentais em geral tiveram não interessa a essa pesquisa. O que pretendemos
captar é o mito em seu momento de existência. Observar o mito “vivo”. Para
isso devemos pesquisar as sociedades, ou os períodos em que o mito esteve ou
está vivo.60
Pretendemos observar o comportamento mítico, que é cada vez mais
raro em nossos dias. A atitude da sociedade moderna perante o mito tende a
interpretar os mitos como casos isolados de selvageria. Entende o mito como o
comportamento de uma sociedade primitiva e que tudo se resolverá quando
esse povo for civilizado.61
Devemos entender o comportamento mítico como um fenômeno
humano, oriundo da cultura, uma verdadeira criação do espírito. Entendemos
cultura como tudo o que não nos é passado pela genética, ou seja, aquilo que
apreendemos com e nos é passado pela vivência social. O mito de um povo é
por excelência uma manifestação dessa cultura. São as criações de uma
sociedade passadas pelas gerações.62
O mito é uma narrativa que conta uma história sagrada. Essa história
normalmente está relacionada a algum mito de origem. Os mitos de origem
podem ser de duas amplitudes, podem referenciar o macro-cosmo ou o
micro-cosmo. Os mitos que narram o surgimento do cosmo encaixam-se na
primeira categoria, são conhecidos por cosmogonias. Os mitos sobre o micro-
cosmo referem-se ao ato de criação das coisas relacionadas ao homem ou ao
60 Id. 61 Ibid. 62 Ibid.
ambiente: uma ilha, um vegetal (como uma árvore), um comportamento
humano ou uma instituição.63
O mito então assume uma clara função explicativa para a sociedade que
o cultiva. Ele demonstra o surgimento das coisas e, mais que isso, cria um
modelo para qualquer atividade significativa do homem. O mito é a maneira
como cada coisa foi feita pela primeira vez.64 A forma como os deuses nos
ensinam a nos relacionarmos com o mundo.
63 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. 64 Id.
IV. 1. Mitologia Galesa–
Embora a mitologia celta nos seja tanto quanto familiar, sabemos muito
pouco sobre os seus deuses e as suas formas de culto. Do pouco que sabemos,
muito vem de fontes pouco confiáveis e muito vem de deduções, nem sempre
perfeitamente acuradas, mas normalmente bem intencionadas. Os textos mais
antigos sobre os deuses celtas são de origem greco-romana e vêm carregados
de preconceitos. Referem-se na maioria das vezes a deuses adorados nos
territórios gauleses, onde houve um maior contato entre os romanos e celtas.
Eles sempre fazem relações com os próprios deuses greco-romanos, o que
nem sempre possibilita um verdadeiro entendimento da personalidade desses
deuses.65
Muito já se estudou sobre a relação entre os deuses celtas e os romanos,
e raramente esse caminho nos leva a um bom entendimento. Jean Markale nos
acena um outro caminho interpretativo para o papel desses misteriosos deuses
celtas dentro de sua mitologia. Ele associa o panteão celta a seus antepassados
mais distantes, remontando aos antecedentes indo-europeus dos celtas.66
Sabe-se que celtas e praticamente todos os povos europeus descendem
de uma origem única indo-européia. Logo, Markale foi buscar nos modelos
interpretativos de Georges Dumézil uma maneira de classificar os deuses
celtas.67 Focalizaremos principalmente os deuses galeses, fazendo um paralelo
entre eles e seus estereótipos originais indo-europeus.
65 MARKALE, Jean. The Celts - Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993. 66 Id. 67 Ibid.
Os deuses podem ser divididos em três grupos com três funções básicas
gerais: soberania, força e fertilidade. Teoricamente podemos, então, classificar
os deuses celtas nessas três características.
IV. 2. Soberania –
Na tradição indiana a função de soberania é dividida por quatro
divindades conhecidas como Varuna, Mithra, Aryama e Bagha. Varuna é o
deus do firmamento, do fogo invisível. É o mago supremo, aquele que a todos
controla. É o mestre do outro mundo. O deus Galês mais próximo desse
estereótipo é Math, filho de Mathonwy, o personagem principal do Ramo do
Mabinogion que tem seu nome. Math é o terrível e poderoso mestre da magia.
Em tempos de paz somente pode sobreviver se seus pés descansarem sobre o
colo de uma virgem, o que condiciona sua soberania ao poder feminino. Ele é
auxiliado em sua “função” por seu sobrinho Gwyddyon, que também é um
mago. Gwyddyon aparece no poema Cad Goddeu68, escrito por Taliesin,
aonde é citado como salvador dos bretões, pois transformou a todos em
árvores para que pudessem ganhar a batalha contra seus terríveis inimigos. No
Mabiongion ele atua junto ao seu tio, utilizando sua grande habilidade e seu
terrível poder para fazer valer a sua vontade.
