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O Blues Utópico Hakim Bey (Original em inglês) Por que a espiritualidade do músico em "Altas" culturas geralmente é uma baixa espiritualidade? Na Índia, por exemplo, o músico pertence a uma casta tão baixa que se encontra no limiar da intocabilidade. Esta baixeza está relacionada, em atitudes populares, ao invariável uso pelo músico de intoxicantes proibidos. Após a "invasão" do islã, muitos músicos converteram-se para escapar do sistema de castas. (Os irmãos Dagar de Calcutá, famosos por suas performances de música sacra hindu, explicaram-me orgulhosos que sua família não tinha se convertido nos tempos do Império Mogol - por vantagens mundanas - mas somente muito tempo depois, e então como xiitas; isso provava que suas conversões eram sinceras) Na Irlanda, o músico compartilhava a mesma reputação indo-europeia de baixeza. Bardos ou poetas estavam junto dos aristocratas e mesmo da realeza, mas os músicos eram meramente os servos dos bardos. Na estrutura tripartida de Dumézil[1] da sociedade indo-europeia, como refletida na Irlanda, a música parece ocupar uma ambígua zona separada, simbolizada pelo província separada de Munster, o "sul". A música é assim associada com druidismo "oculto", licença sexual, glutonia, nomadismo e outros fenômenos marginais. Acredita-se popularmente que o islã "bane" a música; obviamente não é esse o caso, já que tantos músicos indianos se converteram. O islã expressa solenes reservas sobre a arte em geral porque toda arte potencialmente envolve-nos em multiplicidade (extensão em tempo e espaço) mais do que na unidade (tawhid), pela qual o islã define seu inteiro projeto espiritual. O Profeta criticava a poesia mundana, e relegava a música a ocasiões sociais e casamentos. (Em sociedades islâmicas, os menestréis que suprem tal música festiva são geralmente judeus, ou ainda islâmicos "marginais".) Em resposta a essas críticas, a cultura islâmica desenvolveu formas "retificadas" de arte – poesia sufi[2] (que sublima o prazer mundano como êxtase místico); arte não- representativa (falsamente descartada como "decorativa" pela historiografia ocidental de arte); e música sufi, que utiliza a

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peter lamborn wilson, musica, anarquia. Tradução ruim

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O Blues Utópico

Hakim Bey

(Original em inglês)

Por que a espiritualidade do músico em "Altas" culturas geralmente é uma baixa espiritualidade?

Na Índia, por exemplo, o músico pertence a uma casta tão baixa que se encontra no limiar da intocabilidade. Esta baixeza está relacionada, em atitudes populares, ao invariável uso pelo músico de intoxicantes proibidos. Após a "invasão" do islã, muitos músicos converteram-se para escapar do sistema de castas. (Os irmãos Dagar de Calcutá, famosos por suas performances de música sacra hindu, explicaram-me orgulhosos que sua família não tinha se convertido nos tempos do Império Mogol - por vantagens mundanas - mas somente muito tempo depois, e então como xiitas; isso provava que suas conversões eram sinceras) Na Irlanda, o músico compartilhava a mesma reputação indo-europeia de baixeza. Bardos ou poetas estavam junto dos aristocratas e mesmo da realeza, mas os músicos eram meramente os servos dos bardos. Na estrutura tripartida de Dumézil[1] da sociedade indo-europeia, como refletida na Irlanda, a música parece ocupar uma ambígua zona separada, simbolizada pelo província separada de Munster, o "sul". A música é assim associada com druidismo "oculto", licença sexual, glutonia, nomadismo e outros fenômenos marginais.

Acredita-se popularmente que o islã "bane" a música; obviamente não é esse o caso, já que tantos músicos indianos se converteram. O islã expressa solenes reservas sobre a arte em geral porque toda arte potencialmente envolve-nos em multiplicidade (extensão em tempo e espaço) mais do que na unidade (tawhid), pela qual o islã define seu inteiro projeto espiritual. O Profeta criticava a poesia mundana, e relegava a música a ocasiões sociais e casamentos. (Em sociedades islâmicas, os menestréis que suprem tal música festiva são geralmente judeus, ou ainda islâmicos "marginais".) Em resposta a essas críticas, a cultura islâmica desenvolveu formas "retificadas" de arte – poesia sufi[2] (que sublima o prazer mundano como êxtase místico); arte não-representativa (falsamente descartada como "decorativa" pela historiografia ocidental de arte); e música sufi, que utiliza a multiplicidade para devolver o ouvinte à Unidade, para induzir "estados místicos". Mas esse restabelecimento das artes nunca ocorreu inteiramente como uma edificação do músico. Em Teerã, nos anos 1970, uma das ordens sufi mais decadentes (Safi-Ali-Shahi) afiliou a maioria dos músicos profissionais, e suas sessões eram destinadas ao fumo de ópio.

Outros músicos eram conhecidos como grandes beberrões ou ainda tipos indecentes e boêmios – as poucas exceções eram os sufis devotos em outras ordens mais disciplinadas, tais como a Nematollahiyya ou a Ahl-i Haqq. No Levante, a música sufi turca fugiu dos tekkes[3] para as tavernas, misturada

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com influências gregas e mediterrâneas, e produziu o maravilhoso gênero de Rembetica com suas espirituosas odes a prostitutas, haxixe, vinho e cocaína.

