a todas as crianças que gostam — ou ainda aprenderão a gostar … · 2019-08-26 · prefÁcio...
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Atodasascriançasquegostam—ouaindaaprenderãoagostar—daescola.
PREFÁCIO
Tudo o que eu vou contar aqui aconteceu de verdade. É incrível quetenhasidoassim,masfoi.Euseiporqueeuestivelá.Atravesseimeiomundocomumamissão:descobriroqueaconteceudeverdadecomumameninachamadaMalalaYousafzaieporqueelaestavasendoperseguida.Eurecebiessamissãoporqueéissoqueosjornalistasfazem:investigamebisbilhotamtudo,plantamperguntasecolhemhistórias.Era uma missão perigosa e eu sabia que teria de enfrentar grandes
desafios. No dia da minha partida, ouvi pelo rádio uma ordem: que osjornalistas não viajassem ao Swat! O vale tinha se tornado um territórioproibido,mas, assimcomoas crianças, os jornalistas adoram fazer tudooque é proibido. Então, arrumei a mochila às pressas, coloquei minhalanterna amanivela, omosquiteiro, o gás de pimenta e o quemais cabiadentrodela,eparti.AtravesseioAtlânticoeaÁfricaatéodeserto,cruzeiomarArábicoeseguiemdireçãoàsmontanhas,ondeMalalavivia.Quando cheguei ao meu destino, eu tive de me disfarçar, porque os
perigosaindaassombravamovaleeninguémpodiasaberqueeuestavalá.Só o Ejaz, meu guia e protetor, um homem grandalhão, tão forte quantobondoso, e com voz de trovão; e a família de Sana, muito generosa ecorajosa, que aceitou me esconder em sua casa para que eu pudesseconhecer essa história, tão aterrorizante quanto cativante, que vou contaragora.
1.
Malalaeraumameninaquequeria irparaaescola.Mas,nolugarondevivia,issoeraproibido.Livro,sóescondido.Nocaminhoparaaescolahaviamuitosperigos.Riscosinimagináveis,demorteaté.EsselugarsechamavaledoSwat.OvaledoSwatficanumpaísdistantechamadoPaquistão.Temcampos
verdejantes,cercadospormontanhasgigantes,queanevepintadebrancoquaseoanointeiro.Noverão,quandoosolaqueceospicos,anevederreteesejuntaaorioSwat,quedesceserpenteandoaserraatéoencontrodorioCabul, este vindo do país vizinho, o Afeganistão. Ali, entre a magníficacordilheira deHindu Kush e as águas cristalinas dos rios, com um pé noPaquistãoeoutronoAfeganistão,vivemhámaisde2milanosospashtuns,comoMalala.Sãotãobelaseférteissuasterras,quepoderososimperadorestentaram
conquistá-las. Até Alexandre, o Grande — o maior deles. O rei dos reisviajouaovaledoSwatnoano328a.C.,desafioudeusesqueseacreditavaprotegerem o vale, cruzou rios apinhados de gaviais, venceu os montes,lutoubatalhasatrozes.Mas,aoenfrentarosbravospashtuns,acabouferido,eporissoadmitiunãoserumdeusimortal,masumhomemcomum.Seusescritosnãosobreviveramintactosaotempo,maspersistemnaslendasdoSwat.
Pashtun: Etnia de um povo guerreiro que vive ao longo da Hindu Kush, entre o Afeganistãocentral e o norte do Paquistão. Sua origem é incerta.Uns acreditam tratar-se de uma das deztribosperdidasdeIsrael,emboranãohajaprovashistóricassobreisso.Outrosdizemqueelesvêmdamisturadospovosarianosedeinvasores.Eramchamadosde“povosdasmontanhas”.
Alexandre teriaditoqueospashtunseram tão ferozesquantoos leões.“Estouenvolvidona terradeumpovo leoninoevalente,ondecadapédochãoécomoumaparededeaço,confrontandomeussoldados. […]TodosnestaterrapodemserchamadosdeAlexandre.”Gengis Khan, fundador do maior império da história, atravessou essas
terras no anode 1200 com seus cavalos de guerra e arqueiros tãohábeisqueeramcapazesdeacertaroalvocomsuasflechasamaisdequinhentosmetros de distância.Deixou comoherança obuzkashi, um jogobélico emquecavaleirosdisputamumacabrasemcabeça.Semcabeça!Eraassimqueeletreinavaseusguerreirosnasmontanhas,eospashtunsaprenderamcomeles.
Outros conquistadores vieram. Mas os pashtuns nunca se deixaramdominarporquesãoumpovomuitobravoevalente;omaisbravoevalentedetodosospovosbravosevalentes.FoiassimqueofilósofogregoHeródoto,opaidaHistória,descreveuos
indianosqueviviamporvoltade430a.C.emumlugarchamado“paktuike”,ondeficahojeovaledoSwat:umlugarhabitadoporformigasgigantesquegarimpavamouronodeserto,porcamelosquecorriamcomocavalosepelopovo“maisguerreirodetodos”.FoidelesqueasmeninasdoSwatherdaramsuacoragem.
Gavial: Grande crocodilo que habita o rio Ganges e chega a ultrapassar cinco metros decomprimento.RioGanges:Éumdosprincipaisriosdosubcontinenteindianoeumdosvintemaioresdomundo.Com2.525quilômetros,percorredonorteda ÍndiaaBangladesh (antespartedoPaquistão).Éconsideradosagradoparaosseguidoresdareligiãohindu,quesãomaiorianaÍndia.Indianos:HabitantesdaÍndia,paísdoqualoterritórioondeficaoPaquistãofezparteatéasuaindependência,em1947.
2.
Num passado não muito distante, o Swat foi habitado por príncipes eprincesas,reiserainhas,comonosvalesencantadosdoscontosdefadas,sóquedeverdade.Euachocuriosoqueaindaexistamreise rainhas,príncipeseprincesas
deverdade.Então,quandochegueiaoPaquistão,aprimeiracoisaquefizfoivisitaropríncipedoSwat.SeunomeéMiangulAdnanAurangzeb,masagoraeleéumex-príncipe,
usaternoegravataemoraemumacasa,porquejánãotemumcastelo.Éumacasapequenaparaumpríncipe.Masseasparedesencolheram,aindaguardamseusencantosnasrelíquiasdostemposemqueovaledoSwateraum reino grandioso. Enquanto tomávamos chá, em xícaras de ouro eporcelana, elememostrou fotosde sua infância e foi como se fizéssemosumaviagemnotempo.Em uma delas está o avô materno, o general Ayub Khan, que foi
presidentedoPaquistãoapóstomaropoderemumgolpe.Eraumgeneralpoderoso,ele.Aseuladochamaaatençãoumamoçaelegante,depenteadopreciso—bemsevêquesãofotosantigas,porquenoSwatasmulheresjánãopodemexibirocabelo.Emoutrafoto,amesmamoçacumprimentaasalunas de uma escola, quando as meninas ainda podiam estudar comsegurança.Amoça é a filhado general emãedopríncipeAdnan,Nasim.Nasim se casou com Miangul Aurangzeb, o último sucessor coroado doSwat,paideAdnan.Omeninomirradoedecalçascurtasnafotoéele,semo farto bigode de agora, mas com o mesmo corte de cabelo,milimetricamentedivididoeajeitadocomgel.Ameninadevestidorodado,queaparecenafotografiabrincandocomele,eraamelhoramigadeinfânciado príncipe, Benazir Bhutto. Você já ouviu falar dela? Quando cresceu,
Benazirsetornouaprimeiramulheraassumiropostomaisaltodeumpaísmuçulmano,odeprimeira-ministradoPaquistão.MasosmesmoshomensqueperseguiamMalala tampoucoadeixavamempaz, atéqueumdiaelanãoconseguiumaisescapardasgarrasdeles.BenazirBhuttomorreuemumatentadoabomba.Mergulhadonasrecordações,Adnanpassaosdedosdelicados(porqueos
príncipes têm dedos muito delicados e unhas feitas) sobre uma foto dobisavôpaterno,comosequisesselhefazerumcarinho.Opríncipetemmuitasaudadedessebisavô.SeunomeeraMiangulGolshahzadaAbdul-Wadud,owalidoSwat.Umwalideverdade!OwalidoSwat tinhaumexército sódele,masnão lhe serviadenada,
porquenoseutempoaqueleeraumvaledepaz,eele,umreibenevolenteepacífico—ou,pelomenos,éassimqueosmoradoresdoSwatguardamamemóriadele.
Wali:Líderdoprincipado,equivalenteaumrei.Taj Mahal: Construído entre 1632 e 1653 às margens do rio Yamuna, em Agra, na Índia, éconsiderado uma das SeteMaravilhas doMundoModerno e Patrimônio da Humanidade pelaUnesco.Éumsuntuosomonumentodemármorebrancoqueo imperadorShahJahanmandouconstruir em memória de sua esposa favorita, Aryumand Banu Begam, a quem chamava deMumtazMahal(JoiadoPalácio).Elamorreuapósdaràluzo14ºfilhodoimperadoreoTajMahalfoierguidosobre seu túmulo,parahomenageá-la.Por isso,é tambémconhecidocomoamaiorprovadeamordomundo.
Emuma fotografia,owalidoSwataparecenodiaemque foi coroado.Em outra, com seus soldados em uma expedição. Usava meias até osjoelhos,calçascurtaseóculoscomlentesdefundodegarrafa.Pareciaummeninograndevestindoroupasdecriança,umPequenoPríncipedebarbabranca. Não queria, porém, viajar pelomundo, mas levar omundo até oSwat.Eraesseoseusonho.Umdia,arainhaElizabethII,doReinoUnido,visitouovale.Encantou-se
com o Palácio Branco, a residência de verão dowali. O castelo tem essenomeporqueétododemármore,amesmapedrausadanaconstruçãodomagníficoTajMahal,ecercadodemontanhasnevadas.Eranos jardinsdoPalácioBranco,ondeasflorespincelamdecoresapaisagemnoverão,que
Malalaeasamigasdaescolamaisgostavamdefazerpiqueniques.Conteiaopríncipeque,umdia,eu tambémconhecia rainhaElizabeth.
Foi quando eu morava na Inglaterra, onde ela vive. Estávamos em umapequena igreja, uma capela muito antiga. Fica nos fundos do Palácio deWindsor, a residência oficial da rainha e omaior castelo domundo aindaocupado.Omaiordomundo!Fuiláporqueumaamiga,muçulmanacomoMalala,nuncatinhaentrado
emumaigrejaeestavamuitocuriosa,entãopediuqueeualevasse.QuandoeuvisiteioEgito,aDina,essaminhaamiga,haviamelevadoparaconhecerasmaisbelasmesquitasdesuaterra,entãoeuretribuíagentileza.
Igreja:Ondeoscristãosrezam.Capela:Pequenaigreja.Mesquita:Ondeosmuçulmanosrezam.Sinagoga:Ondeosjudeusrezam.Templobudista:Ondeosbudistasrezam.
Qual não foi nossa surpresa quando vimos que lá estava a rainha (empessoa!),assistindoàmissa,eleganteemseutailleurverde-águaechapéunomesmo tom. Na saída, eu esperava vê-la ir embora em uma carruagem,como nos desfiles da realeza, mas ao final ela entrou em seu carro, umJaguar verde (ela deve mesmo gostar dessa cor!) e seguiu ao volante,dirigindo pelos jardins da pequena igreja até os portões de seu palácio.Antesdesedespedir,aproximou-sedonossogrupoeperguntou:“Vocêssãoestudantes da escola de Londres?”. Nós éramos, mas não conseguíamosnem falar, de tão espantadas. Então ela disse: “Muito bem! Estudembastante,porqueaeducaçãoémuitoimportanteparameninosemeninas”.O wali do Swat também achava a educação importante. Foi ele quem
abriuasprimeirasescolasparameninasnovale.Masissofoiantesdaguerraedeasmeninasseremproibidasdeestudar.
Parasabercomotudoaconteceu,seguiviagemrumoaovaledoSwat.
3.
A Grand Trunk Road é uma antiga rota de comércio entre emirados,reinos e impérios, por onde trafegam coloridos caminhões típicos doPaquistão.Foiconstruídaporordemdeumpashtun:SherKhan,orei leão!Dizem que ele ganhou esse apelido depois dematar um leão de verdadecomasprópriasmãosnaflorestadeBihar.OtrechodeestradaatéovaledoSwatérecortadopor túneis longose
escuros, que perfuram asmontanhas abrindo o caminho. Curvas sinuosascomprimem-se entreo valeprofundo (tãoprofundoquantoumabismo!) eenormespenhascosderochasescarpadas.Dizemquenessafaixaespremidaaconteceram mais batalhas que em qualquer outra parte do mundo. Ospashtunsteriamconseguidoexpulsarseusinimigosemtodaselas.Porisso,deramaessasterrasoapelidodecemitériodosimpérios.No alto dasmontanhas e pra lá das curvas, onde a estrada encontra a
nascente do rio e o ar é mais fresco, fica a cidade onde Malala nasceu.Chama-seMingoraeéamaiordovaledoSwat.Quando nos aproximávamos da chegada, soldados nos pararam. Eles
controlamaentradaehámuitosdelesnasruas,atrásdebarricadasdesacosdeareia,noaltodetorresdevigilânciaeemtanques,comonumazonadeguerra!Espereiemumatenda,enquantoEjazmostravaaomilitaracartadocomandodoExércitoquenosautorizavaaentrarnovale.OsolfortefaziaopostoparecerumacampamentobeduínonoSaara.
