a vontade e a liberdade na obra o livre-arbÍtrio … · esta falta de motivos, ou misteriosa...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTASINSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
LICENCIATURA EM FILOSOFIATRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
A VONTADE E A LIBERDADE NA OBRA O LIVRE-ARBÍTRIO DE SANTO AGOSTINHO
Marcelo Braun de Freitas
Pelotas, 2007
Marcelo Braun de Freitas
A VONTADE E A LIBERDADE NA OBRA O LIVRE-ARBÍTRIO DE SANTO AGOSTINHO
Trabalho acadêmico apresentado ao Curso de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Licenciado em Filosofia.
Orientador: Dr. Manoel Vasconcellos
Pelotas, 2007
Dedicatória
Dedico este trabalho à minha família e todos aqueles que de alguma
forma nunca deixaram de acreditar em mim.
Agradecimentos
Ao Professor Dr. Manoel Vasconcellos pela amizade, apoio,
acompanhamento e disponibilidade na orientação do meu trabalho.
À minha mãe pelo incentivo e exemplo de vida.
Ao colega Cleder Fontana pela amizade e incentivo na condução do
trabalho.
Aos meus amigos da quadra que desde a minha infância contribuíram
para compor meu imaginário filosófico.
Não saias fora de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem.
Santo Agostinho
Sumário
Introdução ................................................................................................................................... 7 1 A trajetória filosófica de Santo Agostinho ............................................................................ 9 2 O livre-arbítrio: vontade e liberdade .................................................................................. 16 3 Vontade, liberdade e graça ................................................................................................... 23 Considerações finais ................................................................................................................. 28 Bibliografia ............................................................................................................................... 30
Introdução
Este trabalho tem como proposta apresentar os temas da liberdade e da
vontade, na visão de Santo Agostinho. A obra na qual foram tratados estes temas,
tem como título, O Livre-Arbítrio. O objetivo, ao escrever e tratar destes assuntos é
demonstrar a visão de Santo Agostinho referente à liberdade e à vontade, não
ficando totalmente circunscrito a estes dois aspectos, pois não poderia deixar de
referenciar outros aspectos como, por exemplo, o livre-arbítrio ou a questão do mal
moral, justamente para respeitar o encadeamento lógico da obra, pois que estes
elementos permeiam e contribuem para o desencadeamento das reflexões de Santo
Agostinho referentes à vontade e à liberdade.
Estes temas foram escolhidos porque, logo que tivemos um primeiro
contato com eles, na obra O Livre-Arbítrio de Santo Agostinho, nos despertaram
bastante a atenção pela maneira clara, concisa, objetiva e principalmente original
com que Agostinho os tratou.
Vemos estas características que nos despertaram bastante a atenção na
obra de Santo Agostinho, refletirem a própria maneira que Agostinho estruturou a
obra, ou seja, em forma de diálogo, com seu interlocutor que é Evódio, que por
vezes, parece espelhar as nossas próprias dúvidas e colocar perguntas que nós
mesmos gostaríamos de ali, no lugar do próprio Evódio, fazer.
Outro aspecto que gerou bastante motivação ao trabalhar esta obra, foi a
maneira objetiva com que Santo Agostinho traz à tona os temas da vontade e da
liberdade, que são assuntos bastante candentes dentro das discussões filosóficas e
que, com magistral clareza e pragmatismo, Santo Agostinho nos apresenta,
fazendo-nos ter uma visão mais clara e concreta sobre estes temas. Agostinho
parece saber que trata de temas delicados e controvertidos, que são de fato difíceis
de serem trabalhados, podendo nos levar facilmente a um relativismo moral. Por
isto, Agostinho, com o olhar do gênio intelectual, constrói seus argumentos
filosóficos, que vão criando um tal encadeamento lógico, que a sensação que
sentimos ao lermos cada página, é que uma nova peça no quebra-cabeças foi ali
colocada , que demos mais um passo nessa escadaria filosófica que Agostinho nos
apresenta.
Portanto, através deste trabalho, procurou-se não despersonalizar em
nenhum momento a atmosfera que a obra propicia, não suprimindo nenhum aspecto
que pudesse, por pouco que fosse, tirar o colorido da obra Pois, como dito
anteriormente, a obra é quase que um quebra-cabeças, onde qualquer peça tirada,
por menor que fosse, faria falta na composição geral dos argumentos que Agostinho
nos apresenta. Portanto, procurou-se ser o mais fidedigno possível, ao reproduzir as
reflexões e o pensamento do nosso autor.
O presente trabalho é dividido em três partes. No primeiro capítulo é
apresentada a trajetória intelectual de Santo Agostinho, destacando o que foram
considerados os principais fatos e acontecimentos, que mais peso tiveram na
formação de sua composição intelectual. No segundo capítulo, foram reproduzidos
os diálogos de Agostinho com seu interlocutor Evódio, que discutem os temas que a
obra apresenta. No terceiro e último capítulo, delimitamo-nos à questão central da
obra, trabalhando os seus principais conceitos como: a vontade, a liberdade e o
próprio livre-arbítrio.
1 A trajetória filosófica de Santo Agostinho
Neste primeiro capítulo do meu trabalho, abordarei a trajetória intelectual
de Santo Agostinho, pontuando os principais fatos e acontecimentos que mais
influência tiveram na composição do seu pensamento e obra filosófica. Saliento o
apoio da obra Santo Agostinho – um gênio intelectual a serviço da fé de Marcos
Costa, da qual extraí os principais elementos para desenvolver a trajetória intelectual
de Santo Agostinho.
Aurelius Augustines, ou simplesmente Santo Agostinho, nasceu na cidade
de Tagaste, província romana da Numídia, na África romanizada, hoje seria o
equivalente à Argélia, que fica no norte da África. O ano de seu nascimento é de
354, para ser mais preciso, Agostinho nasceu em 13 de novembro do referido ano.
Nasceu em meio a uma família dividida, seu pai foi um pagão de caráter
duro e difícil, sua mãe era cristã bastante piedosa e humilde.
Aos onze anos de idade, foi enviado a Madura, cidade que ficava a 30 km
de Tagaste (onde Agostinho nasceu). Ali ele já começa a demonstrar talento e
imaginação. Em pouco tempo, leu os grandes poetas como: Apuleio, Terêncio,
Plauto, Sêneca, Salústio, Horácio, Cícero, etc..
