a revolta do bequimão

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Conflitos na História do Brasil - Período Colonial - Revolta de Beckman: 1684 A chamada Revolta de Beckman ou Revolta dos irmãos Beckman ocorreu no então Estado do Maranhão, em 1684. É tradicionalmente considerada como um movimento nativista pela historiografia em História do Brasil. O sobrenome Beckman, de origem germânica, é freqüentemente grafado em sua forma aportuguesada, Bequimão. O Estado do Maranhão foi criado à época da Dinastia Filipina, em 1621, compreendendo os atuais territórios do Maranhão, Ceará, Piauí, Pará e Amazonas. Essa região subordinava-se, desse modo, diretamente à Coroa Portuguesa. Entre as suas atividades econômicas destacavam-se a lavoura de cana e a produção de açúcar, o cultivo de tabaco, a pecuária (para exportação de couros) e a coleta de cacau. A maior parte da população vivia em condições de extrema pobreza, sobrevivendo da coleta, da pesca e praticando uma agricultura de subsistência. Desde meados do século XVII, o Estado do Maranhão enfrentava séria crise econômica, pois desde a expulsão dos Neerlandeses da Região Nordeste do Brasil, a empresa açucareira regional não tinha condições de arcar com os altos custos de importação de escravos africanos. Neste contexto, teve importância a ação do padre Antônio Vieira (1608-1697) que, na década de 1650, como Superior das Missões Jesuíticas no Estado do Maranhão, implantou as bases da ação missionária na região: pregação, batismo e educação, nos moldes da cultura portuguesa e das regras estabelecidas pelo Concílio de Trento (1545-1563). Posteriormente, pela lei de 1º de abril de 1680 a Coroa determinava a abolição da escravidão indígena, sem qualquer exceção, delimitando, mais adiante, as respectivas áreas de atuação das diversas ordens religiosas. Para contornar a questão de mão-de-obra, os senhores de engenho locais organizaram tropas para invadir os aldeamentos organizados pelos Jesuítas e capturar indígenas como escravos. Estes indígenas, evangelizados, constituíam a mão-de-obra utilizada pelos religiosos na atividade de coleta das chamadas drogas do sertão. Diante das agressões, a Companhia de Jesus recorreu à Coroa, que interveio e proibiu a escravização do indígena, uma vez que esta não trazia lucros para a Metrópole. Para solucionar esta mesma questão (da carência de mão-de-obra), a Coroa Portuguesa instituiu a Companhia Geral de Comércio do Estado do Maranhão (1682), em moldes semelhantes ao da Companhia Geral de Comércio do Estado do Brasil (1649). Pelo Regimento, a nova Companhia deteria o estanco (monopólio) de todo o comércio do Maranhão por um período de vinte anos, com a obrigação de introduzir dez mil escravos africanos (à razão de quinhentas peças por ano), comercializando-os a prazo, a preços tabelados. Além do fornecimento destes escravos, deveria fornecer tecidos manufaturados e outros gêneros europeus necessários à população local, como por exemplo o bacalhau, os vinhos, e a farinha de trigo. Em contrapartida, deveria enviar anualmente a Lisboa pelo menos um navio do Maranhão e outro do Grão-Pará, com produtos locais. O cacau, a baunilha, o pau-cravo e o tabaco, produzidos na região, seriam vendidos exclusivamente à Companhia, por preços tabelados. Para obtenção da farinha de mandioca necessária à alimentação dos africanos escravizados, era permitido à Companhia recorrer à mão-de-obra indígena, remunerando-a de acordo com a legislação em vigor. Graças à intercessão do Governador Francisco de Sá de Meneses, apenas os jesuítas e franciscanos ficaram livres do monopólio exercido pela Companhia. Sem conseguir cumprir adequadamente os compromissos, a operação da Companhia agravou a crise econômica e fez crescer o descontentamento na região: os comerciantes locais sentiam-se prejudicados pelo monopólio da Companhia;

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Page 1: A revolta do bequimão

Conflitos na História do Brasil

- Período Colonial -

Revolta de Beckman: 1684

A chamada Revolta de Beckman ou Revolta dos irmãos Beckman ocorreu no então Estado do

Maranhão, em 1684. É tradicionalmente considerada como um movimento nativista pela

historiografia em História do Brasil. O sobrenome Beckman, de origem germânica, é

freqüentemente grafado em sua forma aportuguesada, Bequimão.

O Estado do Maranhão foi criado à época da Dinastia Filipina, em 1621, compreendendo os atuais

territórios do Maranhão, Ceará, Piauí, Pará e Amazonas. Essa região subordinava-se, desse modo,

diretamente à Coroa Portuguesa. Entre as suas atividades econômicas destacavam-se a lavoura de

cana e a produção de açúcar, o cultivo de tabaco, a pecuária (para exportação de couros) e a

coleta de cacau. A maior parte da população vivia em condições de extrema pobreza, sobrevivendo

da coleta, da pesca e praticando uma agricultura de subsistência.