Nos rituais de religiões afro-americanas, tais como a santeria, o vodu e o candomblé, os importantes percussionistas e músicos eram geralmente não-iniciados, profissionais contratados pela congregação – isso é sem dúvida um reflexo do status "menestrel" quase-nômade de músicos nas sociedades pastoral-agrícolas altamente desenvolvidas da África Ocidental.

O cristianismo tradicional coloca um alto valor na música, mas um baixo valor nos músicos. Alguns ramos do protestantismo tentaram excluir completamente músicos profissionais, mas o luteranismo e o anglicanismo fizeram uso deles. Músicos de igreja eram considerados uma classe pecaminosa de seres, uma percepção que sobrevive pela reputação da desobediência de coristas, regentes de coro e organistas. Thomas Weelkes (1576 – 1623) representa o arquétipo: brilhante, mas errático (merecidamente exaltado por Ezra Pound por seu maravilhoso acompanhamento musical arrítmico de "prosa cadenciada"), Weelkes foi demitido de seu emprego na Catedral de Chichester como um "notório blasfemador" e bêbedo, cuja (de acordo com a tradição oral) gota d’água foi mijar sobre o órgão na cabeça do deão.

A espiritualidade do cristianismo e afro-americana combinaram-se para produzir as igrejas "espíritas" onde a música forma a estrutura do culto e a congregação possui talento artístico "profissional". A ambiguidade dessa relação é revelada nas poderosas ligações entre o sacro "gospel" e o mundano "blues", a rejeitada música das tavernas, e o "jazz", a música do bordel (a própria palavra evoca pura sexualidade). As formas musicais são muito próximas – a diferença está no músico, que, como usual, fica suspenso no último limiar da desculpa, o espaço intermediário entre o perigo e a intoxicação xamânica.

Em todos esses casos, a música em si representa a mais elevada espiritualidade da cultura. A música sendo em si “sem corpo” e metalinguística (ou metassemântica) é sempre (metaforicamente ou realmente) a suprema expressão de pura imaginação como veículo para o espírito. A baixeza do músico é conectada ao perigo percebido da música, sua ambiguidade, sua qualidade indefinível, sua manifestação como baixeza assim como elevação – como prazer.

A música como prazer não está conectada à mente (ou a elementos purificados do espírito), mas ao corpo. A música origina-se do corpo (inarticulado) e é recebida pelo corpo (como vibração, como sexualidade).

Deve ser dada à própria palavra divina uma expressão musical (em canto, p. ex. Corão, cantochão etc.) precisamente pela mesma razão somática – a influência do corpo no espírito (através da "alma" ou da psique – imaginação). O canto é música que sublima o corpo

Paradoxo: – aquilo que é "sagrado" é "proibido" (como na palavra árabe haram, que significa tanto sagrado como proibido, dependendo do contexto). Como aponta Bataille[4], santicidade e transgressão originam-se ambas da fratura da "classe de intimidade", a separação do "humano" da "natureza". A expressão "original" dessa violenta ruptura é indubitavelmente musical – como com os pigmeus Mbutu, que produzem como uma coletividade a música da "Floresta" como uma expressão de sua proximidade à selva(geria) (ainda que separada dela). Subsequente a essa "primeira" expressão, uma maior separação começa

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a aparecer: – o músico continua envolvido na "violência" da quebra com a classe íntima de uma maneira especial, e então é visto como uma pessoa misteriosa (como o bruxo, ou o metalúrgico). O músico emerge como um especialista dentro de uma sociedade ainda não-hierárquica de caçadores/coletores, e o músico começa a assumir o símbolo do tabu dado que a cultura não dividida da tribo ou "coletiva para si" é afrontada por essa separação ou transformação. A cultura não dividida (como a Mbutu) não conhece nenhum "músico" nesse sentido, somente música. À medida que a divisão, e então a hierarquia, começa a aparecer na sociedade, a posição do músico torna-se problemática. Como uma sociedade "primitiva", essas sociedades "tradicionais" hierárquicas também desejam preservar algo intacto no coração de sua cultura. Se a sociedade é "numerosa", a cultura preservará uma coesão contrabalanceada que é o símbolo da classe de intimidade original, prolongada nos mais profundos significados espirituais da sociedade, e, assim, preservada. Tanto para a música – mas e para o músico?

A sociedade hierárquica permite-se permanecer relativamente não dividida sacralizando as especializações. A música, por ser sem corpo, pode ser o símbolo de uma casta superior (sua "espiritualidade") – mas como a música vem do corpo (é sublimada – "eleva-se"), o músico (originador/origem da música) tem de ser simbolizado pelo corpo e consequentemente tem de ser "baixo". A música é espiritual – o músico é corpóreo. A espiritualidade do músico é baixa, mas também ambígua em sua produção de elevação. (Substituta de drogas para a elevação ritual do padre para fazer o músico elevado o suficiente para produzir elevação estética.) O músico não é apenas baixo como misterioso – não apenas baixo, mas "marginal". O poder do músico em sociedade é como o poder do mágico – o xamã excluído – em sua relação com a selvageria. E ainda assim são precisamente essas sociedades hierárquicas que criam culturas "sem emendas" – inclusive a música. Isso é verdade mesmo depois da ruptura– na tradição ocidental – entre a "unidade” de melodia e a "duplicidade" de harmonia. E note a relação recíproca entre música elevada e baixa – as várias Missas na "Western Wynde", convertida em um tema popular; a influência de melismas no madrigal; as influências populares em Rumi e outros Sufis. A ambiguidade da música a permite oscilar entre elevado e baixo e ainda assim permanecer não dividida. Isso é "tradição". Ela inclui o subversivo excluindo o músico (e o artista em geral) e mesmo assim concede-lhe poder.