Um fato da adolescência do nosso autor que o marcou bastante, foi o
furto das peras. O marcou devido ao gosto de roubar as peras por simples maldade,
tendo em vista que o que o motivou foi menos a necessidade ou penúria, e mais o
excesso de maldade e fastio de justiça. “Se algum fruto entrou em minha boca, foi o
meu crime que lhe deu sabor” (conf. II,4,5,6).
Esta falta de motivos no roubo das peras, intrigou bastante Santo
Agostinho, repercutindo em suas futuras obras que esccreveu.
Que fruto nessa ocasião colhi eu, miserável, das ações que agora, ao recordá-las, me fazem chorar de vergonha, nomeadamente daquele roubo, em que amei o próprio roubo e nada mais? Nenhum, pois o furto nada valia e, com ele, me tornei mais miserável (conf. II,8,9).
Esta falta de motivos, ou misteriosa força que leva o homem a cometer o
mal, está bem evidente na obra O Livre Arbítrio, onde Agostinho examina as causas
da maldade humana.
Ainda moço (19 anos), Agostinho em meio aos seus estudos, travou
conhecimento com a obra Hortensius de Cícero. Nesse livro, Cícero desgostado e
desiludido da política, volta-se para a filosofia, onde procura a felicidade. Cícero
conclui nessa obra que pela elevação intelectual, o homem aproxima-se de Deus.
Através das leituras de Cícero, nosso autor vislumbra de que o conhecimento da
verdade equivale ao conhecimento de Deus e que a felicidade consiste na posse
deste conhecimento.
Cícero demonstrava que a oratória era o mais baixo degrau do mal, e que
os prazeres sexuais ofuscam o semblante do homem, impedindo-o de alcançar a
verdade.
Em As Confissões, Agostinho fala da importância que teve o Hortensius
em sua vida:
Mas, seguindo o programa usado no ensino desses estudos, cheguei a um livro de Cícero, cuja linguagem, mais do que seu conteúdo, quase todos admiram. Esse livro contém uma exortação à filosofia e se chama Hortensius . Esse livro mudou meus sentimentos, e transferiu para ti, Senhor minhas suplicas, e fez com que mudassem meus votos e desejos. Subitamente, tornou-se vil a meus olhos toda vã esperança, e com incrível ardor de meu coração suspirava pela sabedoria imortal e comecei a me reerguer para voltar a ti ( conf. III,4).
Após travar conhecimento com a obra de Cícero, nosso autor começou a
estudar as Sagradas Escrituras. Até porque Agostinho estranhou não ter encontrado
o nome de Jesus no Hortensius de Cícero. É bom salientar que num primeiro
momento, Santo Agostinho não se interessou pela Bíblia, pois sua procura antes de
sua conversão ao cristianismo, era mais ligada ao aspecto racional e cientifico, do
que propriamente a uma mensagem espiritual. Procurava no momento uma resposta
para os problemas do cosmos, e para o problema do mal, incluindo aí uma resposta
para a sua conduta moral que o desagradava.
Logo após sua frustrada leitura da Bíblia, Santo Agostinho na sua busca
de encontrar a verdade, conheceu a seita gnóstica dos maniqueus, na qual
permaneceu vinculado pelo período de nove anos ( 373 – 382 ). Além de
simpatizante das doutrinas maniquéias, Agostinho tornou-se um propagador dos
seus ensinamentos, chegando, inclusive, a levar consigo alguns de seus melhores
amigos.
Durante este período de nove anos, desde os dezenove aos vinte e oito, cercado de minhas paixões, era enganado e enganava: às claras, com as ciências e às ocultas sob o falso nome de religião... Seguia estas práticas, dando-me a elas com meus amigos, iludidos por mim e comigo ( conf. IV, 1).
É bom salientar que um dos elementos que contribuíram para a
permanência de Santo Agostinho no maniqueísmo foi a obra As Categorias de
Aristóteles que ofereceu-lhe o conceito de substância material. “Que importava ter
lido e compreendido, sozinho, pelos vinte anos, a obra de Aristóteles, chamada As
Categorias, que me tinham vindo às mãos?” ( conf. IV,16).
A partir da leitura de Aristóteles, nosso autor passaria a pensar tudo como
substância material, inclusive Deus. Conceito estes, que se coadunariam
perfeitamente em alguns aspectos com a doutrina maniquéia, que coloca Deus
como uma força física, uma luz material que se consubstancia com o próprio sol,
que é uma imagem de Deus. Já o mal, ou reino das trevas, também tem sua origem
na matéria e é o oposto de Deus, sua composição é de: fumaça, trevas, fogo, água e
vento. Para os maniqueus, o bem e o mal, ou a luz e as trevas, além de terem na
sua composição matéria ou serem formados de substância material, ambos são
incriados, ou co-eternos, ou seja, surgiram no mesmo momento, embora, nada
tenham em comum um com o outro, pode-se dizer, inclusive, que um é a antítese do
outro.
Além destas explicações materiais, tanto de Deus como do mal, outro
aspecto que despertou bastante a atenção de Santo Agostinho para as doutrinas
maniquéias, foi o fato de as mesmas fazerem referência a Jesus Cristo, elemento
este, que nosso autor não encontrou no Hortensius de Cícero.
Para os maniqueus, Jesus Cristo pertence ao reino da luz, é o filho de
Deus, revestido num corpo material. Jesus sai do corpo de Deus, como uma
centelha, se desprende do corpo luminoso de Deus e vira homem. Enquanto ser
humano, Jesus é contaminado pelo pecado. Para os maniqueus, Jesus de fato
viveu, ou seja, tem historicidade. E nesta sua caminhada histórica, uma de suas
missões é justamente anunciar a vinda de Mani, que é o responsável pelo processo
final de libertação. Para os maniqueus, Jesus Cristo era apenas uma das
manifestações corpóreas da luz, que também se manifestou em Buda, Zoroastro,
Lao-Tse, profetas que vieram à terra para preparar a vinda do Espírito Santo, que é
Mani.
Observamos, então, que o que atraiu fortemente nosso autor, que o
manteve vários anos ligados aos maniqueus, além do aparecimento do nome de
Cristo e da substancialidade, tanto do bem, como do mal, foi a resposta que os
maniqueus ofereciam para o problema do mal, que tanto atormentou nosso autor,
tanto que vimos este aspecto permear várias obras suas.
