a valorização da arquitetura: conjunto rincão em são paulo, uma experiência para ser lembrada
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Ao final da década de 90 vence as eleições em São Paulo uma legenda de esquerda cuja administração foi marcada por uma política e um programa de governos voltados fortemente ao atendimento das questões sociais. Neste contexto abre-se a oportunidade para a criação de uma política habitacional inovadora. Após vários anos de uma maciça e monótona produção habitacional promovida pelo BNH (Banco Nacional da Habitação), vê-se ocorrer em São Paulo uma experiência enriquecedora, tanto do ponto de vista das formas e oportunidades de atendimento às famílias com renda muito baixa, quanto à introdução do conceito de valorização do projeto arquitetônico para habitação social. Este artigo busca relatar esta experiência através da análise de um dos projetos de habitação de interesse social realizado naquela gestão (1989-1992): o Conjunto Habitacional do Rincão, dos arquitetos Hector Viglieca e Bruno Padovano.TRANSCRIPT
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A valorização da arquitetura: conjunto Rincão em São Paulo, uma experiência para ser lembrada.
The valuation of the architecture: Rincão set in Sâo Paulo, an experience to be
remembered.
MARIA CLÁUDIA DE OLIVEIRA [email protected]
Arquiteta graduada pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, mestre em Tecnologia do Ambiente Construído pelo Programa de Pós - Graduação do Departamento de Arquitetura da Escola de Engenharia de São Carlos - da Universidade de São Paulo, professora de projeto do curso de Arquitetura da Universidade Paulista – UNIP, desde 1997. RESUMO Ao final da década de 90 vence as eleições em São Paulo uma legenda de esquerda cuja
administração foi marcada por uma política e um programa de governos voltados
fortemente ao atendimento das questões sociais. Neste contexto abre-se a oportunidade
para a criação de uma política habitacional inovadora. Após vários anos de uma maciça e
monótona produção habitacional promovida pelo BNH (Banco Nacional da Habitação), vê-
se ocorrer em São Paulo uma experiência enriquecedora, tanto do ponto de vista das
formas e oportunidades de atendimento às famílias com renda muito baixa, quanto à
introdução do conceito de valorização do projeto arquitetônico para habitação social. Este
artigo busca relatar esta experiência através da análise de um dos projetos de habitação
de interesse social realizado naquela gestão (1989-1992): o Conjunto Habitacional do
Rincão, dos arquitetos Hector Viglieca e Bruno Padovano.
Palavras chave: habitação coletiva de interesse social, projeto de habitação e Rincão.
ABSTRACT To the end of the decade of 90 win the elections in São Paulo a left legend whose
administration was marked by a program of government directed strong to the attendance
of the social matters. In this context it confides chance for the creation of one innovative
housing politics. After some years of a bulk and monotonous housing production promoted
by the BNH (National Housing Bank), it is seen to occur in São Paulo a richness
experience, as much of the point of view of the forms and chances of attendance to the
families with income very low, how much to the introduction of the concept of valuation of
the architectural project for social housing. This article searchs to tell this experience,
through the analysis of a social housing project in that management (1989-1992): the
Rincão Housing, by the architects Hector Vigliecca and Bruno Padovano.
Key words: collective housing of social interest, housing project and Rincão.
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A valorização da arquitetura: conjunto Rincão em São Paulo, uma experiência para ser lembrada.
Ao final da década de 90 vencem as eleições em São Paulo uma legenda de esquerda
cuja administração foi marcada por uma política e um programa de governo voltados
fortemente ao atendimento das questões sociais. Neste contexto abre-se a oportunidade
para a criação de uma política habitacional inovadora. Após vários anos de uma maciça e
monótona produção habitacional promovida pelo BNH (Banco Nacional da Habitação), vê-
se ocorrer em São Paulo uma experiência enriquecedora, tanto do ponto de vista das
formas e oportunidades de atendimento às famílias com renda muito baixa, quanto à
introdução do conceito de valorização do projeto arquitetônico para habitação social.
Idealizada e concretizada dentro da PMSP na gestão de Luiza Erundina (1898-1992) a
nova política habitacional do município teve como diretriz básica fortalecer a participação
da comunidade organizada em torno da questão habitacional.
A questão habitacional merecia uma atenção especial, dadas as condicionantes
características desta metrópole e sua evolução urbana resultantes das políticas que aqui
se operaram desde a sua formação e particularmente à profunda recessão econômica
vivida na década de 80.