A função de Mythra é, dentro do caráter de soberania, oposta à de
Varuna. Mythra é um deus solar radiante, relacionado a Apolo. Varuna é o sol
negro, sua presença é terrível. Mythra está associado à luz, sua presença é
reconfortante. Ele aparece usualmente em auxílio das pessoas. Sua função é
representada na mitologia celta por diversos deuses e personagens, mas
encontra-se pouco utilizada nos textos galeses. Pode-se fazer relação desse
estereótipo ao papel de Lludd, do ramo do Mabinogion Lludd e Llevellys.
68 O Cad Goddeu é um dos mais impressionantes poemas de Taliesin, o bardo. A “batalha dos arbustos” mostra como a batalha entre inimigos desconhecidos e os bretões é vencida pelo exército bretão auxiliado por Taliesin em pessoa e por Gwyddyon, filho de Don. Gwyddyon, com uso de magia, transforma a todos os bretãos em diferentes árvores, concedendo-lhes o poder para vencer seus inimigos. (MARKALE, Jean. The Celts - Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993.)
Lludd faz alusão ao deus Lug, que deu origem à cidade de Londres. O aspecto
solar de Mythra pode ser relacionado ao deus Belenos, o Brilhante, deus
adorado em muitas localidades do mundo celta.69
O aspecto de Aryama é associado à proteção. Aryama é o deus protetor
dos Aryas, povo indo-europeu antigo.70 Ele é o senhor da alimentação,
espiritual e material. Ele também é identificado como o guardião de caminhos,
seja de estradas, encruzilhadas ou mesmo da fronteira entre os mundos. Seu
paralelo galês é Pwyll, Príncipe de Dyved, o senhor de Anwynn, o outro
mundo. Pwyll é o protagonista do mais antigo ramo do Mabinogion, que
mostra a maneira como ele tornou-se o “Mestre do Abismo” ao aceitar o
desafio de Arawn, rei de Anfwyn (o Outro Mundo), para trocarem de
identidades por um ano. Pwyll teve que derrotar o inimigo de Arawn, além de
evitar durante um ano inteiro os amores da esposa de Arawn. Tal sacrifício
rendeu a Pwyll a amizade eterna de Arawn.
A terceira categoria de soberania é representada na Índia Védica por
Bagha. Ele é o senhor da fortuna, do que está por vir. É o guardião do futuro
dourado, como um deus da terra prometida.71 Sua contraparte galesa é
representada por Mabon. Ele desempenha o papel do jovem sol cativo pela
noite. No Mabinogion, é ele que tem que ser libertado no conto Culhwch e
Olwen. Olwen e Arthur devem libertá-lo para que possam caçar o javali72
Twrch Trwyth. Mabon representa o deus cativo que um dia será libertado para
trazer um período de felicidade para as pessoas. O mito de Arthur também 69 MARKALE, Jean. The Celts - Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993. 70 Id. 71 Ibid. 72 O javali é um dos animais sagrados dos celtas. “The male wild pig, species Sus scrofa has played a prominent role in the Celtic imagination for more than two millenia... The boar was found all over Europe in early times and was, along with the bear, the most ferocious and aggressive animal a person was likely to encounter.” (MacKILLOP, James. Dictionary of Celtic Mythology. P. 40. New york: Oxford University Press, 1998).
apresenta essa característica, pois Arthur descansa na ilha de Avalon
aguardando o momento em que retornará para restaurar a chama vital do
Universo moribundo. Ele retornará para restaurar o poder dos deuses
responsáveis pela função da soberania, ele representa a soberania em pessoa.73
IV. 3. Força –
Os deuses classificados na categoria de força apresentam características
mais práticas. Na tradição Hindu, a força é simbolizada por Indra, e representa
a execução de uma vontade superior. Pode-se fazer um paralelo com Hércules,
na tradição grega, Marte para os romanos e Thor para os nórdicos. São deuses
normalmente associados ao trovão e são guerreiros por excelência.74
Na mitologia celta seu maior expoente é Cú Chulainn, filho do deus Lug
e de Dechtire, irmã do rei Conchobar. Ele é um grande guerreiro. Pratica uma
espécie de transe de batalha enquanto luta. Ele lança feitiços sobre seus
inimigos, matando centenas deles somente com o barulho que sua arma causa,
ou seja, com o trovão.75 Em Gales, poderíamos relacionar o gigante Gwrnach
Gawr, que aparece no conto de Culhwch e Olwen.