Uma questão que me atormentou por demais, desde quando era ainda muito jovem, após ter-me cansado inutilmente de resolvê-la, levou a precipitar-me na heresia (dos maniqueus), com tal violência que fiquei prostrado ( I,2,4).
Os maniqueus ofereceram a Santo Agostinho a possibilidade de o mesmo
se isentar de sua liberdade ou livre-arbítrio, que estava reservada na parte da alma
que era boa, a outra, a maior parte da alma, respondia pelas más ações. Portanto, o
mal que ele praticava não era responsabilidade sua, ou fruto de sua livre escolha,
mas decorrente da parte má de sua natureza. “Eu acreditava, com efeito, que não
somos nós que pecamos, mas tão somente, aquela outra natureza que pecava em
nós” (conf. V,10)
E isto o isentava de qualquer culpa por ter pecado.
Quando procedia mal, não confessava a minha culpabilidade, para que pudesses curar a alma, já que Vos tinha ofendido, mas gostava de desculpar e acusar uma outra coisa que estava comigo e que não era eu (conf. V,10).
O primeiro livro escrito por Santo Agostinho é datado do ano de 380,
quando Agostinho tinha 26 anos de idade, cujo título era: Do Belo e Conveniente,
um pequeno tratado de estética, que se perdeu. “Já não os possuo. Desapareceram-
me, não sei como” (conf. IV,13).
Deixadas para trás suas esperanças no maniqueísmo, Agostinho filia-se
ao ceticismo da Nova Academia ou Neo-Acadêmicos, onde tem uma rápida
passagem. Embora estes elementos de ceticismo serviram de munição para
futuramente Agostinho combatê-los com mais propriedade e conhecimento, como
por exemplo na obra Contra Acadêmicos, escrita logo após sua conversão, onde
Agostinho combatia estas doutrinas céticas. Refutações estas que aparecem em
várias de suas futuras obras, até o fim de sua vida.
Aos trinta anos de idade, Agostinho vai para a cidade de Milão, cidade
que respirava uma atmosfera de Neoplatonismo e Catolicismo e que tinha como
bispo Ambrósio, que pronunciava sermões eruditos de teores neoplatônicos. As
pregações de Ambrósio contribuíram em muito, para Agostinho aproximar-se da
igreja católica, abrandando seu ceticismo e acabando com suas dúvidas
maniquéias.
Com o bispo Ambrósio, Agostinho aprendeu que Deus não forma uma
substância material ou corporal, mas uma substância espiritual. E que na leitura das
Sagradas Escrituras, para melhor compreendê-la, não era preciso interpretá-la no
sentido literal, mas sim, separar a “letra” e o “espírito”, ou seja, Ambrósio deu a
Santo Agostinho a interpretação metafórica, para compreender os escritos bíblicos..
Alegrava-me ouvir a Ambrósio dizer muitas vezes em seus sermões ao povo, recomendando com muito zelo a verdade: A letra mata e o espírito vivifica. E, levantando o véu místico, revelavam-me o significado espiritual de passagens que, segundo a letra, pareciam ensinar um erro (conf. VI,4).
Aos trinta e dois anos de idade, Agostinho travou amizade com Mânlio
Teodoro, que era adepto da filosofia neoplatônica. Através de Mânlio, é que
Agostinho conheceu e leu as obras de Plotino, especialmente as Enéadas.
Nas Enéadas Agostinho confirmaria o conceito de substância espiritual,
que aprendera com o bispo Ambrósio, pois nesta obra neoplatônica, Deus não é
dotado de natureza física, não possuindo, nem corpo, nem extensão, mas estando
sempre onipresente embora sem presença física.
Outro elemento que Agostinho descobriu no neoplatonismo foi o conceito
de “nada”, como equivalente a não ser. Pois até então nosso autor não conseguia
conceber nada que não tivesse materialidade. “Se um corpo é removido de um
lugar, e o lugar fica vazio de todo corpo, temos então o nada. Com efeito, neste
caso, um lugar vazio seria como que um nada espaço” (conf. VIII,1).
A partir de então, o “nada” passaria de sinônimo de “espaço vazio”, a um
conceito metafísico, significando ausência, falta, ou privação do ser. Conceito este
que Agostinho adotaria para classificar o mal, que de físico, como na visão dos
maniqueus, passaria a ser uma privação de bem, visão neoplatônica que Agostinho
acolheu. “Portanto, todas as coisas que existem são boas e aquele mal que eu
procurava não é uma substância, pois se fosse, seria um bem” (conf. VII, 12).
Observamos, então, que a descoberta do neoplatonismo para Santo
Agostinho foi um evento muito importante na sua composição intelectual e formação
filosófico – religiosa. Estes caracteres ou elementos da filosofia neoplatônica o
acompanharão durante toda a sua vida cristã, se espelhando em suas obras.
Salientando que, apesar de forte influência neoplatônica que nosso autor recebera,
estes elementos são como que rios que desaguarão no mar de sua vida cristã, que
sem dúvida ocupará lugar central na sua formação intelectual. Agostinho, inclusive,
naquele primeiro contato com o neoplatonismo, identificou bastantes semelhanças
deste com as Sagradas Escrituras, em particular no conceito de Noûs ou lógus da
razão natural, e o verbo, do evangelho de São João:
Nele li, não com estas palavras, mas provado com muitos e numerosos argumentos, que: Ao principio era o verbo e o verbo existia em Deus e Deus era o verbo: e este no principio existia em Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi criado. O que foi feito, n’Ele é vida e a vida era a luz dos homens; A luz brilhou nas trevas e as trevas não a compreenderam. A alma do homem, ainda que dê testemunho da luz, não é, porém a luz; mas o Verbo – Deus – é a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo... (conf.VIII,9).
E Deus sendo uma substância espiritual, era uma criatura transcendente,
que ocupava a altura última e máxima, segundo os neoplatônicos. Este conceito de
substância espiritual que chamou a atenção de Agostinho, aparece nas Enéadas de
Plotino, caracterizado como as três hipóstases primordiais: O uno (que está acima
do ser), do qual emanam o lógos ou nóus que é o intelecto consciente de si mesmo,
e a alma (princípio que anima todos os corpos).
Um aspecto da doutrina neoplatônica que causava angústia e desconforto
ao nosso autor, era referente à não aceitação da encarnação do verbo, que era
Jesus, por parte dos neoplatônicos. Suas angústias levaram-no a consultar um velho
monge chamado Simpliciano, que era confessor espiritual do bispo Ambrósio. Este
lhe chamou a atenção para o orgulho e a presunção por parte dos neoplatônicos.
