a representação da morte e da mulher em edge e lady lazarus

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1 A representação da morte nos poemas "Lady Lazarus" e "Edge", de Sylvia Plath Jenifer Evelyn Saska (Mestranda/UFSCar) Sylvia Plath (1932 – 1963) nasceu em Boston – Massachusetts, e foi uma importante poeta, contista, romancista e escritora de estórias infantis. Sua obra foi exaustivamente investigada após seu suicídio e, com o tempo, tornou-se uma figura central entre os poetas confessionais, tendo recebido postumamente um prêmio Pulitzer pelo livro The Collected Poems. Neste trabalho pretendemos discutir brevemente a representação da morte em dois poemas de Sylvia Plath, "Lady Lazarus" 1 (escrito entre 23 e 29 de outubro de 1962) e "Edge" (escrito em 5 de fevereiro de 1963). Ambos os poemas possuem representações da morte no caso de uma mulher, mas apontam abordagens diferentes. Em "Lady Lazarus", o eu poético, uma mulher, descreve metaforicamente a trajetória que percorreu após realizar uma nova tentativa de suicídio, que por sua vez culmina em uma ressurreição ritual: 1 Tentei outra vez. 2 Um ano em cada dez 2 Eu dou um jeito — 4 Um tipo de milagre ambulante, minha pele 5 Brilha feito abajur nazista, 1 Utilizamos a tradução de Rodrigo Garcia Lopes.

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relatório de três páginas para disciplina concentrada

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A representao da morte nos poemas "Lady Lazarus" e "Edge", de Sylvia PlathJenifer Evelyn Saska (Mestranda/UFSCar)

Sylvia Plath (1932 1963) nasceu em Boston Massachusetts, e foi uma importante poeta, contista, romancista e escritora de estrias infantis. Sua obra foi exaustivamente investigada aps seu suicdio e, com o tempo, tornou-se uma figura central entre os poetas confessionais, tendo recebido postumamente um prmio Pulitzer pelo livro The Collected Poems. Neste trabalho pretendemos discutir brevemente a representao da morte em dois poemas de Sylvia Plath, "Lady Lazarus"[footnoteRef:1] (escrito entre 23 e 29 de outubro de 1962) e "Edge" (escrito em 5 de fevereiro de 1963). Ambos os poemas possuem representaes da morte no caso de uma mulher, mas apontam abordagens diferentes. [1: Utilizamos a traduo de Rodrigo Garcia Lopes. ]

Em "Lady Lazarus", o eu potico, uma mulher, descreve metaforicamente a trajetria que percorreu aps realizar uma nova tentativa de suicdio, que por sua vez culmina em uma ressurreio ritual:

