abel kouvouama - pensar a política na África

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Pensar a Política no continente Africano. E dessa maneira compreendê-lo.

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    PENSAR A POLTICA NA FRICA

    Abel Kouvouama

    KOUVOUAMA, Abel. Pensar a poltica na frica. Traduo para uso didtico de KOUVOUAMA, Abel. Penser la politique en Afrique. Politique africaine, n 77, mars-2000, p. 5-15, por Thiago Ferrare Pinto.

    Para introduzir o tema da filosofia e poltica em frica, deliberadamente escolheremos por

    pensar filosoficamente a poltica (e no o poltico) na frica. Alguns vero isso como uma

    ingerncia no territrio tradicional da sociologia poltica ou da cincia poltica. No entanto, duas

    razes principais justificam tal escolha: a primeira diz respeito ao fato de que sempre se quis,

    desde Plato e Aristteles, confinar a reflexo filosfica sobre o poltico seja sua essncia, seja

    s suas caractersticas fundamentais, distinguindo o aspecto normativo do aspecto positivo1.

    Assim, a reflexo de Plato sobre a cidade ideal no corruptvel em A Repblica conduziu

    compreenso da filosofia poltica como uma cincia arquitetnica: para que uma cidade seja

    justa, indispensvel que ela seja dirigida pelo filsofo ou pelo rei que ser iniciado na cincia

    filosfica. A cincia filosfica e a cincia poltica se definem da mesma maneira, como a a arte

    de dirigir a cidade de acordo com a justia. Contra esta concepo do filsofo enredado no

    saber terico e versado na contemplao das essncias eternas do mundo inteligvel, o Nos,

    Aristteles adota uma posio intermediria. Ao saber terico reservado a uma quantidade

    nfima de pessoas consideradas sbias e deslocadas do mundo da ao, ele ope o saber

    prtico prprio aos indivduos que vivem e agem com prudncia na cidade: o homem um

    animal poltico feito para viver em sociedade. Eis onde a poltica como gnero de saber

    racional se encontra vinculada s contingncias histricas prprias a cada sociedade, ou seja,

    poltica em ao. Vista por esse ngulo, a filosofia poltica contempornea na frica deve

    igualmente levar em conta as vises prticas do poltico, compreendendo-o de uma s vez como

    espao de possibilidades e como espao de experimentao de condutas humanas individuais e

    coletivos.

    A segunda razo tem a ver com o contexto social, histrico e ideolgico no qual a filosofia moral

    e poltica se desenvolveu na frica. A crtica poltica e ideolgica feita pela negritude (desde

    1935) sucessivamente escravido, colonizao e depois ao apartheid e ao racismo, o pan-

    africanismo e as correntes africanas do marxismo (autores dos anos 50), orientaram a reflexo

    1 Ler especialmente J. Freund, LEssense du politique, Paris, Sirey, 1965.

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    para a reabilitao do homem negro, contra a histria e a etnologia coloniais. O debate filosfico

    sobre a poltica iniciado no campo da filosofia da histria para ento questionar o fato poltico

    em suas determinaes histricas concretas e, depois, as categorias e conceitos utilizados para

    pensar a histria africana. Ento, nos parece importante no intuito de melhor introduzir o

    contedo das diferentes contribuies esta temtica ter em mente as fortes implicaes

    polticas e ideolgicas do debate filosfico contemporneo na frica e da posio social

    daqueles que so os filsofos-funcionrios, chamados a refletir filosoficamente sobre a

    poltica africana a um s tempo como pedagogos e como cidados que fazem escolhas

    estratgicas e de vida.

