a variação de léxico nas traduções modernas de pinóquio

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A variação de léxico nas traduções modernas de Pinóquio Vanessa dos Santos Marques Resumo: Clássico da literatura infantil de 1883, Le avventure di Pinocchio teve nove traduções publicadas no Brasil entre 2002 e 2008. O maravilhoso está cla- ramente presente nesta narrativa de Collodi, em que uma marionete, agindo como um menino, anseia ser de carne e osso. Na jornada de Pinóquio até se tornar um menino de verdade temos situações que indiretamente demonstram como amadu- recer distinguindo o certo do errado. Nesse trabalho escolhi quatro traduções para discutirmos e compararmos o léxico e discutirmos como traduzir literatura infantil. Palavras-chave: tradução, língua italiana, literatura italiana, literatura infantil. Introdução Pretendo neste trabalho cotejar quatro traduções ao português de Le avventure di Pinocchio e analisar as diferenças de léxico, a fim de estabelecer a tradução com características mais “didáticas” e a tradução com características mais “artísticas”. A reflexão sobre o quanto uma obra é didática ou artística faz-se necessária dada a importância e a preocupação que se deve ter com a linguagem para veicular informações e histórias para crianças. Mas temos claro que arte e didatismo não necessariamente devem estar separados e que a melhor tradução provavelmente será aquela que melhor equilibra esses dois aspectos.

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Vanessa dos Santos Marques

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87Cadernos de Literatura em Tradução, n. 12, p. 87-102

A variação de léxico nas traduçõesmodernas de Pinóquio

Vanessa dos Santos Marques

Resumo: Clássico da literatura infantil de 1883, Le avventure di Pinocchio tevenove traduções publicadas no Brasil entre 2002 e 2008. O maravilhoso está cla-ramente presente nesta narrativa de Collodi, em que uma marionete, agindo comoum menino, anseia ser de carne e osso. Na jornada de Pinóquio até se tornar ummenino de verdade temos situações que indiretamente demonstram como amadu-recer distinguindo o certo do errado. Nesse trabalho escolhi quatro traduçõespara discutirmos e compararmos o léxico e discutirmos como traduzir literaturainfantil.Palavras-chave: tradução, língua italiana, literatura italiana, literatura infantil.

Introdução

Pretendo neste trabalho cotejar quatro traduções ao português deLe avventure di Pinocchio e analisar as diferenças de léxico, a fim deestabelecer a tradução com características mais “didáticas” e a traduçãocom características mais “artísticas”.

A reflexão sobre o quanto uma obra é didática ou artística faz-senecessária dada a importância e a preocupação que se deve ter com alinguagem para veicular informações e histórias para crianças. Mas temosclaro que arte e didatismo não necessariamente devem estar separados eque a melhor tradução provavelmente será aquela que melhor equilibraesses dois aspectos.

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1 Revista Língua nº 22, agosto de 2007, artigo As Peraltices de Pinóquio por Gabriel Perissé.

O ponto de partida para essa pesquisa foi um artigo publicado narevista Língua nº 221, onde são comparados trechos das traduções aquiabordadas. A análise feita no referido artigo levou-nos a pensar sobre oscuidados com a linguagem quando se visa a traduzir para o público infantil.

O estudo proposto abordará os conceitos pedagógicos intrínsecosque podemos levar em consideração a fim de escolher, ou mesmo fazer,uma tradução mais adequada com objetivo didático ou artístico para opúblico infantil. Tal discussão pode colaborar para definir diretrizes parauma linguagem para os jovens leitores que seja instrutiva e ao mesmo tem-po artística, sem menosprezar a capacidade cognitiva da criança, desa-fiando-a sem desmotivá-la.

Desde a primeira publicação, em 1883, Le avventure de Pinocchiofoi traduzido para várias línguas no mundo todo. Só no Brasil foram novetraduções entre 2002 e 2008 (GUERINI, 2009). Dessas nove traduçõesescolhemos quatro para analisar mais de perto:

- Marina Colasanti, Companhia das Letrinhas (2002)- Gabriela Rinaldi, Iluminuras (2002)- Carolina Cimenti, L&PM (2005)- Eugênio Amado, Villa Rica (2006)

Como parâmetro da obra em italiano, escolhemos trabalhar com umaedição de 1995 que não altera, apenas moderniza alguns pontos que muda-ram do italiano de 1883: Carlos Collodi, Edizioni Guerra (1995).