“Siga!”,disseosoldadosisudo.Masavisou:“NãosaiadaáreadecercodoExército!Émuitoperigoso”.Sananosesperavanocentrodacidade,ondecoloridos riquixás, carros
deboiderodasrangentesepastoresdeovelhasdividemoespaçocomoscarros.EleviveemKanju,dooutroladodorioSwat.FicaforadocercodoExército, onde eu não poderia ir, portanto.Mas, como eu disse antes, osjornalistas,assimcomoascrianças,adoramfazeroquenãopodem…Então,seguimosemfrente.Era fim de tarde e logo o vale foi engolido pela sombra do pico de
Falaksair.Podeservistodequalquerponto,temotoponevadooanointeiroe6.257metrosemdireçãoaocéumaisazulqueeujávi!Na beira do rio Swat,moradores aproveitavam os últimos raios de sol
paracoletarpedrasparaconstruirsuascasas.Assimsãofeitasasmoradiasdo vale, com pedras de rio equilibradas umas sobre as outras, como hámilênios.Euobservavadistraída a lindapaisagemaoatravessarmosaponte, até
queocarroparou.Umsoldadoarmadolançouholofotesemminhadireção,aproximando o rosto até bater com o capacete na janela. O clima haviaesfriadoláforaeseubafoquentedesenhavanuvensdevapornovidro.
Beduíno:Povoárabequevivenodeserto.Saara:ConhecidocomooGrandeDeserto,com9,4milhõesdequilômetrosquadrados,quaseotamanhodaChinaoudosEstadosUnidos.CobredoNortedaÁfricaatéoOrienteMédio.Suasdunaschegamater180metrosdealtura.Riquixá:Pequenoveículodeduasoutrêsrodaspuxadoporumhomemapéoudebicicleta,muitocomumnoOrienteparaotransportedepessoas.
Sentadanobancodetrás,euvestiaumshalwarkameeze tinhaorostocobertoporumlongovéuquedeixavasómeusolhosdefora.Éassimquese vestem asmulheres no vale do Swat. Elas nuncamostram o rosto nasruas,vocêsabia?Fazpartedaculturalocal.Osguardasacharamqueeueraumadelasenosdeixaramseguir.Estacionamosocarronafrentedoúnicomercadinhocomaluzacesaem
todo o bairro e continuamos o caminho a pé na escuridão por estreitas
vielas, desenhadas pelos muros altíssimos das casas — um sinal daviolência, eu pensei. O caminho lembrava um labirinto. Um labirinto deverdade, daqueles feitos para a gente se perder e nunca mais sair. A luaainda não tinha nascido para ajudar a iluminar os nossos passos eseguíamosSanapelosomdasolagastadeseussapatosarrastandonochãodeterrabatida.Viraaqui,viraali…Nãochegavanunca!Estavatãoescuroquecomeceiaficarcommedo…AtéqueSanaparoubruscamente.—Chegamos.Éaqui.
Eunãoconseguiaenxergarnemmesmoorostodele.Quandomeusolhosse acostumaram com a escuridão, a silhueta de uma ruína se desenhoudevagarnapenumbra.
—Estaéaminhacasa.FoibombardeadanaúltimabatalhadoSwat.
Bombardeada???Aquelaeraacasaondeeuficariahospedada!
—Porquebombardeada?—perguntei.
Shalwarkameez:Conjuntodecalçaetúnicabemlargasedetecidoleveparaespantarocalor.Éaroupatípicadovale,parahomensemulheres.
—Porquemeuirmãoéumtalibã.
—Umtalib…oquê?
Eudevoterficadotãobrancaquemeurostoseiluminounonegrumedanoite.Aoveromeuespanto,Sanasoltouumaruidosagargalhada.
—Nãosepreocupe,elefoipresopelosmilitares.Vamos!Depoisexplico.
Caminhamos por mais cinquenta metros na direção de um beco sem
saída e entramos à direita por uma portinhola. Ali ficava uma hujera.Reunidosemtornodeumfogareiroagásestavamquatrohomens,sentadosem camas de trançado de palha, com as pernas dobradas sobre a tramacomoseestivessemdiretonochão—umcostumedoshomensdastribospashtuns. Quando nos viram aparecer na porta, eles se apressaram emesconder suas armas. Sob os cobertores de flores com que se cobriam,tinhamnocolopistolasefuzis.Eununcatinhavistotantasarmas!
Àquelaaltura,eutentavamelembrardecomotinhachegadoatéali.Setivesse seguidoo exemplo de João eMaria, na história que li quando eracriança, teria marcado o caminho com migalhas de pão. Assim, saberiacomo escapar. Mas e agora? Como poderia fugir? Para onde? Fiqueiparalisadapelomedoenãoconseguipensaremmaisnada.
Hujera: Casa de homens usada para encontros políticos, reuniões de trabalho e pequenascelebrações,longedasmulheres,que,deacordocomocostumepashtun,nuncapodemservistasporestranhos.
EstavatãonervosaquenempresteimuitaatençãoquandoSanaexplicouqueoshomenseramlashkars:moradoresquehaviamformadoumamilíciaarmada para salvaguardar o vilarejo dos perigos.O chefe do grupo era oprofessor Hanif e ele estava marcado para morrer! Havia três meses,recebeu uma ameaça: deveria deixar o vale dentro de 24 horas. Mas,teimosocomoosjornalistas,Hanif nãotinhadadoumpassonempretendiadeixar sua casa.No lugar disso, ficaria para defender as terras “comoumpashtun legítimo”, elemedisse.Por isso, passava asnoites acordado feitoumzumbi.
Quieto até então, Ejaz, omotorista, tomou coragem e revelou-me quetambémestava armado.Trazia umapistola escondida nameia.Nameia?!Parameproteger,disse.Acontecequeeudetestoarmasebrigueicomele.—Meprotegerdequeperigos,exatamente?—perguntei,desafiadorae
umpoucoirritada.—Doshomensdasmontanhas—elesresponderam,enigmáticos,quase
emuníssono.Masnãomederammaisnenhumaexplicação,sóumalerta:—Vocênãodeveandarsozinhaporaí!
A velha porta demadeira, descascada pelo tempo, estava aberta.Umacortinaderetalhosprotegiaasmulheresdosolharesforasteiros.Noquintalde terra rachada,de tãoseca,sobreviviauma laranjeirasolitária.Dooutrolado,haviaumcômododacasaondeencontreiasmulheres,todassentadasnochão,emvoltadeumfogaréualenha.—Mashallah!—disseRazia,amulherdeSana,quandomeviu,abrindo
osbraçoseosorriso.Éojeitodelesdedizerquesoubem-vinda!
Lashkar:Palavradeorigempersa, traduzidacomo“militante”ou“exército”.Al-askar,emárabe,querdizer“soldado”.OslashkarsdoSwateramcamponesesqueseuniramparaprotegerovale.
A casa era muito simples, não havia cozinha e o banheiro era só umburaco no chão. Mas nada disso faz falta, quando somos recebidos comcarinho.Elesmederamoquartomaisconfortável,comumcolchãosobreo
tabladoeumsharai floridoequentinho.Eratambémomaisenfeitado,umtípicobetak,adornadocomfitasprateadasedouradas,comoostemplosnosdiasdefesta,eondeSanaeRaziaguardavamseuspresentesdecasamento.Eunãopodiaaceitaroprivilégiodeterumquartosóparamim,maseles
insistiram.Ahospitalidadeéumaquestãodehonraparaospashtuns.Nacasa,SanaeRaziavivemcomofilhoYaseen,denoveanos,easfilhas
TanzeelaQasi,dequatroanos,eAimunMehvesh,decatorze;acunhadadocasal, Nazia, com os filhos Zahor, de doze anos, Ynayatul, de catorze, eManzoor,detrêsanos,eas filhasWaresha,dedez,eWajeeha,deoito.NovaledoSwatéassim:não importaquantagente,a família inteiramoranamesmacasaetodosseajudam.OchefedafamíliaéopatriarcaMohibul-Haq,de85anos,paideSana.É
umsenhorfranzino,comosombroscurvadospelotempo,sorrisodepoucosdentesepeletãoenrugadaquantoosoloáridodoquintal,queeleatravessaa passos lentos, equilibrando-se com a ajuda de um cajado. Caminhaenroladoemumsharaidepontasatéochão,paraseprotegerdo frio,usasandáliasde couro e temabarbamuito longa ebranca comoaneve.Elelembraumpersonagembíblico.
Sharai:Cobertordelãtecidoàmãoporartesãosnosvilarejosdaregião,usadoparaprotegerdofrio severodasmontanhas.Chega apesar quatroquilos.É tambémusadopelos homens comoxale,emversãomaisleve,emcasaounasruas.Osmaistradicionaistêmacornaturaldalã,combordadoefranjanaspontas.Betak:Éumquartoousalapararecebervisitas.Umacasapashtun,pormaispobre,sempreteráumbetak,comadecoraçãotão imponentequantopossíveleondesãocolocadososbensmaispreciososdafamília.Chapati(ouparatha):Pãofeitodefarinha,águaesal,redondoebemfininho,comoumapizza.
Em todas as manhãs e noites que se seguiram, eume sentava com afamílianochão,formandoumcírculoemvoltadofogo,paracompartilharocafé e o jantar. Eles eram muito pobres, mas comida não podia faltar.Receber bem o visitante faz parte da tradição pashtun e compartilhar asrefeições é um momento de grande importância. Do fogareiro saíam oschapatisbemquentinhos,usadoscomoumpratoparaserviracomida,que
pegávamos com nacos tirados das beiradas, como colher. É assim quecomemospashtunstradicionais,comasmãos.
Ficávamos ali por horas, enquanto a fuligem escurecia as paredes eintoxicava o ar. Então o velho Mohib começava a contar histórias— ospashtuns são grandes contadores de histórias! Embora fosse um homemfranzino, a sabedoria acumulada durante a vida o transformava em umgigante.Àmedida que falava, a fumaça ganhava contornos de titãs, elfos,fadas, bruxas e bichos-papões, reis e príncipes lutando para governar. Aguerraestáaténashistóriasdeninar.
Masocontodequeascriançasmaisgostavameraodopequenogigantequemorava emumaabóbora e, umdia, comeu tantopão, tantopão, queficoucheiodegaseseexplodiuacasacomumpum!Eraasenhaparaahoradedormir.Docontrário, ficaríamosaliouvindo
ashistóriasecomendopãoeternamente,eacabaríamos,diziaovelho,porexplodiracasacomumpum!Nóstodosríamosmuitocomessahistóriaeíamosdormirfelizes.NoSwat,afaltadeluzimpõeoritmonascasas.Osmoradoresacordam
com o nascer do sol e, no fim do dia, o vale se rende ao cair da luz,mergulhandonacompletaescuridão,umlampiãoporvez.Razia vinha me acordar todas as manhãs antes da aurora, trazendo
baldesdeáguaaquecidanofogareiroparaomeubanho.Aáguaeratiradadeumpoçonoquintal.— Saba baher! (bom dia!)— dizia Razia, enquanto sua cunhadaNazia
tentavavarreracasa,semsucesso.Avassouradepalha,comoaquelasdasbruxas,levantavaaindamaisapoeira.Eosprimeirosraiosdesolfaziamaspartículasbrilharcomopurpurinanoar.O ruídodashastesarrastandonochãoeumgalodesafinadocomporiamaacústicadoiníciodosmeusdiasnovaledoSwat.Enquanto asmulheres preparavamo pão, esperávamos por uma visita:
seu nome era Almoz, uma menina de sete ou oito anos, cabelosemaranhadoseroupaemretalhos,quepercorriaascasastodososdiasnomesmohorário,umaauma,trazendoumacabra—osistemadedeliverydoSwat. Do animal tirávamos o leite, que saía quentinho e cremoso, prontopara beber. Era como se o vale tivesse parado no tempo, quando nem asmáquinasnemasgarrafasPETexistiam,etudopareciamaissimples.Depoisdocafé,osmeninosiambrincar.Usandogalhosdeárvorescomo
espadas, travavam lutas pelo domínio do espaço diminuto do quintal. Asmeninas não tinhammuito tempopara isso porque ajudavamasmães notrabalho de casa. Só Tanzeela, de quatro anos, ainda não usava véu eusufruíaderegaliascomobrincarcomosmeninos.Aimun,decatorzeanos,eraamaisvelhaeamaiscalada.Pareciauma
meninatriste.Raziamecontouqueelaeomarido játinhamrecebidotrêspedidos de casamento para a filha, porque as meninas do vale se casammuitocedo.RaziaéanalfabetaesecasoucomSanaaosquinzeanos.MasAimun não queria se casar jovem, como amãe. Assim comoMalala, elaqueriairparaaescola.
4.
Malala nasceu e cresceu entre os corredores e carteiras antigas demadeira da Escola Khushal, a maior do vale, do professor ZiauddinYousafzai,seupai.Era12dejulhode1997quandoamãedeuàluzameninacom a ajuda de uma vizinha parteira, num casebre na frente da escola.Ziauddin lhetransferiuseusobrenome.Aosnossosolhos,pareceumgestocomum,masnas sociedadespatriarcaisdosuldaÁsia, comooPaquistão,filhoshomenstêmpredileção.Achegadadeummeninoémotivodefesta,celebradacommúsica,dançaecomidastípicas,enquantoadeumameninanão é sequer anunciada. Criadas para se casar cedo, quando adotarão onome da tribo do marido, elas raramente são registradas no nascimento.Oficialmente,nãoexistem.Malala não conheceu essa distinção. Pai e filha tinham uma relação
especial.Emparte,porquedeacordocomopashtunwaliumameninanãopode
sairàruasemestaracompanhadadeummahram.Sãoospaisqueaslevamà escola, ao médico, a um passeio, enquanto as mães são mantidas empurdah.Issoaproximapaisefilhas.Emparte,porqueMalalaeraafilhamaisvelhaedesdepequenaacompanhavaZiauddin,enquantoamãecuidavadacasaedosfilhosmenores,KhushaleAtal,nascidosrespectivamentedoiseseteanosdepoisdairmã.
Pashtunwali:Éumcódigodecondutaqueregeassociedadespashtuns,transmitidooralmentedospaisparaosfilhosporgeraçõeshámilênios.AtéoséculoXV,ospashtunsnãotinhamescrita,porisso desenvolveram uma forte tradição oral. Até hoje a língua oral é o principal meio decomunicaçãoetransmissãodoconhecimento.