Conforme dados do IBGE (censo demográfico, base 1996) São Paulo chega na década
de 90 a ter mais de 1.000.000 favelados (pessoas moradoras em aglomerados
subnormais) 1 e vários núcleos encortiçados espalhados por todo o território
metropolitano incidindo maiormente nas regiões centrais e somando 3.000.000 de
pessoas vivendo em condições de extrema precariedade.
O crescimento urbano voltado prioritariamente à acumulação da iniciativa privada, a
desvalorização do projeto de habitação social e a pauperização geral de grande parcela
da população paulistana foram determinantes para a penúria característica no plano
habitacional quando a referida administração assumiu a Prefeitura de São Paulo.
Palavras, argumentos, idéias e propostas são insuficientes para mudar posturas e
políticas firmemente estabelecidas no país. Por isso, desde o primeiro dia em que
assumimos a Superintendência de Habitação Popular (HABI) e o Fundo de
Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal (Funaps), estava clara a
necessidade de gerar resultados concretos – programas, projetos, obras, trabalho
social e mobilização popular – capazes de evidenciar a importância de desenvolver
1 Para o IBGE, aglomerados subnormais são grupos de 50 unidades habitacionais dispostas de modo desordenado e denso, sobre solo que pertence a terceiros, e carente de serviços públicos essenciais.
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novos conceitos em habitação popular, atenuando, dentro de nossas possibilidades, os
graves problemas de moradia da maior cidade da América do Sul e contribuindo para a
luta por uma nova política nacional de habitação. (BONDUKI, 2000: 107)
Neste depoimento concedido à revista Projeto 2 destacam-se também alguns dos
pressupostos da ação de HABI como o direito à terra, à arquitetura, à cidadania, à
participação popular nas formulações e implantações de programas e projetos, à
diversidade de intervenções, o reconhecimento da cidade real, à redução de custos sem
perda de qualidade, o estímulo à autogestão e o respeito pelo meio ambiente.
Vivia-se naquele momento um contexto de grandes reivindicações por habitação pelos
movimentos de moradia que já apresentavam um bom nível de organização política. Era
urgente iniciar a retomada da produção habitacional, porém de forma a evitar os
equívocos recorrentes do passado como a ausência do projeto, a criação de grandes
conjuntos habitacionais ou as formas de financiamento inacessíveis para a grande maioria
da população carente.
Desde a criação do BNH em 1964, o projeto arquitetônico e urbanístico passa a ser
uma etapa absolutamente desimportante da produção dos conjuntos habitacionais.
Habitação popular, como passou a ser chamada a moradia dos trabalhadores, tornou-
se sinônimo do que havia de mais deplorável em termos de arquitetura e urbanismo:
padronização dos projetos, conjuntos de grandes dimensões na franja periférica,
execução precária; ausência de participação do usuário; financiamento inacessível às
faixas de menor renda; casa própria como única alternativa para o acesso à moradia.
(BONDUKI, SCAGLIUSI, 1991: 59)
Com a extinção do BNH (1986) e de forma a alterar esta dinâmica perversa que muito
produziu e pouco beneficiou o usuário que realmente necessitava de subsídio 3 , procurou-
se trabalhar com financiamentos a fundo perdido para população com renda de até cinco
salários mínimos, incorporou-se a autoconstrução assistida e o mutirão como alternativas
à produção e redução de custos, incentivou-se a participação popular através do estímulo
à autogestão 4 e a cogestão, propuseram-se parcerias entre o poder público e as ONG´s
2 Trecho de artigo extraído de Habitar São Paulo – Reflexões Sobre a Gestão, mas publicado originalmente na Revista Projeto edição n. 147, Novembro de 1991. 3 Nesse modelo, é paradigmática a ação do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), por intermédio do Banco Nacional da Habitação (BNH), filhote urbano do regime militar, que possibilitou, do ponto de vista quantitativo, a mais importante intervenção governamental sobre as cidades em toda a história do país, tendo financiado a produção de 4.5 milhões de moradias. (BONDUKI, 2000: 20,21) 4 Autogestão: processo de gestão do empreendimento habitacional onde os futuros moradores organizados em associações ou cooperativas, administram a construção das UH em todos os seus
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(assessorias técnicas) e houve uma retomada da valorização do projeto habitacional com
a abertura de concursos públicos de habitação popular ampliando-se o mercado de
trabalho para os arquitetos.