Assim, por exemplo, o músico baixo Tansen[5] obteve status equivalente a aristocrático na corte embriagada por arte de Mughal[6]; e Zeami[7] (o grande dramaturgo do teatro Noh do Japão, uma forma de ópera), apesar de pertencer a uma casta intocável de atores e músicos, ascendeu a altos graus de refinamento porque o Shogun se apaixonou por ele quando tinha treze anos; para o horror da Corte, o Shogun compartilhava comida com Zeami e concedeu status de corte ao Noh. Para o músico, o poder de inspiração pode ser transmutado para o poder de ser poderoso. Considere o exemplo dos janízaros turcos, a Guarda Imperial Otomana, que pertenceram todos à heterodoxa (voltada à bebida de vinho) Ordem Sufi Bektashi, e que inventaram bandas marciais militares. Julgando pelos relatos europeus de bandas janízaras, que sempre falam do absoluto terror que provocavam, esses músicos descobriram uma forma de combate psicológico que certamente dava prestígio a esse grupo muito ambíguo, formado por escravos do Sultão.

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A música tradicional permaneceu sempre satisfatória (mesmo quando não “inspirada”) porque permaneceu intacta – tanto a alta tradição quanto a baixa são a mesma “coisa”. Bandas indianas de metais – Mozart – o mesmo universo. No próprio personagem de Mozart (refletido em seus personagens “servis” como Leparello) novamente percebemos a figura do marginal, o cigano-prodígio, o brinquedo dos aristocratas, com uma forte ligação à baixa cultura de beer-gardens[8] e danças clog[9] camponesas, e um apego ao excesso boêmio. O músico é um tipo de “grotesco” – servo desobediente, bêbedo, nômade, brilhante. Para o músico, o momento perfeito é aquele do festival, o mundo virado de cabeça para baixo, o saturnal, quando servos e mestres trocam de lugar por um dia. O festival não é nada sem o músico, que preside a reversal momentânea – e assim a reconciliação – de todas as funções e forças separadas na sociedade tradicional. A música é o símbolo perfeito da festividade, e por meio disso, do “princípio material corpóreo” celebrado por Bakhtin[10]. Na intoxicação de alegria na folia, a música emerge como um tipo de estrutura utópica ou força modeladora – a música se torna a verdadeira “classe de intimidade”.

Na manhã seguinte, entretanto, a ordem quebrada retoma seu controle. A dialética sozinha (se não a “História”) demonstra que uma cultura não dividida não é uma “vantagem” não misturada, na qual se apoia uma sociedade dividida. Onde a hierarquia não apareceu não há música separada do resto da experiência. Uma vez que a música torna-se uma categoria (juntamente com a categorização da sociedade), ela já começou a ser alienada – e então o aparecimento do especialista, o músico, e o tabu sobre o músico. Como é impossível distinguir se a música é sacra ou profana (isso sendo a natureza percebida da divisão social), esse tabu serve para preencher a fenda (e preservar a “intacticidade” da tradição) considerando os músicos tanto como sacros quanto profanos. Com efeito, a sociedade hierárquica limita punições a todas as castas/classes por sua culpa compartilhada na violação da classe de intimidade. Padres e reis são cercados por tabus – castidade, ou o sacrifício do rei (vegetativo) etc. A punição do artista pretende ser um tipo de rejeição paradoxalmente ligada às mais altas funções na sociedade. [Note que o poeta não é um “artista” nesse sentido e pode estar em certa casta superior porque a poesia é a palavra divina, semelhante à revelação. A poesia pertence à “aristocracia” em sociedades tradicionais (p. ex. Irlanda). Interessantemente, o mundo moderno reverteu essa polaridade em termos de dinheiro, assim o pintor e músico de “baixa casta” são agora ricos e, portanto, mais “superiores” do que o não-recompensado poeta.]

A “injustiça” da categorização da música é sua separação da “tribo”, do povo inteiro, inclusive de todo e cada indivíduo. Como o músico é excluído, a música é excluída e fica inacessível. Mas essa injustiça não se torna aparente até as separações e alienações dentro da própria sociedade se tornarem tão exacerbadas e exageradas que uma ruptura é percebida na cultura. Elevado e baixo estão agora fora de contato – sem reciprocidade. O arete nunca ouve a música do povo e vice versa. Cessa a reciprocidade de tradições elevadas e baixas – assim como a fertilização cruzada e a renovação cultural dentro da tradição “intacta”. No mundo ocidental, essa exacerbação de separação ocorre severamente com a industrialização e com o capitalismo de mercadoria – mas tem “pré-ecos” na esfera cultural. Bach adaptou uma forma matemática “racional” de boa disposição para os velhos sistemas mais “orgânicos” de tons. Em um sentido sutil, uma quebra ocorreu dentro da intacta tradição – outras se