Simpliciano exalta a necessidade da humildade cristã e da graça redentora de Jesus
Cristo, para se chegar à verdade, reconhecendo Jesus como único salvador, coisa
que os neoplatônicos não acatavam, como dito anteriormente. Simpliciano falou para
Agostinho da conversão de Mario Victorino, que Agostinho conhecia de nome, relato
este, que o muito comoveu. “Logo que vosso servo Simpliciano me contou tudo isso
de Victorino, imediatamente ardi em desejos de imitá-lo” (conf. VIII,5).
A partir daí, Santo Agostinho se debruça de forma bastante interessada
sobre as Sagradas Escrituras.
Por isso lancei-me avidamente sobre as veneráveis escrituras inspiradas por teu espírito, sobretudo as do apóstolo Paulo. E desvaneceram em mim aquelas dificuldades nas quais julguei descobrir contradições entre ele e seu texto, em desacordo com os testemunhos da Lei e dos Profetas. Compreendi a unidade daqueles castos escritos, e aprendi a me alegrar com temor.Comecei a lê-los e compreendi que tudo de verdadeiro que lera nos tratados dos neoplatônicos se encontrava ali, mas com o aval da tua graça, para que
aquele que vê não se glorie como se não houvesse recebido não só o que vê, mas também a faculdade de ver (conf. VII,21).
Lembrando que a última barreira a ser derrubada para Agostinho
converter-se integralmente ao cristianismo, caiu quando ele abdicou completamente
dos apetites sexuais. Outro elemento importante que contribuiu na sua conversão,
foi a vida de Santo Antão, de que Agostinho tomara conhecimento. Este santo, como
Agostinho, empenhou durante muito tempo uma terrível batalha contra as tentações
dos sentidos, o que também lhe serviu de inspiração e identificação. “Quando mais
amava aqueles jovens, de quem ouvia contar salutares exemplos, tanto mais
execravelmente me odiava, ao comparar-me com eles” (conf. VII,7)”.
Enquanto Agostinho travava uma luta interior entre seu modo de vida
antigo e o novo modo de vida que estava surgindo, eis que de súbito ouve uma voz
indistinta que repetia: toma e lê, toma e lê. Agostinho interpretou esta voz como um
chamado para ler a bíblia, na qual a abriu espontaneamente lendo o que apareceu.
Era a Epístola de São Paulo 13,13 que dizia: “Não caminheis em glutonarias e
embriaguês, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; Mas
revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus
apetites” (rm 13,13).
Então Santo Agostinho se converte ao cristianismo, passados 13 anos
buscando a verdade, desde o seu primeiro contato com o Hortensius, de Cícero, aos
19 anos de idade, até os seus 32 anos, data em que Agostinho adere integralmente
ao cristianismo.
Além dos estudos bíblicos, Agostinho dedicava parte do seu tempo aos
estudos filosóficos. Destas reflexões filosóficas nasceram as suas primeiras obras
que foram: Contra Acadêmicos (386), De Beata Vita (386), De Ordine (386) e
Solilóquia (387). Estes tratados são chamados comumente de “Diálogos de
Cassicíaco”. Agostinho os escreveu sob forte influência do Neoplatonismo.
O De Quantitate Animae é de 388, o De Moribus Ecclesiae Catholice et
Mamichaeorum é também de 388, época em que nosso autor começou a escrever o
Livre-Arbítrio, que foi terminado na África em 395, quando Agostinho era presbítero
da cidade de Hipona.
Agostinho também se envolveu no mundo do direito e desenvolveu vários
conceitos relacionados à matéria, como a justiça, lei temporal, e outros,
caracterizando uma teoria do direito.
Agostinho escreveu e produziu muito, foram vários assuntos e temas
espalhados em vasta obra. Entre tantas podemos citar, além do Livre-Arbítrio e As
Confissões, onde Agostinho fala de si mesmo, A Cidade de Deus, que é um
magnífico livro que consegue ser ao mesmo tempo, uma filosofia da história, uma
teoria do Estado e da vida social, uma exposição das relações entre o espiritual e o
temporal. Nesta, obra Agostinho, com o olhar do gênio, abarca muita coisa, como,
fenômenos terrestres e vontade divina, conhecimento do passado e presciência do
futuro.
Outra importante obra foi A Trindade, um dos maiores tratados teológicos
da história, o mais alto estágio que a razão humana pôde alcançar acerca do
mistério trinitário.
Em suma, Santo Agostinho foi verdadeiramente um gênio intelectual, um
grande teólogo e um verdadeiro filósofo.
2 O livre-arbítrio: vontade e liberdade
Nesta introdução do livro I, Agostinho é interpelado por Evódio (seu
interlocutor) sobre o problema do mal.
Agostinho é taxativo ao afirmar que, Deus sendo bom, não poderia ser o
autor do mal, e que a concupiscência (mau desejo) é que dá origem ao mal.
Portanto, cada pessoa é responsável e autora do seu próprio mal, através do abuso
do livre-arbítrio, e não Deus que é a suma inteligência.
Com efeito, todo aquele que aprende usa da inteligência e todo aquele que usa da inteligência procede bem. Assim, procurar o autor de nossa instrução, sem dúvida, é procurar o autor de nossas boas ações (I,I,3).
Prosseguindo na argumentação, Evódio pergunta a Agostinho qual a
causa de praticarmos o mal. Agostinho faz um breve relato do seu passado,
explicando a Evódio que esta questão muito o preocupou e que por falta de fé
acabou incorrendo na heresia dos maniqueus.
Tem coragem e conserva a fé naquilo que crê. Nada é mais recomendável do que crer, até no caso de estar oculta a razão de por que isso ser assim e não de outro modo. Com efeito, conceber de Deus a opinião mais excelente possível é o começo mais autentico da piedade (I,II,5 ).
Agostinho e Evódio, agora discutem a natureza do pecado. Começam a
aparecer reflexões sobre as leis temporais e as leis eternas. Através de alguns
exemplos Agostinho apresenta a Evódio que o mal está no fato de a razão se deixar
dominar pelas paixões interiores.
Seguindo na argumentação, Agostinho e Evódio discorrem sobre a
concupiscência. E que a mesma está na raiz dos crimes que são culpáveis, que são
as paixões orientadas pelo mau desejo.