Em 1989 a SEHAB 5 e a COHAB 6 promoveram através do IAB 7 e do SASP 8 o Concurso Público de Anteprojetos para Habitação Popular com a finalidade de incentivar a
reflexão sobre o projeto de habitação de interesse social. O concurso estimulou o estudo
de novas tipologias habitacionais, permitindo o uso de unidades diferenciadas num
mesmo edifício, a distribuição de equipamentos coletivos e a disposição de áreas
comerciais e de lazer. Também propôs o debate da questão das escalas e densidades
onde alguns estudos feitos na ocasião por técnicos de HABI demonstraram que, com
cerca de 300 unidades habitacionais já era possível organizar-se uma escala de produção
bem econômica, isso sem mencionar os ganhos em relação às novas e variadas formas
de sociabilização possíveis.
Escolheram-se duas áreas de estudo com características bastante distintas: a primeira
uma sobra urbana em área consolidada resultante da abertura e desapropriação de um
conjunto de quadras para construção da estação Brás do metrô (FIG. 1) e a outra uma
grande gleba no extremo da zona Leste, o Jardim São Francisco, setor 8. Dos quase 300
trabalhos inscritos inicialmente (sendo 176 para a área do Brás e 113 para a área do Jd.
São Francisco) apenas 80 participaram do processo de julgamento. Desta experiência
saíram alguns dos arquitetos que viriam a projetar vários dos conjuntos habitacionais
construídos naquele período. Curiosamente o projeto vencedor para a área do Brás
(equipe de Sylvio Podestá, de Belo Horizonte) nunca saiu do papel e algum tempo depois
o terreno foi ocupado parcialmente por edifícios institucionais.
aspectos, a partir de regras e diretrizes estabelecidas pelo poder público, quando este participa financiando o empreendimento. 5 Secretaria da Habitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura do Município de São Paulo. 6 Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo. 7 Instituto de Arquitetos do Brasil. 8 Sindicato dos Arquitetos do Estado de São Paulo.
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Os arquitetos Hector Vigliecca e Bruno Padovano, sócios na época (Padovano Vigliecca
Arquitetos S/C Ltda), participaram do concurso e obtiveram uma menção honrosa por seu
projeto para a área do Brás (figs. 2 e 3). A proposta valorizava a rua como espaço vivencial e a tipologia da vila como partido.
Com a conjugação de três tipologias convencionais – casas geminadas contínuas,
casas nos fundos dos lotes e edifícios residenciais em bloco horizontal – pensou-se o
escalonamento das massas construídas, buscando, desse modo, uma escala humana
para o conjunto, identidade visual de cada unidade e a valorização da rua como espaço
vivencial. Quintais e espaços abertos privativos completam as unidades habitacionais.
(Revista Projeto no. 147)
A questão do uso misto como forma de promover um maior dinamismo e assegurar fluxos
e atividades distintas nas diversas horas do dia, assim como a variabilidade tipológica
também foram questionadas pelo projeto. Este apresenta espaços de uso comercial nas
esquinas voltadas para a rua de maior fluxo, além de prever unidades que variavam de 28
a 95 m2 aproximadamente. 9 A equipe demonstrou muita sensibilidade na criação de
espaços públicos qualificados pela escala e pelo uso.
Hector Vigliecca é uruguaio, mora no Brasil há mais de 30 anos, estudou na Universidade
da República em Montevideo e pós graduou-se em Roma. Recebeu forte influência da
arquitetura Brasileira através da obra de Afonso Reidy, Oscar Niemeyer e Lucio Costa 10
ainda quando estudante e vivenciou a experiência das cooperativas de habitação
uruguaias. Na época era sócio do arquiteto Bruno Padovano que nasceu em Milão, fez
seus estudou na FAU - USP, pós graduou-se em Desenho Urbano por Harvard e 9 Outros arquitetos propuseram cômodos de dimensões exíguas (18m2) utilizados como quartos de pensão, com apenas um espaço para instalação de cama, armário, lavatório e geladeira com banheiro coletivo no corredor. 10 Depoimento pessoal do arquiteto à autora no ano de 1997.
FIG. 1: Área do concurso do Brás. Proximidade com a estação de metrô e oferta de infra-estrutura. Dos 300 inscritos no concurso apenas 80 foram julgados. O projeto vencedor não foi construído e até hoje o terreno esta à espera de um uso que o qualifique.
Fonte: Googlemaps, 2007
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defendeu tese de Doutorado na FAU - USP em 1987. Ambos foram sócios de 1983 a
1993, período em que participaram de vários concursos inclusive do Concurso Nacional
de Idéias para Expansão do Núcleo Urbano de Campinas, onde foram finalistas.
FIG. 2 Corte AA, indicado em planta. Fonte: Revista Projeto n. 147.
FIG. 3 Planta pavimento térreo, s/ escala. Fonte: Revista Projeto n. 147.