EmboranãofosseumKhan,adedicaçãodeZiauddinaoaprendizadofezdele um homem importante. Como representante da tribo Yousafzai,consideradaamaiseducadadovale,deumalinhagemdepoetasefilósofosdo Swat, Ziauddin integrava a qaumi jirga, presidia uma associação deescolas e, mais tarde, fundou o Conselho de Paz Global, que lutava paramanter a paz na região.Malala o acompanhava em protestos, reuniões eeventospúblicos,sempreatentaaosmovimentosedizeresdopai.Osdoissetornaramgrandescompanheiros.Ziauddin era um homem justo e dava à filha os mesmos direitos que
conferia aos filhos. “Osmeninos (Atal eKhushal) se sentavamno colo dopai, e Malala ao lado deles. Depois de alguns minutos com a família, apessoaquedeixavaumaimpressãomaisforteemvocêeraela.Asmeninasda nossa sociedade são muitas vezes intimidadas. Elas não falam, nãodividem seus sonhos, aspirações e ambições porque suas vidas estãodefinidas pelos pais e elas não têm escolhas. É raro para uma meninapashtun das áreas tribais ter permissão do pai para estar entre homensadultose,seestiver,ficarácaladaemumcantoesóresponderáaperguntasfeitasdiretamenteaela.Malalaeradiferente.Vocêpodiaverquealiestavaalguémquequeriamaisdavida.Issopodiaservistodesdequeelatinhadezouonzeanos.Eraumacriançaextraordinária”,medisseopríncipeAdnandurantenossaconversaemsuacasa.
Mahram:Guardião, necessariamenteumhomemda família, quepode ser opai, irmãoou filhomais velho, avôou tio,masnuncaumprimocomquemameninapossa se casarno futuro.Ocasamentoentreprimosécomumentreospashtuns,porqueoshomensdeoutras triboseclãssãomuitasvezesconsideradosinimigos.Paraprotegeratriboesuasterraseaumentaroclã,comos filhosquevirão,elespreferemmanter tudoemfamília.Por isso,namaioriadasvezes,aindahojesãoospaisqueescolhemcomquemasfilhasvãosecasar.Sãooscasamentosarranjados,comosediz.Purdah:Confinamentoemquevivem,emcasa,asmulherespashtunsdovaledoSwat.Elas sópodemsaircomautorizaçãodomaridoeacompanhadasporele.Àsvezes,seomaridopermitir,podemsaircomummahram.
“Todos os que um dia colocaram os olhos emMalala sabiam que elatinhaalgoespecial”,confirmouadiretoraMaryamKhalique,quandovisiteiaEscolaKhushal.
Antes mesmo de aprender a ler e escrever, Malala assistia às aulasinfiltrada entre as alunasmais velhas, “os olhos brilhando para o quadro-negro”,medissemadameMaryam.Eraassimqueasmeninaschamavamadiretora.A escola fica em um casarão branco. Sentada em um banquinho no
saguão de entrada, eu observava as alunas chegando para as aulas doperíodomatutino. Ao atravessar o pequeno e discreto portão demadeiratalhada,umaauma,elassetransformavam,comoseaquelefosseumportalmágico. O semblante preocupado dava lugar ao sorriso. O medo, àanimação. O silêncio, à algazarra. Os passos cuidadosos e vigilantes, aocorre-correescadariasacima!Eraumamanhãensolaradaeeuasencontrei reunidasno terraço,com
vistaparaaslindasmontanhasdoSwat,comofazemtodososdiasantesdecomeçaraaula.
Khan: É comumente adotado pelos pashtuns como último sobrenome, herança do ImpérioMongol,quandoerausadocomotítulodehonraparadesignaroschefesegovernantes.Qaumijirga:Ajirgaéumaassembleiadelídereslocaisquesereúnemparadecidir,porconsenso,sobre assuntos importantes para a comunidade.A qaumi jirga do vale do Swat foi criada paradefenderapazepreservaratradiçãoeahistóriapashtun.
Asmeninasmecontaramque,naescola,Malalaeraamaissabida,amaisvalente,amaisfalante.Desdepequena,discursavacomogentegrande!Eraamaissorridenteetambémamaisconfiante.Foioqueascolegasdeclassemedisseram.A escola organizava gincanas e competições entre as alunas, eMalala
passouacolecionartroféus.Participavadetodasasatividades,detestesdeconhecimentoaesporteseteatro.Umdia,Malalaescreveueproduziuumasátira de Romeu e Julieta, que interpretou com a amiga Malka-e-Noor;
Malala como Romeu e Malka como Julieta. Todos, alunas e professores,rirammuito.Quemmecontoufoiumdeseusmestres,FazalKhaliq,quememostroufotografiasdaquelediaalegre.As meninas também participavam de atividades fora da escola. Elas
criaram a Assembleia de Direitos das Crianças, em que se reuniam paradiscutir os problemas do vale do Swat e encaminhar pedidos e ideias desoluções para o governo. Com isso, chamaram a atenção das autoridadesparaovale.Emumadassessões,decidiramacabarcomotrabalhoinfantil;emoutra,quetodasascriançasdeveriamestarnaescola.Malala foieleitasuaoradora.
Malalaquasesempretiravadez.Àsvezesoito,masissoquandoaprovavaliaoito,comonaprovadefísica.Àsvezesvinte,masissoquandoaprovavaliavinte,comonadeálgebra.Eondejáseviumeninagostardefísicaeálgebra?Malalagostava!Defísica,matemáticaequímica.História,biologiaegeografia.Masoseutemapreferidoerapoesia:Malalagostavaderimar.Em urdu, pashto, inglês, as línguas que aprendeu a falar, além de umaspalavrinhasemárabe.O nome da escola foi escolhido em homenagem a um poeta pashtun:
KhushalKhanKhatak,queviveunoséculoXVII.Eraconhecidocomoopoeta
guerreiro.Umguerreirodaspalavras,comoMalala!Aocontráriodesuamãe,TorPekai,quenãoteveoportunidadedeirpara
aescola,Malalaaprendeuaamaroslivrosdesdepequena.Nosintervalosdasaulas,Malalaeasamigastrocavamvolumesdasaga
Crepúsculo e deHarry Potter, seus preferidos. Durante a guerra, omeninomágicotinhaopoderdelevá-lasparabemlonge,alugaresondepodiamsedivertiresesentiammaisprotegidas.
Urdu:LínguaoficialdoPaquistão.Pashto:Línguadopovopashtun.Inglês: Idioma oficial de países como Austrália, Canadá, Estados Unidos e Grã-Bretanha. NoPaquistão,éasegundalíngua,levadapelosbritânicos.Árabe:LínguadospovosárabesedoCorão,olivrosagradodosmuçulmanos,comoMalala.
Como lia muito, Malala sabia muito também. Por isso, quando falava,todosaouviam.Eracomelaqueopaigostavadediscutirpolítica,porqueMalalatinhaopiniãosobretudo.EoquefaziaMalalasertãoespecial?Oquerersaber,oras!Àsvezes,ela
perguntavaàspessoas,outrasaos livros,masnãoficavasemresposta.Eraessavontadegrandedesaberqueafaziaserespecial.É que, no vale do Swat, as crianças não são encorajadas a fazer
perguntas,masapenasaouvirosadultoseaceitaroquedizemcomocerto.Em pashto, a palavra para pensamento, soch, é a mesma que parapreocupação.Edesdequandopensaréomesmoquesepreocupar?Pensarébom;preocupação,não.QuandovocêperguntaàscriançasdoSwat:Wuli?Por quê? Muitas respondem: Sakh (Eu não sei) ou Asai (Porque sim). Erepetem:Sahid,sahid!(Sei,sei!).Sóque,àsvezes,semsaber.Naescolaédiferente,todosaprendemapensar,osmeninoseasmeninas
também—emclassesseparadas,porqueéassimnovaledoSwat:meninasparacá,meninosparalá.Issoémeiochato,mas,comodisseMalalaumdia,oimportanteéestudar.Avidadasmeninaséumpoucomaisdifícilqueadosmeninos,porque
elas ajudam no trabalho doméstico e têmmenos tempo para ser criança,
brincar e aprender.Mas é também verdade que elas têm uma vantagem:comoasmãesraramentepodemdeixaracasa,asmeninassãousadasdesdepequenasparatrazerelevarasfofocasdavila.Então,aprendemaobservare a saber das coisas sem exatamente perguntar. Assim, desenvolvem umtalentoespecial,quelevamparaaescola,ondeaprendemmaisrápidoetêmasmelhoresnotas.Osmeninosficamfuriosos!Vaiveréporissoqueaqueleshomensqueriamproibirasmeninasdeestudar…
5.
Quandoanoitecaíaeovaleescurecia,ZiauddinacendiaolampiãoeliapoemasparaMalala,umaformadeseesqueceremdasameaças.Às vezes Malala sentia medo e chorava baixinho, escondida. Daí
lembravateronomedeumaheroína,MalaladeMaiwand.Entãoenxugavaaslágrimascomovéu,porquenovaledoSwattodasas
meninas usam o dupatta ou o shawl. Malala não gostava de esconder orosto, comoas outras, nemdeusar a burca, porque é “muitodifícil andarcomaquilo”,elacontouumdia.Masachavaovéudasmuçulmanasbonito(hámuitasreligiõesnomundoecadaqualtemsuagraça!)ecomelecobriaoscabelosnegroseondulados,oqueajudavaadestacarseus lindosolhosamendoados.Cor-de-rosaeraoseuvéupreferido.
MalaladeMaiwand:Foiumapoetisaeguerreirapashtun,quedizemterlideradooexércitodeseupovousandoovéucomobandeira.Elamorreu,massuacoragemencheudeânimoossoldadoseelesvenceramabatalhadeMaiwandcontraosbritânicos,em27dejulhode1880.ÉchamadadeJoanaD’Arcafegã.
Dupatta:VéucomoqualasmulheresdovaledoSwatcobremoscabelos,mesmoquandoestãoemcasa.Shawl:Véulongo,depontasatéochão,queasmulheresdovaledoSwatusamparacobrirorostoeocorpoaosairdecasa.Burca:Vestequecobreasmulheresdacabeçaaospés,comooniqab,masencontradanascoresazul,brancaebege.Temumaredenaalturadosolhosparaqueelaspossamenxergar.TradicionalnoAfeganistãoePaquistão,eranopassadootrajedasmonarcas,quenãopodiamservistaspelosplebeus. Tornou-se obrigatória em público durante o regime dos talibãs. Hoje é usadaprincipalmenteporafegãsepaquistanesasdaszonastribais.
Niqab:Vestenegraelonga,queenvolveocorpointeiroeorostoatéaalturadonariz,deixandoapenasuma frestaparaosolhos.Seuusoé impostoàsmulheresárabesmuçulmanasdepaísescomoArábiaSauditaeEmiradosÁrabesUnidos.
Não eram só bonitos e coloridos os véus daMalala. Serviam tambémpara esconder os livros! Assim, ninguém percebia que ia para a escola.Todos os dias ela fazia um caminho diferente: às vezes seguia pelo rio;noutras,atravessavaomercado.Tudoparadespistarosolhares.Quando passava um homem muito barbudo, ela apressava o passo.
Porque os homens que proibiram as meninas de estudar e destruíram asescolas no vale do Swat têm a barbamuito longa. Faz parte do costumedeles.Elessechamamtalibãsevivemnasmontanhas,muitolongedasescolas.Curiosoéque“talibã”,naterradaMalala,querdizer“estudante”.Então,
como podem não gostar de quem estuda? Acontece que, quando essestalibãs erammeninos, eles também não puderam estudar e não sabem ovalorqueissotem.Muitosforamtiradosdesuasfamíliasquandoaindaeramcrianças.Erao
Natalde1978esoldadossoviéticos invadiramoAfeganistão.Oconflitosetornou parte da Guerra Fria. As bombas caíam do céu como chuva emilharesde famílias fugiramparaooutro ladoda fronteira, paraviver emcamposderefugiadosnoPaquistão.
Soviéticos: Nascidos na antiga União Soviética, um país que existiu entre 1922 e 1991. EracomandadopeloPartidoComunista,quetambémdeixoudeexistir,etinhacomocapitalacidadedeMoscou.AUnião Soviética se desmembrou emvários países eMoscou é hoje a capital daRússia.GuerraFria:NofimdaSegundaGuerraMundial,em1945,teveinícioaGuerraFria,umadisputapor poder entre EstadosUnidos eUnião Soviética, que dividiu omundo em dois blocos, comsistemaseconômicos,políticose ideológicosdivergentes: o chamadoblococapitalista, lideradopelosEstadosUnidos,eoblococomunista,lideradopelaUniãoSoviética.
Um dia, antes de conhecer a história da Malala, eu visitei um dessescampos, o Jalozai. É um lugarmuito,muito pobre. As famílias vivem embarracasde lona, sem luz e com frio.As crianças têmdebuscar águaempoçosmuitodistantes.Andamdescalçasesujasporqueochãoédeterraeelas tiveramdedeixar tudooque tinhampara trás: sapatos,brinquedos,aescola.Foi desses campos que muitas crianças foram tiradas das famílias e
levadas para madrassas. Seus pais acharam bom, porque lá elas teriamcomida, roupanova,um lugar limpinhoequentinhoparadormireestudo,coisasquenãoexistiamnoscampos.Masaqueleseramtemposdeguerraeosmeninos,nolugardisso,foram
ensinados desde pequenos a lutar e a usar armas. Quando cresceram,tornaram-sehomensmuitoviolentos.Euconheciumtalibã.TomeicoragemefuiatéacasadeleemCabul,a
capital doAfeganistão. Ele se chamavaAbdul Salam,mas seu apelido eraMuláFoguete.Porqueoapelido?Porquedizemqueconseguiuderrubarumhelicópterosoviéticocomumfoguetedisparadodoseuombro!Ele era um homemmuito carrancudo, até mais do que eu, que tenho
“carranca” no nome. Falava sem olhar para mim, porque, como outrostalibãs,tambémachavaqueumamulhernãodeveriaandarsemomaridooutrabalhar,enãogostavamuitodosestrangeiros.Masdepoiseupercebiqueeratambémumhomemtriste.Suamãetinhamorridoquandoelenasceue,como era apenas um bebê, foi entregue a uma madrassa, onde cresceulongedopai,das irmãsedos irmãosmaisvelhos.A famíliaeranômadeeseguiu caminho, abandonando-opara trás.Depois veio a guerra e a únicacoisaqueeleaprendeufoialutar.MuláFoguetetornou-seumcomandantemilitardostalibãs.