Nosso autor se propõe agora, a discorrer sobre as leis humanas, e que as
mesmas só tem valor obrigatório se forem justas e contempladas pela lei divina.
“Parece-me, pois, que a lei escrita para governar os povos autoriza, com razão, atos
que a Providência divina pune” (I,V,13 ).
Agostinho não condena totalmente a lei humana, visto ser necessária
para controlar os homens, que ainda não alcançaram a sabedoria de viverem fora
das paixões.
Isso porque a lei humana está encarregada de reprimir crimes, em vista de manter a paz entre homens carentes de experiência, e o quanto estiver ao alcance do governo, constituído de homens mortais ( I,V,13).
Santo Agostinho explica a Evódio da importância das leis civis cumprirem
sua função social, quando orientadas pela justiça. E que o governante deve
governar visando o bem público e não seus interesses particulares. Ao final da
explicação Agostinho reforça o caráter de dependência das leis humanas sob as leis
eternas, que são imutáveis e invariáveis, ao contrário das leis humanas que são
contingentes e temporais.
Prosseguindo na argumentação, Santo Agostinho, através de exemplos,
apresenta a Evódio, que o que nos distingue dos animais, nos tornando mais
excelentes e inclusive nos fazendo exercer sobre eles um poder, é a razão, ou
inteligência. E que a mesma nos fornece a capacidade de perceber que vivemos
tendo consciência da vida, capacidade esta que falta às plantas e animais, que
apenas vivem.
Segundo Agostinho, existem outras propriedades que nos diferenciam
dos animais, como: o amor à gloria, aos elogios e o desejo de dominar. E que
devemos ser vigilantes para os mesmos não se voltarem contra a razão, nos
levando para o infortúnio e a miséria, gerando uma desordem. Pois, segundo nosso
autor, só se pode ter uma ordem justa quando as paixões estão subordinadas à
razão.
Então, quando a razão, a mente ou o espírito governa os movimentos irracionais da alma, é que está a dominar na verdade no homem aquilo que precisamente deve dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos como sendo a lei eterna (I,VIII,18).
E esta submissão das paixões em relação à razão é, segundo Santo
Agostinho, prerrogativa do homem sábio que é o oposto do insensato, que não tem
o domínio de sua mente, ou seja, não se serve da razão “Aquele que é dotado de
razão não pode estar privado da mente” (I,IX, 19 ).
Agostinho apresenta a Evódio exemplos como: cocheiros, vaqueiros ou
pastores, para exemplificar que não basta ter uma mente, pois os citados vaqueiros,
cocheiros ou pastores ao domarem seus animais, os pacificando, é prova de que
possuem uma mente, mas continuarão sendo insensatos. Pois essa mesma mente
não exerce domínio sobre eles mesmos. “E é sabido que o reino da mente não
pertence senão aos sábios” (I,IX,19).
Santo Agostinho fala a Evódio que existe uma ordem perfeita, que não
deixa o mais forte ficar subsumido ao mais fraco. Isto o leva a acreditar que a mente
seja mais poderosa e exerça o domínio sobre as paixões, levando-o a concluir que
uma alma viciada não pode dominar uma alma munida de virtudes. E que um corpo,
seja ele qual for, não pode vencer um espírito dotado de virtude. Para Agostinho,
quando duas mentes, de igual intensidade de virtudes, entram para medir forças, ou
seja, uma tentando convencer a outra, vai acontecer que, a alma que tentar viciar ou
tornar viciada a outra, decai em sua justiça e torna-se viciada, não podendo exercer
nenhum tipo de influência sobre a outra. Para Agostinho, somente Deus é o Ser
mais nobre do que qualquer mente dotada de razão e sabedoria, não constrangendo
nenhuma mente humana a ser escrava das paixões.
Com efeito, por enquanto, baste-nos saber que esse Ser, seja ele qual for, capaz de ultrapassar em excelência a mente dotada de virtude, não poderia de modo algum ser um Ser injusto. Tampouco ainda que tivesse esse poder, ele não forçaria a mente a submeter-se às paixões (I,XI,21b).
A partir do que foi exposto, nosso autor conclui que o livre-arbítrio é o
grande responsável pelo pecado, pois, se tudo é igual ou superior à mente, não a
escraviza. Por outro lado, as mentes inferiores também não exercem nenhum poder
sobre mentes superiores, justamente por causa desta mesma inferioridade. Ficando,
portanto, esta prerrogativa, à vontade que ocasiona o pecado, que se efetiva no
livre-arbítrio.
Conforme Agostinho, este pecado que é desdobrado da vontade e do
livre-arbítrio, perturba a mente e o espírito, tornando o homem cheio de temores,
desejos e angústias.
E de todo lado a que se volta, a avareza cerca esse homem, a luxúria o consome, a ambição o escraviza, o orgulho o incha, a inveja o tortura, a ociosidade o aniquila, a obstinação o excita, a humilhação o abate (I,XI,22).
Embora Evódio, com muita fé, concorde plenamente com Santo
Agostinho com relação à punição aos insensatos, fica uma dúvida movida pela
razão, relativo à imanência da sabedoria nos seres criados por Deus, ou seja, como
sabermos realmente se somos sábios ou insensatos, demarcando claramente a
fronteira da vontade, para uma correta aplicação da justiça. Pois, como poderemos
aplicar a justiça de forma correta à uma pessoa que nunca tomou posse da
sabedoria? Ela de certa forma não estaria isenta de castigo, por não saber que
peca?
Ao que, Agostinho diz a Evódio que a sabedoria reside na alma e que não
podemos ter total garantia de que a alma em alguma outra vida, antes desta, não foi
sábia, podendo já ter desfrutado algum momento de sabedoria.
Nosso Autor discorre agora, sobre o papel da boa vontade, dizendo que a
mesma nos faz desejar viver com retidão e honestidade, estimulando-nos a alcançar
o cume da sabedoria. Pois a boa vontade é mais importante do que qualquer prazer
do corpo, ou bem material, pois os bens terrenos facilmente escapam a nosso poder
ou controle, ao passo que a boa vontade, no caso de perdê-la, a única exigência
para reavê-la é que a pessoa o queira.
Esta boa vontade, segundo Santo Agostinho, para a pessoa que
verdadeiramente a ama e estima, vem colada com quatro virtudes cardeais, que
através de exemplos a Evódio, Agostinho conclui que são: a prudência, a força, a
temperança e a justiça. Estas virtudes são o hábito do bem, isto é, a disposição
estável para agir bem.
