a_bianchi_23 revolução passiva o preterito do futuro

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  • Revoluo passiva: o pretrito do futuro

    Alvaro Bianchi*

    A obra de Antonio Gramsci j parece ter sido to discutida que dispensaria um

    novo estudo sobre o tema. Desde a publicao, no imediato ps-guerra, dos cadernos que

    escreveu na priso a literatura sobre o tema cresceu de modo exponencial. Embora

    extremamente diversificada essa literatura foi, entretanto, em sua maioria marcada pela

    interpretao do pensamento de Antonio Gramsci difundida pelo Partido Comunista

    Italiano nos primeiros anos do ps-guerra. J no prefcio de Il materialismo storico e la

    filosofia di Benedetto Croce, o primeiro dos volumes publicados com os escritos do

    crcere, reforava o sentido dessa reconstruo, definindo os escritos ali reunidos como

    o coroamento de toda a pesquisa conduzida por Gramsci nos anos de priso, a

    justificativa terica, filosfica da impostao dada ao problema dos intelectuais e da

    cultura.1 Desse modo Gramsci era justificado para o pblico externo como digno

    representante da cultura italiana, no sentido estrito da expresso.

    Era necessria, entretanto, uma justificao perante o movimento comunista

    internacional. Assim, de modo contraditrio, no mesmo Prefcio, citado era possvel ler:

    Esses escritos de Gramsci no poderiam ser avaliados e compreendidos de modo

    adequado, se no tivessem sido adquiridos os progressos realizados pela concepo

    marxista nas trs primeiras dcadas deste sculo, devido atividade terica e prtica de

    Lenin e Stalin.2 A afirmao repete o grosseiro retrato construdo por Palmiro Togliatti

    no artigo Il capo della classe operaia italiana, publicado em Lo Stato operaio em 1937,

    na qual Gramsci aparece (e perece) portando a bandeira invencvel de Marx-Engels-

    Lenin-Stalin.3 Para o secretrio-geral do PCI, Gramsci no apenas seria um portador

    desse estandarte como um discpulo terico de Stalin: Gramsci desenvolveu, de 1924 a

    1926 uma atividade excepcional. So deste perodo os escritos de Gramsci dedicados

    * Professor do Departamento de Cincia Poltica da Unicamp e co-editor da revista marxista Outubro.. 1 Antonio Gramsci, Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce. Turim: Einaudi, 1984, p. XVI. 2 Idem. 3 Palmiro Togliatti, Antonio Gramsci. Roma: Riuniti, 1972, p. 36.

  • 2

    principalmente a elucidar as questes tericas da natureza do partido, de sua estratgia,

    de sua terica e de sua organizao, nos quais se sente mais forte a influncia profunda

    exercida sobre ele pela obra de Stalin.4

    No contexto da difuso da obra da Gramsci no imediato ps-guerra, essa imagem

    permitia transformar Gramsci em um antecessor da via italiana para o comunismo.

    Assim, Togliatti, no 20 aniversrio da morte de Gramsci pronuncia em discurso no

    Comit Central que o PCI soube compreender e seguir o ensinamento de seu fundador,

    recolheu sua herana e nela tem tido f. O contexto do discurso de grande importncia,

    pois apenas um ano antes, em seu VIII Congresso, o PCI havia formulado politicamente a

    especificidade dessa via e afirmado uma estratgia de avano democrtico em direo ao

    socialismo. A herana gramsciana se expressaria, assim, na nova poltica reformista do

    PCI, a nossa estratgia [do PCI] e nossa ttica, na luta pelo desenvolvimento da

    democracia italiana em direo ao socialismo.5

    Foi a partir dessa leitura que alguns interpretes apropriaram-se do conceito

    gramsciano de revoluo passiva, atribuindo-lhe um significado programtico. A idia,

    que esse conceito pretendia expressar na obra de Gramsci, de uma transformao

    molecular (gradual e reformista) da sociedade, converte-se, assim, para tais interpretes,

    em estratgia poltica das classes subalternas, que deveria apropriar-se dessa forma do

    movimento poltico da burguesia com o intuito de subvert-la, invert-la ou modul-la.6

    4 Idem, p. 30. 5 Idem, p. 131. Para Carlos Nelson Coutinho a particularidade do pensamento poltico de Gramsci residiria em uma concepo da transformao social na qual a idia de um choque frontal com o Estado cederia lugar a a idia de uma longa marcha atravs das instituies da sociedade civil. Notvel na reconstruo de Coutinho o fato de que no captulo que dedica estratgia socialista em Gramsci em um livro dedicado ao pensamento deste, comece com o marxista sardo, mas rapidamente passe a Palmiro Togliatti, Giorgio Amendola, Pietro Ingrao e outros dirigentes do PCI. Cf. Carlos Nelson Coutinho, Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento poltico. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999, p. 157-164. 6 Para a idia da subverso da revoluo passiva, cf. Christine Buci-Glucksmann. Sobre os problemas polticos da transio: classe operria e revoluo passiva. In: Instituto Gramsci. Poltica e histria em Gramsci. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1978. Alberto Aggio defende a tese da inverso em Inverter a revoluo passiva: uma poltica democrtica para a reforma do Estado. Folha de So Paulo, So Paulo, 10 abr. 1999. A noo de modulao encontra-se em Luiz Werneck Vianna, A revoluo passiva. Iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Iuperj/Revan, 1997. Carlos Nelson Coutinho, entretanto, tem se manifestado contrrio a essa positivao da revoluo passiva. Cf. Ver, tambm, Carlos Nelson Coutinho. Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento poltico. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999, p. 220-223.

  • 3

    A estratgia gramsciana caminha, entretanto, no sentido oposto dessa positivao. uma

    estratgia de anti-revoluo passiva. esta a tese apresentada neste artigo.

    A histria como poltica: de Marx a Gramsci

    A obra de Gramsci tem uma dimenso histria e historiogrfica que precisa ser

    destacada para uma adequada compreenso de seu pensamento. Tal dimenso se revela

    de modo intenso em uma tenaz tentativa de fuso entre aqueles materiais da obra de Marx

    que resultaram da reflexo metodolgica (como, por exemplo, o Prefcio de 1859 e

    Misria da filosofia) e os que provm da anlise histrica e poltica concreta

    (principalmente O 18 brumrio de Lus Bonaparte). A operao realizada por Gramsci

    com o objetivo de afirmar uma leitura no economicista dos textos metodolgicos de

    Marx levada a cabo atravs da mediao de seus textos histricos. Repetidas vezes, ao

    formular sua crtica filosofia de Benedetto Croce, Gramsci afirmou a necessidade de

    avaliar seu pensamento no pelo que pretende ser e sim pelo que realmente e se

    manifesta nas obras histricas concretas.7

    A frmula repete uma afirmao realizada anteriormente, num contexto muito

    mais esclarecedor para os problemas aqui tratados. Logo depois de criticar a pretenso de

    derivar toda flutuao poltica e ideolgica como uma expresso imediata da estrutura,

