a teoria de gêneros do discurso de bakhtin no horizonte de estudos da lingüística

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    A TEORIA DE GNEROS DO DISCURSO DE BAKHTINNO HORIZONTE DE ESTUDOS DA LINGSTICA

    Rosngela Hammes RODRIGUES

    (Universidade Federal de Santa Catarina)

    ABSTRACT: This paper aims at presenting and discussing the contributions that the speech genre andenunciative studies can bring to the Linguistics area. To do so, the considerations proposed by Bakhtinconcerning this issue are initially highlighted, and in sequence it is presented the functioning of two specific usesof language, the demonstrative pronouns and some cases of modality, both extracted from a scientific researchabout genres, in order to demonstrate that the observation of these elements in the enunciative construction andin the genre can present new information, which can establish a dialogue with the linguistic studies: the

    pronouns mark the authors axiological distance in relation to other enunciative constructions already utteredand the modality searches for molding the readers response-reaction or disqualifying his/her possible one, notwished by the author.

    KEYWORDS: speech genres; Bakhtin; demonstrative pronouns; modality; linguistic studies.

    1. Introduo

    Em Marxismo e filosofia da linguagem (1988), Volochinov prope o mtodosociolgico para o estudo da lngua, que parte da anlise dos tipos de interao verbal,articulados com suas condies de produo, para chegar anlise das formas da lngua.Bakhtin, em Problemas da potica de Dostoievski (1997), fala da relao entre os estudos dalngua, objeto da Lingstica1, e os estudos do discurso, objeto de um conjunto de disciplinas

    (ainda a se constituir, na poca), que nomeou como Metalingstica ou Translingstica

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    .Normalmente, o mtodo sociolgico aplicado a pesquisas na rea do discurso e dosgneros, e discutem-se as contribuies da Lingstica para a anlise de gneros. Entretanto,as contribuies que o mtodo sociolgico e os estudos de gneros podem trazer para aLingstica quase no so abordadas: o dilogo entre esses dois campos de estudo nemsempre se apresenta como uma via de mo dupla.

    Neste artigo, partindo da concepo de que cada campo de investigao da linguagemtem suas especificidades, mas que, respeitando essa concepo, possvel e desejvel odilogo entre eles, objetivo apresentar e discutir as contribuies que as pesquisas de gnerosdo discurso podem trazer para os estudos da Lingstica.

    Para tanto, na primeira seo, retomo a discusso que Bakhtin faz a respeito do texto

    como ponto de partida para o estudo do homem e da sua linguagem nas cincias humanas,sociais e da linguagem e a discusso de como o autor v a problemtica das especificidades edos pontos de contato entre os estudos do campo do discurso e da lngua. Na segunda seo, apartir de resultados de pesquisa a que cheguei com a anlise do gnero artigo assinado, daesfera jornalstica, mostro como os estudos de gneros e enunciado podem dialogar com aspesquisas da Lingstica.

    1 Bakhtin refere-se Lingstica de sua poca; muitas das observaes que ele faz esto, hoje, incorporadas nasdiferentes reas que a integram.2 Em alguns momentos, retomarei estes termos pela expresso Estudos do Discurso.

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    2. Especificidades e relaes entre os estudos do discurso e os da lngua na voz doCrculo de Bakhtin

    Analisando a obra do Crculo de Bakhtin no dilogo da cultura humana, percebe-se

    que seus integrantes dialogam com autores da rea da Lingstica, da Filologia, da Potica, daPsicologia e da Filosofia da Linguagem da poca para, no campo dessas relaes tericas,pontuar seu projeto de estudo da linguagem: a lngua vista na interao, ou seja, a lnguacomo discurso.

    Nesses dilogos, observa-se, inclusive, que o Crculo antecipa reas de investigaohoje estabelecidas, como a Lingstica Textual, a Sociolingstica e os Estudos do Discurso.No texto O problema do contedo, do material e da forma na criao literria (1993a),escrito por Bakhtin em 1924, ao tratar da diferena de abordagem da obra literria pelaPotica e pela Lingstica, ele salienta a necessidade de a Lingstica ampliar seu escopo detrabalho: diz que ela precisa ir alm dos limites da orao para chegar at o texto, pois estetambm pode e deve ser objeto de estudo como fenmeno da lngua (numa abordagem

    diferente daquela que v a obra como objeto esttico). Segundo o autor,

    No foi em todos os campos que a lingstica soube dominar uniformemente o seuobjeto de forma metdica: [...], ainda no foi minimamente elaborada a seo quedeve dirigir os grandes conjuntos verbais: longos enunciados da vida corrente,dilogos, discursos, tratados, romances, etc., pois esses enunciados tambmpodem e devem ser definidos e estudados de modo puramente lingstico, comofenmenos da lngua. [...]. A sintaxe dos grandes conjuntos verbais (ou acomposio como parte da lingstica, diferentemente da composio que levaem conta a tarefa artstica ou cientfica) ainda espera sua fundamentao: at hojea lingstica ainda no ultrapassou cientificamente a orao complexa: este o maislongo fenmeno da lngua j explorado lingstica e cientificamente: tem-se a

    impresso de que a lngua precisamente lingstica e metodologicamente pura derepente termina ali e de repente tem incio a cincia, a poesia, etc.; entretanto, aanlise lingstica pura pode ser levada mais adiante, por mais difcil que parea epor mais tentador que seja aqui introduzir aqui ponto de vista alheios lingstica.(BAKHTIN, 1993a, p. 47, grifo meu).