Rua interna de caráter local. Lazer e convívio da comunidade.
Uso comercial. Nas esquinas de maior fluxo.
Combinação de tipologias e volumes variados. Construção da escala local.
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A menção honrosa no concurso do Brás aliada a estas experiências os qualificou para
receber a carta-convite para o desenvolvimento do Conjunto Habitacional do Rincão e da
Vila Mara / Rio das Pedras. Trataremos de analisar aqui a experiência do Rincão.
Política Municipal de habitação As diretrizes da Política Municipal de Habitação para a elaboração de projetos previam o
aproveitamento de terrenos públicos dominiais remanescentes de desapropriações, obras
públicas, loteamentos e da retificação do rio Tietê. Também se estabeleceu como critério
projetos de pequenas dimensões, mas com densidades elevadas (os terrenos variavam
de 2600 a 20.000 m2 para densidades entre 800 hab/ha a 1500 hab/ha). A diversidade de
soluções arquitetônicas e urbanísticas também era esperada, assim como a inovação
tipológica e a valorização e qualificação dos espaços de uso coletivo.
Foram realizadas mais de 200 intervenções habitacionais naquela gestão nas diversas
modalidades de atendimento. (fig. 4)
FIG. 4: Alguns dos conjuntos habitacionais realizados pela PMSP / 1989-1992.
Dentre as várias modalidades de intervenção da nova política como a regularização
fundiária e urbanização de favelas, o financiamento para construção através de mutirão
autogerido por associações comunitárias, o programa de lotes urbanizados, a intervenção
8
em cortiços e a implantação de Infra-estrutura em gleba, o conjunto do Rincão faz parte
da produção de conjuntos habitacionais por empreitada com implantação de infra-
estrutura. Sua administração foi diretamente controlada por HABI e sua demanda
populacional era oriunda de favelas, cortiços e movimentos de moradia daquela região
(Vila Matilde) e também de outras regiões próximas. Esta comunidade não se conhecia e
o perfil dos moradores era bastante heterogêneo.
O projeto do Rincão foi elaborado durante o ano de 1990 pelos arquitetos Hector Vigliecca
e Bruno Padovano. Mas antes fora iniciado como estudo preliminar pela equipe do
arquiteto Francisco Scagliusi, 11 técnico de HABI.
O projeto do conjunto Rincão começou a ser esboçado dentro de HABI pela própria
equipe de projeto. Assessorados pelo arquiteto Francisco Scagliusi que, influenciado
por projeto de Álvaro Siza para O Porto, desenvolveu estudo preliminar para
implantação dos blocos do Rincão. (OLIVEIRA, 1999:116)
No conjunto do Porto projetado em 1973 pelo arquiteto Alvaro Siza (fig.5) não apenas a
situação de implantação era análoga ao Rincão, mas também o contexto de
movimentação política, pauperização e intensa participação popular. A experiência
portuguesa fora fruto de uma ação emergencial do SAAL – Serviço Ambulatorial de Apoio Local 12 estabelecido para recuperar as péssimas condições de habitação da
população carente imediatamente após a Revolução de 25 de Abril de 1974.
11 Francisco Scagliusi é arquiteto e foi diretor da Divisão de Projetos e Obras da Superintendência de Habitação Popular, da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano (Habi/Sehab) no período de 1989-1992. (Revista AU n. 33:60) 12 Álvaro Siza trabalhou para o SAAL entre 1973 e 1977, quando este perdeu seu poder e atuação. (SiIZA, 1986: 72-86)
FIG. 5: Volumetria do conjunto de Bouças, 1973. Fonte: Siza, 1986: 72-86
9
A proximidade com uma via férrea elevada junto ao terreno pressupunha a necessidade
de uma oposição a esta, muito próxima e ruidosa para implantação do casario adjacente.
Siza propõe a elaboração de um muro duplo como anteparo sonoro e como marcação de
uma via e rente a ela encosta as lâminas de habitação criando ruas e núcleos de
vizinhança individualizados. Nas lâminas, que comportam unidades habitacionais pouco
diferenciadas alterna as formas de circulação criando ora unidades abertas diretamente
para os pátios, ora acessadas por escadas e ora por corredores suspensos, que
qualificam e protegem as ruas internas gerando percursos diferenciados.
Implantação O projeto brasileiro situa-se num terreno de 12.878,43 m2 junto à Estação Vila Matilde do
Metrô na Zona Leste onde também se localiza uma estação da CBTU – Companhia
Brasileira de Trens Urbanos e o viaduto Vila Matilde.
FIG. 6 Situação do conjunto e proximidade com vias de transporte. Fonte: Googlemaps, 2007.