    Gramsci recomenda combat-la com as obras polticas e histricas concretas. E ressalta:

    para isso so importantes, especialmente, o 18 Brumrio e os escritos sobre a Questo

    oriental, mas tambm outros (Revoluo e contra-revoluo na Alemanha,8 A guerra

    civil na Frana e menores).9 Gramsci categrico ao afirmar que uma anlise dessas

    7 Antonio Gramsci, Quaderni del carcere: edizione critica dellIstituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana. Turim: Giulio Einaudi, 1977, p. 1210 e 1235. Muito embora tenhamos utilizado a edio crtica organizada por Valentino Gerratana dos Quaderni del carcere, recorremos com freqncia, para a traduo das passagens, aos volumes j publicados da edio brasileira organizada por Carlos Nelson Coutinho, Luiz Srgio Henriques e Marco Aurlio Nogueira (Antonio Gramsci, Cadernos do crcere. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1999-2002, 6v.). 8 Durante muito tempo acreditou-se que Revoluo e contra-revoluo na Alemanha fosse da autoria de Marx. A obra, na verdade, foi escrita por Engels, a pedido de Marx e publicada entre 1851 e 1852 no New York Daily Tribune, onde Marx era correspondente. Somente em 1913, depois da publicao da correspondncia de Marx e Engels, foi descoberta a verdadeira autoria desse texto. Portanto, quando Gramsci atribui a autoria a Marx no Quaderno 7 (1930-1932), j se havia desfeito esse equvoco. 9 Antonio Gramsci, Quaderni del carcere, op. cit., p. 871-872.

  • 4

    obras permite definir melhor a metodologia histrica marxista, integrando, iluminando

    ou interpretando as afirmaes tericas dispersas em todas as obras.10

    O ponto de partida desse empreendimento gramsciano uma interpretao

    inovadora do famoso Prefcio que Marx escreveu em 1859 para a Contribuio para a

    crtica da economia poltica. A escolha desse texto como ponto de partida j em si

    surpreendente. sabido que crueza das formulas contidas nele foram apropriadas

    dogmaticamente por parte do nascente movimento socialista, consolidando uma verso

    economicista e evolucionista do marxismo na Segunda Internacional. Fcil seria rotular o

    Prefcio como algo estranho ao corpo terico da obra de Marx e resumir sua teoria

    quelas passagens depuradas de toda contaminao. Mais difcil proceder a uma

    reconstruo da teoria de Marx, por meio desse texto, elucidando os nexos existentes com

    conjunto do pensamento, de modo a rejeitar o economicismo e o determinismo que

    apareciam em formulaes como as de Karl Kautsky.

    Esse ltimo foi o caminho seguido pelo marxista italiano Antonio Gramsci. Andr

    Tosel, em um curto e instigante artigo de polmica com Franois Furet, assinalou que

    Gramsci interpretou as frmulas presentes noPrefcio de 1859 demonstrando que elas

    contm princpios, os do materialismo histrico, que asseguram um contato com a

    especificidade do processo revolucionrio.11 Esses princpios, resgatados por Gramsci e

    citados de memria em sua nota Anlises de situaes. Relaes de foras, so os

    seguintes:

    1) o de que nenhuma sociedade assume encargos para cuja

    soluo ainda no existam as condies necessrias e suficientes, ou que

    pelo menos no estejam em vias de aparecer e se desenvolver; 2) o de que

    nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituda antes de desenvolver

    e completar todas as formas de vida implcitas nas suas relaes (verificar

    o exato enunciado destes princpios).12

    A passagem guarda certa distncia do texto original de Marx, muito embora,

    Gramsci tenha anexado, margem do manuscrito, uma traduo literal realizada por ele

    10 Idem. 11 Andr Tosel, Gramsci e a revoluo francesa. Novos Rumos, So Paulo, v. 9, n. 22, 1994, p. 42.

  • 5

    prprio. Que a citao feita recorrendo inicialmente memria evidente pela prpria

    observao recomendado consultar o texto original. Mas as modificaes no podem ser

    creditadas unicamente s lacunas da memria e sua interpretao til para esclarecer

    certos pontos do pensamento gramsciano. Vale a pena, portanto, comparar essa passagem

    com o texto de Marx:

    Jamais uma sociedade desaparece antes de desenvolver todas as

    foras produtivas que ela capaz de conter; nunca relaes de produo

    superiores lhe substituem antes que as condies materiais de sua

    existncia se produzam no prprio seio da velha sociedade. por isso que

    a humanidade nunca se coloca problemas que no seja capaz de resolver:

    considerando melhor as coisas, descobrir-se- sempre que o problema s

    surgiu quando as condies materiais para resolve-lo j existiam ou

    estavam em vias de aparecer.13

    As diferenas entre os textos foram j apontadas por Nicola Badaloni14 e saltam

    aos olhos. Ao invs de foras produtivas, Gramsci utiliza a expresso formas de vida

    e aquilo que Marx chama de condies materiais de existncia aparece no texto

    gramsciano como condies necessrias e suficientes. O tema recorrente em Grasmci

    e o Prefcio de 1859 ser citado outras vezes, fazendo referncias s condies

    necessrias e suficientes e formas de vida;15 s condies [premissas] necessrias e

    suficientes e possibilidades de desenvolvimento;16 e s condies necessrias e

    foras produtivas.17 Relaes de produo novas e superiores, por sua vez, no

    aparece no texto do marxista italiano.18

    12 Antonio Gramsci, op. cit., p. 1578. 13 Karl Marx, uvres. Economie I. Paris: Gallimard, 1965, p. 275. A traduo completa doPrefcio de 1859 por Gramsci encontra-se nos extratos dos cadernos de tradues (Antonio Gramsci, op. cit., p. 2358-2360). 14 Nicola Badaloni, Liberdade individual e homem coletivo em Gramsci. In: Instituto Gramsci, Poltica e histria em Gramsci. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1978, p. 27-28. 15 Antonio Gramsci, op. cit. 1977, p. 455. 16 Idem, p. 869. 17 Idem, p. 1774. 18 Apenas uma vez, citado textualmente o texto de Marx destacando as condies materiais e as foras produtivas (Idem, 1422.)