    Nessa citao, encontra-se o projeto de uma lingstica do texto, que surgiria nasdcadas seguintes. Alm disso, tambm se pode perceber como o autor concebe, de um lado,as especificidades de cada campo do conhecimento e, de outro, as possveis inter-relaesentre esses campos. O texto3 compreendido como sistema de signos, como estrutura dodomnio da Lingstica (a composio do texto, ou seja, a composio das massas verbais);

    j o texto compreendido como enunciado (a composio do texto que leva em conta as tarefas

    artstica, cientfica, por exemplo, ou seja, a composio de um todo, que tem a ver com afinalidade extralingstica artstica, jornalstica, pedaggica etc.; com as condies sociais;com as relaes entre os interlocutores) objeto de outros campos do conhecimento. Mas,como dito, salienta o dilogo possvel, quando afirma que a Lingstica, ao dominar esse novoobjeto e com nitidez metodolgica, pode tambm trabalhar produtivamente para a Estticada Criao Literria e, por seu turno, tambm se utilizar dos servios desta.

    Outra rea de estudo delineada por Bakhtin, a Sociolingstica, focalizada no textoO discurso no romance (1993b), redigido em 1934/35. O autor argumenta que o romance um gnero literrio assentado no plurilingismo social. Para desenvolver essa posio, afirmaque a concepo de lngua nica uma expresso terica dos processos histricos deunificao e de centralizao lingstica, que resume como as foras centrpetas da lngua. Dizque a lngua nica no dada, mas estabelecida em cada momento de sua vida; que ela se

    3 A diferena entre texto como estrutura e texto como enunciado ser abordada a seguir.

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    ope ao discurso diversificado; que, simultaneamente, a concepo de lngua nica realenquanto fora que supera o plurilingismo, opondo-lhe barreiras. Eis porque a lngua nicaexpressa as foras de unio e de centralizao concretas, ideolgicas e verbais, que decorremda relao indissolvel com os processos de centralizao scio-poltica e cultural

    (BAKHTIN, 1993b, 81). Comenta que a potica de Aristteles e do neoclassicismo, a idia dagramtica universal de Leibniz e o ideologismo concreto de Humbold, apesar das suasdiferenas, expressam as foras centrpetas da vida social, lingstica e ideolgica, bem comoserviram tarefa de centralizao e unificao das lnguas europias.

    Para o autor, as foras centrpetas da lngua, encarnadas numa lngua comum,atuam no meio do plurilingismo social, pois, em cada momento de sua formao, a lngua sediferencia no apenas em dialetos lingsticos, no sentido exato da palavra, mas em lnguasscio-ideolgicas: de grupos sociais, de profisses, de pocas, de geraes, de gneros dodiscurso etc., uma vez que todas as vises de mundo socialmente significativas tm afaculdade de espoliar as possibilidades intencionais da lngua por intermdio de sua realizaoconcreta especfica (BAKHTIN, 1993b, p. 97). Por isso, em cada momento dado, coexistem

    lnguas de diversas pocas e perodos da vida scio-ideolgica.

    [...] a lngua historicamente real, enquanto transformao plurilnge, fervilhantede lnguas futuras e passadas, de linguagens aristocrticas afetadas que estomorrendo, de parvenus lingsticos, de incontveis pretendentes a ela, de maior oumenor sucesso, de maior ou menor envergadura de alcance social, com uma ou outraesfera ideolgica de aplicao. (BAKHTIN, 1993b, p. 155).

    Enfim, a lngua como meio vivo e concreto nunca nica, uma vez que ao lado dasforas centrpetas da lngua atuam as foras centrfugas, ao lado da centralizao verbo-ideolgica e da unio, atuam constantemente os processos de descentralizao e de

    desunificao da lngua. Em razo disso, em cada enunciado cruzam-se todos essesprocessos e as foras centrpetas e centrfugas da lngua. Segundo o autor, a Filosofia daLinguagem, a Lingstica e a Estilstica, nascidas e formadas no curso das tendnciascentralizadoras da vida lingstica, ignoravam esse plurilingismo dialogizado, que, em parte,torna-se foco de ateno, posteriormente, dos estudos sociolingsticos, interessados navariao e mudana lingstica.

    Bakhtin tambm antecipa pesquisas na rea do discurso, ao propor dois grandes plosde estudo no campo da linguagem. Em Problemas da potica de Dostoievski, comomencionado na introduo, o autor discute a necessidade de um conjunto de disciplinas,nomeado por ele de Metalingstica ou Translingstica, que teria como objeto de estudo osaspectos da vida concreta do discurso que ultrapassam, legitimamente, os limites da

    Lingstica. Para Bakhtin, a Lingstica e a Metalingstica estudam um mesmo fenmenoconcreto, muito complexo e multifactico, o discurso (a lngua em sua integridadeconcreta e viva e no a lngua como objeto especfico da lingstica, obtido por meio de umaabstrao absolutamente legtima e necessria de alguns aspectos da vida concreta dodiscurso (BAKHTIN, 1997, p. 181, grifo meu)), mas o estudam sob diferentes aspectos engulos de viso.

    A posio de uma coexistncia de dois campos de pesquisa na rea da linguagemtambm apresentada pelo autor em O problema do texto na lingstica, na filologia e emoutras cincias humanas: uma experincia de anlise filosfica (2003b) e emMetodologiadas cincias humanas(2003c), como se pode ver na citao:

    A lngua, a palavra so quase tudo na vida humana. Contudo, no se deve pensar queessa realidade sumamente multifacetada que tudo abrange possa ser objeto apenas deuma cincia a lingstica e ser interpretada apenas por mtodos lingsticos. Oobjeto da lingstica apenas o material, apenas o meio de comunicao discursiva

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    [sic] mas no a prpria comunicao discursiva, no o enunciado de verdade, nem asrelaes entre eles (dialgicas), nem as formas da comunicao, nem os gneros dodiscurso. (BAKHTIN, 2003b, p. 324).

