a saída para os tempos de crise

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BRASIL 12 Cidade Nova • Dezembro 2015 • nº 12 MARTINA CAVALCANTI [email protected] A saída para os tempos de crise reços altos, queda nas ven- das do comércio e na renda das famílias, demissões, pre- juízo e endividamento. Es- ses são alguns dos efeitos nocivos vivenciados por consumidores e em- presários na atual crise econômica. O cenário é tido como o início de um período de recessão inédito no Brasil – que na voz de economistas já comprometeu 2016. Ainda assim, olhos criativos en- xergam a situação crítica como uma oportunidade de reinventar a lógica econômica brasileira. A cooperação aparece como o principal motor dessa mudança, que promete trans- formar o jeito de consumir e de fa- zer negócios no país. São diversos os exemplos de que a união e a criatividade fazem a força. Empresários do mesmo se- tor modificaram a relação com os concorrentes para se unirem e con- seguirem reduzir os preços dos for- necedores. Assim repassam um au- mento menor para os consumidores e não comprometem as vendas. Encontrar utilidade para o que está parado em casa, como alugar o carro que fica a maior parte do tempo na garagem, também vale. Até mes- mo pedir a ajuda do vizinho para fu- rar a parede em vez de comprar uma furadeira ou ensinar alguém a tocar violão em troca de aulas de gaita são tentativas dos consumidores para driblar a crise e, de quebra, conhecer novas pessoas através de plataformas de economia colaborativa. União Foi esse o mote que juntou mais de 50 pizzarias de São Paulo na As- sociação Pizzarias Unidas (APU), criada em 2002, após um progra- ma do Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), com a finalidade de discutir problemas e soluções do setor de maneira in- ECONOMIA COLABORATIVA Enquanto empresários abrem mão da individualidade e apostam no diálogo com o concorrente, cidadãos passam a confiar em desconhecidos para economizar e acabam retomando a fé nas relações humanas P © jayzynism | Fotolia.com

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Economia Colaborativa - Enquanto empresários abrem mão da individualidade e apostam no diálogo com o concorrente, cidadãos passam a confiar em desconhecidos para economizar e acabam retomando a fé nas relações humanas

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Brasil

12 Cidade Nova • Dezembro 2015 • nº 12

MARTINA [email protected]

a saída para os tempos de crise

reços altos, queda nas ven-das do comércio e na renda das famílias, demissões, pre-juízo e endividamento. Es-

ses são alguns dos efeitos nocivos vivenciados por consumidores e em-presários na atual crise econômica. O cenário é tido como o início de um período de recessão inédito no Brasil – que na voz de economistas já comprometeu 2016.

Ainda assim, olhos criativos en-xergam a situação crítica como uma oportunidade de reinventar a lógica econômica brasileira. A cooperação aparece como o principal motor dessa mudança, que promete trans-

formar o jeito de consumir e de fa-zer negócios no país.

São diversos os exemplos de que a união e a criatividade fazem a força. Empresários do mesmo se-tor modificaram a relação com os concorrentes para se unirem e con-seguirem reduzir os preços dos for-necedores. Assim repassam um au-mento menor para os consumidores e não comprometem as vendas.

Encontrar utilidade para o que está parado em casa, como alugar o carro que fica a maior parte do tempo na garagem, também vale. Até mes-mo pedir a ajuda do vizinho para fu-rar a parede em vez de comprar uma

furadeira ou ensinar alguém a tocar violão em troca de aulas de gaita são tentativas dos consumidores para driblar a crise e, de quebra, conhecer novas pessoas através de plataformas de economia colaborativa.

UniãoFoi esse o mote que juntou mais

de 50 pizzarias de São Paulo na As-sociação Pizzarias Unidas (APU), criada em 2002, após um progra-ma do Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), com a finalidade de discutir problemas e soluções do setor de maneira in-

economia colaBoRaTiva Enquanto empresários abrem mão da individualidade e apostam no diálogo com o concorrente, cidadãos passam a confiar em desconhecidos para economizar e acabam retomando a fé nas relações humanas

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tegrada. “O primeiro benefício, e o que a gente estima ser um dos melhores, é a troca de informações entre empresários, que acelera o processo de evolução das empresas e do setor. É riquíssimo”, diz Carlos Zoppetti, vice-presidente da APU.

A tática de fazer compras con-juntas para conseguir preços mais baixos com fornecedores, por exem-plo, permite evitar ao máximo re-passar reajustes aos consumidores. “O que muda é fazer compra pla-nejada de um mês. Dessa forma, o fornecedor já sabe o que vai pro-duzir, otimizando sua produção e logística. Todos esses bônus os for-necedores acabam repassando para a gente em forma de desconto na matéria-prima”, diz Zoppetti. De acordo com o empresário, é possível conseguir em média 10% de des-conto com a negociação conjunta. A redução não é o suficiente para cobrir os 17% de queda nas vendas do setor neste ano, mas, somada a outras iniciativas da associação, já evita demissões e maiores prejuízos.