Fronteira:Linhadivisóriaentredoispaíses.Refugiado:Aquelequebuscarefúgioemoutropaís,ondepodeviveremsegurança.Madrassas:Escolasouinternatosreligiosos.Mulá:Doárabemawla,quequerdizermestreouguardião.
Seguiaordensdiretasdochefedogrupo,MuláOmar,quecomomuitostalibãs nunca havia aprendido a ler e a escrever. Ele era conhecido comoMuláCaolho,porqueperdeuoolhodireitoemumabatalha.Eratambémumhomem muito duro, embrutecido pela guerra. Quando tomou o poder,depois de expulsar os soviéticos do Afeganistão, começou a fazer coisasterríveis. Proibiu as mulheres de sair de casa sozinhas e as meninas de
estudar. Outros o imitaram no Paquistão e os talibãs aumentaram emnúmeroeganharampoder.
Umdia,invadiramovaledoSwat—efoiquandotudomudounavidadaMalala.
Nômades:Tribosepovospastoresquenãotêmresidênciafixaevagueiamerrantespelomundo.
6.
Era2007eMalala logo fariadezanos,quandooshomensdesceramasmontanhasechegaramaovale.Elescirculavammascaradosnatraseiradepicapes, aterrorizando crianças e adultos, fuzis Kalashnikov em punho.Vigiavam os arrozais armados com lançadores de foguetes e passaram adestruirtudooquelembrasseopassado.AfamíliadopríncipedoSwattevedefugir,oPalácioBrancofoiabandonadoeelesexplodiramatéasestátuasdeBuda,dostemposemqueovaledoSwaterapartedoreinobudistadeGandara.Temposemqueerachamadodejanad.MalalaeZiauddinpassariamachamá-lodeparaísoperdido.Oshomensdestruíramcomputadores, câmeras fotográficaseaparelhos
deTV,vídeo,DVDesom.Tomavam-nosdascasasecomelesfaziamenormesfogueirasnasruas.Tudonacabeçadeleseraharam.EMalala já não podia assistir a seu programa preferido:Raja Kee Aye
BaratGee (OGaroto dosmeus Sonhos Virá Casar-seComigo), no canal StarPlus.Nemmesmocantarolarsuamúsicafavorita,“MerahanMerahan”.Diziaassim: “Sua tristeza é aminha tristeza, sua dor aminha dor. Lálálá…”. EMalalaacantavalindamente,medissemadameMaryam.
Gandara:ReinobudistaqueocupavaonoroestedoPaquistãoepartesdolestedoAfeganistãoeexistiu entre o século VI a.C. e o século XI d.C., quando foi tomado, no ano de 1021, peloconquistadormuçulmanoMahmuddeGhazni,fundadordoImpérioGaznévida.Janad:Paraíso.Haram:Pecado.
Acontecequeoshomensbarbudosdasmontanhasmandaramfecharatéaslojasdemúsica.EmatarabailarinaShabana,queerafamosaporanimarasfestasdecasamentodovale.Paraservirdeexemplo,oscorposeramdeixadosnaGreenChowk(Praça
Verde), que os moradores passaram a chamar de Khooni Chowk (PraçaVermelha)—vermelhadacordesangue.ApraçaficavaatrêsquadrasdaEscolaKhushale,nocaminhoparaasaulas,asmeninasviamtudoaquilo.Malala entendeu o recado. A partir daquele dia, as cantoras já não
podiam cantar, as dançarinas já não podiam dançar. O vale emudeceu eficoutriste.As mulheres foram banidas da vida social e proibidas até mesmo de
frequentarobazar.Elestambémfecharamasbarbearias,assimninguémmaisfariaabarba!É que os talibãs deixam a barba crescer porque, para eles, se Alá deu
barba aos homens, é como tem de ser. Muitos muçulmanos não pensamassim.MasochefedostalibãsnoPaquistãolevavaissoaferroefogo,queriatudodoseujeito.Eraterrívelobarbaças!FazleHayateraseunome,maselegostavadeserchamadodeFazlullah.
Eraumsujeitoesquisito,dedentescentraisseparados,mascabeloebarbajuntos, a ponto de não se saber onde começa um e termina o outro. Oturbantenegrosobreorostopequeno,emolduradoporaquelaportentosaerebeldecabeleira,quemaispareciaajubadeumleão,deixava-oaindamaisdentuço; tão dentuço quanto falastrão. Quando começava, varava a noitedandosermão!TantoqueganhouoapelidodeMuláRádio.
Alá:Deus,emárabe.Barbaças:Homemquetembarbafartaecomprida.
Na infância,eleeraconstantemente flagradodormindopeloscantosdamadrassa.Largouaescolaedesistiudosestudosreligiososantesmesmodesaberlerdireito.Naadolescência,foiganharunstrocadoscomooperadordetelefériconaestaçãodeesquideMalamJabba.Localizadaemumcolossalnó demontanhas formado pelo encontro das cordilheiras deHinduKush,KarakoramePamir—queconectamoPaquistão, respectivamente,comoAfeganistãoaoeste,oplatô tibetanoa lesteatravésda ÍndiaeaChinaaonorte—,aúnicaestaçãodeesquipaquistanesafoidestruídamaistardeemumincêndio.OfogofoiprovocadopeloshomensdeFazlullah,àquelaalturajáconvertidoem“chefedoSwat”.LogoFazlullahestavagalopandopelasaldeiasecolinasdovalemontado
emumcavalobranco.Seushomensexplodiramausinadeenergiaeovalemergulhounamais
profundaescuridão.Radinhosapilhaeramaúnicadiversão.Massósepodiaouvir a voz de Fazlullah e ele dizia coisas apavorantes, que traziampesadelosetiravamosonodasmeninas.Seusdiscursosecoavamportodoovalecomoostrovõesdeumatempestadequeseanuncia.Foipelorádioqueelemandounoticiarqueasmeninasestavamproibidasdeiràescola.—Euquerotereducaçãoequerometornarméd…—murmurouMalala
poucodepoisdereceberanotícia.Elaiadizer“médica”,masmalconseguiuterminara frase.Levouasmãozinhasdelicadasao rosto,emolduradopelovéucor-de-rosa,echorou.AqueletinhasidoodiamaistristedavidadeMalalaatéentão.
7.
Ziauddinestavadeterminadoanãodeixar aEscolaKhushal fechar.EledecidiuquetodosdeveriamsaberoqueestavaacontecendonovaledoSwatecomeçouumacampanha.—ComooTalibãseatreveatirarmeudireitoàeducação?—discursou
Malala,aoladodopai,nacidadedePeshawar,capitaldasterraspashtuns,em setembro de 2008. Foi sua primeira aparição pública. Ela tinha onzeanos.Malala sabia que no Corão está escrito que todos devem buscar
conhecimento.Então,lembrou-sedecomoéimportanteconhecerasletraseoslivros.ComoopoetaKhushal,quedánomeàescola,elafezdaspalavrasasuaarma.—Minhaforçanãoestánaespada.Estánacaneta—eladisse,umdia.
Bhagavad-Gita:Escriturassagradasdoshindus,assimcomoosvedas,entreoutros.Bíblia:Livrosagradodoscristãos,comAntigoeNovoTestamento.Corão:Livrosagradodosmuçulmanos.GuruGranthSahib:Livrosagradodossikhs.Kitáb-i-Aqdas:Livrosagradodosbahá’ís.Torá:Livrosagradodosjudeus.Osbudistasnãotêmumlivrosagrado,masleemváriostextoscomensinamentosdeBuda.
Malalacomeçouaescreverumblog!Porsegurança,escolheuumpseudônimo:GulMakai,heroínadofolclore
pashtun,quenalínguadaMalaladánomeaumalindaflorazul.OblogdeGulMakaierapublicadoemurdunositeda redede rádioe
televisãoBBC,daGrã-Bretanha,aterradarainha.Malalaescreviacomumrefinamentosurpreendenteparaumameninadazonatribal,oqueajudouachamar a atenção para os problemas do vale. O primeiro post começavaassim:“Estoucommedo”.Mas Malala era uma menina muito corajosa, porque ter coragem não
querdizernãotermedo,masenfrentarosmedosqueagentetem.Etodomundotemmedodealgumacoisa,nãoé?Protegida pelo anonimato, ela continuou escrevendo. Seus posts
humanizavam a guerra. Todos conheceram a tragédia do Swat e o dramadasmeninasporcausadoblogdaMalala—querdizer,oblogdaGulMakai.Poralgumtempo,Malalaficoucontenteporterumpseudônimo,poisàs
vezes não gostava do próprio nome— “Malala” quer dizer fúnebre e elapensavaqueissolhetraziaazar.Quemsabeonovonomelhetrariasorte.OgovernodoPaquistãohaviaprometidoprotegerasescolaseoexército
enviousoldadosaovaledoSwatparalutarcontraostalibãs.Todosficarammuitofelizes,poracreditaremqueapazvoltariaareinar.
Dos helicópteros militares, os soldados jogaram balas e doces para ascriançaseforamrecebidoscomacenosdealívioealegria.Maslogovieramasbombaseofogodaartilharia.Malalatinhasonhosterríveis.Depois,jánãoconseguiadormir.Os helicópteros passaram a sobrevoar as escolas e as casas a uma
distância assustadora e, quandoouviamobarulhodashélices, as criançascorriam para se esconder. Elas já não podiam sair para piqueniques epasseios.Umtoquederecolherimpunhaquetodososmoradoresvoltassemparacasaantesdopôrdosol.Ànoite,asruasficavamdesertas.OSwatsetornouumvaledastrevas.A Escola Khushal resistia aberta,mas ir à aula tinha se tornadomuito
perigoso.Malalacontanoblogque,umdia,nocaminhoparaaescola,ouviudeum
homem: “voumatar você”.Aoolhar para trás, percebeuque ele a seguia,entãoacelerouospassos.Seucoraçãotambémbatiamaisrápido.Sódepoisnotouqueelefalavaaocelularedeviaestarameaçandooutrapessoa.Elaestavamuitoassustada,todosestavam.Os pais temiam pela segurança das filhas. Muitas amigas de Malala
deixaramovale.MadameMaryam,adiretoradaEscolaKhushal,ordenouàsalunasque
não usassem mais uniforme, assim ninguém saberia para onde iam. Masainda era arriscado manter a escola aberta, pois o prazo que os talibãshaviam dado para que fechassem todas as portas emMingora, cidade daMalala, se aproximava. Se descumprissem suas ordens, os terroristasameaçavammandarasescolaspelosares!Elesjátinhamexplodidomaisdeumacentenadelasnosvilarejospróximos.Então, no último dia do prazo dado pelos talibãs, a Escola Khushal
tambémfechou.
Ziauddin decidiu levar a família para passar alguns dias fora do Swat,ondeaindahaviapaz.Asestradaseramvigiadasadistânciapelostalibãsetodosestavamapreensivos.Masossoldadoshaviamassumidoocontroledovaleeapóspassaraserracomsegurançaafamíliarespiroualiviada.Malala gostavade viajar e de conhecer lugares novos, embora sentisse
saudades das belezas naturais de seu Swat. Estava animada, mas logopercebeuque,seaguerratinhaficadoparatrás,seusefeitosacompanhavamtodosquetinhampassadoporaquelaexperiência.Umdia,elaviuoirmãomaisnovobrincandosozinhonojardim.Quando
o pai perguntou o que ele estava aprontando ali, revolvendo o gramadodaquelejeito,ogarotorespondeuquebrincavadefazerumacova.Num outro momento, Malala observou-o com um helicóptero de
brinquedo, enquanto o irmão segurava uma pistola de papel. Um gritava:“Fogo!”,eooutrodizia:“Tomarposição!”.Elesdisseramaopaiquequeriamfazerumabombaatômica.EmumaviagemaovilarejodeBannu,oônibusemqueestavamcaiuem
umburaco,oquefezabuzinadisparareacordaroirmãomaisvelho.“Foiaexplosãodeumabomba?”,eleperguntouàmãe,amedrontado.
Fartadaviolência,Malalacombinoucomosirmãosqueelesnãofalariammaisdeguerrae,sim,depaz,masaguerrateimavaemnãoacabar.Semconseguirseadaptaràmudança,Ziauddindecidiuvoltarparacasa
com sua família, emboramuitos estivessem fazendo o caminho contrário.Encontraramasituaçãoaindapior.A educaçãodasmeninas continuava banida eMalala se entristecia em
verouniforme, amochila eoestojodegeometrianocanto, semuso.Elasentiafaltadaescolaeatédasdiscussõescomascolegasdeclasse.Masotalibãhaviaordenadoqueasmeninas jánãosaíssem.Durantemeses,elasficarampresasdentrodecasa.Malalaescreviatudonoblog,ondepodiaserlivre.Tambémsetornouo
únicolugarporondeaspessoasdeforapodiamobservaroqueacontecianovale, como a espiar por um buraco de fechadura. Os acontecimentosrelatados chocavam a população de outras regiões do Paquistão e domundo.Malalaganhoumuitosleitoresetodoscomentavamsobreoqueelaescrevia,masninguémpodia saber quemera a verdadeira autora, pois ostalibãs não perdoariam sua ousadia. Somente seus pais, Ziauddin e TorPekai, sabiamquea filhaeraablogueiradoSwat.Esseeraseusegredo.Eelessouberamguardá-loatéofimdaguerra.