    Conjuntamente, nesses escritos, Bakhtin problematiza a noo de texto; sistematiza arelao entre discurso e enunciado e enunciado e texto; e discute a questo da metodologia depesquisa nas cincias humanas e sociais. Para o autor, o texto o dado (realidade) primrio eo ponto de partida de qualquer disciplina das cincias humanas (2003b), apesar de asfinalidades de investigao poderem ser muito variadas, pois a palavra (discurso) ao mesmotempo parte constitutiva e objeto de estudo comum das cincias humanas e da linguagem(2003d). No h como ter acesso ao homem social e a sua vida seno atravs dos textos porele criados ou por criar, que materializam seu discurso. Assim, essas disciplinas partem dotexto, porque a constituio social do homem e da sua linguagem mediada por ele.

    Entretanto, partindo do texto, tais disciplinas adotam direes variadas, recortampedaos heterogneos desse dado primrio, enfim, passam da sinalizao do objeto real (que

    o homem social que fala e seu discurso) a uma delimitao do objeto de investigaocientfica. Na rea dos estudos da linguagem, o texto pode ser analisado teoricamente de umadupla perspectiva: do plo da lngua e do texto propriamente dito (plo 1); e do plo dodiscurso e do enunciado (plo 2). O primeiro plo, abstrado de sua situao social, estrelacionado com tudo aquilo que e pode ser reproduzido e repetido no texto, ou seja, alngua como sistema de signos e o texto como estrutura. O segundo plo o do acontecimentoirrepetvel do enunciado (o texto visto na sua condio de enunciado), que pertence ao texto,mas que s se manifesta na situao social de interao, na relao dialgica com outrostextos (enunciados), dentro de uma comunicao discursiva de uma dada esfera social. Naprimeira orientao, estuda-se a lngua do autor ou de uma poca; a lngua nacional; ou aindaa potencial lngua das lnguas (abordagem do estruturalismo ou da glossemtica) etc. Na

    segunda orientao, estuda-se o enunciado, os gneros do discurso, as relaes dialgicas etc.(BAKHTIN, 2003b).Pode-se afirmar que esses dois plos de investigao do texto correspondem aos dois

    campos de estudo da linguagem propostos pelo autor em Problemas da potica deDostoievski: a Lingstica e a Metalingstica. A respeito da relao entre eles, como j dito,Bakhtin salienta que esses campos estudam um mesmo fenmeno concreto, muito complexo emultifacetrio, o discurso, mas sob diferentes aspectos e ngulos de viso. Lingsticacompete a lngua como sistema: o estudo das relaes entre os elementos dentro do sistema dalngua ou dentro do texto, ou mesmo as relaes entre os textos num enfoque rigorosamentelingstico do texto. Metalingstica, a lngua como discurso: o estudo das relaes entre osenunciados e a realidade, entre os enunciados e o autor; as relaes dialgicas entre os

    enunciados (a orientao do enunciado para os enunciados j-ditos e para os enunciados pr-figurados); o estudo da comunicao discursiva, dos gneros do discurso. O autor enfatiza queelas devem e podem completar-se mutuamente, mas no fundir-se, embora, diz ele, naprtica, os limites entre elas sejam muitas vezes violados.

    A respeito das contribuies dos Estudos do Discurso para a Lingstica, Bakhtin, emOs gneros do discurso (2003a), afirma que a Lingstica subestimou o estudo das formasdo discurso, ou seja, dos gneros do discurso, talvez em funo de sua heterogeneidade ediversidade, mas que o estudo da natureza do enunciado e dos gneros nos diversos camposda atividade humana tem uma importncia muito grande para quase todas as reas daLingstica e da Filologia, pois toda investigao acerca de um material lingstico concreto,como histria da lngua, gramtica normativa, elaborao de dicionrios, estilstica da lngua,inevitavelmente est relacionada com enunciados concretos (orais e escritos), produzidos nasdiferentes esferas da atividade humana e da comunicao, de onde os pesquisadores obtm osfatos lingsticos de que necessitam. Diz, ainda, que a desconsiderao da natureza do

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    enunciado e a indiferena frente diversidade dos gneros do discurso, em qualquer campo dapesquisa cientfica, levam ao formalismo e a uma abstrao excessiva, pois debilitam ovnculo da linguagem com a vida (a lngua integra a vida atravs de enunciados concretos,que a realizam, e atravs dos enunciados que a vida entra na lngua).