    Deve-se ter em conta em nossas consideraes epistemolgicas e pedaggicas, partilhadas por

    muitos filsofos na frica2, que fizemos uma escolha de mtodo que consiste em pensar

    filosoficamente a poltica (no sentido terico e prtico do termo) na frica para alm da lgica

    institucional isolada, no intuito de analisar, segundo o sentido que lhe dado pela filsofa

    Aminata Diaw, as lgicas subterrneas que agem e fazem agir os atores sociais e polticos3; e

    isto no apenas para compreender as trajetrias cambiantes e incertas das configuraes polticas

    em construo4, mas igualmente para apreciar em seu justo valor as experincias africanas de

    produo endgena da modernidade poltica. Pensar a poltica na frica, portanto, significa

    investigar a partir de que fundao os produtores do poltico trabalham a redefinio de um

    querer-viver junto. Recapitulao e idealizao do passado, reconquista de uma identidade negra

    ou africana perdida devido aos truques da histria, reivindicao da universalidade da

    democracia: estas so as principais diretrizes de uma interrogao filosfica sobre a poltica,

    interrogao apreendida em suas determinaes histricas, ou seja, no horizonte de uma prtica

    poltica. Tal interrogao se efetua num contexto geral de efervescncia de ideias, de

    questionamento sobre o sentido do liame social, sobre o sentido da ligao entre o indivduo e

    a comunidade, ao mesmo tempo em que se desencadeia um entusiasmo pela filosofia e pela

    tica, em particular uma renovao da filosofia poltica no mundo ocidental. Por diversas razes,

    esse entusiasmo e essa renovao so, sob o ponto de vista terico, pouco visveis na escala do

    2 A reflexo pedaggica sobre a filosofia na frica deu lugar, nos ltimos quinze anos, a muitos trabalhos. Na ocasio dos colquios interafricanos de Dakar em 1984 (La philosophie et son enseignement. Philosophie et littrature, publicado em Revue sngalaise de philosophie, n 11, 1987) e de Yamoussoukro em 1988 (La philosophie et son enseignement. Philosophie et science), o Conselho Interafricano de Filosofia (CIAP) lanou um programa filosfico em mais de vinte e cinco Estados africanos, em sua maioria francfonos. A redao do manual interafricano de filosofia pelas turmas finais est igualmente em curso. 3 A. Diaw, Dmocratisation et logiques identitaires em acte, linvention de la politique en Afrique, srie monografia 2/92 do Codesria, Dakar, 1994, p. 2. 4 M. C. Diop e M. Diouf, Les Figures du politique en Afrique. Des pouvoirs hrits aux pouvoirs lus, col. Biblioteca do Codesria, Dakar/Paris, Codesria/Karthala, 1999, p. 8.

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    continente africano; portanto, as novas dinmicas internas da sociedade civil, das mulheres, dos

    jovens e as mutaes polticas (reivindicaes democrticas, conferncias nacionais, guerras

    civis, generalizao da violncia, golpes de Estado militares, golpes de Estado civis) que

    surgiram na histria do continente nos ltimos dez anos interrogam a filosofia o trabalho do

    conceito e a incitam proposta de outras categorias de anlise que sejam apropriadas. Para

    atingir o fim desejado, convm inicialmente precisar o horizonte de nosso discurso no campo

    da filosofia africana.

    Pode-se falar de uma filosofia africana?

    Durante longo tempo, o debate filosfico na frica esteve polarizado em torno da questo sobre

    a existncia ou no de uma filosofia africana: existe uma filosofia africana? Se sim, ela

    sistemtica? Questo suprflua e metafsica, disseram alguns; questo ideolgica e identitria,

    disseram outros. O debate se concentrou tambm no estatuto terico da filosofia africana em

    face de outras formas de pensamento, particularmente o pensamento etnolgico. A redao

    pelo missionrio belga Placide Tempels em 1945 ou seja, em pleno perodo de decomposio

    da ideologia fascista de uma obra que em 1948 veio luz sob o ttulo de A Filosofia Banta

    inaugurar no terreno da filosofia o debate contemporneo relativo identidade negra, dando

    seguimento aos debates polticos sobre a negritude desencadeados dez anos antes por escritores

    africanos, afro-americanos e antilhanos. Tempels emprega um mtodo aparentemente simples.