Certo dia, chegou a notícia de um acordo de paz. O som de disparosecooupelovalemaisumavez,masaqueleseramemcelebração.OspaiseosirmãosdeMalalachoraram.Dessavez,umchorodealegria.Asfamíliasvizinhasdistribuíramdocesecomidaumasàsoutras,comoéusualentreospashtunsnosdiasdefesta.Todosforamparaasruascomemorar!O povo do Swat havia se cansado dos conflitos. O acordo de paz
reacendeusuasesperançase,porummomento,aspessoasvoltaramaserfelizes,apesardasincertezas…Sóquenãodemorouatéaviolênciavoltar.Havia rumores de que alguns comandantes do Talibã não aceitaram o
acordoecontinuariamlutandoatéoúltimosuspiro.Malalaficoucomocoraçãoangustiadoquandosoubedisso.“Nossasesperançasdepazforamesmagadas”,escreveunoblog.Pouco depois, o Exército lançou uma grande ofensiva e teve início a
segundabatalhadoSwat.As explosões abriam clarões no céu, iluminando a escuridão do vale.
Mais de 2 milhões de moradores — quase toda a população do vale earredores—deixaramsuascasas,nomaiorêxododahistóriadoPaquistão.Todos fugiram, abandonando tudo para trás. E o Swat virou um valefantasma.OsYousafzai tambémtiveramdepartir,dessavezporumlongotempo.
Malalapassouporquatrocidadesemtrêsmeseseentão jánãoconseguiaescrever o blog. Ficou na casa da avó, de tias, tios e primos e até achoudivertidorevê-los.Masserobrigadaaviveremumlugardistanteeramuitodifícil.TudonavidadeMalalapareciaestardepernasparaoar.Estavalongede
casa,daescola, dos livros, dopai.Ziauddin continuava suacampanhaembuscade ajudapara acabar comaguerranoSwat e faziamuitas viagens.Estava tãopreocupadocoma situaçãoque se esqueceudoaniversáriodedozeanosdeMalalaeelaficoutriste.Opaiprometeuquetudoficariabemlogoeelesvoltariamparacasa,mas
asnotíciasdoSwatnãoeramnadaboaseessedianuncachegava…Atéquechegou.
8.
O Exército do Paquistão conseguiu expulsar os talibãs do vale e elesvoltaramparaseusesconderijosnasmontanhas.Aguerraacaboueafamíliafinalmente pôde voltar para casa. Só que o Swat já não era como antes.Malalaencontrouacidadevazia,omercadofechado,ascasasabandonadas,muitasdelasdestruídas.Eadivinhaquelugarelaquisvisitarprimeiro?Aescola!Masláencontrou
tudodepernasparaoar!AplacadaEscolaKhushalestavajogadanochão,haviacarteirasquebradas,pichações,paredesdestruídas,outrascommarcasdetiros.Ossoldadostinhamusadoasescolascomoquartel.Aotodo,maisdequatrocentas foramdestruídasduranteaguerrae600
milcriançasficaramsemaula.
Aospoucos,porém,avidafoivoltandoaonormal.Asescolasreabriramas portas, quando tinham portas. Muitos meninos e meninas passaram aestudar em tendas, ao pé das árvores, no meio dos escombros, usandotijolos como cadeiras. As lojas de música e as barbearias reabriram e osmoradoresdesenterraramaparelhosdeTV,DVDesomquetinhamescondidodebaixodaterra.Com os talibãs longe, Ziauddin revelou que Malala era a menina
blogueira.
Elaficoumuitofamosa!Apareceu em um filme-documentário do New York Times, um jornal
americanomuito lidoemtodoomundo.Os jornalistasestavamcuriososeinteressados em saber o que tinha acontecido com as famílias do Swatdepoisdaguerra,eZiauddineMalalapassaramadarentrevistas.Emtodaselas,defendiamodireitodasmeninasàeducação.— Eu tenho direito à educação. Eu tenho direito de brincar. Eu tenho
direitodecantar.Eutenhoodireitodefalar—disseMalalaaumarededeTV internacional. Suas palavras foram ouvidas em todos os cantos domundo.Por seu ativismo, Malala ganhou prêmios e conseguiu benefícios para
escolasdaregião.Emdezembrode2011,MalalarecebeuoPrêmioNacionaldaPaz—mais
tarderebatizadocomseunome,doqualvoltouaseorgulhar.Nacerimônia,revelouquejánãoqueriasermédica,masformarumpartidopolíticoparadefenderaeducação.Ameninadejeitodoce,masfalaassertiva,desafiavafrequentementeos
homensquetinhamproibidoasmeninasdeiràescola,àsvezesexpondo-osao ridículo. Num território onde asmulheres tinham sido silenciadas peloterror,Malalahaviacruzadoumlimiteperigoso.Paraossisudoshomensdasmontanhas,elaestavaindolongedemais…
O vale do Swat tinha voltado a dormir em silêncio, um silêncio aindaestranhoparaMalala.Oruídodoshelicópteros,disparoseexplosõesjánãointerrompiaasmadrugadas,masoperigoagoraerasorrateiro.Acreditava-seque os talibãs tinham atravessado a fronteira para o vale do Korengal eestavam escondidos em seu labirinto demontanhas, cavernas e túneis—longe das vistas, mas perto o suficiente para manter sua vigilânciaaterrorizante.Porsuageografiaeproximidadecomafronteira,oKorengaléumvelhoredutodeterroristas.PorissoerachamadodeValedaMorte.Os talibãsvoltaramparaasmontanhas,masovaledoSwatcontinuava
vivendoàsombradomedo,sobaobservância,agoradistante,dosvilõesemseuencalço.
— Há medo em meu coração — confessou Malala. Olhando por umburaconaparededaescola,atravésdoqualseviatodoovaledoSwat,eladisse:—IssoéoPaquistão.Otalibãnosdestruiu.— Vamos matá-la se não se calar! — prometeram eles, de seus
esconderijosnoValedaMorte.
9.
Muitos dias e noites se passaram, e muitas histórias me contaram.Naqueledia,9deoutubrode2012,umaterça-feiraensolarada,foiassimqueaconteceu:Despertado pelo chamado dos muezins, que ressoava das torres das
mesquitas,ovaledoSwatamanheceusemumanuvemnocéu,comonumdiatípicodeoutono.Anoitelevaraconsigoasangústias.Eraassimtodososdias, porque as meninas do vale do Swat aprenderam com a violência aviverohoje,umnascerdosoldecadavez.Cada uma em sua casa, as alunas da Escola Khushal acordaram cedo,
rezaram,tomaramocafédamanhã—cháaçucarado,ovosfritoseparatha.Vestiramouniformeazul-marinhoeoshawlbrancoeforamparaaescola.Naquela manhã, as meninas entraram um pouco mais tarde, às nove
horasenãoàs8h15, comodecostume,poisaqueleerao segundodiadeprovas finais na Escola Khushal. Como faziam todos os dias, elas sereuniram no terraço, com vista para as montanhas, cantaram o hinonacionaleforamparaassalasdeaula.
Muezim: É o responsável por chamar os fiéis para a reza nasmesquitas, proferindo frases doCorãodeformamelodiosa,assimcomoobadalardossinoschamaoscristãosparaamissanasigrejas.
SentadajuntodeMalala,Ridarecordaqueacolegapareciapreocupada.Desdeaprimeirasérie,Malalatiravaasnotasmaisaltas.Aoscatorzeanosecursandoagoraanonasérie,porém,haviaperdidoolugardemelhoralunapara a colega de classe e rivalMalka-e-Noor nos últimos exames. Talvezfosseesseomotivodomaupresságio,elapensou.“Nós ficamossurpresasporqueMalalaerasempreaprimeira.Nuncaavideixardefazeraliçãodecasa. E ela jamais faltava. Ia para a escola todos os dias e não tiravavantagem por seu pai ser o dono. Ela achava que, se queria passar amensagempara que as outras estudassem, tinha de ser amelhor nisso. Eestavadecididaaseramelhordenovo”,medisseRida.Ao final da prova, as meninas foram liberadas mais cedo do que de
costume:às11h30,enãoàs13h30.Na saída,oalaridoeragrandepelos corredores.Elasestavamaliviadas
comofimdemaisumdiadeprovaseMalalapareciafelizporteridobem.—Hojeotestefoimuitodifícil,nósestudamosatétardeontemànoite,
então agora vamos brincar — Rida lembra-se de ouvir de Malala. Rida,Malala eMoniba se sentavamnessa ordemem classe e, depois da prova,segundoacolega,forambrincarnagangorra,emboraparecessemcrescidasparaaquilo.Maistarde,Malalacomprouabebidanacantinae,comosemprefaziam,
asduasdividiramolanche:arrozfeitopelamãedaRida.“Malalaadoravaoarrozdaminhamãee sempremepediaque trouxesseduascolheres”, elamedisse.Asmeninas doSwat, aliás, adoramarroz e comemcom tudo, atodahoraedetodotipo:colorido,apimentadoouchinês.Tradicional,longo,curtooujaponês.NacantinatambémestavaKainatRiaz,dequinzeanos,alunadaúltima
série.Elapediuumtchawan(cumbucachinesade,adivinha?,arroz)esepôsa conversar sobre a prova com as colegas de classe. Tinha deixado duasquestões em branco e contava às outras ter apelado ao choro paraconvencer a professora a dar-lhe mais tempo. Estava cansada e queria irparacasaestudarparaaprovadefísicadodiaseguinte.Umadasmeninasinsistiu que ficasse. “Pegue o segundo ônibus, Kainat! Por favor!” Kainatficou.ShaziaRamzan,quetinhadozeanosecursavaaoitavasérie,gostavade
ficar fofocandocomasamigasatémais tardee semprepegavao segundoônibus.
Omotorista,UsmanAli,estacionouodynanafrentedoportãosemplacadaruaYahya,umavielaenlameada,porondeasmeninasentravamesaíamcom alguma discrição. ComoMalala tinha se tornado famosa, o Exércitooferecera proteção especial a Ziauddin, que recusou. “Uma escola não élugarparaarmas!”,eledizia.Mashaviaoutromotivo:Ziauddinnãoconfiavanossoldados.
Dyna:Pequenacaminhoneteadaptadacomoônibusescolar.
A escola ficava a menos de um quilômetro da casa onde viviam osYousafzai,masMalala,porsegurança,passouausarotransporteescolar.UsmanAlibuzinou,anunciandoqueodynairiapartir.Kainat sentou-se primeiro, mais ao fundo; Shazia veio em seguida e
ocupouolugaraseulado.MalalaeMonibasedespediramdeRida,quefoiembora de carro com o pai, e correram para o dyna, sentando-se nessaordem.Erapertodemeio-dia.Os termômetros apontavam trinta graus, apesar
deseroutono.
Ocheirovindodascasasdenunciavaoqueasfamíliaspreparavamparaoalmoço. A voz do muezim ressoava dos alto-falantes das mesquitas,convocandoosfiéisparaasegundarezadodia.Ochamadomisturava-seàbuzinadoscarros,aoroncodosmotoreseàalgazarradasmeninas,emboraodynanãoestivesselotado,poisfaziaasegundaeúltimaviagemdodia.Assim, seguiu sacolejandopelamovimentada ruaHajiBaba,passouna
frentedopostomilitardeShahid,ondesoldadoscumpriamoturnoatrásdebarricadasdesacosdeareia,emenosdecemmetrosdepoisvirouàdireitanaruaSharif Abad.
Kainatabriuo livrodeurduparaver se tinha respondidocorretamentesobre a data de nascimento do poeta Mirza Asadullah Khan. A seu ladoestava Shazia, depois Malala e Moniba. Malala brincava com as palavrascriandotappeys.Comosempre,elafaziapiadas,sorriaesedivertiacomasoutrasmeninas.Distraídas, elas não repararam quando o dyna brecou abruptamente,
cercade trezentosmetrosapósentrarna ruaSharif Abad—por serumarua estreita, sem acostamento, é comum que um carro pare para dar
passagemaoutro.OdynaparouentreumafábricadesalgadoseomausoléuornamentadodoministroquecuidavadasfinançasdowalidoSwat,MalakSher Mohammad Khan, uma lembrança dos tempos de prosperidade novale. A distância viam-se as montanhas de Gulkada, mencionadas peloperegrinochinêsSunYunnoano520a.C.comoalocalizaçãodomosteirodeT’a-lo,umdosmaisdequinhentosmonastériosbudistasdovaledoSwatdurante o reino de Gandara. Os monges eram atraídos por sua beleza,imensidãoepaz.Pazquejánãoexistia.DoishomensemumamotocicletatinhamfeitosinalparaqueUsmanAli
parasse.Umdelesdesceudamotoeseaproximou,perguntandoseaqueleera o ônibus que levava as alunas da Escola Khushal, embora o nomeestivessepintadoemletrasgarrafaisnavelhacarroceria,desconjuntadapelousoejácorroídaporferrugem.
Mirza Asadullah Khan: Foi o maior poeta do Império Mughal e é considerado um dos maispopularesescritoresdalínguaurdu,faladanoPaquistão.Seestivessevivo,teriahoje217anos.Tappey: O mais antigo e popular gênero de poesia pashtun. É composto de dois versos, oprimeirosempremaiscurto,comnovesílabas;osegundo,comtreze.AsmeninasdovaledoSwatgostam de brincar de inventar versos e ganha o jogo quem fizer as melhores rimas. NoAfeganistão,essetipodepoesiatambémfazpartedofolcloreeéchamadodelanday.