    A respeito das contribuies das pesquisas do enunciado e dos gneros para aLingstica, Bakhtin (2003a) exemplifica o seu papel para a Estilstica e a Gramtica.Segundo o autor, o estilo lingstico pode ser objeto de estudo especfico de disciplinaindependente, a Estilstica, porm s ser produtivo se fundado na constante observao danatureza genrica (de gnero do discurso) dos estilos da lngua e no estudo preliminar dosgneros. O autor questiona a Estilstica por apenas considerar os seguintes fatores comodeterminantes do estilo: o sistema da lngua, o objeto do discurso e o falante com sua atitudevalorativa. A questo mais complexa, pois preciso situar o enunciado na cadeia dacomunicao discursiva; na relao dialgica que mantm na orientao para o objeto do seudiscurso (enunciados j-ditos), para a reao resposta ativa do interlocutor (enunciados pr-figurados) e para seu autor. So essas relaes e o gnero do discurso que so determinantes

    na construo do estilo.Em relao Gramtica e Lexicografia, Bakhtin (2003a) diz que embora essas

    disciplinas se diferenciem substancialmente da Estilstica, a investigao acerca da gramticade uma lngua (especialmente gramtica normativa) no pode prescindir das observaes eincurses estilsticas. Muitos fenmenos, como o sintagma, so ora relacionados ao campo daGramtica, ora ao campo da Estilstica, como se fosse borrada a fronteira entre os doiscampos. Pode-se dizer que a Gramtica e a Estilstica convergem e divergem em qualquerfenmeno concreto da linguagem: se o examinamos apenas no sistema da lngua estamosdiante de um fenmeno gramatical, mas se o examinamos no conjunto [totalidade] de umenunciado individual ou do gnero do discurso j se trata de fenmeno estilstico(BAKHTIN, 2003a, p. 269), pois a escolha de uma determinada forma gramatical pelo autor um ato de estilo.

    Esses dois pontos de vista (gramatical e estilstico) sobre um mesmo fenmenoconcreto da lngua no devem ser mutuamente impenetrveis, nem substitudos um pelo outrode maneira mecnica; devem combinar-se organicamente, com precisa distinometodolgica, sob a base da unidade real do fenmeno lingstico, o enunciado. O autorobserva que uma concepo profunda do enunciado e das peculiaridades dos gneros podeassegurar uma soluo correta desse complexo problema metodolgico; e que o estudo danatureza do enunciado, como unidade da comunicao discursiva, e dos gneros do discursopermite compreender de uma maneira mais correta a natureza das unidades da lngua comosistema: a palavra e a orao4.

    Voltando questo dos estilos de lngua e de sua relao com o enunciado e osgneros, Bakhtin considera que um dos aspectos do enunciado refere-se a seu estilo, que, porsua vez, est indissoluvelmente ligado aos outros dois aspectos do enunciado: o contedotemtico e a composio. O estilo, que diz respeito seleo dos recursos lxicos,fraseolgicos e gramaticais da lngua, entra como elemento na unidade genrica (de gnero)do enunciado. Embora o enunciado, por ser individual, possa apresentar traos daindividualidade do falante, ou seja, absorver um estilo particular, essa possibilidade no comum, pois nem todos os gneros so capazes de absorv-lo e "refleti-lo" da mesmamaneira. Na grande maioria dos gneros, um estilo individual se constitui como umepifenmeno, uma vez que no faz parte da inteno do enunciado, no a sua finalidade. Oestilo do enunciado entra como elemento e reflete o estilo do seu gnero: ele no pode ser

    4 Bakhtin, em Os gneros do discurso, discorre sobre a noo de enunciado e levanta as caractersticas que odiferenciam da palavra e da orao: a alternncia dos sujeitos do discurso, a conclusividade e a relao doenunciado com o autor do enunciado e com os outros participantes da comunicao discursiva.

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    compreendido se no se considerar a sua natureza genrica. Para o autor, os estilos individuaisdos enunciados, bem como os de lngua, so estilos genricos de determinadas esferas daatividade e comunicao humana. Onde existe um estilo, existe um gnero, pois o estilo deum enunciado o do seu gnero.

    Alm de destacar a importncia dos estudos dos gneros para a compreenso dosestilos da lngua, diz que a separao entre estilos de lngua e gneros nefasta para aelaborao de uma srie de problemas histricos, pois a mudana dos estilos de lngua estindissoluvelmente ligada mudana dos gneros. Em sntese, os estilos individuais, de lnguae a mudana dos estilos de lngua tendem para o estilo dos seus gneros. por essas razesque o autor argumenta que o estudo dos gneros do discurso [ou, eu diria, o intercmbio daspesquisas de gneros do discurso com as pesquisas lingsticas] indispensvel para umaabordagem produtiva dos problemas da Estilstica.

    Portanto, ao postular a inter-relao necessria entre os estudos da Metalingstica e daLingstica, Bakhtin salienta as contribuies dos estudos de gneros para o campo daLingstica. No entanto, atualmente, h uma forte tendncia de se ressaltar a relevncia dos

    estudos lingsticos para a anlise de gneros, especialmente para abordar a dimenso verbaldos enunciados. A justificativa para tal procedimento buscada em Marxismo e filosofia dalinguagem, no trecho em que Volochinov fala da ordem metodolgica para o estudo da lnguanuma abordagem sociolgica, que comea pela anlise das interaes verbais, passa pelaanlise dos enunciados e dos gneros para, a partir da, fazer a anlise das formas da lngua nasua interpretao habitual5.

    Como mencionado na introduo, ainda pouco se discutem, nos estudos sobre gneros,as contribuies que os resultados dessas pesquisas podem dar para os estudos da lngua,embora Bakhtin as tenha ressaltado nos seus escritos. Na prxima seo, busco demonstrar acontribuio da teoria de gneros para o estudo da lngua a partir de resultados de pesquisa.