O capítulo escolhido

O capítulo escolhido para análise foi o XXIX, no qual Pinóquio foipescado e enfarinhado por um pobre pescador. Seu amigo, o cão Aliodorochega a tempo de salvá-lo de ser comido como um peixe. Pinóquio vai atéuma aldeia próxima onde consegue com um velhinho notícias do amigoferido.

Quando chega à casa da Fada, recebe seu castigo passando a noitechuvosa toda para fora de casa. No final do capítulo, a notícia que logo ele

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se tornará um menino de verdade. Mas há sempre um senão na vida dasmarionetes e no final há um suspense que aguça a curiosidade do leitor.

Fundamentação

O maravilhoso está claramente presente na narrativa de Collodi ena jornada de Pinóquio; e antes da marionete tornar-se um menino de ver-dade, ela passará por situações que indiretamente demonstram como seruma pessoa do bem, como distinguir o certo do errado.

O maravilhoso sempre foi e continua sendo um dos elementos maisimportantes na literatura destinada às crianças. Através do prazer ou dasemoções que as histórias lhes proporcionam, o simbolismo que está implí-cito nas tramas e personagens vai agir em seu inconsciente, atuando poucoa pouco para ajudar a resolver os conflitos interiores normais nessa faseda vida. (OLIVEIRA, 2007)

Segundo Guerini (2009), a infância simbólica está presente em Leavventure di Pinocchio. Pinóquio é a junção do menino de rua com a criançaburguesa, além de demonstrar o arquétipo da criança simbolizando a es-sência comum a essas duas infâncias opostas. Apesar de ter sido escritono século XIX, quando prevalecia uma ótica pedagógica moralista na lite-ratura para crianças, Collodi mostra, de forma intuitiva, um enfoque daliteratura infantil que só se generalizaria no século XX.

Tomando como base as concepções de Vygotsky (1991) sobre o pro-cesso de formação de conceitos, temos que conceituações remetem àsrelações entre pensamento e linguagem, à questão cultural no processo deconstrução de significados pelos indivíduos, ao processo de internalizaçãoe ao papel da escola na transmissão de conhecimento, que é de naturezadiferente daqueles aprendidos na vida cotidiana.

As histórias estimulam o desenvolvimento de funções cognitivasimportantes para o pensamento, tais como a comparação (entre asfiguras e o texto lido ou narrado), o pensamento hipotético, o racio-cínio lógico, pensamento divergente ou convergente, as relações es-paciais e temporais (toda história tem princípio, meio e fim). Osenredos geralmente são organizados de forma que um conteúdo moralpossa ser inferido das ações dos personagens e isso colabora para aconstrução da ética e da cidadania em nossas crianças. (SILVIA,2008)

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Umberto Eco (2000) propõe que se deve negociar para traduzir, otradutor deve ter a sensibilidade para negociar as propriedades que sãopertinentes em relação ao contexto e ao objetivo que o texto coloca. Hámomentos em que o tradutor deve adaptar por não achar correspondentesna língua de chegada, ou trocar expressões e provérbios para chegar maispróximo de seu público-alvo; há também momentos em que a criatividadedo tradutor será necessária e também trará benefícios à tradução. Namaioria das vezes uma negociação é bem sucedida quando oferece algo amais do que o que mostra à primeira vista.

No entanto, interpretar não é traduzir, mesmo que todo tradutorseja um intérprete (ECO, 2000); nas traduções analisadas é possível re-pararmos escolhas dos tradutores que propõem pequenas alterações queaparentemente não mudam o todo, mas trazem nas entrelinhas as inter-pretações dos tradutores.

Toda história é uma narrativa que se baseia num tipo de discursocalcado no imaginário de uma cultura. Quando essas narrativas são conta-das para uma criança, abre-se uma oportunidade para que esses mitos, tãoimportantes para a construção de sua identidade social e cultural, possamser apresentados a ela (SILVIA, 2008).