Foram projetadas 306 habitações com alguma variação tipológica, mas com área média
de 45m2. A intervenção ainda comporta 26 vagas de automóveis (fora do terreno) e
815.92 m2 de área comercial. Com características semelhantes, a implantação do Rincão
EEssttaaççããoo ddee MMeettrrôô VViillaa MMaattiillddee || 11998888
CCBBTTUU VViillaa MMaattiillddee
EEssttaaççããoo ddee MMeettrrôô PPeennhhaa || 11998888
PPiisscciinnããoo ddoo RRiinnccããoo
VVeettoorr ZZoonnaa LLeessttee
RRiinnccããoo
10
segue um partido que remete de forma evidente à solução portuguesa, ainda que numa
escala volumétrica bem diferenciada (figs. 5 e 7).
Localizado estratégicamente em relação à oferta de transporte público e relativamente
próximo ao Centro (menos de 10 km até a Praça da Sé), o terreno já era de propriedade
do município, o que contribuiu para alavancar o processo de realização do
empreendimento.
A área, sobra urbana resultante da canalização do córrego do Rincão, era grande o
suficiente para abrigar um conjunto denso 13, mas ironicamente muito próxima a avenidas
expressas e grandes infra-estruturas de transporte público, além de ter um formato bem
irregular (FIG. 8). Oportunidade para os arquitetos, que procuraram relacionar-se de forma
plena a todas as características e situações peculiares encontradas na área de maneira a
não dissociar o objeto de seu entorno.
Para Vigliecca o projeto de habitação popular deve ser pensado levando-se em conta
além do sistema construtivo, da ótica social e da infra-estrutura local também o desenho
urbano entendido como a estrutura que garantirá as relações desses espaços de
habitação com o restante da cidade. Rejeita terminantemente soluções que sejam a
multiplicação de volumes num espaço aberto ou mesmo cercados, acreditando que
assim não será possível estabelecer áreas coletivas ou mesmo relacionar-se com a
cidade de maneira eficaz. (OLIVEIRA, 1999)
13 O conjunto Rincão tem densidade de 1052 habitantes por hectare.
FIG. 7 Vista aérea Conjunto Rincão, 1992. Fonte: ANDRADE, 1993:18
11
FIG. 8: Situação do terreno e implantação x infra-estruturas viárias. Fonte: Googlemaps, 2007.
A forma e as características do terreno frente à malha urbana (fig. 8) condicionaram-no a
uma ocupação mais introspectiva, mas que não se absteve de estabelecer relações com a
cidade. A implantação do conjunto é cuidadosa com o espaço urbano que o cerca: a
canalização do córrego divide o terreno em duas parcelas, destinando a uma delas (ao
norte) uma área muito irregular e de poucas dimensões, mas destaca-o como elemento
articulador da paisagem, além de dar-lhe um sentido de referência (a rua do córrego).
As 306 unidades dividem-se em edifícios laminares praticamente idênticos (exceto pelo
comprimento, pois cada um tem uma dimensão longitudinal). A partir da Rua Alvinópolis
(ao sul, junto à avenida expressa) constrói-se um grande pórtico-cabeceira de onde
partem os edifícios laminares numa orientação praticamente leste-oeste. Ao todo são oito
lâminas de três pavimentos mais o térreo, que unidas pelos fundos (vide mancha verde na
fig. 9) duas a duas geram três pátios-corredor com acessos independentes pela rua
externa (vide mancha amarela na fig. 9). Os pátios são como vilas que abrigam um
número limitado de unidades valorizando as relações de vizinhança, cada pátio abriga um
conjunto de 90, 88 e 64 unidades habitacionais respectivamente 14. Sobre estes espaços é
14 As demais unidades se situam nos blocos externos (vide mancha vermelha na fig. 9), que são mistos e possuem salas comerciais no térreo junto às ruas de maior movimento e na parcela de terreno irregular do outro lado do córrego (edifícios de apenas dois pavimentos).
Avenida
Linha férrea e metrô.
Córrego
Viaduto Vila Matilde
Avenida
Viaduto Vila Matilde
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importante destacar a necessidade de caracterizá-los, dar a eles um significado para que
não se tornem meras sobras do espaço não edificado. Panerai discute este importante
aspecto na projetação da habitação, para ele o reconhecimento arquitetônico dos tecidos
urbanos e os valores de urbanidade que estes revelam quando a relação entre
parcelamento do solo e edificação configura espaços comuns bem definidos se opõe de
maneira positiva ao urbanismo funcionalista da cidade esquemática. (PANERAI, 1980).