    3. Contribuies da teoria de gneros do discurso para os estudos lingsticos

    Nesta seo, apresento e discuto algumas contribuies que as pesquisas sobre gnerospodem trazer para a Lingstica, que so tecidas tendo como referncia os resultados depesquisa de doutorado (RODRIGUES, 2001), cujo objetivo foi analisar o gnero do discursoartigo assinado, da esfera jornalstica, com vistas apreenso de suas regularidades. Osdados, artigos assinados de jornais impressos veiculados online, foram analisados a partir dasnoes de enunciado e de gnero e de fundamentos metodolgicos baseados nas seguintesconsideraes: a) olhar os textos como enunciados significa analis-los como elos na cadeiada comunicao jornalstica, portanto, nas suas relaes dialgicas com outros enunciados j-

    ditos e com a reao-resposta do leitor (enunciados pr-figurados); b) conseqentemente,analisar a dimenso social (em relao constitutiva com a dimenso verbal) como elementoconstitutivo do enunciado e do seu gnero, tendo como primeiro passo de anlise o estudo daesfera da comunicao jornalstica no contexto da cultura e, como segundo, a anlise docronotopo do artigo, isto , a situao social de interao do gnero, com todos os seuselementos constitutivos (concepo de autor e interlocutor; horizonte espacial, temporal,temtico e axiolgico); c) analisar a dimenso verbal considerando os elementos lingstico-textuais como partes do enunciado e no como elementos no sistema da lngua ou no textocomo estrutura, ou seja, analis-los como meios/recursos para a construo do enunciado,buscando apreender que funes exercem na relao dialgica entre enunciados.

    5 Do meu ponto de vista, a terceira etapa um passo metodolgico para o estudo das formas da lngua nalngua e no para o estudo das formas da lngua nos enunciados e nos gneros. Esse mtodo, que parte dasituao social de interao, quer enfatizar, antes, o papel que o estudo dos gneros e dos enunciados tem para acompreenso das formas da lngua.

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    Em relao anlise da dimenso verbal do artigo, observei a recorrncia de certoselementos lingsticos, que foram analisados como elementos do estilo do enunciado e dognero e cuja funo busquei apreender. Embora no fosse objetivo da pesquisa articular osresultados dessa parte da anlise com os estudos lingsticos e as contribuies que as

    pesquisas de gneros podem trazer para os estudos lingsticos, essa articulao se mostravapertinente. essa articulao que objetivo apresentar, a partir da anlise dos pronomesdemonstrativos e de alguns casos de modalizao.

    Nos estudos lingsticos6, os pronomes demonstrativos so definidos como tendo afuno de situar a posio de um ser ou objeto no tempo e no espao, tendo como referente osparticipantes da interao. Os pronomes aquela, aquele, aquilo indicam um afastamentotemporal e espacial do objeto ou ser em relao aos participantes da interao. Nos estudos dotexto, eles so analisados na abordagem da progresso textual. No livro A coeso textual(1989), Koch englobava os pronomes demonstrativos no grupo dos elementos anafricosremissivos no-referenciais, considerados como elementos coesivos que no fornecem aoleitor/ouvinte quaisquer instrues de sentido, mas apenas instrues de conexo (por ex.,

    concordncia de gnero e nmero) (KOCH, 1989, p. 33). Em Desvendando os segredos dotexto (2002), a autora, ao apresentar as principais estratgias de progresso textual, aborda asfunes anafrica, catafrica e ditica dos demonstrativos e, ao levantar a questo do usodiscursivo dos determinantes (artigos e demonstrativos) da formas nominais referenciais,menciona a funo axiolgica dos demonstrativos na retomada do discurso, emboraexemplifique sua anlise quase que exclusivamente com os pronomes essa e esse.

    Na anlise dos dados, observei que a funo dos pronomes demonstrativos aquele,aquela e aquilo7, geralmente, no era a de criar uma distncia espacial ou temporal do objetodo discurso em relao aos participantes da interao, nem constitua uma questo de funoanafrica (que poderia ser substituda, por exemplo, pelos pronomes essa, esse), mas era a deproduzir um sentido de distanciamento axiolgico do articulista face ao discurso de umoutro, que ele introduzia e avaliava no seu enunciado. O articulista apresentava uma outra falano seu discurso, mas se afastava dela, no a assumindo, ou contrapondo-se a ela, como sepode observar nos exemplos8:

    (1) Em 1957, a "Tribuna da Imprensa", depois da sesso da Cmara dos Deputados,era o lugar em que nos reunamos para saber as maldades que o jornal soltaria no diaseguinte contra Juscelino. Odylo Costa, filho, o grande renovador da imprensabrasileira, era o secretrio. Carlos Lacerda era dono e cone, o santo guerreiro parauns, o demnio, a fera do Lavradio, o Corvo, e tudo o mais para aqueles que eramalvo de sua pena de fogo.

    (2) O tempo de conscincia, apenas de conscincia, para os negros brasileiros quelentamente comeam a perceber a importncia de no ser somente cidados epassam a lutar contra o preconceito velado que h dcadas assola este Pas. Omomento de tirar aquela idia de que negro s bom no futebol, na msica e nadana. Outras atividades, entre as quais a empresarial, so desenvolvidas comgrande desenvoltura pelos negros do Brasil.

    (3) No Brasil, quando se fala em criar trabalho para idosos, logo vm aqueles quetemem criar dificuldades para o emprego dos jovens. Penso, porm, que esseargumento no se sustenta. A reduo do enorme dficit da Previdncia Social temum impacto positivo na gerao de mais investimentos e empregos para todos.

    6 A funo dos pronomes demonstrativos e da modalizao nos estudos lingsticos ser apenas brevemente

    mencionada, uma vez que o objetivo demonstrar como esses elementos funcionam do ponto de vista dodiscurso.7 Essa funo s vezes aparece desempenhada pelos pronomes essa e esse.8 Por questo de espao, no possvel transcrever, na ntegra, os artigos de onde vm os exemplos.