Um texto escrito segue as normas da língua escrita, que são dife-rentes daquelas da linguagem falada. Pinóquio foi escrito como folhetim edepois transformado em livro pela Libraio Editore; entretanto, nota-seque a oralidade está muito presente nas duas versões da obra italiana e énecessário ter um cuidado especial para que não haja reversibilidade deefeito (ECO, 2000), ou seja, a obra de Collodi é simples e de fácil leitura,e quando se faz a transposição do italiano para o português é preciso terclaro que rebuscar a linguagem e fazer escolhas que possam dificultar aleitura não são as melhores opções:

Quem lê para uma criança não lhe transmite apenas o conteúdo dahistória; promovendo seu encontro com a leitura, possibilita-lhe ad-quirir um modelo de leitor e desenvolve nela o prazer de ler e osentido de valor pelo livro. (SILVIA, 2008).

e

Quando uma criança ouve a leitura de uma história ela introjetafunções sintáticas da língua, além de aumentar seu vocabulário e seucampo semântico. Porém, aquele que lê a história deve dominar a

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arte de contá-la, estar preparado suficientemente para fazê-lo comapoio no texto, sabendo utilizar o livro como acessório integrado àtécnica da voz e do gesto. (SILVIA, 2008).

Para traduzir literatura infantil, tais diretrizes se fazem interes-santes, uma vez que um dos principais objetivos de se contar histórias é oda recreação. Mas a importância de contar histórias vai muito além. Pormeio delas podemos enriquecer as experiências infantis, desenvolvendo di-versas formas de linguagem, ampliando o vocabulário, formando o caráter,desenvolvendo a confiança e proporcionando à criança viver o imaginário.

As narrativas estimulam o desenvolvimento de funções cognitivasimportantes para o pensamento, tais como a comparação (entre asfiguras e o texto lido ou narrado) o pensamento hipotético, o racio-cínio lógico, pensamento divergente ou convergente, as relações es-paciais e temporais (toda história tem princípio, meio e fim). Osenredos geralmente são organizados de forma que um conteúdo moralpossa ser inferido das ações dos personagens e isso colabora para aconstrução da ética e da cidadania em nossas crianças. (SILVIA,2008)

A literatura infantil também é um caminho para crítica social veladae para dar voz às minorias oprimidas, pois o alvo de maior observação porparte dos repressores é a literatura adulta. Esse fato faz com que, aolado de uma literatura infantil massificada comece a surgir uma outra,mais crítica, demonstrando as diferenças presentes na sociedade. Há umarestauração dos contos de fadas tradicionais, que passam a ser usadoscomo metáfora da vida social, política e econômica. Nas aventuras dePinóquio podemos observar momentos em que a pobreza, a desigualdade eo autoritarismo são os pontos principais, críticas da época que persistematé hoje.

Arte e didatismo estão presentes na literatura infantil de qualida-de e Le avventure di Pinocchio possui tais atributos:

A história de Pinóquio foi escrita no período da Restauração da Itá-lia, ou seja, do recém-formado Reino da Itália, que congregava re-giões com grandes diferenças históricas, de ordem política, admi-nistrativa, social, civil e linguística. Collodi, porém, escreve para ascrianças sem se ater às regras moralístico-religiosas da época. Ainfância é um tema central na sua obra, tanto nos livros escolares

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como nos de ficção. Os críticos costumam distinguir em sua obraduas interpretações da infância: a histórica, diferenciada por clas-ses sociais, e a simbólica (GUERINI, 2009).

Consideramos arte como atividade humana ligada a manifestaçõesde ordem estética com habilidade de suscitar sentimentos2, e didáticacomo técnicas para ensinar de acordo com diretrizes pedagógicas3. Naliteratura infantil não podemos acreditar que tais características este-jam separadas, mas na constituição da obra é possível observar tendên-cias que se voltam mais para a arte ou para o didatismo, e são essas ten-dências que pretendemos identificar nesse trabalho.

Variação de léxico

Contar histórias pode propiciar momentos para brincadeiras; e des-cobrir o significado das palavras pelo contexto pode tornar-se um jogoenriquecedor para as crianças. Tal essência deve ser mantida quando setraduz obras de literatura infantil, negociando com o contexto para daroportunidade para a criança aprender, mas dosando para não tornar aleitura pesada ou desmotivadora. O primeiro exemplo está na tabela aseguir:

Tabela 1

2 Dicionário Aurélio on line, disponível em: http://www.aurelio.ig.com.br3 Dicionário Aurélio on line, disponível em: http://www.aurelio.ig.com.br

Autor Página Trecho

Collodi (1883)

127 Ritorna a casa della Fata, la quale gli promette che il giorno, dopo non sarà più un burattino, ma diventerà un ragazzo. Gran colazione di caffè–e–latte per festeggiare questo grande avvenimento.