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seguirão. A poderosa “inspiração” é libertada por essa “quebra com a tradição”, gênio titânico, em alguma parte tocado com morbidade. Pela “primeira vez”, por assim falar, levanta-se a questão: – se alguém diz sim ou não à vida em si. A espiritualidade angustiada de Bach (a “paranoia” do pietista jogando sozinho com a fé) era às vezes compreendida com uma efusão “romântica” de trevas. Esses impulsos são “revolucionários” no que diz respeito a uma tradição que sofre contradições quase insuportáveis. Sua própria negação abre a possibilidade de um “sim” totalmente novo. A despeito de sua enorme tensão interna, a música de Bach é “curativa” porque, anteriormente, ele teve de se curar para criá-la. Curativa, mas não não-ferida. Bach qual curandeiro ferido.

Não é surpreendente que as pessoas preferissem Telemann. Telemann também era um gênio – como em sua “Música Água” – mas seu gênio permaneceu em casa dentro da tradição “intacta”. Se Bach é o primeiro moderno, ele é o último patriarca. Se Bach é curativo, Telemann é curado, já como um todo. Seu sim é o tácito sim do costume sagrado – naturalmente, claro, ninguém nunca pensou o contrário. Telemann ainda é – no extremo – nosso servo. Esse tipo de “saúde” é exemplificada apenas em alguns compositores após Telemann – Mendelsohn, por exemplo. Alguém pode chamá-la “pindárica” e alguém pode até mesmo defendê-la contra a “inteligência”.

A vida boêmia do artista moderno, tão “alienada da sociedade”, não é nada mais que a velha espiritualidade concreta das castas de músicos e artistas, recontextualizada em uma economia de mercadorias. Baudelaire (como argumentou Benjamin) não teve função econômica na sociedade do século XIX – sua espiritualidade concreta voltou-se para dentro e tornou-se autodestrutiva, porque perdeu sua funcionalidade no social. Villon também era boêmio, mas, ao menos, tinha uma função na economia – como ladrão! O privilégio do artista – de ser bêbedo, de ser indiferente – tornou-se agora a maldição do artista. O artista não é mais um servo – recusa-se a servir – exceto como legislador não reconhecido. Como revolucionário. O artista agora reivindica, como Beethoven, ou uma posição de vanguarda, ou – como Baudelaire – completo exílio. O músico não mais aceita a baixa casta, tem de ser ou brâmane ou intocável.

Wagner – e Nietzsche, quando estava propagandeando para Wagner – concebeu uma revolução musical contra a ordem quebrada em favor de uma nova e mais alta forma (consciente) da classe de intimidade: – a cultura dionisíaca integral vista como objetivo revolucionário do romantismo. O marginal como rei. A ópera é a utopia da música (como Charles Fourier também imaginou). Na ópera, a música apropria-se da palavra divina e assim desafia o monopólio da revelação sobre o sentido.

Se a ópera falhou como revolução – como Nietzsche veio a perceber – foi porque a audiência recusou-se a ir embora. A ópera de Wagner ou de Fourier pode ter êxito apenas enquanto o social se ela tornar-se o social – eliminando a categoria de arte, de música, de qualquer coisa separada da vida. A audiência deve tornar-se a ópera. Ao invés disso – a ópera tornou-se... somente outra mercadoria. Um ritual público celebrando valores sociais pós-sacros de consumo e sentimento – a sacralização do secular. Um passo na estrada do espetáculo.

A comodificação da música mostra precisamente a falha da revolução romântica da música – sua mumificação no repertório, o Cânone – a

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recuperação de sua dissidência como a retórica do liberalismo, “cultura e gosto”. Onda após onda, a “vanguarda” tentou transcender a civilização – um processo que está chegando a um final somente agora, na apoteose da comodificação, seu “êxtase final”.

Como sustentavam Bloch e Benjamin, toda arte que foge da categoria de mero kitsch contém o que pode ser chamado de traço utópico – e isso é certamente verdadeiro na música (e até mesmo “mais” verdadeiro, dado seu imediatismo metassemântico). Finalmente, é esse traço que deve servir para opor os incisivos argumentos contra a música feitos por J. Zerzan em “A Tonalidade e a Totalidade” - i.e. que todas as formas alienadas de música servem como controle em seu fim. Argumentar que a música em si, como a linguagem, é uma forma de alienação, no entanto, pareceria requerer um “impossível” retorno a um Paleolítico que é quase pré-“humano”. Mas talvez a Idade da Pedra não esteja em outro lugar, distante e quase inacessível, mas um pouco presente (de certo modo). Talvez devêssemos experimentar não um retorno à Idade da Pedra, mas um retorno da Idade da Pedra (simbolizada, de fato, pela verdadeira descoberta do Paleolítico, que ocorreu apenas recentemente). Algumas décadas atrás, ouvidos civilizados literalmente não podiam ouvir música “primitiva”, se não como barulho; os europeus nem mesmo podiam ouvir a música clássica tradicional não-harmônica da Índia ou da China, exceto como porcaria sem sentido. O mesmo era verdadeiro para a arte paleolítica, por exemplo – ninguém notou as pinturas nas cavernas até o final do século XIX, mesmo que elas já tivessem sido “descobertas” muitas vezes. A civilização era definida pela consciência racional, a racionalidade era definida como consciência civilizada – fora dessa totalidade, apenas o caos e a pura ininteligibilidade poderiam existir. Mas agora as coisas mudaram – de repente, no mesmo momento em que o “primitivo” e o “tradicional” parecem estar à beira do desaparecimento, podemos ouvi-los. Como? Por quê?