  • 6

    Para interpretar essa passagem do texto gramsciano e sua relao com o prefcio

    de Marx, Badaloni ressalta o vnculo existente entre os dois princpios destacados por

    Gramsci e seu objeto: a crtica da poltica.19 Para Gramsci os dois princpios de

    interpretao da crise transformam-se em regras interpretativas de uma realidade que j

    se encontra marcada por essa mesma crise. A ordem do enunciado gramsciano tem sua

    importncia e no demais destacar que esto em posies inversas s utilizadas por

    Marx. A primeira dessas regras produz otimismo e confiana. Ela indica a possibilidade

    de superao da ordem vigente. A segunda inspira temor e prudncia. Alerta que a

    superao antes enunciada no ocorre de forma mecnica e sem resistncia e induz o

    poltico a no levar em conta apenas a energia que a sua parte pode desenvolver, mas

    tambm os impulsos hegemnicos que o adversrio tambm pode emitir.20 Em outro

    artigo, Badaloni destaca que, no resumo gramsciano, o problema torna-se mais geral e

    visto pelo lado da subjetividade, o que pode ser apreciado pela utilizao do termo

    formas de vida, que Gramsci usa de modo bastante freqente.21

    As observaes de Badaloni, embora no esgotem o tema, nos fornecem

    importante ponto de apoio para uma adequada interpretao da apropriao gramsciana

    do prefcio de 1859. As opes terminolgicas de Gramsci tm grande importncia. Ao

    eliminar a palavra material ele afasta a estrutura desse nvel da anlise, justamente o

    nvel que indica o momento da passagem a outra formao social, o momento no qual

    esse problema colocado historicamente.

    Ora, se seguirmos as indicaes de Tosel para quem esses dois princpios so o

    princpio objetivo da contradio entre relaes de produo e foras produtivas, o

    princpio subjetivo da maturao das condies ideolgico-polticas de soluo da

    contradio,22 veremos que a modificao introduzida pelo marxista italiano diz respeito

    justamente ao princpio subjetivo. Trata-se de revalorizar, no texto marxiano, o lugar

    ocupado pela interveno humana, introduzindo o tema da vontade. O prprio Gramsci

    explicita o problema ao afirmar que

    19 Nicola Badaloni, op. cit., p. 28. 20 Idem. 21 Nicola Badaloni, Gramsci: a filosofia da prxis como previso. In: Hobsbawm, Eric (org.). Histria do marxismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991, v. X, 1991, p. 47. 22 Andr Tosel, op. cit., p. 42.

  • 7

    a proposio de que a sociedade no coloca diante de si

    problemas para cuja soluo ainda no existam as premissas materiais.

    o problema da formao de uma vontade coletiva que depende

    imediatamente desta proposio. Analisar criticamente o significado da

    proposio implica indagar como se formam as vontades coletivas

    permanentes, e como tais vontades se propem objetivos imediatos e

    mediatos concretos, isto , uma linha de ao coletiva.23

    Interpretado desta forma, o Prefcio de 1859 tem seu contedo revalorizado. O

    resultado desse rearranjo do texto marxiano de modo a destacar aquilo que o seu

    ncleo racional uma poderosa ferramenta de anlise capaz de elucidar as conexes

    existentes entre estrutura e superestrutura. De Felice destaca que o recorrente apelo de

    Gramsci ao Prefcio de 1859, justamente aquele texto que era tomado como ponto de

    partida de toda a leitura evolucionista e economicista por boa parte das correntes

    marxistas da poca, mostra que sua elaborao inscrevia-se em um debate internacional

    sobre o n teoria-movimento e apresentava uma alternativa interpretativa s questes

    vinculadas aos materiais histricos representados pela Revoluo Russa, pela derrota do

    movimento operrio no Ocidente e pela soluo capitalista crise do capitalismo.24

    Elucidada esta apropriao do Prefcio de 1859 por parte de Gramsci, voltemos

    nota que motivou esta reflexo Analise das situaes: relaes de fora.25 Nela o

    Prefcio no o ponto de chegada e sim o ponto de partida para o desenvolvimento de

    outros princpios de metodologia histrica. Gramsci ressalta que no estudo de uma

    conjuntura preciso distinguir os movimentos orgnicos (permanentes) daqueles

    conjunturais (ocasionais, imediatos, acidentais). Durante uma crise que se prolonga

    durante alguns decnios, revelam-se contradies insolveis, ao mesmo tempo em que as

    foras polticas que atuam na defesa dessa estrutura esforam-se para superar essas

    23 Antonio Gramsci, op. cit., p. 1057. 24 Franco De Felice, Revoluo passiva, fascismo, americanismo em Gramsci. In: Instituto Gramsci, Poltica e histria em Gramsci. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira 1978, p. 197. 25 Para as importantes modificaes promovidas por Gramsci no texto inicial desta nota, apresentado no 38 do Quaderno 4, escrito em outubro de 1930, e os 17-18 do Quaderno 13, com a verso que aqui citamos, redigidos entre outubro e dezembro de 1933, ver Giuseppe Cospito. Struttura e sovrastruttura nei Quaderni di Gramsci. Critica Marxista, Roma, n. 3-4, p. 98-107, mag.-ago. 2000.

  • 8

    contradies. Esses esforos constituem o terreno do ocasional. nesse terreno do

    ocasional, da conjuntura, que a estrutura ir se atualizar.

    Essa distino entre movimentos orgnicos e fatos conjunturais deve se aplicar a

    todo tipo de situao. A ausncia de uma relao justa entre ambos um erro freqente

    na anlise histrico-poltica. Mas as conseqncias desse erro so mais graves na poltica

    do que na historiografia, na medida que, enquanto esta ltima tem o objetivo de

    reconstruir a histria passada, a poltica almeja a construo do presente e do futuro.

    Gramsci exemplifica a utilizao desses critrios metodolgicos atravs de um

    caso histrico concreto, o mesmo que motivou as reflexes originais de Marx: a

    Revoluo Francesa. Tal caso compreendido em uma escala histrica amplificada. Para

    extrair todas as concluses necessrias preciso ter em mente, afirma Gramsci, que

    somente em 1870-1871, com a Comuna de Paris, esgotaram-se historicamente todas as

    possibilidades histricas que vieram luz em 1789.26 As contradies internas estrutura

    francesa se manifestaram em longo prazo, em um perodo histrico marcado por

    transformaes que se processam atravs de ondas com um comprimento cada vez maior:

    1789, 1794, 1799, 1804, 1815, 1830, 1848, 1870. O estudo dessas ondas sucessivas

    permitiria, segundo Gramsci, reconstruir as relaes entre estrutura e superestruturas, de

    um lado, e, de outro, as relaes entre o curso do movimento orgnico e o curso do

    movimento de conjuntura da estrutura.27

    O que nos leva anlise das relaes de fora propriamente ditas e s mudanas

    dessas relaes. Gramsci distingue trs momentos dessas relaes, expressando trs

    nveis de anlise diferentes, com seus diferentes graus de abstrao.

    1) Uma correlao de foras vinculada estrutura objetiva e que pode ser

    apreciada com os mtodos das cincias exatas ou fsicas.28 Sobre a base desta estrutura,

    do grau de desenvolvimento das foras materiais de produo, erguem-se os grupos

    sociais, cada qual representando uma funo e ocupando uma posio dada na produo.