Vigliecca também acredita ser fundamental para o projeto de habitação coletiva (seja ela
popular ou não) que primeiramente se qualifiquem as áreas comuns de uso público (fig. 9)
Outro aspecto importante defendido pelo arquiteto é o de que ao projetar não se pode
deixar a configuração do espaço coletivo para a parte mais frágil (no caso refere-se à
população atendida pelos programas de habitação social), pois este poderá ser
definido de maneira imprópria e poderá criar-se margem favorável à depreciação do
espaço. (OLIVEIRA, 1999:115)
FIG. 9 Croqui do arquiteto destacando as vilas-patios lugar de convívio, lazer e circulação do
conjunto. Fonte: Revista AU n. 33
13
A estratégia de unir as lâminas pelos fundos possibilitou às unidades do pavimento térreo
uma opção de crescimento, tão necessária quando se trata de unidades habitacionais tão
exíguas 15 e de famílias muitas vezes numerosas. Outra vantagem seria a manutenção
dos espaços internos da vila que não sofrem modificações com o crescimento das
moradias. As unidades têm área média de 45m2. As unidades do térreo e da cobertura
diferenciam-se, assim como as unidades localizadas sobre as áreas comerciais junto às
ruas Evans (leste) e Viaduto Vila Matilde (oeste).
Na Rua Alvinópolis propunha-se três entradas destinadas aos três pátios-vila para que
estes tivessem a oportunidade do acesso independente e exclusivo. Verificou-se que,
entre outras opções, esta não se concretizou. Atualmente existe apenas um único acesso
ao conjunto localizado junto ao Viaduto. Uma entrada resguardada da rua por uma guarita
e uma cerca controla o acesso de todos os moradores e visitantes. Os pórticos continuam
demarcando a rua e anunciando a presença do edifício, mas atualmente só servem de
anteparo acústico e de mirante. É comum ver os moradores caminhando sobre eles a
contemplar a paisagem ou mesmo os trens que a toda hora passam por ali.
FIG. 10: Implantação s/ escala. Fonte: (ANDRADE, 1993:18).
15 Área média da UH 45m2, unidade térrea com quintal de 28m2 e possibilidade de 70% de ocupação (edícula de 20m2).
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FIG. 11 Rua Alvinópolis, acessos independentes aos núcleos de vizinhança. Fonte: Revista AU n. 33
Junto às ruas Evans e ao Viaduto estabeleceram-se as lâminas comerciais (mais baixas)
com habitações de um dormitório no 1º pavimento. Estas são as faces do conjunto que se
relacionam diretamente com a rua.
Circulação A circulação dos edifícios (fig. 13) é um item que merece destaque, pois ao mesmo tempo
em que é resolvida de forma simples e quase única para todo o conjunto, gera grande
dinamismo de fluxos no seu uso cotidiano. Com três pavimentos mais o térreo o conjunto
prescinde do uso de elevadores sendo todo acessado por ruas internas, escadas coletivas
e privadas (compartilhadas por duas famílias) e corredores abertos suspensos. A partir do
interior das vilas é possível acessar as unidades térreas e através de escadas,
compartilhadas por duas famílias, acessar as UH do 1º pavimento (unidade superior “A” –
2 dormitórios). Nas pontas das lâminas junto ao córrego e na cabeceira-pórtico (fig. 11)
situam-se os conjuntos de escadas coletivas que levam ao 2º pavimento onde se acessa
um longo corredor (tão longo quanto cada lâmina), para este corredor abrem-se unidades
habitacionais (unidade superior “B” – 2 dormitórios) e conjuntos de escadas
(compartilhadas por duas famílias) que acessam mais duas unidades no 3º pavimento
(unidade cobertura – 1 dormitório). Nas lâminas comerciais há escadas, que a partir da
rua, acessam duas unidades no 1º pavimento (unidade diferenciada – 1 dormitório). Nas
lâminas mais baixas existe apenas a escada para o 1º pavimento (unidade superior “A” –
2 dormitórios) e as unidades térreas que se abrem para a rua em frente ao córrego. Em
relação às áreas de uso comum percebe-se uma preocupação em minimizar aquelas que
poderiam vir a onerar a manutenção do conjunto (despesas de condomínio). É fácil
identificar como cada conjunto de escadas ou corredores é compartilhado: os corredores
VViillaa AA VViillaa BB VViillaa CCCCOOMMEERRCCIIOO
CCOOMMEERRCCIIOO
15
servem sempre a um grupo de 8 a 14 famílias (que é a variação do número de UH nos
corredores do 2º pavimento) e as escadas servem sempre a duas famílias podendo, deste
modo, ser mais bem cuidadas por esta coletividade (assegurando a manutenção e a
segurança). Os pátios vila, a única área que poderia ser considerada de manutenção mais
complexa (e eventualmente mais onerosa) apresenta-se tão bem qualificada que a
maioria dos moradores sente-se possuidor deste espaço (fig.12). Desde a inauguração
(quando ainda não havia nenhuma árvore plantada) até o ano de 2001 já haviam sido
plantadas várias arvores e sido criados alguns jardins. As vilas são espaços agradáveis
para estar ou circular e muito utilizadas pela comunidade.