Não ficar no vermelho é vantajo-so em um cenário no qual, durante o segundo trimestre de 2015, o fa-turamento de bares e restaurantes caiu 6,34% na comparação com os três primeiros meses do ano, segun-do dados da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). De acordo com a pesquisa, um em cada quatro estabelecimentos registra prejuízo. E são empresas com preço médio entre R$ 30 e R$ 70 – o que inclui as pizzarias – as mais afetadas.

Outra solução criada pela APU é um grupo de Whatsapp chama-do “Fora Crise”. Nele os empresá-rios discutem ideias para alavancar vendas, enxugar custos e divulgar suas marcas. A inserção das pizza-rias em aplicativos de delivery de comida, como o iFood, foi uma das soluções mais eficazes. “Fomos trocando ideias de como manter a

pizzaria no nível mais alto de ava-liação nesses aplicativos. A gente se capacitou bastante, o que nos aju-dou muito, inclusive, com aumento das vendas ”, destaca Zoppetti.

Segundo ele a associação com-prova que a cooperação pode ser mais benéfica que a concorrência, mesmo no mundo dos negócios. “Quando participa da entidade, um empresário percebe que o ou-tro empresário, mesmo perto dele e atuando no mesmo mercado, ajuda e troca informação. A ideia de que o concorrente é inimigo acaba sendo ultrapassada, já que o ganho de co-operar é muito maior.”

me empresta o seu carro?A cooperação não se dá apenas

entre donos de restaurante. O com-partilhamento também invadiu a internet e atualmente há vários sites e aplicativos que possibilitam trocas. É a chamada economia colaborativa.

O administrador de empresas Rafael Deieno, 48, tem um carro, mas usa o da mulher no dia a dia. Como o MMC Lancer “só dava des-pesa” parado na garagem, ele teve a ideia de alugar o veículo criando um perfil no Fleety. Através dessa plataforma usuários disponibilizam seus carros para locação por horas, dias e até semanas a motoristas que precisam de um veículo, mas não querem ou não podem comprar um.

“O brasileiro tem muito apego ao carro, como se fosse membro da família. Para mim, o carro existe para ser usado, se está parado, só gera prejuízo”, afirma. Rafael conta-biliza despesas com seguro, manu-tenção e licenciamento, gastos que a locação ajuda a pagar. “Até agora tive um crédito de R$ 400 em três locações. Não dá para complemen-tar a renda, mas é possível deixar de gastar mais”, declara. Para o feriado de 20 de novembro, Dia da Consci-

ência Negra, ele chegou a anunciar no aplicativo uma promoção de 20% para incentivar usuários a fica-rem com o carro durante três dias.

A locação de um carro no Fleety varia entre R$ 15 e R$ 30 a hora. Se um usuário ficar uma semana com o carro, o valor pode chegar a mil reais ou mais. Do total, até 15% fica com a empresa, que, em troca, ofe-rece seguro, serviços e atendimento 24 horas aos usuários.

Poupar recursosA intenção é que produtos já fa-

bricados não fiquem ociosos, evi-tando o consumo desnecessário, além de garantir um dinheiro extra para quem empresta, uma locação mais barata para quem aluga e esti-mular o crescimento de novas em-presas de tecnologia, as startups.

“Durante toda a nossa existência nos pautamos em consumir muito, mas agora atingimos o limite do consumo”, define um dos fundado-res da Fleety, André Marim. “A sha-ring economy [economia colaborati-va] é uma evolução ou revolução do capitalismo que proporciona con-sumir serviços, dando uma utiliza-ção mais rentável e inteligente aos bens de consumo. É a ideia de que não preciso ter um produto para ter acesso a ele”, explica Marim.

O diretor observa ainda que a iniciativa ajuda a solucionar pro-blemas urbanos, como o da mobi-lidade. Segundo pesquisa da KPMG, cada carro compartilhado represen-ta de quatro a 13 veículos a menos circulando nas ruas, o que, em larga escala, pode amenizar o congestio-namento em grandes metrópoles e reduzir a emissão de CO2.

Para Marim, em tempos de cri-se, a economia colaborativa se torna ainda mais relevante, na medida em que as empresas que intermedeiam as trocas e locações pagam impostos c

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e os usuários, poupando recursos, aumentam seu poder de compra, im-pulsionando a economia como um todo. Por isso, o aplicativo mostra crescimento de usuários mês após mês. “Com a economia em crise, há uma melhor utilização dos recursos, uma mudança cultural e de estilo de vida que acaba acelerando muito o crescimento do Fleety e de outras plataformas colaborativas”, afirma.

adaptaçõesMas será que as montadoras, já

em dificuldades, podem ser ainda mais prejudicadas pela novidade? Marim acredita que não e afirma que três grandes companhias do setor automobilístico já estão em contato com a Fleety para em bre-ve inovarem seus serviços. “Em questão de pouco tempo teremos carros compartilhados através de montadoras, como já acontece na Europa. Não há opção: ou essas em-presas jurássicas se reinventam para acompanhar o novo consumo ou vão perder para serviços de tecno- logia”, aposta.