1 Tentei outra vez. 2 Um ano em cada dez 2 Eu dou um jeito

4 Um tipo de milagre ambulante, minha pele 5 Brilha feito abajur nazista, 6 Meu p direito

7 Peso de papel,8 Meu rosto inexpressivo, fino9 Linho judeu.

10 Dispa o pano 11 Oh, meu inimigo. 12 Eu te aterrorizo?

13 O nariz, as covas dos olhos, a dentadura toda? 14 O hlito amargo 15 Desaparece num dia.

16 Em muito breve a carne17 Que a caverna carcomeu vai estar18 Em casa, em mim.

19 E eu uma mulher sempre sorrindo.20 Tenho apenas trinta anos.21 E como o gato, nove vidas para morrer.

22 Esta a Nmero Trs. 23 Que besteira 24 Aniquilar-se a cada dcada.

25 Um milho de filamentos.26 A multido, comendo amendoim,27 Se aglomera para ver

28 Desenfaixarem minhas mos e ps 29 O grande striptease. 30 Senhoras e senhores,

31 Eis minhas mos32 Meus joelhos.33 Posso ser s pele e osso,

34 No entanto sou a mesma, idntica mulher. 35 Tinha dez anos na primeira vez. 36 Foi acidente.

37 Na segunda quis38 Ir at o fim e nunca mais voltar.39 Oscilei, fechada

40 Como uma concha do mar.41 Tiveram que chamar e chamar42 E tirar os vermes de mim como prolas grudentas.

43 Morrer44 uma arte, como tudo o mais.45 Nisso sou excepcional.

46 Desse jeito fao parecer infernal. 47 Desse jeito fao parecer real. 48 Vo dizer que tenho vocao.

49 E muito fcil fazer isso numa cela. 50 muito fcil fazer isso e ficar nela. 51 o teatral

52 Regresso em plena luz do sol53 Ao mesmo local, ao mesmo rosto, ao mesmo grito54 Aflito e brutal:

55 "Milagre!"56 Que me deixa mal.57 H um preo

58 Para olhar minhas cicatrizes, h um preo 59 Para ouvir meu corao 60 Ele bate, afinal.

61 E h um preo, um preo muito alto 62 Para cada palavra ou cada toque 63 Ou mancha de sangue

64 Ou um pedao de meu cabelo ou de minhas roupas. 65 E a, Herr Doktor. 66 E a, Herr Inimigo.

67 Sou sua obra-prima,68 Sou seu tesouro,69 O beb de ouro puro

70 Que se funde num grito.71 Me viro e carbonizo.72 No pense que subestimo sua grande preocupao.

73 Cinza, cinza 74 Voc fua e atia.75 Carne, osso, no h mais nada ali

76 Barra de sabo, 77 Anel de casamento, 78 Obturao de ouro.

79 Herr Deus, Herr Lcifer80 Cuidado.81 Cuidado.

82 Sada das cinzas83 Me levanto com meu cabelo ruivo84 E devoro homens como ar.

O poema apresenta uma mulher que ressuscitou aps nova tentativa de suicdio. No entanto, o "milagre ambulante" (verso 4) no se adequa caracterizao de milagre: seu retorno no desejado e sua aparncia de morta desnuda e apresentada cruamente atravs da exposio das covas dos olhos, da arcada dentria e do nariz. Alm da nfase grotesca no aspecto material do corpo ressuscitado, a ressurreio dessacralizada novamente quando o eu potico feminino explana sobre a brevidade do milagre: "o hlito amargo / desaparece num dia" (versos 14 e 15), assim como a carne carcomida retornar para o corpo da mulher e ela ser novamente uma "mulher sempre sorrindo" (verso 19). Em outras palavras, o contrassenso est na ideia do ser ressuscitado (milagroso) retornar rapidamente ordinariedade atravs da reconstituio fsica, que tambm ambgua, pois at mesmo o corpo apresenta aspectos irreconciliveis: sua pele clara como um "abajur nazista" (verso 5), mas sua face no possui traos, tal qual um "(...) fino / linho judeu" (versos 8 e 9). interessante notar que seu prprio corpo profanado e profanador. Por um lado, profanado porque foi ressuscitado contra a prpria vontade por um mdico tratado por "Herr Doktor" e "Herr Inimigo" (versos 65 e 66) , exposto para uma multido assistir e, finalmente, porque capaz de carregar aspectos que se opem ou se anulam, tais como a face de linho judeu que possui a pele clara como um abajur nazista e a caracterizao grotesca do corpo em oposio irnica meno de ser uma "obra prima" (verso 67), o "tesouro" (verso 68) de seu salvador, um "beb de puro ouro" (verso 69). Por outro lado, profanador porque ameaa Deus e Lcifer simultaneamente. O fato de morrer ou tentar e ressuscitar tantas vezes transforma esse eu potico feminino em um ser capaz de compreender e ver muito alm do bem e do mal ontolgicos, transformando-se, assim, em uma divindade. Sua existncia conturbada oscila entre morte e ressurreio uma situao extraordinria por si s o que a coloca numa posio de superioridade. Nesse sentido, Deus e Lcifer nada podem fazer: ela continuar ressuscitando das cinzas, tal qual uma fnix, para devorar homens como se fossem ar. Sobre esse aspecto, Leonard Sanazaro diz que a morte e a revitalizao de Lady Lazarus

contrastam diretamente com o contexto bblico do poema. (...) Diferentemente do Lzaro judeu do Novo Testamento que deve esperar Cristo o trazer de volta vida, tirando-o de seu paraso mortal, Lady Lazarus no morre simplesmente: mais do que isso, se reduz a p e revive em chamas atravs da fora de sua prpria vontade. (SANAZARO, 1984, p. 90).