Desde meados do século XVII, o Estado do Maranhão enfrentava séria crise econômica, pois desde

a expulsão dos Neerlandeses da Região Nordeste do Brasil, a empresa açucareira regional não tinha

condições de arcar com os altos custos de importação de escravos africanos. Neste contexto, teve

importância a ação do padre Antônio Vieira (1608-1697) que, na década de 1650, como Superior

das Missões Jesuíticas no Estado do Maranhão, implantou as bases da ação missionária na região:

pregação, batismo e educação, nos moldes da cultura portuguesa e das regras estabelecidas pelo

Concílio de Trento (1545-1563).

Posteriormente, pela lei de 1º de abril de 1680 a Coroa determinava a abolição da escravidão

indígena, sem qualquer exceção, delimitando, mais adiante, as respectivas áreas de atuação das

diversas ordens religiosas. Para contornar a questão de mão-de-obra, os senhores de engenho locais

organizaram tropas para invadir os aldeamentos organizados pelos Jesuítas e capturar indígenas

como escravos. Estes indígenas, evangelizados, constituíam a mão-de-obra utilizada pelos

religiosos na atividade de coleta das chamadas drogas do sertão. Diante das agressões, a

Companhia de Jesus recorreu à Coroa, que interveio e proibiu a escravização do indígena, uma

vez que esta não trazia lucros para a Metrópole.

Para solucionar esta mesma questão (da carência de mão-de-obra), a Coroa Portuguesa instituiu a

Companhia Geral de Comércio do Estado do Maranhão (1682), em moldes semelhantes ao da

Companhia Geral de Comércio do Estado do Brasil (1649). Pelo Regimento, a nova Companhia

deteria o estanco (monopólio) de todo o comércio do Maranhão por um período de vinte anos, com

a obrigação de introduzir dez mil escravos africanos (à razão de quinhentas peças por ano),

comercializando-os a prazo, a preços tabelados. Além do fornecimento destes escravos, deveria

fornecer tecidos manufaturados e outros gêneros europeus necessários à população local, como por

exemplo o bacalhau, os vinhos, e a farinha de trigo. Em contrapartida, deveria enviar anualmente a

Lisboa pelo menos um navio do Maranhão e outro do Grão-Pará, com produtos locais. O cacau, a

baunilha, o pau-cravo e o tabaco, produzidos na região, seriam vendidos exclusivamente à

Companhia, por preços tabelados. Para obtenção da farinha de mandioca necessária à alimentação

dos africanos escravizados, era permitido à Companhia recorrer à mão-de-obra indígena,

remunerando-a de acordo com a legislação em vigor. Graças à intercessão do Governador Francisco

de Sá de Meneses, apenas os jesuítas e franciscanos ficaram livres do monopólio exercido pela

Companhia.

Sem conseguir cumprir adequadamente os compromissos, a operação da Companhia agravou a

crise econômica e fez crescer o descontentamento na região:

� os comerciantes locais sentiam-se prejudicados pelo monopólio da Companhia;

Page 2: A revolta do bequimão

� os grandes proprietários rurais entendiam que os preços oferecidos pelos seus produtos eram

insuficientes; � os apresadores de indígenas, contrariados em seus interesses, reclamavam da aplicação das

leis que proibiam a escravidão dos nativos; � a população em geral, protestava contra a irregularidade do abastecimento dos gêneros e os

elevados preços dos produtos.

A Companhia passou a ser objeto de acusações de não fornecer anualmente o número de escravos

estipulado pelo Regimento, de usar pesos e medidas falsificados, de comercializar gêneros

alimentícios deteriorados e de praticar preços exorbitantes. Esses fatos, somados às isenções

concedida aos religiosos conduziria a uma revolta.

Eclosão da revolta

Após alguns meses de preparação, aproveitando a ausência do Governador Francisco de Sá de

Meneses, em visita a Belém do Pará, a revolta eclodiu na noite de 24 de fevereiro de 1684, durante

as festividades de Nosso Senhor dos Passos.

Sob a liderança dos irmãos Manuel e Tomás Beckman, senhores de engenho na região, e de Jorge

de Sampaio de Carvalho, com a adesão de outros proprietários, comerciantes e religiosos

insatisfeitos com os privilégios dos Jesuítas, um grupo de sessenta a oitenta homens mobilizou-se

para a ação, assaltando os armazéns da Companhia.

Já nas primeiras horas do dia seguinte os sediciosos tomaram o Corpo da Guarda em São Luís,

integrado por um oficial e cinco soldados. Partiram dali, com outros moradores arregimentados no

trajeto, para a residência do Capitão-mor Baltasar Fernandes, que clamava por socorro, sem

sucesso. Registra o historiador maranhense João Francisco Lisboa que "Beckman intimou-lhe a voz

de prisão e suspensão do cargo, acrescentando, como que por mofa, que para tornar-lhe aquela

mais suave o deixava em casa entregue à guarda da sua própria mulher, com obrigações de fiel

carcereira. Baltasar Fernandes gritou que preferia a morte a tal afronta intolerável para um

soldado; mas a multidão, sem fazer cabedal dos seus vãos clamores, tomou dali para o Colégio dos

Padres, a quem deixaram presos e incomunicáveis com guardas à vista."