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    Alm do mais, os mais velhos carregam consigo uma experincia profissionalvaliosa que pode ser transferida aos mais jovens, melhorando a sua empregabilidade.

    (4) O governo Fernando Henrique Cardoso negociou a dvida dos Estados emcondies excepcionais. Aquela coisa que, no popular, se chama de pai para filho

    (6% ao ano e trs dcadas para pagar). E o mesmo quer a alcaldia paulistana, sob ottulo de renegociar, tambm, as "dvidas dos municpios".

    (5) Na verdade acho que Blatter est inteligentemente repetindo aquela velhahistria de pr o bode na sala para depois causar um grande alvio ao tir-lo de l.[...]A Copa de selees a cada dois anos s seria mesmo boa para aquelas confederaesque subjugam os clubes e vivem de explor-los.

    (6) O CNSP, a Susep e o Ministrio da Fazenda seriam os coordenadores da polticadaquilo que se passou a chamar de Sade Suplementar, com sentido de completar oque o SUS oferecia ou mesmo substitu-lo.

    No exemplo 1, a presena de aqueles uma questo de estilo do enunciado, poispoder-se-ia ter em lugar a palavra outros, que a opo em uma construo sintticasemelhante no mesmo texto: Uns viam uma stira e buscavam carapuas; outros, umamensagem cifrada aos golpistas que pululavam na cena poltica. Entretanto, o pronomeaqueles materializa o distanciamento axiolgico que o autor marca, no relato, dos que eram oalvo das crticas de Carlos Lacerda, e que o denominavam como demnio e corvo, aocontrrio dos que o consideravam um guerreiro. Em 2 e 6, o pronome aquele indica odistanciamento ideolgico que os articulistas mantm face ao discurso racista e ao discurso dapoltica do Programa de Sade Suplementar, respectivamente. Nos exemplos 4 e 5, odistanciamento valorativo do articulista marca-se em relao aos discursos/valores que o

    ditado popular e a histria citada pem em discusso.Tambm esses pronomes marcam no s um enquadramento de distncia face ao

    discurso do outro, mas tambm em relao ao seu autor, como se pode ver no exemplo 3,onde os que afirmam que a criao de emprego aos mais idosos criaria dificuldades para oemprego dos jovens so referenciados como aqueles, o que produz um efeito de vagueza daautoria. Muitas vezes, esse processo de distanciamento valorativo que o autor mantm comoutros discursos por meio dos pronomes demonstrativos acompanhado de outros termosavaliativos de desqualificao e distanciamento: aquela coisa [o discurso reificado],aquela velha histria.

    Como ressalta Bakhtin, os enunciados no so neutros, sempre marcam a posiovalorativa do seu autor. Assim, o discurso citado sempre um discurso no discurso, portanto,um discurso enquadrado (avaliado) pelo que o cita, que lhe pode dar diferentes matizes desentido. Os pronomes demonstrativos so um dos recursos lingsticos que materializam essainter-relao com o discurso j-dito do outro, diante do qual o articulista mantm uma relaodialgica de distanciamento e desqualificao. Eles so um dos meios lingsticos deexpresso dos acentos de valor do articulista.

    J o conceito de modalidade tem chamado a ateno tanto de lgicos como delingistas. Para Cervoni (1989), tendo no mbito da Lgica a sua origem, a noo demodalidade foi favorecida, na lingstica contempornea, pelas novas reas de estudo, como aPragmtica e a Semitica. A questo da modalizao na linguagem pressupe a distino, noenunciado [no sentido de proposio], de um dito (contedo proposicional) e de uma

    modalidade, distinguindo-se tradicionalmente as seguintes modalidades: alticas (referentesao eixo da existncia, determinando o valor de verdade do contedo das proposies),epistmicas (que se referem ao saber, crena de um estado de coisas) e denticas (que se

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    referem ao mbito da conduta, das normas). Os indicadores modais so considerados como alexicalizao dessas modalidades, como sinalizadores lingsticos da atitude do falanteperante o seu enunciado (proposio). desta forma que Ducrot e Todorov (1998) definem amodalizao, como uma atitude assumida pelo sujeito falante com respeito ao contedo, ou

    seja, com o dictum. Essa a viso mais geral a respeito da modalizao.Nos dados, observei que a presena de determinados indicadores modais, quandoanalisados na totalidade do enunciado, eram traos ou da reao-respostaque o articulistadesejava do leitor ou da projeo que ele fazia da possvel reao-resposta ativa do leitor(enunciados pr-figurados), que ele introduzia e desqualificava (distanciava-seaxiologicamente) no seu enunciado. Dito de outro modo, eles se apresentavam comomaterializaes da relao dialgica do enunciado do articulista com o enunciado reao-resposta do leitor9, como se pode observar nos exemplos:

    (7) Primeiro vem o alimento da auto-estima, rasgando de vez a carapua de que

    preto nasceu para ser empregado, servial ou marginal. preciso descer o morro, afavela, e ocupar reas residenciais nobres. Afinal, a humanidade nobre, e todas asraas esto includas em tal conceito. Ou seja: as oportunidades devem ser iguaispara todos.O segundo passo, extremamente decisivo, que os espaos devem ser ocupados. Osbancos escolares precisam ter mais negros sentados, porque esse o nico caminhocapaz de igualar brancos, ndios, alemes, italianos, japoneses, etc.

    (8) No momento em que o Brasil enfrenta dificuldades, oriundas do quadrointernacional e do prprio atraso nos ajustes internos, especialmente a reformaconstitucional, preciso que todos ofeream sua contribuio concreta para que sejaum pas melhor.