Emseguida,ohomempulounatraseiradodyna.“QualdevocêséMalala?”,perguntou.Seutomeragrave,emboranãotivesseexatamenteesbravejado.Apoiava-
secomospésnoestribo, segurandocomamãoesquerdanaarmaçãodeferroquedavasuporteàcoberturadeplásticodacaçamba,ondeviajavamvintealunasetrêsprofessorasdaEscolaKhushal.Namãodireita,eletinhaodedo no gatilho de uma pistola. Seu nome, soube-se mais tarde, eraAttaullah, e, como a maioria dos homens das montanhas, ele não temsobrenomenemconhecea idadeexata,masestima-sequeestavanacasados vinte anos. Soube-se ainda que cumpria ordens do mais temidocomandantedostalibãs:obarbaçasFazlullah.OMuláRádio!À pergunta do estranho, num ato instintivo e involuntário, as meninas
viraramosolhosemdireçãoaMalalaeomundocongelou.Noimaginário
delas, aquelemomento duraria uma eternidade, embora não tenha levadomaisdoquedezsegundos.“Eupenseiquefossealguémquerendoencontrá-la”,medisseShazia.Por
isso,nãosentiumedo.“Deveser sóumgarotoestúpidoquerendozombardagente”,concluiu
Kainat. Porém, em seguida, ela viu a pistola na mão do desconhecido esoltou umgrito, “omais alto e agudo que todoo vale já ouviu”, em suasprópriaspalavras.— Pare de gritar, senão… — disse o homem. Mas antes mesmo de
terminar a frase, ele reconheceu Malala. Ao ouvir seu nome na voz doestranho, ela tinha se virado intuitivamente na direção dele. Era a única,entreasmeninas,quenãotinhaorostocobertopeloshawl.Entãoeleatirou.Trêsvezes!OprimeirotiroatingiuMalala.AsegundabalaperfurouoombrodeShazia,que tinhasecurvadopara
socorreraamiga,e foipararnobraçodireitodeKainat.Outro tiro feriuamãoesquerdadeShazia.Malalacaiuparaafrente,acabeçasobreobancoforradodeplástico.Umadasprofessorascobriu seu rostocomovéu,queera branco e ficou vermelho. Uma poça se formou rapidamente no chão,entreospésdasmeninas,eumcheiroestranhoocupouoambiente:cheirodesangueepavor.Osbandidosfugiramdemotoporumavielaedesapareceram.—Acorda!Levanta,Malala!Acorda!—Monibagritava.—Olheparamim,meajude,eutambémfuibaleada!—berravaKainat
paraShazia.—Nãopossomexerobraçoealcançarvocê—respondeuShazia,que
tambémtinhasidoferidaesóchorava.Nacabinedafrente,aprofessoraRubitinhaametadedocorpoparafora
dajanelaebalançavaobraçonoarparaqueoscarros,riquixásecarroçassaíssemdafrente.Comorostoencharcadodesuoreosolhosesbugalhados,o motorista grudara a mão na buzina e o pé no acelerador. Assim, iamabrindoocaminhoparaodynapassar emdireçãoaoHospitalCentraldeSaiduSharif.
Nohospital,Malalafoiretiradaàspressaselevadaàsaladeemergência.Paratrás,nochãodoônibusescolar,deixouumdossapatoseamochiladoHarryPotter.— Quem mais foi baleada? Quem está ferida? — perguntavam os
médicos,àmedidaqueasmeninasdesciamdodyna.Enquantoodramasedesenrolavanocentrodeemergência,Ziauddinfoi
avisado. Ele estava em um evento no Clube de Imprensa do Swat e nãoimaginavaquea filhahaviapassadodesacordadaàporta.Minutosdepois,seucelulartocou.ElereconheceuonúmerodaEscolaKhushal,mas,comosepreparavaparadiscursar,passouoaparelhoaAhmedShah.Amigosdelonga data, eles se conheciam pelo olhar e, enquanto falava à plateia,Ziauddin notou a expressão preocupada deAhmed ao telefone. “Ziauddinlogo entendeu que algo de ruim tinha acontecido comMalala. Seu rostoperdeuacor.Eleficoubranco”,medisseAhmed,quandofuiconhecersuaescolaemMingora.AhmedeosamigoslotaramumjipeelevaramZiauddinàspressasparao
hospital; a diretora da escola, Maryam, chegou logo atrás, levada pelomaridonagarupadeumabicicleta.—Malala!Malala!Vocêestábem?Vocêpodemeouvir?Souseupai—
perguntavaZiauddinaoencontrarafilhadesacordada.
—Malala, sou eu, Maryam. Você consegue me ouvir? — chamava adiretora.MasMalalajánãopodiaouvir.—Elaestábem,doutor?Elavai sobreviver?Por favor,mediga,minha
filhavaisobreviver?—repetiaZiauddin,alternandooolharentreomédicoe o amigo Ahmed Shah. “Não sabíamos o que dizer a ele”, me contouAhmeddepois.Omédico que atendeuMalala naquele dia—MohammadAyub é seu
nome—me confessoumais tarde que o hospital não tinha condições desalvá-la.EraumhospitalmuitosimpleseoúnicodovaledoSwat.Àquelaaltura,anotíciajátinhaseespalhadoetodospediampelavidade
Malala. Então, o todo-poderoso comandante das Forças Armadas doPaquistão,generalAshfaqParvezKayani,mandouumhelicópteroaovaledoSwatpararesgatá-la.ElafoitransferidaparaoHospitalMilitardePeshawar,acapitaldaprovínciadeKhyberPakhtunkhwa.Ziauddin eMaryam viajaram com ela no helicóptero.Malala piorava a
cadaminuto. “Às vezes, parecia que ia reagir.Certa hora, tentou limpar osangue como próprio véu. Eu disse a Ziauddin: ‘veja, ela está reagindo!’.Mas logo ela fechava os olhos novamente. Quando sentia dor, Malalaseguravaaminhamãocommuitaforça.Nósavimosnumasituaçãomuitocríticaali”,relatouMaryam.JáeranoitequandoamãeeosirmãosdeMalalachegaramaohospital
emPeshawar.Numasalaadjacenteaoquartoondeestavaafilha,ajoelhadano chão frio, Tor Pekai passou a rezar. Os meninos, Atal e Khushal,choravam.Nasaladaunidadede tratamento intensivo,o rostodeMalalaperdiaa
coreobrilho.“Elaéumameninatãoforte!Parecianãoquererserenderaosferimentos. Às vezes ficava agitada e tentava tirar do dedo o aparelho demedirosbatimentoscardíacos.Eudizia:‘Malala,nãofaçaisso!’.Houveummomento em que elamurmurou: ‘Não brigue comigo’. Foi a última coisaqueelafalou.Depoisdisso,seurostocomeçouaficarcadavezmaisbrancoesemexpressão”,disseMaryam.Ziauddinentrounasala,foiaoladodoleitodeMalalaebeijouatestada
filha.Tentoufalarcomelamaisumavez,masMalalajánãorespondia.
KhyberPakhtunkhwa:Terradospashtuns,provínciaondeficaovaledoSwat.
—Elavaisobreviver,doutor?Elafoiferidanacabeçaeeunãoachoquevai sobreviver… O que o senhor acha? O senhor acredita que ela vaisobreviver?—perguntavaZiauddin.Eleestavadesesperado.“Estávamos perdendo as esperanças. Mas, não sei por quemotivo, na
minhacabeçaenomeucoração, eu tinhacertezadequeelaviveria”,mecontouMaryam.— Insh’Allah, ela vai sobreviver — respondeu o médico, então. Mas,
àquelaaltura,elejánãopodiatercertezadaquilo.Era perto de meia-noite quando Malala mergulhou em um sono
profundo, tão profundo que o seu coração quase parou de bater.O corpofrágil,porfim,serendiaaotiro.
Insh’Allah:Expressãoemárabequequerdizer“SeDeusquiser”.
10.
FoiessetiroquemelevouaovaledoSwat.Quando visitei a Escola Khushal, o lugar de Malala estava vazio, e a
entrada era vigiada por dois policiais armados. Na classe dela estudavamtrinta e uma meninas — trinta e uma menos uma. Moniba, sua melhoramiga, havia talhado o nomeMalala na carteira onde sentavam juntas edecretado:sóseráocupadaquandoaMalalavoltar.Masaindanãosesabiaseaamigavoltaria…No terraço, havia um grande cartaz com uma foto da Malala, e nos
corredores,coladosnasparedes,dezenasdecartõesenviadosporpessoasdomundointeiro,comvotosdemelhoras.
QueridaMalala,suacoragemeforçasãoumainspiraçãoparatodosnós.Desejamosque
você,ShaziaeKainatserecuperemlogoetenhamapoioemsualutapelaeducação.
Oclimadepoisdoatentadoaindaerademedo.Porcausadisso,asalunasdaEscolaKhushaltinhamsidoorientadasanãoconversarcomestranhos.Eeueraumaestranhanaquelelugar.MasasmeninasdovaledoSwatsempreforam muito corajosas, então, vendo que eu era apenas uma jornalista,bolaramumjeitodefalarcomigo:passando-mebilhetesescondidos!Emumdosbilheteshaviatrêsendereços.O inverno se aproximava e o clima começava amudar.Minha viagem
estava chegando ao fim e eu ainda tinha uma missão: ir até aqueles
endereçosmisteriososqueascolegasdeMalalahaviammepassado.Então,numamanhãdecéufechadoechuvafina,euseguipelasruasde
terra, que aos poucos se transformava em lama, até chegar a um becosinistro. O lixo se acumulava e as portas fechadas do que pareciam serpequenos comércios enferrujavam. O cenário era de abandono. O becotinha acesso pela Praça Gulshan, transformada em campo de batalhadurante a guerra e agora ocupada por tanques do Exército. No númeroescritonopapel,haviaumaportinholademadeiraquedavaacessoaumaescada. Bati palmas, mas ninguém atendeu. Subi. Foi somente quandoafasteiacortina,depoisdoúltimodegrau,queavisteiShazia,ameninaqueestava sentada ao lado de Malala no dyna naquele dia tenebroso e quetambémtinhasidobaleada.Shaziamerecebeucomumsorrisotímido.Ela tinhaacabadodesairdohospital,depoisdeummêsde internação
para tratar os ferimentos no ombro e na mão, e ainda se recuperava dotrauma.Encontrei-asozinha,lendoumcadernocommensagensdascolegasdaescola,ovéupretocobrindo-lheoscabelosepartedocorpo.Elaviviaali,comospaisedoisdosoitoirmãos.Quandocheguei,amãecozinhavanumfogão a lenha no pequeno terraço e a fumaça que exalava dos panelõesinebriavaoarcomoaromaagridocedechutney.Passamos amanhã juntas, conversando em seu quarto, decorado com
tapetescoloridos,almofadasbordadaseguirlandasdeflores.Foiquandoelamecontou tudooqueaconteceunaquelediasombrio,masas lembrançasainda a deixavam ansiosa. Ao falar, tinha a respiração curta e o coraçãoacelerado.
Chutney:condimentoorigináriodaÍndiaemuitopopularnoPaquistão.
—Temmedo?—euperguntei.—Umpouquinho—Shaziaconfessou,comavozfrágil,quaseinaudível.
Masdissequeessepouquinhoiaficandomenoreelamaisforteacadadia.Nanoiteanterioraoatentado,Shaziamecontou,elahaviasonhadocom
umtiro.Nãoconseguiaselembrardeondeestavanemdorostodoalgoz.Asimagenseramturvasemsuamenteaomesmotemposonolentaevigilante,
comoeramasnoitesmaldormidasdasmeninasdovaledoSwatdesdeosconflitos. Shazia acordara com o próprio grito, encharcada em suor, esentira-se aliviada ao perceber que era apenas um sonho. Muitas vezesantes,quandoovaleestavaemguerra,ocorreraocontrário:pensavaestartendoumpesadeloquandoerarealidade.Naquelanoite,elatevedificuldadeparavoltaradormir,mas,nodiaseguinte,concentradanaprova,esqueceu-sedaquilo.FoiquandotudoaconteceuqueShaziaselembrou:osonho!Shazia ainda não conseguia dormir bem quando nos encontramos, por
causa dasmás lembranças, que demoravam a passar.Mas já tinha outrossonhos: três, para ser exata. O primeiro era voltar a estudar, o segundo,tornar-semédica,eoterceiro,ajudaroutrasmeninasairparaaescola.Nãoeram sonhos tão fáceis quantoparamuitas criançasquepodem ir
para a escola todos os dias. Não deveria ser assim,mas ir para a escolacontinuavasendoperigosonovaledoSwate,depoisdoatentado,oExércitodecidiu que Shazia só voltaria a estudar acompanhada por soldados. Jáimaginou?—Agoraémuitodifíciliraqualquerlugar.Tenhoquepedirautorização
paraminhamãe, que pede para omeu pai, que pede para o policial, quepedeparaochefedele,quepedeparaoExército,quedecidee informaopolicial, que informameu pai… Preciso de pelomenos uma hora até terautorizaçãosóparadeixaracasa!—disseShazia, rindomuitodoprópriodrama.Nodiaanteriorànossaconversa,elahaviasaídodecasapelaprimeira
vezparavisitarumaamiga.Opoliciala levouemumriquixá.Shaziaeeurimosaoimaginaracena.Enquanto conversávamos, o tal policial armado entrou no quarto e
sentou-se na beirada da cama sem pedir licença. Queria escutar o quefalávamoseeudecidiqueestavanahoradeirembora.MedespedideShaziaeprometimantercontato.—Insh’Allah!—eladisse.Fui emborapensandoemcomoavidadasmeninasnovaledoSwat é
difícileemcomoeusouprivilegiadaporterfrequentadoaescola,semqueissorepresentassequalquerperigo,emboraascoisasnãosejamassimpara
muitascriançastambémnomeuspaís.Pensativa,seguimeucaminhoatéosegundoendereçoescritonobilhete,
umquilômetroadiante,pelasvielasdemurosaltos,tãotípicasdoSwat.Assimquedobreiaúltimaesquina,depoisdeumcampodeareiaonde
meninos jogavamcríquete, encontreidoispoliciais fortementearmados—acho que eles se assustarammais comigo do que eu com eles. Antes deperguntar-lhes qualquer coisa, espiei pela fresta da porta entreaberta ereconheci Kainat, de pele muito branca e bochechas rosadas com asprimeirasespinhasdaadolescênciaqueemnada reduziamsuabeleza.Elausava véu preto, pincelado por pequenas flores na cor lilás, combinandocomatúnicabordadaeenfeitadacomumafaixaderendacor-de-rosa,acorpreferidadeKainat,comodeMalala;etudocombinandocomasmeiasdelistrascoloridas.Aspantufaseramumsinaldequenãopretendia sair.Elameconvidouaentrar.Desdeoatentado,Kainatquasenãocolocavaonarizparafora.Sentia-se
“deprimida e entediada”, em suas próprias palavras. Só uma vez, exatosvinteequatrodiasdepois,osmilitarespermitiramquevisitasseascolegasdeclassenaEscolaKhushal.Masavisitasódurouduashorase,porordemdossoldados,elatevedevoltar.Foraessapequenaaventura,Kainatpassavaastardesnacompanhiadopai,sempreaoseulado,emumshalwarkameezimpecável;umhomembaixinhoerechonchudo,comescassosfiosdecabeloalinhados para o lado, um portentoso bigode e voz tão doce quanto a dafilha.No dia em que tudo aconteceu, Kainat ficou tão apavorada que se
recusouadescerdodynaeobrigouUsmanAli,omotorista,a levá-laparacasa, mesmo ferida. Ao vê-la chegar com a roupa suja de sangue etremendo,opaiteveumataquenervosoequasefoipararnohospitalcomela. Ficou tão preocupado com a segurança da filha que nunca mais adeixousozinha,apesardapresençadosdoispoliciaisquevigiavamaportadiaenoite.