E esta disposição estável de bem agir, movida pela boa vontade, nos
faculta, segundo Agostinho, a vida feliz.
É feliz o homem realmente amante de sua boa vontade e que despreza, por causa dela, tudo o que se estima como bem, cuja perda pode acontecer, ainda que permaneça a vontade de ser conservado (I,XIII,28).
É bom salientar que, para Santo Agostinho, a felicidade é desejada por
todos os homens, como uma necessidade natural. Embora nem todos a obtenham,
pois como foi dito acima, ela vem a reboque da boa vontade, ou seja, é
voluntariamente que os homens a merecem.
Prosseguindo na argumentação, nosso autor coloca uma indagação.
Como os homens sofrem uma vida infeliz de modo voluntário, se sua necessidade
natural aponta para a felicidade?
Ao que nosso autor responde que, de fato, todos os homens querem ser
felizes, só que querer não é necessariamente merecer ser feliz, pois o que garante a
felicidade, segundo Agostinho, além da vontade, é ser também bom, ou seja, viver
retamente.
E esta boa vontade está relacionada com a lei eterna e também com a lei
temporal. Assim, como no entender de Santo Agostinho, há duas espécies de
homens: uns, amigos das coisas eternas e outros, amigos das coisas temporais. Os
homens que se apegam às coisas sujeitas à mobilidade do tempo como: honras,
riquezas, prazeres, beleza física, etc.., que são, como dito anteriormente, os
insensatos, estão sob o jugo da lei temporal. Ao passo que, aqueles a quem o amor
dos bens eternos torna felizes, vivem sob as leis eternas. Para Agostinho, as leis
temporais derivam das leis eternas, ou seja, quem está circunscrito à lei temporal,
está sujeito à lei eterna que é a geradora de toda a justiça.
Por sua vez, quem estiver ligado por sua boa vontade à lei eterna, não
estará sujeito às leis temporais, que são mutáveis e contingentes.
As leis temporais, segundo Santo Agostinho, são estabelecidas para
regular o trato com as coisas mundanas e terrenas. São normas que são
estabelecidas para a sociedade ter um maior regramento na administração,
salvaguardando a ordem dos bens que os homens desejam e podem ter por algum
tempo, considerando-os como seus, como por exemplo: o corpo, a liberdade, a
pátria, honras, louvores e o dinheiro, que abrangem os bens de que somos donos
legítimos ou de que julgamos ter o poder de vender ou de doar.
baste-nos constatar que o poder dessa lei temporal em aplicar seus castigos limita-se a interditar e a privar desses mesmos bens, ou de uma parte deles, aqueles a quem pune. É pois pelo temor que ela reprime, e assim dobra e faz inclinar o ânimo dos desafortunados, ao que ela manda ou proíbe (I,XV,32).
Observamos então que estas leis temporais, segundo nosso autor, dentro
deste contexto de pessoas deste tipo ( ligadas à vida terrena) se fazem necessárias,
embora estas leis não cumpram a função de punirem os pecados cometidos pelo
amor exagerado a estes bens. Bens estes, que não são um mal em si, pois os bens
podem ser usados, tanto de modo sensato como insensato, ou seja, o valor quem
empresta, é a pessoa que faz uso de determinada coisa, ou se apegando em
demasia a estes bens, de modo a embaraçar-se com eles, fazendo deles um fim em
si mesmos, ou submetendo-os à sua plena submissão. Compreendendo que estes
bens não o tornam nem melhor ou nem pior, pois como dito acima, quem empresta o
valor é o sujeito, e não o objeto. Agostinho apresenta a Evódio, como exemplos, o
ouro e a prata, que jamais poderiam ser condenados por causa dos avarentos, ou o
vinho por causa dos que se embriagam. Ou, até mesmo as mulheres, por causa dos
libertinos e adúlteros, também não poderiam ser condenadas.
Em conseqüência de tudo isto, Agostinho e Evódio concordam que o
conceito de pecado ou de más ações, está incluído na categoria de menosprezar os
bens eternos, bens dos quais a alma goza por si mesma, e também atinge por si
mesma, não podendo perdê-los, caso os ame de verdade. E ao desprezá-los, dá
maior valor aos bens temporais como mais importantes e admiráveis. Estes bens
(temporais) que são experimentados pelo corpo, a parte menos nobre do homem,
que está sujeita às mutações e contingências, ao contrário dos bens eternos que
são perenes e não contingentes. Ao que nosso autor conclui que a alma deve
conduzir as coisas, e não ser por elas conduzida, pois quando é por elas conduzida,
acaba praticando o mal pela sua própria vontade, através do livre arbítrio, que foi
mal direcionado, gerando o mal moral, que é o pecado.
3 Vontade, liberdade e graça
Como vimos nos dois capítulos precedentes, uma das preocupações
centrais do pensamento de Santo Agostinho é com relação ao mal, que tanto pode
ser físico, metafísico, ou moral. Esta busca da explicação última do problema do
mal, que por sua vez pode ser identificado ao pecado, dá acesso à questão da
vontade ou má vontade, que, como vimos nos seus diálogos com Evódio, significa o
mesmo que concupiscência. Lembrando que para Agostinho o pecado gerado pela
concupiscência é originado pelo mal moral, ou seja, o que depende de nossa má
vontade, que se atrela a uma causa deficiente, muito mais do que a uma causa
eficiente. Porque, por natureza, a vontade deveria tender para o bem supremo, mas
como existe uma variedade de bens criados e finitos, a vontade acaba subvertendo
a ordem hierárquica, indo ao encontro das criaturas mutáveis, finitas, perecíveis e
contingentes, ao invés de se voltar às coisas que dizem respeito a Deus, que são os
bens superiores.
Vemos então que, se temos uma vontade, esta pode se desdobrar em
dois caminhos: o caminho das boas ações, que são respaldadas por Deus e o
caminho das más ações que nos levam ao pecado. Estas más ações são totalmente
voluntárias, no entender de Agostinho, pois como poderiam ser punidas de forma
justa, se fosse o ser humano já pré-determinado a pecar? E, de fato, não haveria
justiça divina que se sustentasse se nossa vontade não fosse livre.
Outro ponto importante que Agostinho coloca, é que o mal, ou as más
ações, não são aprendidas. Agostinho usa como argumento deste ponto de vista, a
palavra instrução, lembrando-nos que ninguém aprende nada a não ser por meio
dela, e que o termo instrução remete a instruir, que por si só é uma coisa positiva.