    26 No s a nova classe que luta pelo poder derrota os representantes da velha sociedade que no quer confessar-se definitivamente superada, mas derrota tambm os grupos novssimos que acreditam j ultrapassada a nova estrutura surgida da transformao iniciada em 1789 e demonstra, assim, sua vitalidade em confronto com o velho e em confronto com o novssimo (Antonio Gramsci, op. cit., p. 1581-1582. 27 Antonio Gramsci, op. cit., p. 1582.

  • 9

    Neste nvel, a classe existe objetivamente. Localiza-se, aqui, uma realidade rebelde,

    mas essencial para verificar se existem na sociedade, ou se podem se desenvolver nela, as

    condies necessrias e suficientes para sua transformao. Ou seja, ela permite verificar

    o realismo, a atualidade e o grau de adequao das ideologias nascidas sobre o solo dessa

    realidade rebelde e das contradies geradas em seu desenvolvimento.

    2) Uma correlao de foras poltica, que estima o grau de homogeneidade,

    autoconscincia e organizao dos vrios grupos sociais. Aqui podem ser apreendidos os

    diversos momentos da conscincia poltica coletiva, momentos que se combinam

    horizontal e verticalmente, nacional e internacionalmente, criando arranjos originais e

    historicamente concretos. Estes momentos so:

    a) econmico-corporativo: percebe-se a unidade homognea e o dever de

    organiz-la, a unidade do grupo profissional, mas ainda no a do grupo social mais

    amplo;29

    b) solidariedade de interesses de todos os membros do grupo social, mas ainda no

    terreno meramente econmico: a questo estatal ainda no se coloca;

    c) fase estritamente poltica: indica a passagem da estrutura esfera das

    superestruturas complexas. o momento da criao da hegemonia de um grupo social

    fundamental sobre uma srie de grupos subordinados.30

    3) Uma correlao de fora militar, o imediatamente decisivo em cada caso.

    Tambm aqui podemos distinguir dois momentos: tcnico-militar e poltico-militar.

    Falvamos de graus de abstrao diferentes. Mas para alm de uma lgica da

    exposio temos uma lgica do prprio movimento histrico. O esquema aqui

    desenvolvido simtrico quele desenhado pelos dois princpios expressos pelo

    Prefcio de 1859 tais quais apresentados por Gramsci. Os trs nveis dizem respeito a

    graus diferentes de interveno da vontade humana. No primeiro nvel temos o

    movimento da estrutura a se impor, a realidade rebelde, independente da ao imediata

    dos sujeitos histricos. o princpio objetivo da contradio entre foras produtivas e

    28 Idem, p. 1538. O conjunto das foras materiais de produo o elemento menos varivel no desenvolvimento histrico, aquele que uma e outra vez pode ser identificado e medido com exatido matemtica, que pode dar lugar, portanto a observaes e a critrios (Idem, p. 1443). 29 Idem, p. 1583-1584. 30 Idem, p. 1584.

  • 10

    relaes de produo; uma definio epocale. Mas no terceiro nvel, naquele no qual

    ocorre o choque direto entre os sujeitos sociais, que essa contradio encontra sua

    soluo. Este o nvel da realizao da vontade como conscincia atuante da

    necessidade histrica, como protagonista de um drama real e efetivo, o nvel da

    revoluo.31

    O movimento histrico, dir Gramsci, oscila, constantemente, entre o primeiro e o

    terceiro momento da correlao de foras atravs da mediao do segundo momento, o da

    correlao de foras poltica. Nvel no qual ocorrer a passagem da estrutura s

    superestruturas complexas e que nos conduz discusso que apresenta sobre o Estado e

    suas crises.

    A revoluo passiva como passado

    Quando Gramsci discute as possibilidades de resoluo da crise o faz a partir dos

    materiais histricos concretos que tem disposio: a Revoluo Francesa; a histria

    italiana, particularmente o Risorgimento; a experincia dos conselhos turineses; e a

    Revoluo Russa. Toma, portanto, como ponto de partida uma histria das revolues.

    Ao discutir o passado tem em vista o presente. Lembremos que filosofia, histria e

    poltica encontram-se profundamente interligadas em seu pensamento, ou melhor,

    lembremos a dimenso poltica da histria e da filosofia e que a poltica faz a histria e a

    filosofia.

    Mas qual , exatamente, o presente que tem em vista? , sem dvida, o presente

    da revoluo. Da Rssia sovitica e do seu destino, em primeiro lugar; das possibilidades

    concretas de construo de uma alternativa socialista. Mas tambm da revoluo italiana

    e da luta contra o fascismo, valorizando aquilo que reflete a especificidade da pennsula

    bem como a dimenso universal em sua histria. Seu presente o da complexa situao

    europia do ps-guerra, marcada pela Primeira Guerra Mundial, pela Revoluo Russa,

    31 Idem, p. 1560. sintomtico que em seu ensaio sobre a anlise de conjuntura em Gramsci, Portantiero suprima, sem maiores explicaes, esse terceiro momento da correlao de foras. a prpria revoluo que suprimida. Ver Juan Carlos Portantiero, Los usos de Gramsci. Mexico D.F.: Folios, 1987, p. 177-193.

  • 11

    pela crise de 1929 e pelo surgimento e expanso do fascismo. do conjunto desses

    materiais histricos que o marxista sardo extrair o conceito de revoluo passiva,

    reformulando-o e destacando suas mltiplas dimenses: histrica, filosfica e poltica.

    Primeiro a revoluo passiva como cnone de interpretao da histria italiana,

    como ferramenta interpretativa da constituio do capitalismo nessa poro da Europa.

    sob esta tica que deve ser compreendida a retomada da idia de revoluo passiva

    presente na obra de Vincenzo Cuoco. Em seu Saggio storico sulla rivoluzione di Napoli,

    Cuoco lana mo dessa idia para descrever as revolues nas quais a iniciativa no se

    encontra nas mos do povo, ao contrrio das revolues ativas, mais eficazes, nas quais

    este dirige prontamente a si prprio quilo que mais de perto lhe interessa.32

    A apropriao que Antonio Gramsci faz desse tema , na verdade, uma

    reinveno, uma reconstruo, enfim, um novo tema. Retirado da problemtica original,

    o conceito de revoluo passiva ganha no pensamento gramsciano um novo contedo. De

    certa forma, pode-se dizer que ao retomar temas anteriormente trabalhados por outros

    autores, o que Gramsci faz de maneira recorrente, so redefinidas as perguntas que eles

    fizeram, perguntas que, por sinal, no eram apenas de seus autores, mas as perguntas de

    seu tempo. Mudam, seguramente, as respostas. Se Gramsci retoma esses temas porque

    eles so elementos centrais de um campo ideolgico dominante, o que impe uma

    resposta por parte de todo aquele que no quiser se divorciar de sua poca.33

    Retirado de seu contexto original e reformulado, o conceito de revoluo passiva

    ganha uma amplitude muito maior e passa a ser instrumento de interpretao de

    acontecimentos contemporneos, mantendo, entretanto, uma linha de continuidade: a

    modernizao do Estado atravs de uma srie de reformas e guerras, procurando evitar,

    assim, uma ruptura revolucionria.