AcasadafamíliaficaemMakanBagh,adjacenteaoGrassyGround,umcampo de críquete herdado dos britânicos, usado pelos homens dasmontanhasparaocastigoeaexecuçãodecondenados—umteatropúblicodoterror.Desdeaquelestempos,Kainatsentiaocoraçãoapertado.Nosdiasque antecederam o atentado, a sensação tinha ficado ainda mais forte.“Havia uma tristeza profunda emmim, um sentimento que eu não podiaexplicar”,elamedisse.Trêsdiasantesdetudoacontecer,Kainatcomentoucom o pai sobre aquele sentimento ruim e pediu que ele a levasse a umlugarbonito,paraquepudessesedistrair.Afamíliadecidiufazerumpasseioe o local escolhido foi o Palácio Branco, lembrança de tempos de paz novale.Mesmoassim,o sentimentode tristezanãopassavaeKainat, todootempo,sentiavontadedechorar.Dadososeventosqueseseguiram,muitosentenderiamoqueaconteceu
comasmeninasnaquelanoitecomopremonição,maslidarcomaviolênciaerarotinanovaledoSwat.Cadaumaemseuquarto,apoucasquadrasdedistância uma da outra, Malala, Kainat e Shazia tentavam diariamentesuperarseusmedoseangústias.
—Quando estou sozinha, aquelas cenas voltam e eu sinto de novo ocheiro… Cheiro de sangue! — ela me confessou. Por causa dessaslembranças,Kainatpassouatermedodoescuroe,quandodormia,sonhavaemvermelho.Eladividiaoquartocomairmãedoisirmãos,queaestavamajudandoa
atravessar aqueles tempos difíceis. No outro quarto, dormiam os pais. Acomidaerapreparadaemumfogareiro.Tamboresdeplásticoazulestavamespalhadosnoquintalparaarmazenaraáguadaschuvas.Nãohaviaenergiaelétrica e, por isso, Kainat passava os dias no terraço, aproveitando a luznaturalparaler.Embora não tivesse voltado para a escola, Kainat fazia questão de
continuarestudando,comaajudadopai,professordeensinofundamental.Temiaqueohomemqueatirounela, emShaziaeMalalavoltassepara
garantirquejamaisfossemparaaescoladenovo.Masalgodemágicohaviaacontecido.—Porcausadesseincidente,tomeicoragemparalutarporeducação!Se
foravontadedeDeus,ninguémvaimeimpedirderealizarmeussonhos—Kainatmedisse.Aofundo,ecoavadatorredasmesquitasoúltimochamadoparaarezadodia.—OCorãodizqueaeducaçãoécompulsóriaparameninosemeninas.
Talib quer dizer estudante— ela lembrou. — A educação nos afasta demalesedemôniosenoslevanadireçãocerta.Desdequetinha8anos,KainatpassavaastardesestudandooCorãocom
outras meninas em uma madrassa improvisada na casa de uma vizinha.Caminhavaparaoterceiroestágiodosestudosreligiosos,queerainterpretarostextos.Noprimeiroestágio,aprendiaaleremárabe;nosegundo,traduziaas palavras para o pashtun, com a ajuda de uma professora. Todas asmeninasdoSwatestudamoCorãoemcasaouemumamadrassa.Émaisoumenos como os cristãos que estudam para a primeira comunhão; ou osjudeusqueestudamparaobar/batmitzvah.— O que eu gosto muito em Malala é que ela continuou brigando e
insistindo em advogar por educação, mesmo sabendo que corria riscos.Admiro o seu jeito. Isso nos dá coragem agora — prosseguiu Kainat,enquanto me mostrava fotos da amiga, que guarda em um velho
computador.Aofinal,Kainatmefezumpedido:—DigaàsmeninasdetodoomundoquesetornemMalalaselutempor
educaçãoatéquetodaspossamirparaaescola.Outro exemplo de coragem para Kainat é sua mãe, uma das poucas
mulheresquetrabalhamnovale.Elavisitaascasasensinandoascriançasalavarbemasmãos,escovarosdentes,entreoutrastarefasqueenvolvemoscuidados com a higiene e a saúde. No passado, Kainat a acompanhava esurgiudaíodesejodesetornarmédica,assimcomoShaziaaindasonhaecomoMalalasonhouemserumdia.MedicinaéumadaspoucasprofissõesqueasmulherespodemexercernoSwat,asoutrasoportunidadesaindasãodadassomenteaoshomens.Éporissoquequasetodasasmeninasdovalesonhamsermédicas.No dia em que encontrei Kainat, seus olhos grandes e negros fitavam,
atravésdosóculos retangularesde aro grosso, um livrodebiologia.Eraomesmoquelevavanocolonodiadoatentado.Naúltimapágina,lia-se:Wewantpeace.Nósqueremospaz.Umgaloatrasadocantavaadistânciaanunciandoahorade ir embora.
Então,euparti.
Mashaviaaindaumlugaravisitare,emmeuúltimodianovaledoSwat,fuiprocurá-lo.Noendereço,anotadonopapel,nãopassavacarro.Umportãoealguns
degrausdavamacessoaumatalho,partindodamargemdorio,paraaruaestreita e ladeada por muros altos. Continuamos a pé, eu na frente, Ejazatrás demime Sana atrás dele.De repente, ouvi passos amais nonossocaminho.Umestranhonosseguia!Viramosumaesquinaeelevirouatrásdenós, apertamos o passo e ele apressou o ritmo. Até que Ejaz se irritou e,quandoEjazseirrita,ele,queéumhomemgrandeetemumvozeirão,podeficar tão assustador quanto um gigante bravo. “O que é que você quer?”,trovejou,virando-seabruptamenteemdireçãoaohomem,quedesapareceunum susto. Ufa! Mais tarde, descobrimos que ele era um espião, enviadopelogovernoparanosbisbilhotar.Umespiãodeverdade!
Continuamos até que, no fim da rua, dei de cara com um homemarmado.Elevigiava,atento,umacasademuroaltoeportãocinzae tinhaordensparanãodeixarninguémentrar.Aindanãoseicomooconvenci.Eunão falavaa línguadele,nemelea
minha.Mas, toda vez que isso acontece, eu uso as palavrasmágicas quesempreajudamnessescasos:Ronaldo,Ronaldinho,Neymar,Pelé…porqueomundo todogostado futeboldoBrasil. “Ronaldo!”, ele repetiu, eassim,comonumpassedemágica,nostornamoscúmplices.Falávamosamesmalíngua. Usando a arma parame apontar o caminho, ele abriu o portão edeixouqueeuentrasse.—Andelogo!Ninguémpodesaberqueestáaí!—disseSana,traduzindo
as palavras do homem, por detrás do muro, como numa brincadeira detelefonesemfio.Nojardimcobertodeprimaverasfloridas,reconhecialaranjeiraaopéda
qualMalalacostumavasesentarparaleràluzdodia.AquelaeraacasadaMalala! Era térrea e com entrada pelos fundos. Na cozinha havia panelasespalhadaspor todosos lados, como se alguém tivessedeixadoo almoçoporfazer.Nasalaescura,ossofásestavamcobertoscomlençóiseumvelhocomputador jaziaapagadoemumcanto.Dooutro lado, avisteiumaportafechada.Nãopenseiduasvezes:gireiamaçaneta.Aportanãoestavatrancada…
Era o quarto daMalala! Mas ela não estava lá e encontrei um ambientevazioefrio.Ocobertorflorido,seupreferido,estavadobradoaopédavelhacama;acortinavermelha,desbotada,erasalpicadadeestrelinhasquejánãobrilhavam.
Malalaaindadormiaumsonoprofundo,agoraemumlugarbemdistantedali:umhospitalemoutropaís,ondeserecuperavadotiro.Ninguémsabiasevoltariaaacordarumdia.Tenho paramim que sonhava com a escola. Seu quarto está cheio de
lembranças. Um caderno com palavras rabiscadas aqui. Lápis coloridos,pincelenanquimnoutrocantoali.EspieiderelanceumagavetaentreabertaeláencontreiasprovasdefísicaeálgebraqueMalalafez.Noarmáriohaviadois lindosshalwarkameez:umazuleumrosa,combordadosdecristais.Nas paredes, úmidas e já manchadas pelo mofo, o único enfeite era umquadrinhodeflores.SeráqueMalalaopintou?Era um quarto simples. Mas na pequena estante lá estava ele, em
tamanhogigante,oprêmioqueelaganhou:umchequede trêsmilhõesderupias—maisdecemmilreais!—porlutarpelaeducaçãodasmeninas.Antesdesair,gireiosolhospelocômodomaisumavezeumalindafoto
me chamou a atenção: Malala com o pai, o professor Ziauddin, que aensinouagostartantodaescola.Àquelaaltura,porém,osoldadojágritavaládefora…
Estavamesmoescurecendoeeramelhorirembora.
A viagem de volta para casa seria longa. Na estrada eu recordava asaventurasqueviviemelembreidequandoouvinorádioaameaçaparaquejornalistasnãoviajassemaovaledoSwat.Agoraasalvo, ligueio rádiodocarroeouvioutranotícia.Dessavez,umanotíciaboa:adequeMalalahaviaacordadodosono!Elaestavaemumhospitalparatratamentodeferidosdeguerra,oQueen
ElizabethHospital.Ficana Inglaterra, a terrada rainha—aquelamesma,quevisitouovaledoSwatumdia.Malala tinha sido transferidaparaessehospitalenquantodormia.Aoacordar,percebeuqueestavasozinhaemumlugarestranho.Tinhadificuldadepararespirare jánãopodiasorrir.Abala
tinhaferidooladoesquerdodeseurostodelicado.Poruminstante,Malalaficoutristeaoseolharnoespelho.Maslogovoltouasesentirfeliz,porqueestavaviva!Opai,amãeeosirmãosviajaramparaaInglaterraeseureencontrofoi
muitoemocionante.—Na noite passada, quando nós a reencontramos, havia lágrimas em
nossosolhos,maseramdefelicidade,fe-li-ci-da-de!—disseZiauddin,logodepoisdeafilhaacordar.Enquanto Malala dormia, sua vida mudou. E o mundo mudou um
pouquinhotambém.A notícia de sua quase morte tinha se espalhado como um “fogo na
floresta”,medisseseutio,AhmedShah,eeletinharazão.Com o atentado, os homens das montanhas pretendiam calar Malala,
masofeitiçoviroucontraosfeiticeiros.Nolugardisso,elesfizeramcomquesuavozsetornasseaindamaisforte.Malalapassouaserouvidanosquatrocantos e fez novos amigos no mundo inteiro. Todos acenderam velas efizeramvigíliaporsuarecuperação.
Rupia:MoedadoPaquistão,assimcomoorealéamoedadoBrasil.
Malalaficouquatromesesinternadaepassouporquatrocirurgias.AdivinhemqualfoiaprimeiracoisaqueMalalapediuquelevassempara
elanohospital,quandoacordou?Livros!Devagarzinho,elarecomeçoualereaescrever.Járespiravamelhore,aospoucos,voltouafalareaouvir.ElaemocionouomundocomumdiscursofeitonaONU!Sualutapelaeducaçãodasmeninasganhouatençãoglobalemilharesde
pessoas se uniram a ela.Malala recebeu doações para ajudarmilhões demeninasemeninosqueaindaestão foradaescola.Elaentrouparaa listadas cem pessoas mais influentes do mundo e se tornou a mais jovemganhadoradoprêmioNobeldapaz!Cincomesesedezdiasdepoisdo tiro,Malalaestavadevoltaàsalade
aula,emumaescolasóparameninas,chamadaEdgbastonHighSchool,nacidadeinglesadeBirmingham,ondeafamíliaagoravive.—Eu realizei um sonho. Penso que é omomentomais feliz daminha
vidaporqueestouvoltandoparaaescola.Hojeeutenhomeuslivros,minhamochila,evouaprender…Euqueroaprendersobrepolítica,sobredireitossociaisesobrealei.Euqueroaprendersobrecomopossomudaromundo—eladisse,noprimeirodiadeaula.Oprimeirodiadorestodesuavida.EMalala voltou a sorrir. Porque continuava sendo apenas umamenina
quequeriairparaaescola.
ONU:Organização dasNaçõesUnidas fundada em 1945, logo após a SegundaGuerra, comocompromissodegarantir apaz internacional e tornaromundoum lugarmelhorpara seviver,ondetodasaspessoastenhamosmesmosdireitos.Nobeldapaz:Éumprêmiointernacionalmuitoimportantedadoapessoasqueajudamaresolverproblemasecontribuemcomapaznomundo.