    (9) No h pas que apresente equilbrio nas contas da seguridade social, o que levoua OECD a propor uma srie de medidas, das quais destaco as seguintes:1) Os sistemas de aposentadoria, a estrutura tributria e os programas sociais devemser reformados de modo a remover os incentivos aposentadoria precoce; 2) as leistrabalhistas devem ser modificadas de forma a estimular e assegurar a atividade dosmais idosos; 3) os benefcios das aposentadorias devem ser compostos de um mixde recursos pblicos e privados.

    (10) Esse fatalismo equivale ao desprezo a anos de luta contra ditaduras militares eregimes unipessoais. Equivale a recusar o caminho da democracia substantiva que,apesar dos pesares, permanece vivel. preciso insistir nele, enfrentando ogolpismo grosseiro ou ilustrado e o canto das sereias desencantadas.

    (11) H necessidade de repensar a Federao.H necessidade de os brasileiros conscientes comearem a exigir coragem epatriotismo dos dirigentes nacionais.

    Nesses primeiros exemplos, os indicadores modais funcionam como um modo deorientao para o leitor: eles no introduzem um possvel enunciado do leitor, como se vernos exemplos a seguir, mas funcionam como um modo de sua interpelao, ou seja, procuramorientar a sua reao-resposta ativa (verbal ou no, imediata ou retardada). Esse leitornormalmente generalizado no artigo, o que engloba todos os leitores, como em preciso eh necessidade; quando ele aparece marcado, seu sentido tambm tende para a

    9 Alexandrescu (1976) menciona esta funo da modalizao, ao defini-la como a atitude do locutor para comseu enunciado ou para com seu interlocutor.

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    generalizao, como em preciso que todos e H necessidade de os brasileirosconscientes.

    A relao dialgica para com o leitor orienta-se como uma estratgia no sentido deimpor um determinado discurso (um ponto de vista, uma opinio) como a verdade, como a

    norma a ser seguida. Ou seja, essa modalizao apresenta a questo do carter hierrquico dasituao de interao do artigo e da faceta de autoridade em relao ao leitor. A presena dosindicadores modais do tipo preciso, h necessidade e deve-se, marcas de umamodalizao dentica do campo da obrigao, so traos dessa relao assimtrica entre autore leitor, podendo-se situar o artigo, pela tica da modalizao, no mbito do discurso deautoridade. O articulista, por meio do seu ethos, constri um discurso de autoridade einterpela o leitor a aderir a seu horizonte apreciativo, aceitando-o como a verdade. Essa umadas funes discursivas centrais da modalizao no gnero artigo.

    Mas os operadores modais, alm de funcionarem como lugares de interpelao doleitor, tambm introduzem possveis reaes-resposta (enunciados) dos leitores, que sovaloradas e destitudas de credibilidade, num processo de contra-palavra refutativa do

    articulista:

    (12) Envolvendo as muitas dimenses da natureza humana, de matria e esprito, apsicanlise, pode-se dizer, uma nova fronteira da sempre velha e renovadacuriosidade do homem em saber a origem e as motivaes de seus atos. [...]Sumariamente, poderamos dizer que a psicanlise consiste em: [...].

    (13) O primeiro ms do ano trouxe-nos o euro e, com ele, uma certa fugaz euforiaeuropia. O contraste com o resto do mundo poder explicar o fenmeno. A criseest a generalizar-se inexorvel e perigosamente, da sia Amrica Latina, daRssia frica. certo que, do outro lado do Atlntico, Clinton fez um discurso no menos eufrico

    sobre o Estado da Unio, como se a Amrica tivesse resolvido, durante seusmandatos, todos os problemas os seus e os dos outros e s lhe faltasse agorarecolher a sagrao universal. Est longe de ser o caso.

    (14) Esperam-se para o ano de 1999 grandes discusses no campo certo Ministrioda Sade e Consu sobre planos de sade e idem sobre seguros de sade noMinistrio da Fazenda-CNSP-Susep.Evidentemente, o Consu no dever abrir mo de definir os produtos de seguro-sade e o Conselho Nacional de Seguros Privados e a Susep tero competncia defiscalizar o cumprimento de seus atributos.

    Nos exemplos, os indicadores modais so marcas da projeo que o articulista faz da

    reao ativa do leitor face ao seu [do articulista] discurso. No exemplo 12, o emprego dosmodalizadores pode-se dizer e poderamos dizer uma estratgia de reao do prprioautor, uma espcie de recuo, contra uma possvel objeo do interlocutor quanto ao conceitode psicanlise apresentado. O autor cria um efeito de cautela em relao ao que diz, que serobjeto de apreciao valorativa (que se verter em reao-resposta) do leitor. O uso desse tipode modalizao cria um efeito de amenizao dos sentidos e da interao10.