Colasanti (2002)

127 Volta para a casa da Fada, a qual lhe promete que no dia seguinte não será mais uma marionete, mas se tornará um menino. Grande café da manhã, com café com leite, para festejar esse grande acontecimento.

Rinaldi (2002)

100 Volta para a casa da Fada, a qual promete que no dia seguinte ele não será mais um boneco, mas vai tornar–se um menino. Grande lanche com café com leite para festejar este grande acontecimento.

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Trata-se da didascália, que é um resumo do que irá acontecer nocapítulo; em italiano temos as palavras burattino e colazione. Colasanti eCimenti mantêm a ideia do café da manhã e optam por marionete, dandooportunidade a seus jovens leitores de descobrirem o que são marionetes,uma vez que no Brasil o teatro de marionetes não é tão difundido e popularquanto era na Itália.

Rinaldi decide usar a palavra boneco, talvez porque marionetes têmcordas para serem controlados e Pinóquio não as possui, e usa a palavralanche para traduzir colazione, provavelmente porque no Brasil não há fes-tas no café da manhã; aqui festas são mais comuns em horários que seriamde lanche.

Amado omite burattino nesse trecho, mas na sua tradução opta portraduzir como boneco. E opta por traduzir colazione por festa, o que nosfaz notar que a tradução de Amado tende a ser mais dramática que asoutras analisadas.

Na seguinte tabela temos infarinare, que é passar na farinha, consi-derando o contexto onde um pescador velho e doente, que mora em umacaverna, estando com muita fome consegue um peixe, é difícil imaginarque ele teria paciência ou ingredientes para empanar o suposto peixe. Pas-saria simplesmente na farinha para poder comê-lo mais rápido. Dessa ma-neira, a opção de Cimenti, empanar, não condiz com o contexto de pobrezaque Collodi denuncia.

Cimenti (2005)

121 Volta para a casa da Fada, a qual lhe promete que no dia seguinte não será mais uma marionete, mas sim um menino. Grande café–da–manhã com café com leite para festejar esse grande acontecimento.

Amado (2006)

98 Pinóquio regressa à casa da Fada, que promete transformá–lo num menino de verdade, e também dar uma festa de arromba para comemorar esse acontecimento.

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Tabela 2

Na tabela 3 vemos um trecho em que faria mais sentido usar o su-perlativo, mas apenas Rinaldi o fez. Também é interessante observar aopção de Cimenti por muito brabo, que é uma expressão oral e antiga,muito propícia ao contexto.

Tabela 3

Na tabela 4 temos um desfile de adjetivos negativos. A meu ver, asopções de Colasanti são as mais adequadas. Rinaldi usa debochado paratraduzir rompicollo, optando pelo eufemismo, recurso que não soou inte-ressante. Cimenti optou por manter-se próxima do original e Amado exa-gera um pouco no tom em comparação com o original, mas são eficazessuas escolhas.

Autor Página Trecho Collodi (1883)

127 – Passa via! gli gridò il pescatore minacciandolo e tenendo sempre in mano il burattino infarinato.

Colasanti (2002)

127 – Passa fora! – gritou o pescador ameaçando–o e segurando na mão a marionete enfarinhada.

Rinaldi (2002)

100 – Já para fora! – gritou–lhe o pescador ameaçando–o, segurando sempre o boneco enfarinhado nas mãos.

Cimenti (2005)

121 – Xô, xô! – gritou o pescador, ameaçando–o e segurando na mão a marionete empanada.

Amado (2006)

98 – Passa fora! – gritou o pescador, ameaçando–o com o boneco enfarinhado na mão.

Autor Página Trecho Collodi (1883)

128 Il pescatore, arrabbiatissimo di vedersi strappar di mano un pesce, che egli avrebbe mangiato tanto volentieri, si provò a rincorrere il cane.

Colasanti (2002)

128 O pescador, furioso de ver lhe arrancarem da mão um peixe que teria comido com tanto prazer, tentou correr atrás do cão.