73 MARKALE, Jean. The Celts - Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993. 74 Id. 75 Ibid.
IV. 4. Prosperidade –
Essa categoria está relacionada a deuses ligados à prosperidade, riqueza,
agricultura, caça, paz, água, amor e fertilidade. Seus representantes indo-
europeus são Asvins e Nasatyas. Essa categoria apresenta a maior diversidade
de nomes, variando bastante entre as regiões. O mais conhecido dos deuses
celtas da fertilidade é Kernunos, representado sempre com chifres,
normalmente galhados. Seu nome invoca tanto os chifres (Korn) quanto o
nome gaélico para cervo (Karu).76
No caso galês podemos citar Amaethon filho de Don, um deus
relacionado à agricultura. Ele aparece em Culhwch e Olwen e também ao lado
de Gwyddyon no Cad Goddeu, o poema épico de Taliesin. Outro deus galês
relacionado nessa categoria é Manawyddan filho de Llyr. Ele está
profundamente ligado à água. Seu pai Llyr é o próprio mar. Manawyddan tem
seu próprio ramo do Mabinogion. Ele é um dos sete sobreviventes que
usufruem a hospitalidade da cabeça. É ele também que livra as terras de
Pryderi do encantamento que as assola.77
76 MARKALE, Jean. The Celts - Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993. 77 Id.
IV. 5. A Deusa Mãe –
Comparados com a grandeza e unicidade do universo, os deuses vistos
no capítulo acima podem ser considerados individualizações dessa grandeza.
Eles desempenham papéis próximos aos dos mortais. Não são senhores de
seus próprios destinos. É como se eles fossem os ministros divinos dessa
unidade/ser superior, agindo como intermediários na relação entre a divindade
e a humanidade.78
Muito embora a tradição judaico-cristã apresente uma figura masculina
como ser superior, Markale nos mostra como em diversas culturas esse ser era
predominantemente feminino, por vezes possuindo características ambíguas
de sexualidade como o/a Janos da mitologia romana. O mito da gênese foi
invertido pela tradição judaica, pois como poderia a mulher surgir do homem
e não o contrário? Adão surgiu da costela (do ventre) de Eva. Essa é a
proposta interpretativa de Markale. As religiões, portanto, tratam-se de uma
eterna busca do regresso ad uterum. Estaríamos constantemente tentando
reverter o drama do nascimento, que nos expulsou do paraíso (o útero, onde
todas as nossas necessidades nos eram supridas) para as terras áridas (o
mundo, perigoso mundo onde temos de lutar pela nossa sobrevivência). 79
Nas tradições européias é recorrente a presença de deusas com nomes
afins com Ana, Diana, Dana, Don. A Diana romana, versão da Ártemis grega,
parece não ter sido escolhida por acaso. Essa deusa já era adorada em diversas
regiões da Europa.80
78 MARKALE, Jean. The Celts - Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993. 79 Id. 80 Ibid.
No caso celta podemos identificar diversas personalizações dessa dea
femina. Na Gália há indícios de adoração a deusas maternais, identificadas
pelos romanos como a matrona. Nome que derivou em Modron, a mãe de
Mabon do conto galês do Mabinogion.
O caso galês adota Don (como corruptela de Dana, a Danan irlandesa)
como a geradora de toda uma linhagem de deuses. Ela é a mãe de Arianrod
(outro aspecto feminino da deusa), de Gwyddyon, Amaethon, Gilvaethwy,
Hyveidd e Govanon. Podemos encontrar nos contos galeses a figura de
Rhianon, ligada ao mito da deusa Epona. É o mito da égua que perde seu potro
e o reencontra após várias aventuras.81
Entre as deusas celtas ainda destacamos a figura de Keridwen, que
aparece nos poemas relativos à origem de Taliesim. É ela que engole Gwyon
Bach e dá a luz a Taliesim, sendo o meio de sua metamorfose. Keridiwen
assume um importante papel maternal nas lendas irlandesa.82 Destacamos
também a progenitora dos Tuatha de Danann (os homens de Dana), Dana dá
origem a toda a principal raça de deuses irlandeses.83
Mas a deusa também aparece com um aspecto menos acolhedor.
Mórrígan é a deusa celta relacionada a momentos de conflito, disputa. Ela é
muito bela quando está com um temperamento calmo. Mas mostra sua face
terrível quando furiosa. Sua imagem foi muito distorcida durante a idade
média, usualmente retratada como a bruxa malvada e demoníaca.
81 MARKALE, Jean. The Celts - Uncovering the Mythic and Historic Origins of Western Culture. Vermont: Inner Traditions, 1993. 82 Id. 83 Ibid.
Conclusão –
O passado mitológico celta nos abre as portas de uma compreensão
muito avançada sobre o espírito de um povo que ocupou diversas e
importantes regiões européias e que lançou bases antecedentes que permearam
mesmo que sub-repticiamente as culturas daqueles que os sucederam.
Ao ler o Mabinogion podemos ter contato com uma atmosfera mística e
onírica que envolve o passado desse povo. Essa era a forma que os celtas
utilizaram para rememorar seu passado. Eles contavam histórias sobre seus
antepassados, e sobre todos os acontecimentos mais importantes, mantendo
através da oralidade a memória de seu povo. Se quisermos alcançar os
vestígios deixados pelos celtas, devemos nos adaptar a estudar os tipos de
fontes que nos deixaram. Muito se fez em busca de vestígios arqueológicos e
escritos de comentaristas de época, assim como iconografia e estudos de
inscrições em monumentos. Mas ao investigarmos os contos mitológicos,
entramos em contato com um mundo vivo, com a energia vital pulsante
através das linhas do texto.
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