Acompanhar as mudanças pa-rece ser a única alternativa para as companhias tradicionais não fica-rem para trás, já que a economia colaborativa cresce exponencial-mente. Só em 2014, os empreen-dimentos do setor movimentaram mais de US$ 110 bilhões ao redor do globo, de acordo com a revista Forbes. Segundo pesquisa da Niel-sen, que ouviu 30 mil pessoas em 60 países, 68% afirmaram estar dispostos a compartilhar bens em troca de dinheiro, enquanto 66% usariam ou alugariam produtos ofe-recidos por outras pessoas em sites de compartilhamento.

Apesar de tantas apostas, a tec-nologia de compartilhamento no Brasil ainda é recente e apresenta al-gumas falhas. Rafael chegou a per-

der uma locação porque o sistema de pagamento por cartão de crédito do Fleety apresentou problemas.

Devido à intensa participação de usuários, a empresa soube de reclamações e uma solução, com um sistema interno de pagamento, deve chegar ao usuários nas próxi-mas semanas. Segundo Marim, os erros são rapidamente solucionados porque o conceito da plataforma se baseia na interferência direta dos usuários, que podem dar palpites em tempo real.

outras colaboraçõesAlém do Fleety, existem dezenas

de outras plataformas de comparti-lhamento. Na Airbnb, é possível lo-car um cômodo ocioso da casa ou até mesmo a casa toda para turistas, enquanto no Dinner, a proposta é que os usuários ofereçam refeições para desconhecidos, em suas ca-sas, por um valor determinado. Já o “Tem Açúcar?” pretende resgatar os laços de comunidade ao estimu-lar empréstimos de objetos entre vizinhos. No Bliive o mote é trocar tempo e conhecimento ensinando o que você sabe e aprendendo o que os outros têm a ensinar. É possível encontrar desde aulas de piano, de-senho, costura e fotografia até ses-sões de massagem, ioga, leitura de mapa astral e até mesmo compa-nhia para cantar no karaokê.

Educadora financeira e especia-lista em sustentabilidade, Andy De Santis estuda o tema e resolveu se cadastrar em várias dessas platafor-mas para testá-las e aplicá-las a suas necessidades cotidianas desde 2012.

No início, havia alguns temores pela sua segurança e de seus objetos pessoais, mas hoje ela é uma entu-siasta da nova maneira de fazer eco-nomia. “Não estamos acostumados porque é um jeito novo de pensar. No Fleety, por exemplo, fiquei com

medo de entregar o carro para um desconhecido e até de encontrar a pessoa pela primeira vez”, admite. “Mas foi surpreendentemente posi-tivo. Meus clientes são muito bons. Um lavou o carro para me entregar limpinho, outro deixou um brinde, até troca de cartões já aconteceu!”, relembra. De Santis ressalta ainda que essa e outras plataformas aju-dam a retomar a fé nas relações hu-manas. “Além da troca em si, é pos-sível fazer amizades e networking. São experiências que vêm de onde você menos espera: de uma pessoa totalmente desconhecida.”

Segundo ela, a confiança é uma das principais moedas de troca nessas redes, o que alimenta essa esperança. “Todas essas platafor-mas são como bancos, mas em vez de dinheiro, as moedas são outras, como são outras as possibilidades”, compara. “Eu avalio a pessoa com quem fiz a troca, coloco estrelinhas, faço um comentário… Quem está vendo decide se vai ou não trocar com aquele usuário com base nessas avaliações. Por isso as pessoas não querem dar mancada. Se ela fizer besteira, pode ser que nunca mais consiga fazer trocas ali”, diz.

As plataformas de economia co-laborativa resgatam um senso comu-nitário que se perdeu nos grandes centros urbanos e que ainda existe em locais mais afastados e em co-munidades de baixa renda, onde as trocas, o compartilhamento e a famosa “vaquinha” são maneiras de ter acesso a determinados produtos e serviços, reflete De Santis. “No esquema capitalista, as pessoas de maior renda vão ficando individu-alistas e as relações, cada vez mais frias. A gente não conhece nem o vizinho”, afirma. “Esses aplicativos resgatam e pode ser até que moti-vem a gente de fato a ter essa sim-plicidade de bater na porta ao lado para pedir ou oferecer algo.”

MARTINA [email protected]