Rinaldi (2002)

100 O pescador, zangadíssimo, ao ver que lhe arrancavam das mãos um peixe que ele teria comido com tanto gosto, tentou correr atrás do cachorro.

Cimenti (2005)

122 O pescador, muito brabo por lhe terem arrancado da mão um peixe que teria comido com muito prazer, tentou perseguir o cachorro.

Amado (2006)

98 Furioso por ver escapar de sua mão aquele petisco que ele imaginava ser apetitoso a mais não poder, o pescador tentou perseguir o animal.

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Tabela 4

Na próxima tabela temos a hipérbole no italiano que foi amenizadapelos tradutores. A opção de Amado é a única que não parece eficaz, jáque Pinóquio mentia e pretendia se defender, rebatendo o que o velhinhotinha dito, como veremos na tabela 5.

Tabela 5

Como já dito, Collodi de maneira indireta denuncia a situação depobreza de algumas partes da Itália. Levando isso em consideração e ten-do em mente que Pinóquio estava sujo de farinha, na tabela 6 faz maissentido as opções tradutórias de Colasanti e Amado, que também possibi-litam que a criança aprenda que não existe apenas a tinta, mas que hátambém uma mistura mais barata que usam para pintar, mesmo que duremenos tempo.

Autor Página Trecho Collodi (1883)

129 – Dicono che sei un ragazzaccio, un vagabondo, un vero rompicollo...

Colasanti (2002)

129 – Dizem que é uma peste, um vagabundo, um verdadeiro moleque...

Rinaldi (2002)

101 – Dizem que é um mau rapaz, um vagabundo, um verdadeiro debochado...

Cimenti (2005)

123 – Dizem que é um moleque, um vagabundo, um verdadeiro malandro.

Amado (2006)

100 – Dizem que é um moleque muito sem–vergonha, vagabundo e mau–caráter...

Autor Página Trecho

Collodi (1883)

129 – A me mi pare un gran buon figliuolo, pieno di voglia di studiare, ubbidiente, affezionato al suo babbo e alla sua famiglia...

Colasanti (2002)

129 – A mim me parece um garoto ótimo, cheio de amor ao estudo, obediente, dedicado ao pai e à família...

Rinaldi (2002)

101 – Eu acho que ele é um ótimo menino, que tem muita vontade de estudar, é obediente, apegado ao seu pai e à sua família...

Cimenti (2005)

123 – A mim parece um ótimo menino, que ama estudar, obediente e dedicado ao seu pai e à sua família...

Amado (2006)

100 – Parece–me ser um cara legal, bem comportado, estudioso, obediente, um filho exemplar...

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Tabela 6

Lupini em português é tremoço 4, que no Brasil é pouco consumido,mas é possível encontrá-lo em bares e alguns mercados. É possível quealgumas crianças de ascendência italiana ou portuguesa o conheçam, mas agrande maioria desconhece o que é. Dessa maneira, a meu ver, as tradu-ções de Colasanti e Rinaldi, vistas na tabela 7, são mais interessantes porexplicitarem do que se trata. Amado opta por substituir por mantimentos,o que não foge do contexto original. Já Cimenti opta por ferramentas, oque causa uma mudança brusca, já que depois veremos (tabela 8) que osaquinho de tremoço (ou mantimento) tem o agravante de estar vazio,remetendo à realidade de pobreza que Collodi usa como pano de fundo nasaventuras de Pinóquio (REALE, 1995). No entanto, Amado não preservaessa noção de escassez de alimentos, e o leitor acaba supondo que o sacode mantimentos estava cheio, uma vez que Pinóquio o esvazia para usá-lologo em seguida, como vemos na tabela 8.