    Ele consiste em postular, pesquisar e encontrar, como ltimo fundamento de um

    comportamento humano lgico e universal, um pensamento humano lgico. Nenhum

    comportamento vital, escreve o autor, sem um sentido da vida; nenhuma vontade de vida sem

    conceito vital; nenhuma prtica redentora constante sem filosofia da salvao. Nos

    surpreendemos, portanto, ao encontrar entre os Bantos e mais geralmente entre todos os

    primitivos, como fundamento de suas concepes intelectuais do universo, quaisquer princpios

    de base, e mesmo um sistema filosfico relativamente simples e primitivo, derivados de uma

    ontologia logicamente coerente. [...] Se os primitivos tm uma concepo particular do ser e do

    universo, essa ontologia mesma dar um carter especial, uma colorao local, s suas crenas e

    prticas religiosas, aos seus hbitos morais, ao seu direito, s suas instituies e costumes, s

    suas reaes psicolgicas e, de forma geral, a todo seu comportamento. especialmente

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    verdadeiro, em minha humilde opinio, que os Bantos, como todos os primitivos, vivem, mais

    do que ns, de ideias e segundo suas ideias5.

    No esprito de Tempels, a filosofia dos Bantos estando encerrada em sua metafsica, o recurso

    maiutica ajuda a descobrir seu pensamento e a revelar o sistema ontolgico no qual, segundo

    ele, a fora, a vida potente e a energia vital ocupam um lugar central. No se pode esperar do negro

    primitivo, escreve o autor, que ele possa nos fazer uma exposio sistemtica de seu sistema

    ontolgico. Contudo, essa ontologia existe: ela penetra e informa todo o pensamento do

    primitivo, ela domina e orienta todo seu comportamento. Pelos mtodos de anlise e sntese de

    nossas disciplinas intelectuais, ns podemos ento prestar aos primitivos o servio de

    pesquisar, classificar e sistematizar os elementos de seu sistema ontolgico6. A generalizao do estudo de Tempels sobre a comunidade Luba a todos os Bantos de certo modo abusiva e

    suscitou diversas crticas. Notadamente, o filsofo e telogo Alexis Kagam refutou, nas linhas

    de Mulago, a assimilao de ser fora vital, e props uma outra anlise das categorias da lngua

    kinyarwanda, e depois das lnguas bantas, para reconstituir a ontologia banta e de Ruanda7. A

    releitura dos escritos de Tempels e de Kagam (cujos trabalhos se inscrevem tambm na

    corrente chamada de etnofilosofia) feita por Souleymane Bachir Diagne renova o debate sobre

    a filosofia lingustica, ou seja, sobre a importncia da linguagem na determinao das

    categorias lgicas. O exerccio no s retrospectivo. Ao mesmo tempo em que alguns se pem

    a questo sobre o carter exgeno dos diferentes conceitos centrais da modernidade poltica

    e sobre a necessidade de lhes traduzir em lnguas vernaculares para facilitar a domesticao da

    democracia importada8, ele lana luz sobre as interaes complexas entre as estruturas da

    linguagem e as evolues dos imaginrios polticos.

    As crticas mais vivas a tal corrente sero feitas por Paulin Hountondji, Marcien Towa9 e Fabien

    Eboussi Boulaga10. Se, como reconhece P. Hountondji, A Filosofia Banta abriu caminho para

    todas as anlises ulteriores na reconstruo de uma viso de mundo especfica, supostamente