Se o traço utópico em toda a música agora pode ser ouvido, pode sê-lo somente porque a “ordem quebrada” está agora de alguma forma chegando a um final. O longo exílio babilônico está finalmente delgado ao ponto de ser translúcido, se não transparente. O reinado da mercadoria está ameaçado por uma massa despertada de um transe midiático de desatenção. Um gosto pelo autêntico aparece, sofre um milhão de truques e cooptações, um milhão de promessas vazias – mas se recusa a evaporar. Pelo contrário, condensa-se – até mesmo coagula. Modos neoxamânicos de consciência ocupam reentrâncias perdidas ou fractais do mapa de consenso e controle. Misticismos psicodélicos e orientais estimulam ouvidos, massas de ouvidos, a um gosto pelo intacto, a classe de intimidade, e sua incorporação festiva.

Realmente há algum problema com a comodificação da música? Por que deveríamos assumir uma posição “elitista” agora, ao mesmo tempo em que a nova tecnologia faz possível uma participação “em massa” na música através da virtual infinidade de escolhas, e a “democracia elétrica” da produção musical? Por que reclamar da degradação da aura do “trabalho de arte” na idade de reprodução mecânica, como se a arte pudesse ou devesse ainda ser defendida como uma categoria de alto valor?

Mas não é a “Civilização Ocidental” que estamos defendendo aqui, nem a santidade da produção estética. Sustentamos que a participação na mercadoria pode apenas chegar a uma comodificação da participação, uma simulação de democracia estética. Uma síntese mais elevada do Antigo Exílio,

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prometendo “A Verdadeira Coisa agora”, mas entregando somente outra traição de esperança. O problema da música continua o mesmo – o de alienação, da separação dos consumidores dos produtores. A despeito de possibilidades positivas trazidas pela completa multiplicação de recursos feitos acessíveis através da reprodução da tecnologia, o esmagador complexo de alienação é mais forte que todas as contraforças subversivas trabalhando para fins utópicos. A descoberta da música do “terceiro mundo” (i.e. primitiva e tradicional) levou mais à apropriação e diluição do que a uma sinergia de mistura cultural e enriquecimento mútuo. A proliferação de tecnologias baratas de produção musical primeiramente abre possibilidades novas e genuinamente populares/democráticas, como o dub e o rap; mas a “indústria” sabe muito bem como transformar em fetiche e alienar essas energias insurrecionárias: – usa-as para vender junkfood e sapatos! À medida que chegamos ao contato com a música, ela some de nosso alcance como uma miragem. Em todo lugar, em todo restaurante, loja, espaço público, somos submetidos à “poluição sonora” – sua verdadeira ubiquidade mostra nossa impotência, nossa falta de participação, de “escolha”.

E que música! Uma falsificação venal e venial de toda música “revolucionária” do passado, música de pulsação sexualizada que certa vez soou como o badalar fúnebre dos sinos da Civilização Ocidental, agora se torna o papel de parede sônico escondendo uma fachada de rupturas, fissuras, ausências, medos, o analgésico para o desespero e para a anomia -- música de elevador, música de sala de espera, pulsando à batida 4/4, o velho ritmo “careta” do racionalismo europeu, aromatizado com um tingimento homeopático de calor africano ou espiritualidade asiática -- o traço utópico -- memórias de uma juventude traída e transformada no equivalente auricular do Prozac e da Colt 45. E, apesar disso, cada nova geração de jovens reivindica essa “revolução” como sua própria, adicionando ou subtraindo uma nota ou batida aqui ou ali, empurrando um pouco mais o invólucro “trangressivo”, e chamando-o de “nova música” – e cada geração por sua vez torna-se simplesmente uma massa estatística de consumidores ocupados criando a música de aeroporto de seu próprio futuro, lamentando os “vendidos”, pensando o que deu errado.

A música clássica ocidental tornou-se o símbolo do poder burguês – mas é um símbolo vazio, já que seu período de produção primária está acabado. Não há mais sinfonias a serem escritas em dó maior. O Serialismo, o dodecafonismo, e toda a vanguarda do século XX realizaram uma revolução, mas falharam em inflamar qualquer pessoa, exceto uma pequena elite, e certamente falhou em desconstruir o Cânone. De fato, a maior falha dessa música “moderna” é algo terna, já que permitiu que a música retivesse algo do inocente entusiasmo de desejo insurrecionário, não maculado pelo “sucesso” – Harry Partch, por exemplo. Mas ainda lembro com horror a cena que certa vez observei em Shiraz (Irã), onde o Festival de Artes convidou K. Stockhausen a apresentar sua música ao “povo” da cidade mais do que somente à aristocracia de Teerã e kulturvultures internacionais da audiência do Festival. Que embaraço! E a revolução que varreu a cidade alguns anos depois não devia nada a tal “generosidade” – exceto ódio da “decadente” música ocidental – que foi banida. Como para “Mozart” (para pegar um arquétipo), como ele pode ser “salvo” da Indústria e das Instituições, de CDs e rádios, do Lincoln Center e do Kennedy Center, de Holllywood e de música de elevador[11] ? Evoco uma passagem de uma história de Carson McCurlers, na qual uma pobre garotinha ouve em transe, pela primeira vez, um 78 rotações de Mozart, através da porta