    Gramsci associa a frmula cunhada por Cuoco quela que Edgar Quinet elaborou

    para o caso francs: revoluo-restaurao. No centro da anlise colocada a ascenso da

    burguesia ao poder em aliana com aquelas classes que, na Frana, haviam sido

    deslocadas pela revoluo. Era retomado, assim, um tema caro tradio marxista, tema

    32 Vincenzo Cuoco, Saggio storico sulla rivoluzione napoletana del 1799. Bari: Laterza, 1929, p. 106. 33 Edmundo Fernandes Dias, Gramsci em Turim: a construo do conceito de hegemonia. So Paulo: Xam, 2000, p. 239.

  • 12

    esse que aparecia em A luta de classes na Frana e O 18 Brumrio de Luis Bonaparte, da

    Karl Marx e em Revoluo e contra-revoluo na Alemanha, de Friedrich Engels. A

    pergunta chave : pode a burguesia ascender ao poder sem passar pelo calvrio da

    revoluo?

    esse material histrico e so essas anlises de Marx e Engels, que Gramsci tm

    em mente quando procurar nas frmulas de revoluo passiva e restaurao-revoluo a

    chave explicativa para o processo de ascenso da burguesia italiana. A comparao com

    o caso francs , aqui, fundamental. Seu espectro rondava a Europa. Ela fornecia o

    exemplo daquilo que as classes dominantes queriam evitar. Era a revoluo clssica. Para

    fazer a comparao Gramsci traa o seguinte quadro, relembrando a poca histrica

    inaugurada em 1789:

    1) exploso revolucionria na Frana com radical e violenta

    mutao das relaes sociais e polticas; 2) oposio europia Revoluo

    Francesa e a sua difuso pelos canais de classe; 3) guerra da Frana, com

    a Repblica e com Napoleo, contra Europa, primeiramente para no ser

    sufocada, a seguir para constituir uma hegemonia permanente francesa

    com tendncia a formar um imprio universal; 4) insurreies nacionais

    contra a hegemonia francesa e nascimento dos Estados europeus modernos

    por pequenas ondas reformistas sucessivas, mas no por exploses

    revolucionrias como a francesa original. As ondas sucessivas so

    constitudas de uma combinao de lutas sociais, de intervenes pelo

    alto, do tipo monarquia iluminada, e de guerras nacionais, com a

    predominncia destes dois ltimos fenmenos.34

    sobre a possibilidade de surgimento de estados modernos atravs de

    mecanismos reformistas que recair a ateno de Gramsci. Esse perodo, que tem em

    1848 um de seus momentos mais importantes e que na frmula de Edgar Quinet era

    associado restaurao, considerado pelo marxista italiano como o mais rico em

    significados. A restaurao vista, assim, como a forma poltica na qual as lutas sociais

    34 Antonio Gramsci, op. cit., p. 1358.

  • 13

    encontram quadros bastante elsticos para permitir a burguesia chegar ao poder sem

    rupturas espetaculares, sem o aparelho terrorista francs.35

    Empreendimento esse que bem sucedido com a derrota das revolues de 1848.

    Essa derrota sepultou a era das revolues burguesas e inaugurou uma nova poca, na

    qual a transio pacfica se tornou a forma mais universalizada de ascenso da

    burguesia ao poder. Temos ento um paradoxo: a transio considerada clssica a

    francesa no foi a mais universal.

    Passemos, pois, anlise desta que foi a forma mais universal de transio ao

    capitalismo, a revoluo passiva. O problema fundamental que coloca o conceito de

    revoluo passiva o da relao entre estrutura e superestrutura. Gramsci enfatiza que

    esse conceito deve ser rigorosamente deduzido dos dois princpios fundamentais da

    cincia poltica j citados: 1) nenhuma formao social desaparece enquanto as foras

    produtivas que nela se desenvolvem encontrarem lugar para um ulterior movimento

    progressivo; 2) a sociedade no assume compromissos para cuja soluo ainda no

    tenham surgido as condies necessrias, etc..36 Tais princpios devem ser referidos aos,

    j citados, trs momentos fundamentais da anlise de relaes de fora, valorizando a

    relao de foras poltica (segundo momento) e poltico-militares (terceiro momento).

    A nfase recai, portanto, na questo das condies necessrias e suficientes

    transformao, no princpio subjetivo da formao das vontades humanas e da

    organizao destas em partidos e foras polticas que intervm na realidade, formando,

    moldando e construindo/reconstruindo-a. Afirma Gramsci:

    Sempre a propsito do conceito de revoluo passiva ou de

    revoluo-restaurao no Risorgimento italiano, necessrio colocar com

    exatido o problema que, em algumas tendncias historiogrficas,

    denominado de relaes entre condies objetivas e condies subjetivas

    do evento histrico. Parece que as condies subjetivas existem sempre

    que existem a condies objetivas, isto na medida em que se trata de

    simples distino de carter didtico: logo, a discusso pode versar sobre o

    35 Idem. 36 Idem, p. 1774.

  • 14

    grau e a intensidade das foras subjetivas, sobre a relao dialtica entre

    as foras subjetivas contrastantes.37

    No se trata de um subjetivismo ou de um voluntarismo. No so as vontades

    individuais as que contam, mas aquelas que assumem a forma de fatos ao se

    materializarem como foras vivas nos movimentos das classes, agindo sobre e

    modificando a realidade antes dada:

    Sobre revoluo passiva. Protagonistas os fatos por assim dizer

    e no os homens individuais. Como sobre um determinado invlucro

    poltico necessariamente se modificam as relaes sociais fundamentais e

    novas foras efetivas polticas surgem e se desenvolvem, que influem

    indiretamente, com a presso lenta mas incoercvel, sobre as foras

    oficiais que se modificam a si prprias sem perceberem, ou quase.38

    Do ponto de vista do grau e da intensidade dessas foras subjetivas contrastantes,

    quais so os pr-requisitos para a eficcia da transio sem revoluo? O que d aos

    quadros sociais a elasticidade necessria para a revoluo passiva?

    Em primeiro lugar, essa elasticidade dada pela ausncia de uma iniciativa

    popular unitria e diz respeito impossibilidade, pelo menos momentnea, das classes

    subalternas assumirem o papel de classe dirigente.39 Tal quadro foi fornecido pela derrota

    das revolues de 1848, pela expanso capitalista que tem incio a partir do incio da

    dcada de 1850 e pela retrao que o nascente movimento operrio vivenciou nas

    dcadas que se seguiram.