    5 P. Tempels, La Philosophie bantoue, Paris, Prsence africaine, 1948, p. 14-18. 6 Uma melhor compreenso do domnio do pensamento banto, acrescentou, de todo modo indispensvel para todos aqueles que so chamados a viver entre os nativos. Esto concernidos, ento, todos os colonizadores, mas mais particularmente os que so chamados a dirigir e julgar os negros, todos os que so sensveis a uma evoluo favorvel do direito da comunidade, enfim, todos aqueles que pretendem civilizar, educar e elevar os Bantus. Mas se tal exigncia diz respeito a todos os colonizadores de boa vontade, ela se enderea mais particularmente aos missionrios. P. Tempels, La Philosophie bantoue, op. cit., p. 14. 7 A. Kagam, La Philosophie bantu-rwandaise de ltre, Bruxelles, ARSC, 1956; La Philosophie bantu compare, Paris, Prsence africaine, 1976. 8 Ver, por exemplo, C. H. Kane, Lexique des lection franais-pulaar, e C. Mbodj (org.), Vocabulaire des lections wolof-franais, Dakar, Centro de lingustica aplicada de Dakar, 1997. 9 M. Towa, Essai sur la problmatique philosophique dans lAfrique actuelle, Yaound, Cl, 1971. 10 F. Eboussi Boulaga, La Crise du Muntu. Authenticit africaine et philosophie, Paris, Prsence africaine, 1977.

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    comum a todos os africanos, subtrada da histria e da alternncia e, alm disso, filosfica, ela

    apresenta contudo dois grandes inconvenientes: de uma parte, sobre a questo de sua destinao

    primeira, ela no se dirige aos africanos, mas aos europeus, notadamente aos colonizadores e

    missionrios. O negro continua, assim, a ser compreendido como o contrrio de um

    interlocutor: ele aquele de que falamos, um rosto sem voz que tentamos decifrar, objeto a

    definir e no sujeito de um discurso possvel11. O outro inconveniente reside na pretenso de

    Tempels de definir uma filosofia coletiva dos africanos a partir do caractere etnolgico, o que

    Hountondji chamou de etnofilosofia. necessrio, diz este ltimo autor, expulsar da

    etnofilosofia a estratgia de autodissimulao e de autoanulao por meio da qual ela alegou ser

    nada ou se escondeu habilmente por detrs do sistema de pensamento, real ou imaginrio, que

    ela pretendia reconstituir12. Se livrando do conceito vulgar de filosofia herdado da etnologia,

    P. Hountondji mostrou que a filosofia africana deve aprender a fazer-se como uma reflexo

    metdica com as mesmas vises universais que so aquelas pretendidas por qualquer filosofia

    no mundo13.

    A questo do sujeito e da modernidade poltica

    Assim, antes da questo a respeito da filosofia africana, se coloca aquela da existncia do sujeito

    como condio do filosofar; um sujeito racional definido por sua subjetividade em face de outras

    subjetividades, todas livres no exerccio da reflexo filosfica.

    Mas o que poderia ser um debate sereno sobre o sentido do filosofar na frica sob suas

    designaes mltiplas (filosofia africana14, filosofia na frica, filosofia negro-africana15); debate

    de resto enriquecedor no plano epistemolgico16 para a filosofia do continente rapidamente

    se torna uma questo ao mesmo tempo cientfica e poltica. A atividade filosfica subordinou a

    reflexo filosfica sobre a poltica reconquista do ser africano em sua trplice dimenso:

    11 P. Hountondji, Sur la philosophie africaine, Paris, Maspero, 1977, p. 14. 12 P. Hountondji, Combats pour le sens. Un itinraire africain, Cotonou, Les ditions du Flamboyant, 1997, p. 133 13 Ibidem, p. 71-72. 14 Ver A. J. Smet, Philosophie africaine, 2 t., Kinshasa, PUZ, 1975; K. Gyekye, An Essay on African Philosophical Thought, the Akan Conceptual Scheme, Londres, Cambridge University Press, 19887; T. Obenga, La Philosophie africaine de la priode pharaonique, Paris, LHarmattan, 1980. 15 J. G. Bidima, La Philosophie negro-africaine, col. Que sais-je?, Paris, PUF, 1995. 16 Ver especialmente: M. Towa, Essai sur la problmatique philosophique dans lfrique actuelle, Yaound, Cl, 1971; F. Eboussi Boulaga, La Crise du Muntu..., op. cit.; Y. Guiss Mbargane, Philosophie, culture et devenir social en Afrique, Dakar, NEA, 1980; K. Wiredu, Philosophy and African Culture, Londres, Cambridge University, 1980; A. Ndaw, La Pense africaine, Dakar, NEA, 1983; A. A. Dieng, Contribution ltude des problmes philosophiques en Afrique noire, Paris, Nubia, 1983; J. M. Elungu, Lveil philosophique africain, Paris, LHarmattan, 1984; V. Y. Mudimbe, The invention of Africa, Bloomingtion, Indiana University Press, 1988; O. Oladipo, The Idea of African Philosophy, Ibadan, Motecular Publication, 1992; A. Shutte, Philosophy for Africa, University of Cape-Town Press, 1993.