    Nos exemplos 13 e 14, os operadores modais recaem sobre um possvel enunciado dointerlocutor, ao qual o autor se ope, constituindo-se seu discurso como que uma reao aodiscurso possvel do leitor. Em 13, as expresses certo que e est longe de ser o casoso elementos que enquadram um possvel enunciado do leitor e, inclusive, demarcam asfronteiras entre o discurso do articulista e o discurso citado do leitor. Os modalizadores

    10 Esse funcionamento da modalizao comum no discurso cientfico.

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    destacados constituem-se como pistas de um dilogo no desenvolvido do autor e do leitor,que poderia ser reconstrudo como:

    O primeiro ms do ano trouxe-nos o euro e, com ele, uma certa fugaz euforia

    europia. O contraste com o resto do mundo poder explicar o fenmeno. A criseest a generalizar-se inexorvel e perigosamente, da sia Amrica Latina, daRssia frica... [articulista]

    Mas Clinton fez um discurso eufrico sobre o Estado da Unio ... [leitor] Sim, certo que Clinton fez um discurso sobre [...]. Est longe de ser o

    caso.[articulista]

    Situao discursiva semelhante observa-se no exemplo 14, onde o modalizadorevidentemente se direciona a um possvel questionamento do leitor diante da diviso dastarefas propostas para o Ministrio da Sade, Consu e Ministrio da Fazenda-CNSP-Susep.Nesses dois ltimos exemplos, observa-se a presena de uma relao dialgica orientada parao leitor, onde se projeta a antecipao de suas possveis contestaes, indagaes, ou seja, dos

    seus enunciados pr-figurados, que so valorados e contestados pelo articulista. Essa possvelreao-resposta antecipvel e inserida no discurso do articulista cria no artigo um efeito deuma conseqncia j prevista, embora seja antes uma estratgia para evitar essa possvelcontra-palavra do leitor.

    A apresentao dos pronomes demonstrativos e da modalizao baseou-se na anlisedo seu funcionamento no gnero artigo assinado. De todo modo, esse funcionamento deve seobservar tambm em enunciados de outros gneros, embora com presena maior ou menor,pois a anlise tomou como parmetro geral a observao desses fenmenos lingsticos notodo do enunciado, na sua relao dialgica com outros enunciados. A ttulo de ilustrao domodo de funcionamento dessa modalizao em outros enunciados, de outro gnero e de outraesfera social, seguem trs exemplos da modalizao analisada, extrados de textos do Crculo

    de Bakhtin, e que mostram essa dialogizao interna do enunciado e o seu confrontoaxiolgico, marcados pela arregimentao dos indicadores modais.

    (15) Alm das fronteiras da filosofia da linguagem, da lingstica e da estilstica queest fundamentada nelas, os fenmenos especficos do discurso permaneceminexplorados em quase sua totalidade. [...]. verdade que nesta ltima dcada [dcada de 30] esses fenmenos j comearam aatrair a ateno da cincia da linguagem e da estilstica, mas o conhecimento amploe capital deles, em todas as esferas da existncia das lnguas, ainda est longe de sercompreendido. (BAKHTIN, 1993b, p. 85).

    (16) Por isso, o problema da conscincia individual como problema da palavra

    interior, em geral constitui um dos problemas fundamentais da filosofia dalinguagem. claro que esse problema no pode ser abordado corretamente se se recorre aosconceitos usuais de palavra e lngua como foram definidos pela lingstica e pelafilosofia da linguagem no-sociolgicas. preciso fazer uma anlise profunda eaguda da palavra como signo social e compreender seu funcionamento comoinstrumento da conscincia. (VOLOCHINOV, 1988, p. 37).

    (17) A passagem da atividade mental interior sua expresso exterior ocorre noquadro de um mesmo domnio qualitativo, e se apresenta como uma mudanaquantitativa. verdade que, correntemente, no curso do processo de expressoexterior, opera-se a passagem de um cdigo a outro (por exemplo: cdigommico/cdigo lingstico), mas o conjunto do processo no escapa do quadro deexpresso semitica. (VOLOCHINOV, 1988, p. 52).

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    Esses exemplos mostram o mesmo funcionamento da modalizao apresentado naanlise do gnero artigo: os indicadores modais introduzem e emolduram uma possvelreao-resposta do leitor, que avaliada negativamente (refutada) pelo autor. Nos exemplos15 e 17, a possvel resposta do leitor fica enquadrada entre verdade que e mas. Como j

    dito, como se essa parte do enunciado apresentasse um dilogo no desenvolvido:

    A passagem da atividade mental interior sua expresso exterior ocorre noquadro de um mesmo domnio qualitativo, e se apresenta como uma mudanaquantitativa... [autor]

    Mas no curso do processo de expresso exterior, opera-se a passagem de umcdigo a outro (por exemplo: cdigo mmico/cdigo lingstico)... [interlocutor]

    verdade que , correntemente, no curso do processo de expresso exterior,opera-se a passagem de um cdigo a outro (por exemplo: cdigo mmico/cdigolingstico), mas o conjunto do processo no escapa do quadro de expressosemitica. [autor]

    4. Consideraes finaisCom a apresentao das consideraes de Bakhtin e do modo de funcionamento dos

    pronomes demonstrativos e da modalizao, objetivei demonstrar como os estudos de gnerospodem contribuir para com os de lngua. H ainda outros dados que permitem demonstrar odilogo possvel: o estudo das relaes dialgicas e sua materializao nos enunciados trazcontribuies para a Estilstica; a abordagem dos gneros intercalados estabelece interfacecom os estudos de textualizao, pois ajuda a explicar a heterogeneidade da composiotextual. Em resumo, a meta foi demonstrar que, respeitando as diferenas tericas, nosomente os estudos lingsticos trazem contribuies para os do discurso, mas estes trazemcontribuies para se entender o funcionamento das unidades lingsticas na lngua e no texto.

    Como diz Bakhtin,

    Nenhuma corrente cientfica [...] total. [...] No se pode nem falar de ecletismo: afuso de todas as correntes em uma nica seria mortal para a cincia [...]. Quantomais demarcao, melhor, s que demarcaes benevolentes. Sem brigas na linha dedemarcao. Cooperao. Existncia de zonas fronteirias (nestas costumam surgirnovas correntes e disciplinas). (BAKHTIN, 2003d, p. 372).

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