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de um bairro rico – um momento quintessencialmente utópico. Mesmo a tecnologia de alienação pode ser “mágica” – mas apenas inadvertidamente, acidentalmente, por distorção. Uma rádio distante em uma noite solitária em uma cidade tropical em Java, digamos, tocando algum drama Ramáiana sem fim até o amanhecer – ou para essa questão... escolha seu próprio momento favorito (talvez erótico) de memória, marcado por um fragmento de música ouvido a distância. (É melhor que a LITE-FM nunca descubra esse fragmento, porque eles vão transformá-lo em nostalgia e usá-lo para vender o seu próprio desejo de volta para você, e manchar sua doce memória para sempre com a ganância publicitária.) ... Assim admitamo-lo – há um problema. Nada é necessariamente para o melhor no mundo do Capitalismo Muito Tardio – a música lembra-nos uma dessas vítimas vampiro-cinemáticas, já tão esgotada de vida que é quase um Morto-Vivo – devemos abandoná-la?

Existe qualquer “solução” para esse problema, qualquer cura que não seja uma forma de reação, de bombardearmo-nos de volta a algum passado ideal? É mesmo válido basear nossa crítica na suposição de que a música era ou será “melhor” em algum momento no tempo? A “degeneração” é melhor modelo que o “progresso”? Em primeiro lugar, a “música em si” está em questão aqui, ou devemos nos focar na produção da música, e na estrutura social que inspira essa produção? Em outras palavras, talvez a música (quase um kitsch completo) devesse ser considerada “inocente”, ao menos em comparação com a constelação de alienação e traição e monopolização algumas vezes chamada de Indústria – o braço musical do Espetáculo. Em comparação, a Música é a vítima, não a causa do “problema”. E os músicos? Eles são parte da Indústria ou também são meras vítimas (como suas Musas)? Parte do problema, ou parte da solução? Ou todo o conceito de “culpa” aqui não é mais que a ideologia de uma Reação mais sutil – um puritanismo incipiente – outra falsa totalidade?

Se queremos escapar de quaisquer círculos viciosos de ressentimento retributivo (ou revanchismo musical), precisamos de uma abordagem completamente diferente – e se nossa abordagem (nossa estratégia) não está baseada na “História” – seja da própria música ou da produção – então talvez ela deva estar calcada, pelo contrário, na poética utópica. Nesse sentido, não deveríamos adotar nenhum sistema utópico como um modelo ¬¬– o que nos colocaria em uma situação difícil de nostalgia por algum futuro perdido – mas mais pegar a ideia da utopia em si, ou até mesmo a emoção da utopia, como ponto inicial. A música, afinal, endereça as emoções mais imediatamente do que outras artes, filtrada como é através do logos ou da imagem. (Isso explica em parte por que o islã tem receio da música.) A música é a mais permeável de todas as artes – talvez não a “linguagem universal”, mas somente porque não é de fato uma linguagem, exceto talvez uma “linguagem dos pássaros”. O apelo “universal” da música está em sua ligação direta a uma emoção ou desejo utópico, e, além, a uma imaginação utópica. Por essa interpenetração de tempo e prazer, a música expressa e evoca um tempo “perfeito” (limpo de tédio e medo) e prazer “perfeito” (limpo de todo desgosto). A música não tem corpo, mas vem do corpo e é para o corpo – e isso também a faz naturalmente utópica. Para a utopia, não há “lugar”, e a utopia também diz respeito ao corpo acima de tudo.

Como um exemplo (não um modelo), podemos retornar ao conceito de Fourier da ópera como “será” praticada na utopia, ou o estágio social de Harmonia