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    poltica, econmica e cultural. Sem dvida, o contexto lhe exigiu isso. Mas, ao mesmo tempo,

    contra todo pensamento pouco crtico que valoriza de maneira obsessiva o passado africano, a

    renovao do debate filosfico na frica implica tambm como mostra Achille Mbemb em

    sua contribuio uma ruptura com os discursos de isolamento, o que permite que se conceba

    outra maneira de se questionar filosoficamente a modernidade africana em suas diferentes

    figuras polticas, econmicas e culturais. Essa questo do sujeito na filosofia abriu espao para

    interrogaes polticas sobre as relaes entre o indivduo e a comunidade, sobre a identidade

    africana, sobre a questo do desenvolvimento e sobre a natureza e historicidade dos Estados

    africanos em suma, abriu espao para as reflexes sobre a desalienao poltica, econmica,

    social e cultural do africano. A viso idlica da histria das sociedades africanas antigas apresenta

    as referidas questes sob o paradigma do comunitarismo, compreendido em suas diferentes

    interpretaes17.

    Para analisar as dinmicas sociais em curso na frica, conveniente adotar outra abordagem.

    Para trazer luz suas regularidades comuns e sua racionalidade poltica, indispensvel partir

    da configurao terica que apreende filosoficamente a poltica como lugar de efetividade da

    razo prtica; no sem antes compreender o processo de produo africana da modernidade

    poltica sob o signo da inovao e da emancipao do sujeito africano, destacando a estreita

    articulao do princpio individual e do princpio comunitrio. Em sua relao com a

    comunidade, o indivduo desenvolve estratgias de mobilizao de todos os recursos materiais

    e simblicos disponveis no espao privado comunitrio, notadamente para adquirir as

    vantagens necessrias a um melhor posicionamento social no espao pblico poltico.

    observvel na maior parte das cidades africanas que o processo de insero do indivduo no

    plano profissional, social e jurdico da comunidade poltica provoca um progressivo

    desprendimento em relao ao enlace comunitrio. Dito de outra forma, a modernidade poltica

    certamente responsvel por uma grande afirmao da individualidade e da autonomia do

    sujeito enquanto ser dotado de razo. Mas constatamos simultaneamente, da parte dos

    indivduos, uma utilizao estratgica dos aparatos comunitrios em funo dos interesses

    pessoais e dos fins visados18.

    Os projetos de inveno e/ou de reinveno democrtica na frica subsaariana, pela imbricao

    do poltico e do religioso produzida nas Conferncias Nacionais, deram voz, atravs de

    racionalidades contextualizadas, a uma das formas de produo endgena da modernidade

    17 Abordado, por exemplo, sob o ngulo do socialismo cientfico por N. NKrumah, e sob o ngulo do socialismo africano por L. S. Senghor e J. Nyerere. 18 A esse respeito, ver A. Marie et al, LAfrique des individus, Paris, Karthala, 1997.

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    poltica. Mas o que pode significar no espao pblico poltico da frica contempornea essa

    interveno do religioso que advm, conforme as teorias da secularizao e da laicizao, do

    espao privado19? preciso formular a hiptese de que a inveno da modernidade poltica,

    longe de seguir a inclinao da secularizao, assume com mais fora a inclinao da religio,

    medida que os atores exprimem os sentidos dentro da articulao das instncias poltica e

    religiosa20. Face crise de confiana entre governantes e governados, a busca por um ambiente

    propcio discusso sob a liderana de um prelado apareceu como uma tentativa de pacificao

    do espao do poltico21. Contudo, o projeto de moralizao da vida poltica, isto , a irrupo

    da tica na ao poltica, de modo que os muitos rituais polticos e religiosos se realizem aqui e

    l, nem sempre permitiu que se alcanasse a verdade procurada, nem que se pacificasse a longo

    prazo o espao do poltico.