Autor Página Trecho Collodi (1883)

129/130 – Vi dirò... senza avvedermene, mi sono strofinato a un muro, che era imbiancato di fresco

Colasanti (2002)

130 – Vou lhe contar... Sem perceber, me esfreguei num muro recém–caiado

Rinaldi (2002)

101 – Vou contar... Sem perceber, rocei num muro, que estava recém–pintado

Cimenti (2005)

124 – Vou lhe contar... sem perceber, me encostei num muro com tinta fresca

Amado (2006)

100 – Oh, não... acontece que... sem perceber, encostei num muro que acabava de ser caiado

4 Os tremoços são as sementes das plantas fabáceas conhecidas como tremoceiro (es-pecialmente o “tremoceiro-comum” – Lupinus albus), pertencentes ao género Lupinus eusadas na fixação de azoto nos solos. A semente, de cor amarela, não tem aproveita-mento agrícola e é geralmente vendida e consumida em conserva como petisco ou aperi-tivo (acepipe), sendo muito comum em cervejarias de Portugal e em alguns bares noSudeste do Brasil. (fonte: Wikipedia)

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Tabela 7

Tabela 8

Além das opções para traduzir lupini, a tabela 8 nos mostra as dife-rentes traduções para paese, das quais as de Colasanti e Cimenti parecemser as mais acertadas, a meu ver.

Collodi usa battente di ferro, o que não é uma coisa muito vista aquino Brasil, mas que possui uma palavra específica que Colasanti usa: aldrava.Dessa maneira Colasanti perde a simplicidade vista no original, mas possi-bilita a aprendizagem dessa palavra, o que é interessante. Rinaldi traduzpróximo ao original, Cimenti omite e reforça a ideia de uma batidinha fra-quinha, e Amado fez como Rinaldi, mas optou por algo mais visual, que acriança pode imaginar: argola de ferro.

Autor Página Trecho

Collodi (1883)

130 – Ragazzo mio, in quanto a vestiti, io non ho che un piccolo sacchetto, dove ci tengo i lupini.

Colasanti (2002)

130 – Meu filho, em matéria de roupas só tenho um saco pequeno onde guardo os tremoços.

Rinaldi (2002)

102 – Meu rapaz, no que diz respeito a roupas, eu não tenho nada, a não ser um saquinho onde guardo o tremoço.

Cimenti (2005)

124 – Meu menino, em se tratando de roupas, eu tenho apenas um saco pequeno onde guardo as ferramentas.

Amado (2006)

100 – Roupa, só tenho a do corpo. Mas posso ceder–lhe um saco que uso para guardar mantimentos.

Autor Página Trecho

Collodi (1883)

130 E Pinocchio non se lo fece dire due volte: prese subito il sacchetto dei lupini che era vuoto... E vestito leggerino a quel modo, si avviò verso il paese.

Colasanti (2002)

130 Não precisou falar duas vezes. Pinóquio pegou logo o saco dos tremoços, que estava vazio... E com aquela roupinha leve foi andando para a aldeia.

Rinaldi (2002)

102 Não foi preciso falar duas vezes. Pinóquio pegou logo o saquinho do tremoço que estava vazio... E, com uma roupa levinha daquelas, encaminhou–se para o vilarejo.

Cimenti (2005)

124 Pinóquio não o fez repetir. Pegou logo o saco, que estava vazio... E vestido de forma leve como estava, foi caminhando até o povoado.

Amado (2006)

100 Pinóquio não esperou um segundo oferecimento. Entrou na cabana, esvaziou o saco de mantimentos... E assim, trajado dessa maneira, despediu–se e tomou a estrada que levava ao vilarejo.

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98 Vanessa dos Santos Marques. A variação de léxico nas traduções modernas de Pinóquio

Tabela 9

Abricós são frutos típicos do Brasil semelhantes ao damasco.Albicocche são damascos. Dessa maneira temos um falso cognato, e ape-nas a tradutora Rinaldi opta por não usar a domesticação, traduzindo comodamascos, como vemos na tabela 10.

Tabela 10

Na tabela 11, ragazzo perbene é traduzido por Colasanti, Rinaldi eCimenti com expressões próximas: bom menino e menino de bem. ApenasAmado foge do contexto traduzindo por um menino de carne e osso. Pinóquiovive e age como um menino, mas ele quer ser de carne e osso; no entanto,sua jornada até conseguir deixar de ser uma marionete é um percurso queo faz se tornar propriamente um bom menino/menino de bem.

Autor Página Trecho

Collodi (1883)

131 ...la quarta volta prese, tremando, il battente di ferro in mano, e bussò un piccolo colpettino.

Colasanti (2002)

131 ...aproximou–se uma terceira vez, e nada. Da quarta vez, tremendo, pegou a aldrava e bateu um golpe fraquinho.