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como ele o chamou. Como uma “obra de arte completa”, a ópera envolverá música e palavras, dança, pintura, poesia – em um sistema baseado em “analogias” ou correspondências ocultas entre os sentidos e seus objetos. Por exemplo, os doze tons (do dodecafonismo) correspondem às doze paixões (desejos ou emoções), às doze cores, e às doze Séries básicas da Falange ou comunidade utópica etc. Orquestrando essas correspondências, as óperas da Harmonia superarão de longe os torpes dramas musicais da Civilização em beleza, luxo, inspiração, para não mencionar a gama completa. Elas utilizarão a ciência hieroglífica de arte da Harmonia para prover educação, propaganda, entretenimento, transcendência artística, e satisfação erótica – tudo de uma vez. Audição, visão, intelecto, todos os sentidos responderão aos complexos símbolos multidimensionais da ópera, feita de palavras e música, razão e emoção, e talvez até mesmo de tato e olfato. Esses símbolos criarão um efeito “moral” direto na audiência, assim como nos atores (algo como o que Brecht anteviu para o “Teatro Épico”), – e, de fato, a tendência na Harmonia será de a audiência desaparecer, tornar-se parte da Ópera (ao menos potencialmente), assim a separação entre “artista” e “audiência” – a procênica, por assim dizer– será derrubada, permeada, eventualmente apagada. Todos os Harmônicos serão inspiradas na Ópera – esse é o objetivo dos hieróglifos, esse é o “efeito moral”. (Estou colocando a palavra entre aspas porque Fourier odiava o moralismo tanto quanto Nietzsche. Talvez “espiritual” fosse um melhor termo.) Essa “associação harmônica” na produção e experiência da Ópera é (para Fourier) um modelo da verdadeira estrutura da comunidade utópica. A falange será espontaneamente o que a ópera é artisticamente. Com efeito, Fourier redescobriu o ritual primitivo, a dança/música/história/fantasia/sacrifício que é a tribo na forma de arte, a cocriação de si mesma na imaginação estética. Fourier tapou a fenda (em seus escritos, ao menos – em sua imaginação) – mas não por um retorno a alguma perfeição paradisíaca do passado. De fato, para o próprio Fourier, a Harmonia não era mais um estado futuro do que um estado de presença potencial. Ele acreditava que se um grupo (de exatamente 1620 pessoas) construísse um único falanstério e começasse a viver por atração Passional, o mundo inteiro seria convertido dentro de dois anos. Ao contrário More, Bacon, Campanella e outros utópicos, os planos de Fourier não eram concebidos como ironias, nem como críticas nem como ficção científica, mas como projetos de revolução imediata (e não-violenta). Nesse sentido, ele assemelha-se a seus (odiados) contemporâneos Owen e Saint Simon – mas, ao contrário deles, não estava interessado na regulação do desejo em sua libertação total – e nisso ele se assemelhava ainda mais a Blake – ou (como os seguidores de Fourier gostam de afirmar) a Beethoven, do que a qualquer um dos socialistas, “utópicos” ou “científicos”.

O desaparecimento da audiência na ópera de Fourier não nos lembra nada mais do que o programa situacionista para a “Supressão e Realização da Arte”. A ópera de Harmonia rebaixa a si mesma como uma categoria separada de produção artística, com toda a consequente comodificação e consumo, somente para realizar-se como a “vida cotidiana”. Mas é uma vida cotidiana transformada e sistematicamente inspirada pelo “maravilhoso” (como colocavam os surrealistas). É uma máquina de desejos comunal e individual. É o campo do prazer. É um luxo – uma forma de “excesso” (como colocou Bataille). É a generosidade do social para consigo mesmo – como um festival, apenas mais formal, uma celebração como ritual mais do que como orgia. (Claro que a orgia é outro grande princípio organizador da vida no falanstério!)

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A ópera, nesse sentido, nos inclui. De nosso ponto de vista, podemos agora dizer que a música é nossa – mais de algum outro – não do músico, não da gravadora, não da estação de rádio, não do lojista, não das companhias de música de elevador, não do diabo – mas nossa. Em Noise: the Political Economy of Music (“Som: A Economia Política da Música”, em tradução livre – 1977), Jacques Attali propõe que esse “estágio” no possível futuro da música seja chamado estágio de “Composição” – “um barulho de Festival e Liberdade”, como “elemento essencial em uma estratégia para a emergência de uma sociedade verdadeiramente nova”. A Composição chama pela “destruição do todos os simulacros em acumulação” – i.e., evita a representação e a comodificação, e a reprodução mecânica enquanto “o silêncio da repetição”. “A emergência da livre ação, autotranscendência, prazer em ser ao invés de ter” é (violentamente) oposta à alienação, pela qual o “músico perde a posse da música”. Na Composição, “ouvir a música é reescrevê-la, ‘colocar música em operação, arrastá-la em direção a uma prática desconhecida’ (Barthes).” Attali alerta que “a blasfêmia não é um plano, mais que som, é um código. Representação e repetição, arautos da falta, são sempre capazes de recuperar a energia do festival libertador”. A verdadeira composição requer “um sistema de organização verdadeiramente diferente... sem de sentido, uso e troca”, i.e., marcado em parte pelo “Retorno dos Trovadores”, por “um reaparecimento das mui antigas formas de produção”, assim como pela reinvenção de novos instrumentos e de tecnologias recicladas (como no Dub). A música é separada de Trabalho, e torna-se uma forma de “ócio”. “O campo da mercadoria foi quebrado”. “A participação em peça coletiva”, e “comunicação imediata” objetivam “situar a libertação em um futuro não distante... mas no presente, na produção e no próprio divertimento das pessoas”. Nesse sentido, então, “a música emerge como uma relação com o corpo e como transcendência” – uma relação erótica. Na Composição, “a produção se funde com o consumo... no desenvolvimento do imaginário através do planejamento de jardins pessoais”. “A Composição libera tempo, assim ele pode ser vivido, não estocado... em mercadorias”. Por causa da natureza anárquica da Composição e do consequente perigo de cacofonia, “tolerância e autonomia” devem ser pressupostos como condições.