Em suma, em "Lady Lazarus", o tratamento da morte no poema possui um tom sarcstico; o milagre da ressurreio se transmuta em um freak-show, um espetculo, um "grande striptease" (verso 29), enquanto a morte como finalidade apresentada como um ritual sempre inacabado, pois "uma arte" (verso 44) que o eu potico feminino realiza de maneira "excepcional" (verso 45) e com certa regularidade: esta apenas a "nmero trs" (verso 22) e ela tem, "como o gato, nove vidas para morrer" (verso 21). A morte manipulada com mestria. Alm disso, esta mulher desafia Deus e Lcifer ao atingir e causar a si mesma a morte e a ressurreio.Em "Edge"[footnoteRef:2], a abordagem da morte feita de maneira totalmente diversa, pois proporciona perfeio ao eu potico feminino: [2: Utilizamos a traduo de Luiz Carlos de Brito Rezende.]

Limite

1 A mulher est perfeita. 2 Seu corpo 3 Morto enverga o sorriso de completude,4 A iluso de necessidade

5 Grega voga pelos veios da sua toga,6 Seus ps

7 Nus parecem dizer:8 J caminhamos tanto, acabou.

9 Cada criana morta, enrodilhada, cobra branca,10 Uma para cada pequena

11 Tigela de leite vazia.12 Ela recolheu-as todas

13 Em seu corpo, como ptalas14 Da rosa que se encerra, quando o jardim

15 Enrija e aromas sangram16 Da fenda doce, funda, da flor noturna.

17 A lua no tem porque estar triste18 Espectadora de touca

19 De osso; ela est acostumada.20 Suas crateras trincam, fissuram.

Diferentemente de "Lady Lazarus", o poema "Edge" apresenta a morte como um fim inevitvel, necessrio e, acima de tudo, aperfeioador do ser. A mulher est morta, mas realizada, pois carrega um "sorriso de completude" (verso 3). Alm da ideia de perfeio, a morte representada atravs do corpo e das ptalas, ou seja, alm de tudo, oferece pureza. Os versos 6, 7 e 8, nos quais se l que "seus ps / nus parecem dizer: j caminhamos tanto, acabou", oferecem a sensao de inevitabilidade da morte, que a mulher aguarda em estado de aceitao. O eu potico se v abandonado no mundo: seus ps desnudos revelam a ausncia de proteo. Dessa forma, o mundo torna-se um ambiente hostil, verificvel na sugesto de que nem a lua lamenta a morte dessa mulher e, simultaneamente, at mesmo a lua afetada pelo exterior hostil e pela morte, pois suas crateras "trincam, fissuram". No presente trabalho, buscamos comparar a representao da morte em "Lady Lazarus" e "Edge" para demonstrar de que maneira as representaes se diferenciam. Em "Lady Lazarus", a morte um ritual e um espetculo, seguidos sempre de uma ressurreio dessacralizada que, por sua vez, alcanada pela mulher de maneira independente. Em "Edge", a morte um fim inevitvel e uma busca. Mais do que um refgio para o eu potico cansado da existncia, a morte uma necessidade e uma possibilidade de elevao do ser, pois oferece perfeio e pureza.

BIBLIOGRAFIA

PLATH, Sylvia. Ariel. London: Faber and Faber, 2010.

____________. Ariel. Edio restaurada e bilngue, com os manuscritos originais. Traduo de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Machado. Campinas: Verus, 2004.

PERLOFF, Marjorie. The Two Ariels: the (Re)Making of the Sylvia Plath Canon. In: Poetic license: essays on modernist and postmodernist lyric. Evanston: Northwestern University Press, 1990.

SANAZARO, Leonard. The Transfiguring Self: Sylvia Plath, a Reconsideration. In: Critical Essays on Sylvia Plath. Linda W. Wagner. Boston, Massachusetts: G. K. Hall & Company, 1984.

REZENDE, Luiz Carlos de Brito. FOLHETIM Poemas Traduzidos. So Paulo: Ed. Folha de S. Paulo, 1987, p. 65.