    O acesso verdade poltica assim submetido s combinaes de normas e valores polticos

    relativos busca da justia, fundao do Estado de direito, ao respeito das liberdades e da

    expresso individual democrtica. Essas normas e esses valores polticos abriram o caminho da

    verdade na poltica para a ciso no campo da conflitualidade democrtica, mas os jogos de

    poderes, as artimanhas e as interaes de foras fizeram surgir o projeto de democratizao ao

    lado da violncia e da guerra civil. As interrogaes sobre a democracia, o espao pblico, a

    legitimidade, a boa governana e os direitos do homem so, contudo, impostas como as

    questes centrais do debate filosfico na frica22. Este dossi especial de Poltica Africana o

    demonstra sua maneira.

    Produes de sentidos e produes de saberes

    As contribuies reunidas aqui se distinguem ao mesmo tempo por sua diversidade e por sua

    unidade. Diversidade pela sua escrita filosfica e pela maneira de abordar os problemas do

    19 Podemos ler com proveito anlises interessantes e contraditrias em: M. A. Gll, Religion, culture et politique en Afrique noire, Paris, Economica/Prsence africaine, 1981; P. Legendre, Le Dsir politique de Dieu. tude sur les montages de ltat e du Driot. Leons VII, Paris, Fayard, 1988; A. Mbemb, Afriques indociles. Christianisme, pouvoir et tat en socit postcoloniale, Paris, Karthala, 1988; J. M. Donegani, Religion et politique: de la sparation des instances lunit du politique, Cahiers franais, n 273, Religions et Socit, La Documentation franaise, out. dez. 1995, p. 32-39; M. Gauchet, La Religion dans la dmocratie, parcours de la lacit, Paris, Gallimard, 1998. 20 Ler: J. F. Bayart (org.), Religion et modernit politique en Afrique noire. Dieu pour tous et chacun pour soi, Paris, Karthala, 1993; R. Bangas, La Dmocratie ps de camlon, transition et consolidation dmocratique au Bnin, tese de doutorado em Cincias Polticas, Paris, IEP, 1998, p. 473-493; E. Dorier-Apprill, A. Kouvouama, C. Apprill e N. Martin-Granel, Vivre Brazzaville, modernit et crise au quotidien, Paris, Karthala, 1998. 21 A. Kouvouama, Confrence nationale et modernit religieuse au Congo, Questions sensibles, Paris, PUF, 1998, p. 387-412. 22 Ver as contribuies dos filsofos africanos francfonos, anglfonos e lusfonos em: R. Pol-Droit (org.), Philosophie et dmocratie en Afrique, Yamoussoukro, Unesco, 1999.

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    poltico, da cidadania, dos poderes e dos saberes africanos e africanistas (J. Copans, S. Bachir

    Diagne, A. Mbemb); os problemas da construo da democracia em sua ligao com o espao

    privado e com as ideologias polticas (J.-G. Bidima, P. Nzinzi, A. Mbemb). Unidade pela

    inspirao das abordagens filosficas que se inscrevem todas no horizonte da universalidade da

    reflexo filosfica e da afirmao do reino da liberdade no ato subjetivo de filosofar.

    assim que Pierre Nzinzi se insurge contra o neoplatonismo poltico em curso nas sociedades

    africanas. Elas se aproximam das formas institucionais da democracia tais quais so formuladas

    desde a Grcia Antiga e lhes retiram o contedo. Esse vazio, essa desubstancializao da

    democracia tem um fundamento cultural localizvel no legado platnico anti-humanista,

    legado que se manifesta na gesto da democracia pelos poderes da frica e do Ocidente. No

    entanto, na direo do ideologismo e do populismo, a maior parte dos filsofos africanos

    acreditou por muito tempo que a filosofia poderia servir de fundamento imediato para a poltica.