AGRADECIMENTOS
RelataremdetalhesahistóriadeMalalaYousafzaidesdeainfânciaatéoatentadocontraelaeodramavividopelafamílianosdiasqueseseguiramsófoipossívelgraçasaosdepoimentosgenerosos,ementrevistaàautora,detestemunhasocularesdosacontecimentos:KainatRiazeShaziaRamzan,asduasalunasdaEscolaKhushalbaleadasnomesmoatentado;RidaeoutrascolegasdeclassedeMalala;oprofessordaEscolaKhushal,FazalKhaliq,eadiretora, Maryam Khalique, carinhosamente chamada pelas alunas demadameMaryam;AhmedShah,consideradocomoumtioparaMalalaeoamigo mais próximo de Ziauddin Yousafzai, que estava com ele nomomentoemque recebeuanotíciadoatentadoeoacompanhoudurantetodo o tempo até a viagem da família para a Grã-Bretanha; o médicoMohammadAyub,oprimeiroasocorrerMalalaquandoelachegouferidaaoHospitalCentraldeSaiduSharif;SamarMinallah,amigapróximadafamíliaYousafzai, de etnia pashtun e documentarista com trabalhos sobre acondição dasmeninas no vale do Swat; a ativista por direitos humanos eprofessora de estudos do gênero Farzana Bari, da Universidade Quaid-e-Azam, de Islamabad, autora de uma pesquisa sobre o impacto da“talibanização” do vale do Swat nas mulheres; o engenheiro e ex-parlamentar Miangul Adnan Aurangzeb, conhecido como o príncipe doSwat,herdeirodoprimeirowalidoSwateopróximonalinhasucessóriaaoposto; Usman Ul-Asyar, outro amigo próximo de Ziauddin, historiador epresidente da Associação Svastu, com sede em Mingora, que buscapreservaraarteeaculturapashtun.Souprofundamentegrataaeles.Um agradecimento especial a Matinas Suzuki, diretor executivo da
Companhia das Letras, que me convidou para escrever um livro sobreMalala.Porsuagenerosidadeeconfiança.
AJúliaMoritzSchwarcz,editoradoseloCompanhiadasLetrinhas,poracreditar neste projeto desde o início e recebê-lo com tanto carinho ecuidado; e a toda a equipe que participou da produção deste livro,especialmenteMellBrites,HelenNakaoeCamilaMary.ÀilustradoraBrunaAssisBrasil,pelotalentoesensibilidadecomquedeu
vidaàspalavras.AoembaixadorAlfredoLeoni e sua equipenaEmbaixadadoBrasil no
PaquistãoeAfeganistão,peloapoio.UmagradecimentoespecialaoamigoediplomataThomazNapoleão,primeirosecretáriodaembaixadaentre2011e2014,pordividircomigoseuextensoconhecimentosobreoPaquistãoeopovopashtuneportodaaajudapessoalduranteoperíodoemqueestivenopaís.A Sana ul-Haq e família, por demonstrarem no dia a dia o valor da
hospitalidadepashtunepelagenerosidadedeme receberememsuacasa,mesmoconhecendoosriscosdeabrigarumajornalistaemumaregiãoondenão somos bem-vindos. Um ano depois de minha visita, Sana foisequestrado, interrogado e torturado durante 11 horas por homensdesconhecidos, por ajudar dois repórteres do jornal americano The NewYorkTimesagarimparinformaçõesrelacionadasaoatentadocontraMalala,segundolhedisseramossequestradores.AoamigoMatthewGreen,entãocorrespondentedaagênciaReutersem
Islamabad,eaorepórterDeclanWalsh,doNewYorkTimes,peloscontatosvaliosos.WalshfoiexpulsodoPaquistãopelogovernoseismesesdepoisdeminha visita, em maio de 2013, durante a cobertura da campanha paraeleiçõesgeraisnopaís.Um agradecimento especial à brasileira Cristina von Sperling e à
jornalista canadense Kathy Gannon, da agência Associated Press, ambasvivendonoPaquistãohámaisdevinteanos,porsuagenerosidadeepormeajudarem a chegar ao vale do Swat. Em abril de 2014, Kathy sofreu umatentado a tiros, durante a cobertura das eleições presidenciais noAfeganistão.Afotógrafaqueaacompanhava,AnjaNiedringhaus,morreunoataque.Suacoragemeperseverançaservemdeinspiração.Ao professor Claudio Fragata, autor de livros infantis e ganhador do
PrêmioJabutiem2014comAlfabetoEscalafobético,eà jornalistaBiaReis,
editora-assistentedojornalOEstadodeS.PauloeautoradoblogEstantedeLetrinhas.Pelaleituracuidadosaeporsuassugestõesvaliosas.AodiretorderedaçãodojornalOEstadodeS.Paulo,RicardoGandour,
aoeditorexecutivo,RobertoGazzi,eàeditora-chefe,CidaDamasco,pelasoportunidades e pelo carinho. Ao editor de Internacional, RobertoLameirinhas,esuaequipe,peloaprendizadoetorcida.Ao tenente-coronelMuhammadMumtazKhan,dasForçasArmadasdo
Paquistão, por disponibilizar as imagens das duas operações militareslançadas contra os talibãs no vale do Swat, em 2007 e 2009; e aomajor-generalAsimSaleemBajwapela autorizaçãoparaentrarnovaledoSwat,sobocercodoExército,menosdeummêsapósoatentadocontraMalala.Parameumarido,JacyrV.deQuadrosJr.,pormeesperar,sempre,epor
nuncamedeixardesistir.Paraminhafamília.Emespecial,àminhamãe,TeresinhaMariaCarranca,
pormeajudaragostardaescolaeacumprircomprazerasliçõesdecasa.Aparticipaçãodospaisnoprocessodeeducaçãoéfundamental.
NOTASDAAUTORA
Quaseumanoapósoatentado,KainatRiazeShaziaRamzantambémsemudaramparaaInglaterra,ondevoltaramaestudar.AntesdacriaçãodaLinhaDurand,afronteirade2.640quilômetrosentre
o Afeganistão e Paquistão que separou os pashtuns em 1893, eles eramchamados,deformageneralizada,como“afegãos”.Tambémsãochamadosde“pathans”.Os“afegãos”entraramemguerracomosbritânicostrêsvezes:1839-42,
1878-80 e 1919. Incapaz de controlar os povos da fronteira, a CoroaBritânica estabeleceu na região principados semi-independentes, como oSwat,em1926,quepermaneceuautônomoapósaindependênciadaÍndiaecriação do Paquistão. O principado foi dissolvido em 1969 e o SwatincorporadoàprovínciadeKhyberPakhtunkhwa.A obramais completa sobre a história dos pashtuns é o livro de Olaf
Caroe,ThePathans550B.C.—A.D.1957,OxfordUniversityPress,1958,queserviudereferênciaparaestelivro.As citações sobre a passagem de Alexandre, O Grande por terras
pashtunsconstamnolivrodeFrankHolt,IntotheLandof Bones:Alexanderthe Great in Afghanistan, University of California Press, Los Angeles,Califórnia,2005.A descrição de Heródoto sobre paktuike está emAs Histórias, livro 3,
comocitadono livrodeJohnMurray,Travels intoBokhara,Londres,1834,pp.162-3.Asduascenasdescritasnospenúltimosparágrafosdaspáginas44e56
foram capturadas no documentário de Adam B. Ellick, Class Dismissed,publicadoem22defevereirode2009nositedojornalTheNewYorkTimes,assimcomodetalhesdavidadeMalaladuranteorefúgioeavoltadafamília
Yousafzai para casa. Para assistir à íntegra do filme, em inglês, acesse<www.nytimes.com/video>.A frase de Malala reproduzida no início do capítulo 7 foi dita em
entrevista ao jornalistaSyed IrfanAshraf, do jornalpaquistanêsDawn,emdezembrode2011.Leiaotextonaíntegra,eminglês,em<http://www.dawn.com/news/678566/heroes-of-swat>AfrasedeMalalareproduzidanocapítulo8foiditaementrevistaàrede
detvamericanaCNNtambémem2011.Paraassistiràíntegradaentrevista,em inglês, acesse<http://edition.cnn.com/videos/world/2012/10/10/sayah-2011-interview-malala-yousufzai.cnn>.Para lera íntegradoblogescritoporMalala sobopseudônimodeGul
Makai,acesse:
Parte1:<news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/7834402.stm>Parte2:<news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/7848138.stm>Parte3:<news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/7861053.stm>Parte4:<news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/7881255.stm>Parte5:<news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/7889120.stm>
Onúmerode400escolasdestruídasapósosconflitosnovaledoSwatconsta no relatório Education Under Attack, da Organização das NaçõesUnidasparaaEducação,aCiênciaeaCultura(Unesco),publicadoem2010.Disponível em<http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001868/186809e.pdf>.Ainformaçãodequemaisde2milhõesdemoradoresdeixaramovaledo
Swat e arredores durante os conflitos consta em relatórios daAgência daONU para Refugiados, divulgados em 2010. Acesse<http://www.unhcr.org/4bdaeb646.html>.
SOBREAAUTORA
Quandoeueracriança,não tínhamosdinheiroparaviajar.Sentávamos,eu emeu avô, na pequena escada que dava acesso ao chalé demadeiraonde ele vivia comminha avó, meu tio e minha tia-avó, outra tia e doisprimos—parecia até uma casa pashtun! Era lá que eu passava as tardesdepoisdaescola,enquantomeuspaistrabalhavam.Meuavôsesentavanoprimeiro degrau, eu no terceiro. “Para onde a senhora deseja viajar,madame?”, ele perguntava. Eu respondia um destino qualquer e lá íamosnós, montados em nosso ônibus imaginário. Meu avô adorava andar deônibusequandotinhaumtempinholivreapanhavaocirculareficavadandovoltaspelacidade.Assimconheceu,dapraiaaoporto,cadacantodeSantos,acidadeondeeunasci.Aquelaeraasuamaneiradeviajar.Meupai tinhaoutra: os livros. Nos fins de semana, percorríamos o mundo juntos pelaspáginas de uma enciclopédia que ele havia colecionado em fascículos emandadoencadernarcomumalindacapavermelha.Quandoeucresci,quisconhecer os lugares que visitara na infância commeu pai e meu avô; e,como eles, quis contar histórias reais sobre omundo. Por isso resolvi serjornalista.HojesourepórterespecialdojornalOEstadodeS.Pauloeescrevopara
publicações internacionais. Reportagens minhas já foram publicadas emrevistascomoaamericanaForeignPolicyeaediçãofrancesadaSlate.Cobria guerra no Afeganistão e Paquistão, onde estava quando o líder da Al-Qaeda,OsamabinLaden,foimortoemumaoperaçãodosEstadosUnidos.MergulheinouniversodepaísesmuçulmanoscomoIrã,EgitoeIndonésiaenosterritóriospalestinosparareportagensespeciais.VidepertoosconflitosnaRepúblicaDemocráticadoCongo,SudãodoSul,Uganda.Escrevo principalmente sobre conflitos, tolerância religiosa e direitos
humanos, com um olhar especial sobre a condição das mulheres, porqueconsidero esses assuntos importantes. Aprendi muito sobre eles nomestradoemPolíticasSociaiseDesenvolvimentoquefiznaLondonSchoolof Economics (LSE), após estudar jornalismo. Em seguida, fuicorrespondente na ONU, em Nova York, e pesquisadora convidada doInstitutoReutersparaEstudosdoJornalismo,naUniversidadedeOxford;eintegrei o Projeto de Reportagem Internacional, da Universidade JohnsHopkins,deWashington.Escrevidoislivros-reportagemparaadultos:OIrãsob o chador (editora Globo), finalista do prêmio Jabuti, e O Afeganistãodepois do Talibã (editora Civilização Brasileira). Commeu trabalho, recebiprêmioscomomençãohonrosanoPrêmioEssoeduasediçõesdoPrêmioLíberoBadaró.Omais importante, paramim, é o conhecimento. Por conta daminha
profissão,exploreiosvalesdoTigreedoEufrates,doNilo,doJordãoedoSwat;oplanalto iraniano,berçodoantigo ImpérioPersa;osdomíniosdosantigosImpériosRomanoeBritânico;asterrasatravessadasnopassadoporconquistadores comoGengisKhan eAlexandre, oGrande, entremuitos emuitos outros lugares que antes só conhecia dos livros de história. Massemprequetenhoalgumadúvida,voltoàvelhaenciclopédiavermelha.
SOBREAILUSTRADORA
EunasciemCuritibaem1986.Formadaemjornalismoedesigngráfico,fizpós-graduaçãoemilustraçãocriativaetécnicasdecomunicaçãovisualnaescola EINA, emBarcelona. Em 2012, recebi o prêmio 30Melhores LivrosInfantisdoAno,darevistaCrescer.Noanoseguinte,fuiindicadaaoprêmioJabuti,nacategoriaIlustração.Hoje,tenhomaisdetrintalivrospublicados.
Copyrightdotexto©2015byAdrianaCarrancaCopyrightdasilustrações©2015byBrunaAssisBrasil
Todososdireitosreservados,inclusiveodereproduçãototalouparcial,emqualquermeio.
GrafiaatualizadasegundooAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesade1990,queentrouemvigornoBrasilem2009.
Preparação
MarianaZanini
Revisão
VivianeT.MendesAnaLuizaCouto
Tratamentodeimagem
MGallego•StudiodeArtesGráficas
ISBN978-85-438-0640-2
TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEDITORASCHWARCZLTDA.RuaBandeiraPaulista702cj.3204532-002—SãoPaulo—SPTelefone(11)3707-3500Fax(11)3707-3501www.companhiadasletrinhas.com.br
www.blogdacompanhia.com.br
SumárioPrefácio12345678910CadernodefotosAgradecimentosNotasdaautoraSobreaautoraSobreailustradoraCréditos