    Em segundo lugar, dada pela impossibilidade das classes dominantes obterem o

    consenso ativo das classes subalternas atravs da incorporao dos interesses e aspiraes

    dessas classes, principalmente a reforma agrria, o que implicaria a destruio da posio

    poltica e econmica das velhas classes feudais. Em Gramsci, este tema est diretamente

    conectado analise do papel desempenhado pelos jacobinos na Frana e o lugar do

    Partito dAzione no Risorgimento:

    37 Idem, p. 1781. 38 Idem, p. 1818-1819. 39 Idem, p. 1324-1325.

  • 15

    A proposto do jacobinismo e do Partito dAzione, um elemento

    que deve ser colocado em primeiro plano o seguinte: que os jacobinos

    conquistaram com a luta sem quartel a prpria funo de partido dirigente;

    na realidade se impuseram burguesia francesa, conduzindo-a a uma

    posio muito mais avanada do que aquela que os ncleos burgueses

    primitivamente mais fortes teriam desejado espontaneamente ocupar e

    ainda muito mais avanada do que as premissas histricas poderiam

    consentir e por isso os contra-golpes e a funo de Napoleo I.40

    Esta capacidade dirigente, hegemnica, manifestada pelos jacobinos na revoluo

    Francesa no encontrou paralelo na Itlia, sequer no Partito dAzione. Desde 1848,

    quando a classe operria aparece na Frana como partido independente na poltica o

    espectro que assombrava a Europa assumiu a fora material da classe em movimento. O

    Risorgimento evidenciou na Itlia aquilo que a Frana j havia demonstrado. A partir do

    momento em que burguesia e proletariado encontram-se, em junho de 1848, abertamente

    nas ruas de Paris, lutando no mais lado a lado mas um contra o outro, a partir do

    momento em que travada a primeira grande batalha entre as classes em que se

    constitui a sociedade moderna, nas palavras de Marx,41 a burguesia muda a forma de

    exerccio de sua hegemonia. Gramsci sintetiza isso afirmando que:

    a relao de classes criada pelo desenvolvimento industrial, com

    o alcance do limite da hegemonia burguesa e a inverso de posies de

    classes progressistas, induziu a burguesia a no lutar at o fim contra o

    velho regime, mas a deixar subsistir uma parte de sua fachada sob a qual

    ocultar o prprio domnio efetivo.42

    Ora, esse temor, no tanto aos trabalhadores urbanos, mas, principalmente, s

    massas camponesas, era o que fazia o Partito dAzione recuar perante a revoluo. Da

    sua recusa a incorporar em seu programa a reforma agrria, a lutar at o fim e a tornar-

    se o centro dirigente das classes subalternas, sua recusa em exercer uma hegemonia

    40 Idem, p. 2027. 41 Karl Marx, Las luchas de clases en Francia de 1848 a 1850. In: Obras fundamentales de Marx y Engels. Las revoluciones de 1848. Mxico D.F.: Fondo de Cultura Econmica, v. 5, 1985, p. 333.

  • 16

    expansiva sobre o conjunto dessas classes. O Partido de ao no conseguiu ser

    jacobino, dir Gramsci. Ou seja, no conseguiu soldar atravs de um programa

    orgnico que expressasse uma nova fora social e rompesse os laos que ligavam os

    camponeses aos diversos estratos legitimistas e clericais.43

    A ausncia de iniciativa popular e de um consenso ativo no indica total

    passividade das massas populares e nem ausncia total de consenso. O que de fato h

    um subversivismo espordico, elementar e inorgnico que, pelo seu primitivismo, no

    elimina a capacidade de interveno das classes dominantes, muito embora fixe seus

    limites e imponha a necessria absoro de uma parte das demandas de baixo, justamente

    aquelas que no so contraditrias com a ordem econmica e poltica. Cria-se, assim, o

    consenso passivo e indireto das classes subalternas.

    Consenso esse que reforado pelo contnuo processo de transformismo, de

    absoro molecular pelas classes dominantes dos elementos ativos tanto dos grupos

    aliados como dos grupos adversrios, o que permitiria a elaborao de uma classe

    dirigente em um contexto fixado pela restaurao.44 Mas esse consenso coercitivamente

    fabricado, na medida em que tende destruio da fora poltica dos grupos subalternos

    atravs da decapitao de suas lideranas, isto , a desarticulao e a paralisao do

    antagonista ou dos antagonistas atravs da absoro dos seus dirigentes, seja

    disfaradamente, seja, em caso de perigo emergente, abertamente para lanar a confuso

    e a desordem nas fileiras adversrias.45

    Nesse processo, ocorre a unidade entre as antigas classes feudais, que deixam de

    ser dominantes embora permaneam governantes, e a nascente burguesia. Sem serem

    liquidadas como um conjunto orgnico essas classes feudais perdem suas funes

    econmicas predominantes e se convertem em castas com caractersticas culturais e

    psicolgicas prprias. Casta que fornecero boa parte do pessoal especializado, os

    intelectuais no sentido gramsciano, para que o Estado assuma o papel de dirigente, no

    42 Antonio Gramsci, op. cit, 2033. 43 Idem, p. 2024 44 Dora Kanoussi e Javier MENA. La revolucin pasiva: una lectura a los Cuadernos de la Crcel. Mxico D.F.: Universidad Autnoma de Puebla, 1985, p. 98. 45 Idem, p. 1638. Gramsci tem sempre em mente a absoro das lideranas do Partito dAzione pelos moderados. Lembrar a frase magistral de Vittorio Emanuele II: Il Partito dAzione noi labbiamo in tasca

  • 17

    do conjunto da sociedade, o que seria nesse quadro impossvel, mas das classes

    dominantes:

    Este fato da mxima importncia para o conceito de revoluo

    passiva: ou seja, que um grupo social no seja o dirigente de outro grupo

    social, mas que o Estado, ainda que limitado como potncia, seja o

    dirigente do grupo que deveria ser dirigente e possa colocar disposio

    deste um exrcito e uma fora poltico-diplomtica.46

    A revoluo passiva , desta forma, o exerccio de uma hegemonia restrita, uma

    hegemonia burguesa em um perodo histrico no qual esta classe j perdeu a capacidade

    de assimilar a seu projeto as classes subalternas.47 A revoluo passiva no hegemonia

    de uma classe em relao ao todo social, mas a de uma frao das classes dominantes

    sobre o conjunto delas atravs da mediao do Estado.

    O locus dessa unidade entre as antigas classes feudais e a burguesia o Estado.