FIG. 12 Praça de convívio na cabeceira da vila junto à rua do córrego. Fonte: arquivo pessoal, 2001.
FIG. 14 Inauguração do Conjunto Rincão, 1992. Fonte: ANDRADE, 1993.
FIG. 13 Elevação do bloco interno destacando a circulação vertical do conjunto. Fonte: Revista AU n. 33
16
FIG. 15 Corte esquemático do edifício laminar. S/ escala. Fonte: Revista AU n. 33
Unidades: As unidades habitacionais (fig. 16) são muito semelhantes e diferem apenas pelo tipo de
circulação que lhes dá acesso, pela pouca variação de área e em função de terem um ou
dois dormitórios. A unidade maior chega a 73m2 e a menor a 35m2. Todas são
moduladas por um vão máximo de 5.50m aproximadamente, o que confere a possibilidade
de dividi-las ao meio para a utilização de dois dormitórios iguais (UH do 1º e 2º
pavimentos) ou de dividi-las de forma irregular assegurando uma área social mais ampla e
uma área intima menor (UH do térreo). As unidades mostram-se muito bem resolvidas em
relação à construtibilidade e economia: foram construídas em alvenaria estrutural, não
necessitam de elevador, há um único fosso central de ventilação para cada conjunto de
banheiros (que são todos internos) e cada apartamento possui apenas duas janelas (a
unidade térrea possui três), sendo que em alguns casos a sala é iluminada pela porta da
entrada (de ferro e vidro). As áreas de serviço são ventiladas por elementos vazados o
que muito contribui para a efetivação da ventilação cruzada. Todos os dormitórios são
voltados para os fundos (na UH térrea há um dormitório voltado para a lateral da entrada)
minimizando os eventuais incômodos que pudessem surgir pelo uso intensivo das vilas-
patios.
CCoorrrreeddoorr ssuuppeerriioorr eexxtteerrnnoo::aacceessssoo ààss uunniiddaaddeess ((88 --1144)) eeeessccaaddaarriiaass..
AAcceessssoo àà dduuaass uunniiddaaddeess..
DDeeppóóssiittooss..
CCaassaass ttéérrrreeaass ccoomm qquuiinnttaall,,aacceessssoo iinnddiivviidduuaall..
CCoobbeerrttuurraa ((aacceessssoo aa dduuaassuunniiddaaddeess))
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A localização das cozinhas e banheiros nas UH, excetuando-se às do térreo, obedecem
sempre ao critério da prumada hidráulica ocupando sempre a mesma posição. Um
aspecto negativo evidente é a restrita possibilidade de ocupação da sala com mobiliário,
servida por tantas aberturas (porta de acesso, porta do banheiro, portas dos dormitórios e
em algumas unidades a porta para o quintal) que, mais do que um espaço de estar e
convívio da família ela se torna um espaço de distribuição dos cômodos da unidade.
FIG. 16: Planta das unidades habitacionais. S/ escala. Fonte: Revista AU n. 33.
TT 22
CCOOBB
CCoorrrreeddoorr
11
18
Ocupação Após quase 10 anos de ocupação, num dia qualquer durante a semana foi possível
conhecer melhor a rotina desses felizes moradores do conjunto Rincão: há escolas
primárias e secundárias nas proximidades, o metrô e o trem os colocam em situação
muito favorável para o acesso aos demais bairros e ao centro da cidade. Há postos de
saúde e um pequeno hospital na redondeza. O comercio local é farto e dentro de uma
gestão administrativa ainda precária todos se cotizam para as despesas gerais de
manutenção. Há alguns anos haviam pintado os edifícios, alguns moradores tinham
planos de promover mudanças nos playgrounds, há aqueles que plantam árvores e
cuidam dos jardins. Há também quem prefira isolar-se e proteger-se do convívio local.