Portanto, as más ações que os homens praticam, não são aprendidas. “De onde se
segue que, fazer o mal, não seria outra coisa do que renunciar à instrução. (Pois a
verdadeira instrução só pode ser para o bem)” (DLA I,I,2).
Para Agostinho, Deus só pode criar coisas boas e uma delas é a
inteligência, o maior bem que o homem possui na ordem natural. Tudo o que visar
ao desenvolvimento da inteligência, como a reflexão ou a instrução, só pode ser um
bem. “pois se, na verdade, for mau, ele não será mestre. E caso seja mestre, não
poderá ser mau” (DLA I,I,3).
Já está bastante claro que a nossa inteligência sendo um bem, quando
nos afastamos deste bem, é por nossa livre e espontânea vontade, vontade esta que
nos leva para as más ações que como vimos, são mais uma privação de boas ações
do que algo aprendido ou pré-determinado. Apesar de todo o esforço racional
empreendido por Santo Agostinho, para demonstrar que o pecado é uma
prerrogativa humana e não de Deus, fica a pergunta: se o pecado procede dos seres
criados por Deus, como não atribuir a Deus os pecados? Observamos então, a partir
desta pergunta, que o ponto de partida de Agostinho é a verdade da fé, que permeia
toda esta obra, e é o princípio fundante de toda a sua filosofia. “Tem coragem e
conserva a fé naquilo que crês. Nada é mais recomendável do que crer, até no caso
de estar oculta a razão de isso ser assim e não de outro modo”. (DLA I,II,5).
Apesar de Agostinho crer que o pecado é característica humana e não
divina, vemos o seu esforço de razão para estabelecer a sua natureza.
A conclusão a que ele chega é que o mal (pecado) está no fato de a
paixão dominar a razão. Paixão esta que é identificada por Agostinho como a
concupiscência, que tem o sentido de mau desejo, ou seja, deixar orientar-se pelos
bens materiais e as paixões descomedidas, em vez das coisas de Deus.
Agostinho nos lembra que desejar uma vida sem temor ou sem medo não
justifica, não exime a pessoa de estar incorrendo em paixões.
Com efeito, desejar vida sem temor, não só é próprio de homens bons, como também dos maus. Com esta diferença porém: os bons a desejam, renunciando ao amor daquelas coisas que não se podem possuir sem perigo de perdê-las (DLA I,IV,10).
Vemos então que as paixões estão atreladas a um sentido moral, que só
se encontra nos atos das criaturas dotadas de razão e, portanto, de livre vontade, ou
seja, os erros morais provêm do fato de que o homem faz um mau uso do seu livre-
arbítrio. Observamos, então, que estes atos morais são totalmente executados pelos
homens, que têm uma vontade totalmente livre, que repetidamente fazem uso do
seu livre-arbítrio, acarretando atos que ora são livres, pois aproximam-se de uma
moral reta e acabam refletindo os desígnios de Deus, e ora estes atos não refletem
liberdade moral, pois coadunam-se, identificam-se com a concupiscência, que é a
má orientação da vontade, que priva e encarcera a liberdade moral, embora fazendo
pleno e extensivo uso do livre-arbítrio.
Como vimos, que a liberdade ou os atos morais sem paixões, privados de
concupiscência, são da ordem da vida moral. Agostinho adverte de modo taxativo,
que mesmo as leis emitidas pelas autoridades para regrar a sociedade, só têm efeito
moral se estiverem casadas com a justiça, ou seja, todo o valor obrigatório destas
leis positivas, só pode decorrer de inerente justiça (Nair de Assis Oliveira, nota 11 ao
DLA, pág. 246), pois poder matar uma pessoa mesmo que validado pelas
circunstâncias, não significa que necessariamente devemos matá-la, mesmo que as
leis positivas nos dêem guarida para tal ato.
Aí entra o que Santo Agostinho chama de sabedoria, que é o que liberta o
homem das paixões, que são desencadeadas pela má vontade e que são
condenáveis pela lei divina. Esta sabedoria é, portanto, o conhecimento e a vivência
das leis supremas da moralidade. Isto vale inclusive para os governantes que não
podem estar isentos das leis eternas. O príncipe deve governar para o bem público e
nenhuma lei o obriga, se não decorrer da lei eterna, pois a suprema lei é o bem
social (Nair de Assis Oliveira, nota 16 ao DLA, pág. 248).
Observamos então que Agostinho tenta estabelecer os limites da lei
temporal, procurando ressonância na lei eterna.
Esta decodificação das leis temporais, constitue um dos elementos
essenciais da sua doutrina moral e social, que vemos Agostinho tratar
ocasionalmente no primeiro capítulo da obra O Livre-Arbítrio. É interessante
observar que estas reflexões sociais e morais, desenvolvidas por Agostinho, não são
simplesmente copiadas ou reeditadas de Cícero, pois Agostinho o repensa, quando
trata da lei eterna e da lei temporal, esta, tirando toda sua força da participação
daquela (Nair de Assis Oliveira, nota 17 ao DLA, pág. 248), pois a lei temporal não
procura senão um bem relativo e permite, por vezes, o que a lei eterna condena.
Pois definitivamente, a ordem que Deus quer que reine na natureza humana está
fundamentada na lei eterna e exige a subordinação das paixões, à razão. E esta
subordinação da paixão à razão gerará o que Agostinho chama de ordem
perfeitíssima, ou seja, esta ordem não é uma simples disposição local, nem mesmo
cósmica, mas o princípio metafísico que é extensivo a todos os seres. Esta ordem
admirável e ideal do universo só pode realizar-se pela atuação da Providência.
Atuação esta que se estende igualmente ao plano do progresso moral, visto que
“nada há no universo que a Providência não governe” (DLA I,V,13).
Observamos então que esta ordem que Agostinho almeja para os seres
humanos só é alcançada através da graça de Deus, ou seja, o homem mesmo
dotado de livre-arbítrio, e este, mesmo que bem orientado pela boa vontade, só
atingirá o progresso moral, ou seja, a liberdade moral, desde que precedido pela
graça divina. Desta forma, a graça divina encerra o livre-arbítrio, pois o mesmo já é
uma graça de Deus, ou seja, por si só ele é bom e dadivoso. Agora, o contrário não
é verdadeiro, pois o homem somente com o livre-arbítrio, não atinge a realização
moral, ou seja, ele somente, sem o auxílio da graça divina, torna-se vazio e estéril,
portanto, não gera nenhum tipo de realização que possa torná-lo mais livre.