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Attali preocupa-se também com a “impossibilidade de improvisação”, e a falta de habilidade musical de algumas pessoas; apesar disso, essas objeções não são absolutas – e, além disso, se evocarmos o modelo da Ópera de Fourier, notaremos que talentos não musicais valem tanto quanto talentos musicais na Associação de Harmonia. “A Composição leva, portanto, a uma concepção cambaleante de história, uma história que é aberta, instável... na qual a música efetua uma reapropriação de tempo e espaço”. “Também é a única utopia que não é uma máscara para o pessimismo”. O desaparecimento da audiência já necessita e prevê um palco “além” da Composição e da Poética Utópica – um palco do desaparecimento do músico? Não de acordo com Fourier. A Paixão por música não é precisamente a Paixão por, digamos, horticultura – apesar de que muitos Harmônicos serão mestres em ambas. Mas obviamente a Ópera ainda terá suas “estrelas”, mesmo se esses eruditos também forem peritos em dezenas de outras artes e práticas. Além disso, graças à libertação de todas as Paixões para seguirem suas Atrações, o “talento” aumentará em graus estupendos, tal que (por exemplo) “o globo terá trinta e sete milhões de poetas iguais a Homero” (Théorie des quatre mouvements et des destinées générales, "Teoria dos quatro movimentos e dos destinos gerais", em tradução livre) – e milhões de “estrelas” não descobertas.

Com efeito, no entanto, todo Harmônico é uma estrela em algo; e a ópera é apenas um possível combinação ou constelação. Assim, “o músico” pode desaparecer como um profissional, como uma categoria ou fetiche separado, como um foco de separação – somente para reaparecer com um tipo de função xamânica. Mesmo Fourier, que esperava que todos fossem mestres em, ao menos, doze diferentes ofícios, entendia que a utopia deve fazer locais para monomaníacos e especialistas no êxtase. Longe de desaparecer, somente agora os “menestréis” (e os “bardos”) podem fazer seu reaparecimento – como aspectos de uma “personalidade” integral e criativa do social. Porque nada pode ser comodificado, o músico está finalmente livre para “tocar”, e ser recompensado por tocar. Sob tais condições, o que seria da baixa espiritualidade do músico? A utopia é uma unidade, não uma uniformidade – e contém antinomias. O desejo utópico nunca tem um fim, mesmo – ou especialmente! – na utopia. E a música será sempre o último véu (de 70 mil véus de luz e trevas) que nos separa da “classe de intimidade”. A música nunca perderá sua sagrada profanidade; ela sempre conterá o traço da violência do sacrifício. Como então o “blues” pôde chegar a um fim – aquele afago sonoro melancólico orgônio índigo utópica, aquele pouco-muito, aquela diferença? A baixa casta do músico será, é claro, dissolvida na utopia – mas, de algum modo, certa intocabilidade permancerá, certo janotismo, um orgulho. A tragédia que esse Blues Harmônico nunca lamentará é a perda do blues de si mesmo, sua apropriação, sua alienação, sua traição, sua possessão demoníaca. Esse é o “mínimo utópico”, a garantia do dinheiro de volta, o sine qua non – a música é nossa. Nesse ponto, ocorre uma grande síntese dialética– a ordem intacta e a ordem quebrada são ambas “ultrapassadas” no momento da emergência de uma coisa nova, o blues utópico low-down[12], a Ópera Passional, a Composição, a música da utopia sonhando sobre si mesma e o despertando para si. No próprio céu os gaitistas estarão bêbedos e desorientados. “E os Anjos batem nas portas da taverna”(Hafez.).

Agradecimentos:

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O tardio George Huddleston, organista, Igreja Cristo, New Brunswick, Nova Jérsei

Sasha Zill, saxofone soprano "Ouvindo com Watson" Richard Watson (sem parentesco), viola Jean During, tar, sítar Dariush Safvat, Sociedade pela Preservação e Propagação da Música Clássica

Persa O tardio Ustad Ilahi da Ahl-i Haqq "Barq-i sabz" (Rádio Teerã) Os Irmãos Dagar, dhrupad Pandit Pran Nath, vocalista James Irsay, piano Tony Piccolo, piano Martin Schwartz, colecionador de rebéticos Bill Laswell, baixos Claddagh Records, Dublin Steven Taylor, guitarra

Notas1. ↑ N. do T.: Georges Dumézil, filólogo francês do século XX.2. ↑ N. do T.: O sufismo é a corrente mais mística do islamismo.3. ↑ N. do T.: Construção para reuniões de irmandades sufi.4. ↑ N. do T.: Georges Bataille, filósofo francês do século XX.5. ↑ N. do T.: Mia Tansen, que viveu no século XVI, compositor de música clássica

hindu.6. ↑ N. do T.: O Império Mughal existiu na região atualmente dominada por Índia,

Paquistão e Bangladesh.7. ↑ N. do T.: Zeami Motokiyo, que viveu da segunda metade do século XIV até

metade do século XV.8. ↑ N. do T.: Conceito originário da região da Alemanha. São locais a céu aberto

em que se servem cerveja, outras bebidas e comida.9. ↑ N. do T.: Dança folclórica em que o pé do dançarino também serve como

instrumento.10. ↑ N. do T.: Mikhail Mikhailovich Bakhtin, filósofo russo do século XX.11. ↑ N. do T.: Aqui, o termo original é MUZAK, que pode tanto referir-se à

corporação estado-unidense Muzak Holding, que vende música ambiente (de elevador), como pode ser usado para referir-se propriamente à música de elevador.

12. ↑ N. do T.: O sentimento (a alma) melancólico dos primeiros blues. Alguns blues inclusive têm esse nome. Essa característica pode ser observada principalmente nos blueseiros do delta do rio Mississípi, nos EUA, nas décadas de 1920 e 1930.Tradução: oceano