Alguns moradores instalaram grades, fecharam espaços, construíram mais do que o
permitido. Mas a percepção que se teve foi a de que vivem em harmonia num espaço do
qual gostam e onde se reconhecem como grupo. O edifício se misturou à paisagem e os
moradores se integraram à região.
FIG. 17 vilas-pátio: local de estar e circulação. Fonte: arquivo pessoal, 2001.
Ao comparar superficialmente esta experiência com alguns conjuntos habitacionais que
ainda hoje se vê serem erguidos nas periferias (e às vezes até em centros metropolitanos)
propõe-se a pergunta: porque não continuamos melhorando o processo de projeto da
habitação popular? Porque não evoluímos e amadurecemos com a experiência realizada?
Órgãos como a CDHU - Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado
de São Paulo - empresa do Governo Estadual, vinculada à Secretaria da Habitação 16
16 O maior agente promotor de moradia popular no Brasil. Tem por finalidade executar programas
habitacionais em todo o território do Estado, voltados para o atendimento exclusivo da população
de baixa renda - atende famílias com renda na faixa de 1 a 10 salários mínimos.
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reorientaram-se nos últimos anos através do programa municipal de habitação que gerou
esta experiência. E optaram seguir trabalhando com programas de desfavelamento, lotes
urbanizados, financiamentos mais abrangentes, construção por mutirão, autogestão e
intervenções em cortiços, mas parece patente que ainda restou um conceito a ser
incorporado: aquele que diz respeito à valorização da arquitetura e do projeto da cidade.
Com a mera finalidade de ilustrar tal comparação e escolhendo alguns exemplares
realizados por programa de habitação semelhante ao analisado (construção de UH por
empreiteira com infra-estrutura) destacam-se alguns conjuntos construídos nos últimos
três anos pela CDHU: Campo Limpo, Campinas (San Martin), Itaim Paulista e Cajamar
(fig. 18).
FIG. 18 Conjunto CDHU em Cajamar: monotonia, falta de urbanidade e pouca conexão com a
cidade. A moradia ainda resolvida como problema numérico. Fonte: www.cdhu.sp.gov
Em todos, é impossível não lamentar-se pela pouca valorização de nossa matéria.
Parecem a materialização do resultado de planilhas, cálculos e índices numéricos mas
mostram-se distantes de caracterizarem-se como espaços de sociabilização, de trocas, de
vivências e convivências. Parece óbvio, mas não basta que a tentativa de atenuar o
problema habitacional seja apenas numérico ou econômico, é preciso que seja
compreendido além disso. Por menor que possa ser o papel da arquitetura na alteração
de nossas sociedades, ela sempre trará em sua essência tal pressuposto e portanto
devemos continuar atribuindo-lhe esta capacidade por mínima que seja. Ao construirmos
moradias populares corretamente implantadas ao sitio, próximas às redes de infra-
estrutura básicas, com espaços de convivência privada e coletiva qualificados, levando em
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conta o projeto das áreas públicas de uso coletivo, enfim quando melhor compreendermos
o verdadeiro papel que a arquitetura pode desempenhar neste setor, esta poderá enfim
dinamizar as redes de sociabilização, evitar ampliar ainda mais as formas de exclusão, e
quem sabe contribuir para o crescimento e a evolução do que signifique a palavra
cidadania.
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BIBLIOGRAFIA Publicações ANDRADE, Carlos Roberto; BONDUKI, Nabil; ROSSETO, Rossella. Arquitetura e
Habitação Social em São Paulo 1989 - 1992. Catálogo da mostra de mesmo nome para a
II Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, Publicação EESC - USP, 1993.
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Estação Liberdade, 2000.
OLIVEIRA, M. Cláudia. A valorização da Arquitetura: Projetos de Habitação – a
experiência da PMSP (1989-1992). São Paulo: Dissertação de mestrado apresentada ao
Departamento de Arquitetura da EESC – USP, 1999.
PANERAI, Philippe, CASTEX, Jean, DEPAULE, Jean-Charles. Formas Urbanas: de la
manzana al bloque. Barcelona: Ed. GG, 1980.
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Periódicos AU, São Paulo, Editora Pini, edição n. 33, Dez/Jan 1991.
AU, São Paulo, Editora Pini, edição n. 42, Jun/Jul 1992.
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Projeto, São Paulo, Projeto Editores Associados Ltda., edição n. 137, Janeiro de 1991.
Projeto, São Paulo, Projeto Editores Associados Ltda., edição n. 147, Novembro de 1991.
Sites consultados www.vigliecca.com.br visitado em Junho de 2007.
www.maps.google.com visitado em Junho de 2007
www.housingprototypes.org visitado em Junho de 2007.