    De tal maneira que a histria dessas classes passa a ser, essencialmente, uma histria do

    Estado e dos grupos de Estado. Uma histria que resultado das relaes orgnicas que

    se estabelecem entre sociedade poltica e sociedade civil, ou seja, que derivam da

    ampliao do prprio Estado e do seu conceito.48

    A revoluo passiva como presente

    Para Gramsci, o papel desempenhado pelo liberalismo conservador do sculo XIX

    encontrava paralelo naquele que o fascismo estava a desempenhar e no era toa que em

    seus primrdios este se reivindicasse como sucessor da direita histrica. O fascismo e a

    luta contra ele ocupam lugar de destaque no pensamento gramsciano. Nesse sentido, sua

    (Idem, p. 1782 e 2010). Para as anlises sobre o transformismo feitas por Gramsci em seus escritos da juventude ver Edmundo Fernandes Dias, op. cit.. 46 Antonio Gramsci, op. cit., p. 1823. 47 Sobre a distino entre as formas burguesa e proletria da hegemonia ver Valentino Gerratana, op. cit., p. 119-126. 48 Antonio Gramsci, op. cit., p. 2287.

  • 18

    reflexo na priso desenvolver temas tratados por ele anteriormente na qualidade de

    dirigente ativo do Partido Comunista italiano.

    J no perodo pr-carcerrio, Gramsci vincular intimamente o tema do fascismo

    anlise da crise social e poltica do ps-guerra. Em seu informe ao Comit Central de

    agosto de 1924, Gramsci caracterizou o fascismo como o resultado de um determinado

    sistema de relaes de fora existente na sociedade italiana.49 Mas a crise que permite o

    surgimento do fascismo no uma crise meramente italiana, ela determinada por um

    processo mundial, a crise radical do sistema capitalista, iniciada na Itlia, assim como

    em todo o mundo, com a guerra.50

    As determinaes internacionais dessa relao de foras particular so

    apresentadas por Gramsci em sua interveno na Cmara de Deputados, em maio de

    1925. A ascenso do fascismo no considerada como um fenmeno puramente italiano.

    Ela parte constitutiva de uma relao de foras europia e mundial que se estabelece

    como resultado dos desdobramentos decorrentes da crise geral do capitalismo no ps-

    guerra. A eleio de Hindenburg na Alemanha, a vitria dos conservadores na Inglaterra,

    a ascenso do fascismo na Itlia e a liquidao dos partidos liberais democrticos nesses

    pases so vistas como momentos desse mesmo processo: Trata-se de um fenmeno de

    regresso histrica que no deixa nem deixar de ter conseqncias para o

    desenvolvimento da revoluo proletria.51

    A dimenso internacional desse processo no leva Gramsci a reduzir a

    especificidade italiana. Na mesma interveno destacar que a debilidade do capitalismo

    italiano produziu a exacerbao dessas formas reacionrias na pennsula.52 O tema

    tratado de maneira aprofundada nas Teses redigidas por Gramsci e Togliatti para o

    congresso do Partido Comunista italiano que seria realizado na cidade de Lyon. A

    especificidade do desenvolvimento capitalista italiano e, particularmente, de sua

    indstria, chave para entender a emergncia do fascismo na fina anlise levada nele a

    cabo. O texto, intitulado La situazione italiana e i compiti del PCI (1926), atribui

    fragilidade intrnseca do capitalismo italiano a necessidade dos industriais recorreram ao

    49 Antonio Gramsci. La costruzione del Partito Comunista. Turim: Giulio Einaudi, 1978, p. 33. 50 Idem, p. 28. 51 Idem, p. 77.

  • 19

    compromisso econmico e poltico com os proprietrios de terra para sobreviverem. Tal

    compromisso estaria baseado na solidariedade de interesses existentes entre alguns

    grupos privilegiados, em detrimento dos interesses gerais da produo e da maioria dos

    trabalhadores.

    Essa debilidade econmica tem conseqncias polticas ntidas. Da mesma

    maneira que no consegue organizar a economia a sua imagem e semelhana, a burguesia

    industrial no organiza, por conta prpria a sociedade e o Estado: Para reforar o Estado

    e para defend-lo, necessrio um compromisso com as classes sobre as quais a indstria

    exerce uma hegemonia limitada, particularmente os agrrios e a pequena burguesia.53

    Ao invs de alterar essa dinmica da poltica italiana, o fascismo a aprofundar.

    Nas Teses de Lyon o fascismo definido como um movimento de reao armada cuja

    finalidade desorganizar e desmobilizar a classe operria para imobiliza-la.54 Para

    tanto, ele pressupe a unificao e centralizao de todas as foras da burguesia em torno

    de um novo projeto italiano. O processo no levado a cabo sem conflito e

    transformao das formas tradicionais de exerccio do poder poltico e das formas at

    ento preponderantes de constituio do compromisso entre as classes dominantes. O

    ataque maonaria, fora central de todas as foras polticas tradicionais parte dessa

    tentativa de unificao. Mas a unificao burguesa tem por objetivo no apenas

    transformar a poltica, como transformar a economia. Segundo as Teses, no campo

    econmico, o fascismo age como instrumento de uma oligarquia industrial e agrria para

    concentrar nas mos do capitalismo o controle de todas as riquezas do pas.55

    O fascismo no , portanto, uma transformao das classes dominantes, do lugar

    ocupado pelas oligarquias industriais e agrrias na poltica italiana. Ele uma mudana

    da forma atravs da qual essas classes constroem sua unidade. Aquilo que era, na tradio

    poltica italiana, compromisso assume, com o fascismo, carter compulsrio.

    Da o conjunto de medidas destinadas a criar, compulsoriamente, atravs da ao

    estatal, uma nova concentrao industrial e agrria: a abolio dos impostos sobre

    heranas, o fortalecimento do protecionismo, as novas polticas financeiras e fiscais, o

    52 Idem. 53 Idem, p. 491, grifos nossos. 54 Idem, p. 495.

  • 20

    restabelecimento das taxas sobre os gros, a unificao bancria, as modificaes no

    cdigo do comrcio e os acordos para pagamento das dvidas com os Estados Unidos,

    temas tratados, tambm, em um artigo de 24 de novembro de 1925, publicado no lUnit.

    Mas, e isso importante ressaltar, Gramsci no v, no perodo pr-carcerrio, o

    fascismo como uma resposta efetiva crise da burguesia, na medida em que essa poltica

    produz contradies entre seus prprios partidrios, no interior da burguesia que resiste

    centralizao j mencionada, e, principalmente, na pequena burguesia que acreditava ter

    chegado sua hora de exercer o poder. Esse juzo, que aparece explcito nas Teses de