Observamos então que a possibilidade de fazer o mal é inseparável do
livre-arbítrio (E. Gilson, filosofia na idade média, pág. 155) mas o poder de não fazê-
lo nos dá acesso à liberdade. E o fato de alguém se encontrar confirmado na graça
de Deus, a ponto de não poder mais fazer o mal, é o grau supremo da liberdade (E.
Gilson, filosofia na idade média, pág. 155). Portanto, o homem que estiver mais
completamente dominado pela graça, será o mais livre. Então, a graça é necessária
ao livre-arbítrio do homem, para lutar eficazmente contra os assaltos da
concupiscência, desregrada pelo pecado, e para ser merecedor, diante de Deus.
Sem a graça pode-se conhecer a lei, mas com ela, a lei é consumada. A graça é um
socorro outorgado por Deus ao livre-arbítrio do homem, ela não o elimina, mas
coopera com ele, restituindo-lhe a eficácia para o bem, da qual o pecado o havia
privado. (E. Gilson, filosofia na idade média pág. 155). Portanto, na visão de
Agostinho, para fazer o bem duas coisas são necessárias: a graça de Deus e o livre-
arbítrio.
O livre-arbítrio, segundo Santo Agostinho, é uma prerrogativa
genuinamente humana que é facultada aos seres dotados de razão. Santo
Agostinho distingue, além do princípio vital que nos é comum com as plantas, o qual
chamamos simplesmente “vida”, duas espécies de alma: anima e animus. A primeira
é a alma em geral, que se encontra também nos animais. A segunda é a alma que
pensa e raciocina, própria ao homem.
Portanto, para nosso autor não basta simplesmente viver ou estar vivo,
pois disto até uma pedra participa. O que nos dá um diferencial em relação a todos
os outros seres como: plantas, animais, pedras, é que, além de nós possuirmos a
vida como eles, nós, através da razão, sabemos que estamos vivos e vivendo, e
como tais, somos dotados de livre-arbítrio para direcionar nossa vontade.
A consciência da vida parece-te melhor do que a própria vida? Ou talvez queiras dizer que o conhecimento é uma vida mais alta e mais pura, a qual ninguém pode alcançar a não ser que seja dotado de inteligência? Ora, o
que é ter inteligência a não ser viver com mais perfeição e esplendor, graças à luz mesma da mente? (DLA I,VII,17).
Agostinho enaltece a vida da consciência da razão e do esclarecimento,
mas alerta para que nos coloquemos de sobreaviso e prontidão contra o assalto das
paixões, pois o homem que dá rédea solta à sua vontade e deixa que ela degenere
em concupiscência, pode incorrer em vaidades, amor aos elogios, à gloria, o desejo
de dominar etc..
Contudo, não devemos nos julgar melhores do que eles, por possuirmos essas paixões. Pois tais inclinações, ao se revoltarem contra a razão, nos tornam infortunados. Ora, ninguém jamais se pretendeu superior a outros, por sua miséria.Por conseguinte, só quando a razão domina a todos os movimentos da alma, o homem deve se dizer perfeitamente ordenado. Porque não se pode falar de ordem justa, sequer simplesmente de ordem, onde as coisas melhores estão subordinadas às menos boas ( DLA I,VIII,18).
Considerações finais
Nesta obra, que foi objeto do nosso trabalho, vimos que não foi por acaso
que Santo Agostinho deu-lhe o título de O Livre-Arbítrio, pois, como foi exposto e
trabalhado no transcorrer dos três capítulos, que tiveram como objetivo fazer um
mapeamento das principais idéias e conceitos que gravitam em torno da obra e do
pensamento de Santo Agostinho, foi observado que sua culminância, ou último
passo, nos é oferecido pela vontade. Esta, como vimos na exposição do trabalho, se
desdobra em dois caminhos: um caminho, que nos leva ao esclarecimento da razão,
que se coaduna com a vida interior, orientada pela lei eterna. E o outro, que é o
caminho do pecado, do mal moral, gerado pela concupiscência, ou mau desejo. Ou
seja, é a vontade se afastando, se ausentando das leis eternas inscritas por Deus na
nossa natureza interior, iluminada pela razão. Desta forma, para Agostinho, o que
torna um homem sábio, é a capacidade que ele tem de subordinar as paixões à
razão, que é uma dádiva, uma Graça de Deus, visto que os demais seres não a
possuem, pois é uma prerrogativa exclusivamente humana.
Portanto, na visão de Santo Agostinho, duas coisas são necessárias para
mover a vontade do homem em busca da realização moral ou da liberdade: a graça
de Deus e o livre-arbítrio. Como foi observado, a graça de Deus é uma dádiva e
somente com ela podemos consumar as leis que são inscritas por Deus em nossa
razão. A graça de Deus, como foi visto, se serve do livre-arbítrio e o empurra em
direção à vontade, para efetivar ou consumar a realização da vida moral, privada da
má vontade ou do pecado, para gerar a liberdade.
Em suma, para Agostinho, a má vontade ocasiona o pecado, mas não é
sua causadora, pois o pecado está enraizado no livre-arbítrio do homem, que, em
última instância, é o autor do pecado, quando, por livre e espontânea vontade,
fazendo uso do seu livre-arbítrio, se afasta da boa vontade e ignora a graça de
Deus.
Vemos, então, que na visão de Santo Agostinho, a realização da
felicidade é prerrogativa única e exclusivamente humana, ou seja, nós somos os
responsáveis por nossa liberdade ou encarceramento moral, dependendo do modo
como direcionamos a nossa vontade. Ou espelhando o mau desejo, nos apegando
às coisas unicamente mundanas, ou refletindo a graça de Deus através do bom uso
do nosso livre-arbítrio.
Bibliografia
Bibliografia fonte
AGOSTINHO. A trindade. São Paulo: Paulus, 1995.
AGOSTINHO. O livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995.
Bibliografia complementar
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
COSTA, Marcos. Maniqueísmo – Historia, filosofia e religião. Petrópolis: Vozes, 2003.
COSTA, Marcos. Santo Agostinho – Um gênio intelectual a serviço da fé. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
GILSON, Etienne. A filosofia na idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1998.