Rinaldi (2002)

102 ...aproximou–se pela terceira vez, e nada; na quarta vez, pegou, tremendo, o batente de ferro nas mãos e deu uma leve pancadinha.

Cimenti (2005)

125 ...voltou uma terceira vez, e nada. Na quarta vez, tremendo, bateu bem de leve, bem fraquinho.

Amado (2006)

101 ...mais uma vez recuou, e assim ficou nesse vai e vem, até que, por fim, segurando a argola de ferro presa à porta, arriscou uma batidinha de leve.

Autor Página Trecho

Collodi (1883)

133 Nel vassoio c’era un pane, un pollastro arrosto e quattro albicocche mature.

Colasanti (2002)

134 Na bandeja havia um pão, um frango assado e quatro abricós maduros.

Rinaldi (2002)

103 Na bandeja havia um pão, um franco assado e quatro damascos maduros.

Cimenti (2005)

127 Sobre a bandeja tinha um pão, um frango assado e quatro abricós maduros.

Amado (2006)

103 Sobre a cabeça uma bandeja de prata, na qual havia um pão, um franco assado e quatro abricós maduros.

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Tabela 11

Resultados

Uma obra como Pinóquio, considerada de grande importância para oamadurecimento da criança mesmo tendo sido escrita no século XIX, éainda hoje valorizada, merecendo novas traduções e discussões sobre alinguagem, como o proposto no presente trabalho.

Transferir Le avventure di Pinocchio do contexto italiano para acultura brasileira sem perder as características essenciais e aproximar aobra da língua de chegada da criança não é uma tarefa simples. As tradu-ções feitas para o português apresentam pontos de divergência, algunschegando a mudar o que está no original, seja por omissão, por acrescen-tar elementos ou mesmo por adaptação.

Em todas as traduções perdeu-se um pouco da simplicidade e daconcisão; citamos como exemplo os termos enfarinhada, tremoços e aldrava(Colasanti, 2002) que não demonstram muita simplicidade; vocábulos as-sim colaboram para o aumento do vocabulário da criança, mas tambémpodem ser enfadonhos e desencorajar o jovem leitor, por isso é recomen-dável o acompanhamento de um adulto durante a leitura quando se estáformando um jovem leitor. Em suma, problemas durante a leitura podemsurgir e devem ser solucionados colaborando para a formação de um novoconceito (Vygotsky, 1991, p. 55).

Enquanto no original temos uma linguagem simples e concisa, comamplo uso da oralidade, ao coletar os dados no capítulo escolhido paraanálise foi possível perceber algumas tendências entre os tradutores:Colasanti perde na simplicidade, porque opta geralmente por palavras mais

Autor Página Trecho

Collodi (1883)

133 – Domani finirai di essere un burattino di legno, e diventerai un ragazzo perbene.

Colasanti (2002)

135 – Amanhã você deixará de ser uma marionete de madeira e se tornará um bom menino.

Rinaldi (2002)

104 – Amanhã você não será mais um boneco de madeira e vai tornar–se um menino de bem.

Cimenti (2005)

128 – Amanhã você deixará de ser uma marionete e se transformará em um bom menino.

Amado (2006)

103 – Amanhã você deixará de ser um boneco de pau, tornando–se um menino de carne e osso!

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complexas; Rinaldi faz uma tradução bem próxima do original, mas não usatanto a oralidade; Cimenti se aproxima muito do italiano, tirando um poucoda fluência da obra em português; Amado faz inversões sintáticas, rebus-ca em alguns pontos, exagera nas omissões, além de alterar alguns pontos.

Para escolher a tradução que melhor se adapta ao objetivo que setem é importante perceber que as escolhas tradutórias não são merasvariações, pois carregam em si as inclinações e leituras de cada tradutor.Amado traz a possibilidade de tornar a obra mais dramática, uma visãocom cores mais fortes, Rinaldi faz sua tradução de maneira mais formal,assim como Cimenti. Colasanti é a que mais possibilita o contato com pala-vras diferentes.

Feitas as devidas comparações e análises, apontamos como mais “di-dática” a tradução da Marina Colasanti, por equilibrar oralidade com aoportunidade de aprendizagem de palavras que geralmente não fazem partedo cotidiano infantil. A mais “artística” talvez seja a de Eugênio Amado,uma tradução com cores mais fortes, dramatizada.

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