    Decerto, as experincias histricas do trfico, da colonizao e do apartheid constituram um

    ponto focal da reflexo africana sobre o fenmeno da infelicidade, da contingncia e da finitude.

    Mas elas no serviram, como mostraram aqui as contribuies de Achille Mbemb e Jean

    Copans, de ponto de partida para uma interpretao filosfica autnoma.

    verdade que o contexto de ecloso da reflexo filosfica africana foi marcado pela urgncia

    de situaes e problemas23. A fraqueza institucional e financeira e a ausncia de autonomia dos

    pesquisadores em face dos poderes, somadas s restries do ambiente poltico internacional,

    influenciaram a produo filosfica. Esta foi por vezes confundida com as cincias sociais, elas

    mesmas reduzidas a uma ideologia de combate, como sustenta aqui J. Copans24. No intuito de

    fundar o direito a um olhar anticolonial e independente para as culturas negras, as cincias sociais

    africanas no dispuseram de um campo filosfico crtico que pudesse fornecer os argumentos

    e permitir o recuo necessrio a um distanciamento epistemolgico. Por seu lado, a filosofia

    africana no pde obter seu lugar em relao s cincias sociais tanto por causa de seus

    compromissos autnticos e negros quanto por seu mimetismo com as referncias ocidentais.

    23 A este propsito, P. Hountondji revela na prtica africana quatro falhas essenciais que a impedem de se pr verdadeiramente a servio dos povos africanos: a dependncia financeira em face do estrangeiro, a dependncia institucional em face de laboratrios e de centros de pesquisa do Norte, a primazia de trocas verticais no sentido Sul/Norte sobre as trocas horizontais no sentido Sul/Sul e, devido extraviao de publicaes cientficas e dependncia institucional, a subordinao intelectual a questes e expectativas do pblico acadmico do Ocidente. Ver P. Hountondji, Combat pour le sens, op. cit., p. 237. 24 Ler igualmente sobre esse tema as contribuies de C. Manckassa, L. Dimomfu, K. Nyanga-Nzo, e o texto da UNESCO em La Revue africaine des sciences sociales et humaines, n 1, jul. 1990, Kinshasa, CERDAS, 1990.

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    Frequentemente evocamos a crise de legitimao do discurso dos intelectuais africanos25. Sob o

    reino do partido nico, denunciaram com vigor os reveses e as encruzilhadas de um sistema poltico monoltico. Depois dos anos 90, a maior parte deles participou da gesto da coisa

    pblica a nvel governamental e nas coletividades locais. Os filsofos africanos vivem o

    distanciamento e o engajamento polticos segundo seus prprios interesses, sua tica de

    comportamento e sua busca da verdade. Entre a lngua de madeira dos partidos nicos e a

    palavra poltica das Conferncias Nacionais, a gesto do poltico na frica despeja na

    biblioteca da representao poltica sua parte de interrogao sobre as relaes entre

    civilidade, esprito de Corte e espao pblico; as mesmas interrogaes que Jean-Godefroy

    Bidima tenta abordar aqui ao colocar as seguintes questes: quais so as relaes entre o esprito

    de Corte e a constituio do espao pblico? O esprito de Corte se acomoda ou no a uma

    postura tica? Como preservar sua subjetividade e sua individualidade no processo de

    tratamento de tal esprito? Conceber o viver-junto no espao pblico como uma exigncia

    democrtica passa, portanto, pela autoconstituio da poltica em um espao autnomo aberto

    ao Outro e livre discusso pblica, como o incitam as reflexes de Achille Mbemb, Pierre

    Nzinzi e Jean Godefroy Bidima.

    25 Ver especialmente o dossi sobre Les intellectuels africains em Politique africaine, n 51, out. 1993.