Posteriormente à ocupação do Colégio dos Jesuítas, foram expulsos do Maranhão os vinte e sete

religiosos ali encontrados.

A Junta Revolucionária

A 25 de fevereiro a revolta estava consolidada, organizando-se na Câmara Municipal, uma Junta

Geral de Governo, composta por seis membros, sendo dois representantes de cada segmento social -

latifundiários, clero e comerciantes. Para legitimá-la, foi celebrado um Te Deum. As principais

deliberações desta Junta foram:

� a deposição do Capitão-mor; � a deposição do Governador; � a abolição do estanco; � a extinção da Companhia de Comércio; � a expulsão dos Jesuítas.

A Junta enviou emissários a Belém do Pará, onde se encontrava o Governador deposto do

Maranhão, objetivando a adesão dos colonos dali. O Governador recebeu-os, prometendo-lhes

abolir a Companhia do Comércio, anistiar a todos os envolvidos, e ainda honras, cargos e verbas (4

mil cruzados) caso os revoltosos depusessem as armas. A proposta foi recusada.

Page 3: A revolta do bequimão

Do mesmo modo, a Junta enviou Tomás Beckman como emissário à Corte em Lisboa, visando

convencer as autoridades metropolitanas que o movimento era procedente e justo. Sem sucesso,

recebeu voz de prisão no Reino e foi trazido preso de volta ao Maranhão, para ser julgado com os

demais revoltosos.

A repressão ao movimento

A Metrópole Portuguesa reagiu, enviando um novo Governador para o Estado do Maranhão, Gomes

Freire de Andrade. Ao desembarcar em São Luís, em 15 de maio de 1685, à frente de efetivos

militares portugueses, este oficial não encontrou resistência.

Neste ano de revolta, o movimento tivera várias defecções entre seus entusiastas: eram os

descontentes, arrependidos, os moderados e os que temiam as mudanças. À chegada de Gomes

Freire não se opusera Manuel: tencionava libertar o irmão Tomás. Os emissários do novo

governante logo tomaram conhecimento do estado das coisas. Os mais comprometidos com a

revolta deliberaram pela fuga, enquanto Beckman permaneceu.

Gomes Freire, então, restabeleceu as autoridades depostas, ordenando a detenção e o julgamento

dos envolvidos no movimento, assim como o confisco de suas propriedades. Expediu ordem de

prisão contra Manuel Beckman, que fugira, oferecendo por sua captura o cargo de Capitão dos

Ordenanças. Lázaro de Melo, afilhado e protegido de Manuel, trai o padrinho e entrega-o preso,

obtendo a cobiçada recompensa. Entretanto, empossado, os seus comandados repudiaram-lhe o

gesto vil, recusando-se a obedecer-lhe as ordens. Queixando-se disto ao governador, afirma-se que

Gomes Freire teria lhe respondido que prometera o cargo, não o respeito dos comandados.

Apontados como líderes, Manuel Beckman e Jorge de Sampaio receberam como sentença a morte

pela forca. Os demais envolvidos foram condenados à prisão perpétua. Manuel Beckman e Jorge

Sampaio foram enforcados a 2 de novembro de 1685 (10 de novembro, segundo outras fontes). A

última declaração de Manuel foi: "Morro feliz pelo povo do Maranhão!". Tendo os seus bens ido a

hasta pública, Gomes Freire arrematou-os todos e devolveu-os à viúva e filhas do revoltoso.

Durante o governo de Don Pedro III de Portugal (1683-1716) a Companhia seria extinta,

definitivamente, a pedido do próprio Governador e dos própios irmãos de Don Pedro III.

Conseqüências

A situação de pobreza da população do Estado do Maranhão perdurou no decorrer das primeiras

décadas do século XVIII. Na segunda metade desse século a administração do Marquês de Pombal

(1750-1777) tentou encaminhar soluções para as graves questões da região. A administração

pombalina, dentro da política reformista adotada, criou, entre outras medidas, a Companhia de

Comércio do Grão-Pará e Maranhão.

Aproveitando-se oportunamente de situações externas favoráveis - a Revolução Industrial que

ocorria na Inglaterra e a Guerra da independência das treze Colônias inglesas na América - a

Companhia, em meados do século XVIII, estimulou o plantio do algodão no Maranhão, financiando

esta atividade. A exportação do produto cresceu significativamente naquele contexto. Entretanto,

quando a Inglaterra reatou relações com a sua antiga Colônia, a produção maranhense entrou em

declínio. Estas situações, entre outras dificuldades, levaram à extinção do Estado do Maranhão em 9

de julho de 1774. As suas antigas capitanias ficaram subordinadas ao Vice-rei do Brasil, com sede

no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, a expulsão dos Jesuítas, promovida por Pombal, fez

desorganizar a atividade da coleta das drogas do sertão na Amazônia.