    Lyon, principalmente nas passagens referentes aos fracionamentos da burguesia e

    reao da pequena burguesia dominao industrial-agrria, adquire tons ainda mais

    fortes em um texto de 1924, La crisi italiana, publicado em LOrdine Nuovo. Nele,

    depois de afirmar que o regime fascista no havia nem detido, nem diminudo o mpeto

    da crise econmica, Gramsci afirma que a crise econmica italiana somente poder ser

    resolvida pelo proletariado. Somente inserindo-se em uma revoluo europia e mundial,

    o povo italiano poder recuperar a capacidade de fazer valer suas foras produtivas

    humanas e desenvolver o aparelho produtivo nacional.56

    Este juzo, predominante no perodo pr-carcerrio, sofrer uma importante

    inflexo nos Quaderni, como destacado por De Felice.57 Uma nova possibilidade

    apresentada e desenvolvida por Gramsci na priso: a soluo capitalista para a crise do

    capitalismo. Nos Quaderni, a resposta burguesa crise tem como pressuposto a derrota

    da classe operria mas exige, tambm a construo de uma alternativa na qual se

    articulassem economia e poltica, sociedade e Estado. A anlise do fascismo ser

    deslocada para a investigao das novas relaes entre Estado e sociedade civil.58 As

    formas polticas da restaurao (governo das massas) so, assim, vinculadas s formas

    econmicas (governo da economia), unificando aquilo que at ento aparecia de maneira

    desagregada na anlise. Gramsci coloca aqui, embora cautelosamente, um problema de

    55 Idem, p. 496. 56 Idem, p. 30-31. 57 Franco De Felice, Revoluo passiva, fascismo, americanismo em Gramsci. In: Instituto Gramsci, Poltica e histria em Gramsci. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira 1978 58 Christine Buci-Glucksmann. Gramsci et lEtat. Pour une thorie matrialiste de la philosophie. Paris: Fayard, 1975.Buci-Glucksmann, 1975, p. 355.

  • 21

    primeira grandeza: at que ponto o fascismo, alm de ser uma forma de reao anti-

    operria no , tambm, agente da modernizao do aparelho produtivo?

    neste ponto que o conceito de revoluo passiva utilizado como ferramenta

    para a anlise do fascismo. O tema colocado no Quaderno 8 de maneira bastante

    elptica:

    No seria o fascismo precisamente a forma de revoluo passiva

    prpria do sculo XX, como o liberalismo tinha sido no sculo XIX? (...)

    Poderia conceber-se assim: a revoluo passiva se verificaria no fato de

    transformar refomistamente a estrutura econmica individualista em

    economia segundo um plano (economia dirigida) e o advento de uma

    economia mdia entre a individualista pura e a planificada no sentido

    integral, permitiria a passagem a formas poltica e culturais mais evoludas

    sem cataclismos radicais e destruidores de modo exterminador. O

    corporativismo poderia ser ou tornar-se, desenvolvendo-se, esta forma

    econmica mdia de carter passivo.59

    O que aparece aqui uma via de transformao do Estado e da economia que

    situando-se de maneira intermediria (economia mdia) entre o planejamento

    econmico e a economia de mercado, poderia promover o desenvolvimento das foras

    produtivas evitando, ao mesmo tempo, a revoluo operria. Esta no apenas uma

    soluo no operria da crise (no pensada por Gramsci em 1924), como uma soluo

    anti-operria, contra-revolucionria, portanto.

    Para o marxista italiano, o fascismo poderia ser uma revoluo passiva no fato de

    que pela interveno legislativa do Estado e atravs da organizao corporativa na

    estrutura econmica do pas, seriam introduzidas modificaes mais ou menos profundas

    para acentuar o elemento plano de produo sem por isso tocar (ou limitando-se

    somente a regular e controlar) a apropriao individual e de grupo do lucro.60 Como

    programa, o fascismo unifica poltica e economia. No quadro concreto das relaes

    sociais italianas, esta pareceria ser a forma pela qual seria possvel desenvolver as foras

    59 Antonio Gramsci, Quaderni del carcere, op. cit., p. 1089. 60 Idem, p. 1228.

  • 22

    produtivas da indstria em bases capitalistas sem provocar um deslocamento abrupto das

    classes dirigentes tradicionais, em um contexto marcado pela concorrncia

    interimperialista, contexto esse no qual a desvantagem italiana era evidente.

    Essa era a hiptese ideolgica partilhada, tanto por Croce como pelo fascismo. A

    fora dessa hiptese no era dada pela sua possibilidade de se transformar em realidade e

    sim pela sua capacidade de mobilizar e criar um perodo de espera e esperanas,

    especialmente em certos grupos sociais italianos, como a grande massa de pequenos

    burgueses urbanos e rurais, e conseqentemente manter o sistema hegemnico e as foras

    de coao militar e civil a disposio das classes dirigentes tradicionais.61

    A reflexo gramsciana, cautelosa e no conclusiva, privilegiando hipteses

    explicativas ao invs de esquemas generalizantes. Embora no seja conclusiva no que diz

    respeito ao fascismo como forma de modernizao, sua reflexo localizar um aspecto

    importante de sua reflexo: o papel do Estado, que tem suas funes econmicas

    potencializadas e passa a atuar como sede institucional da unificao de renda e lucro.62

    O tema reaparecer e ganhar uma nova dimenso na anlise gramsciana do

    americanismo e do fordismo. Entre os pontos que listou para ordenar sua pesquisa

    Gramsci incluiu a revoluo passiva: ver se o americanismo pode determinar um

    desenvolvimento gradual do tipo, j examinado, das revolues passivas prprias do

    sculo passado, ou se, ao contrrio, representa apenas a acumulao molecular de

    elementos destinados a produzir uma exploso, uma transformao de tipo francs.63

    E na anlise da resposta capitalista queda tendencial da taxa de lucro, que

    Gramsci enfocar o taylorismo e o fordismo, perguntando se no so estes dois mtodos

    de produo e de trabalho tentativas progressistas de superar a lei tendencial, eludindo-a

    com a multiplicao das variveis nas condies do aumento progressivo do capital

    constante?64

    Tentativas de superao que se manifestam primeiramente no nvel do processo

    produtivo e da organizao do trabalho, introduzindo inovaes que permitiro contra-

    61 Idem. 62 Franco De Felice, op. cit., p. 235. 63 Antonio Gramsci, op. cit., p. 2139. 64 Idem, p. 1312. Ver a este respeito Ruy Braga, Risorgimento, fascismo e americanismo: a dialtica da passivizao. In: DIAS, Edmundo Fernandes et alli. O outro Gramsci. So Paulo, Xam, 1996, p. 167-182.

  • 23

    restar a presso exercida sobre a taxa de lucro pelo aumento crescente da composio

    orgnica do capital. Par tal, foi necessrio combinar habilmente a fora (destruio do

    sindicalismo operrio de base territorial) com a persuaso (altos salrios, benefcios

    sociais diversos, propaganda ideolgica e poltica habilssimo) para, finalmente, basear

    toda a vida do pas na produo.65 E nesse sentido que Gramsci dir que com o

    americanismo e o fordismo a hegemonia nasce na fbrica.66 Hegemonia restrita, bem

    entendido, ou seja, revoluo passiva.

    So tentativas que tambm se fazem sentir ao nvel das superestruturas

    complexas. Seja porque essas transformaes no universo produtivo exigem a criao de

    um novo tipo de trabalhador, de um novo nexo psicofsico sobre o qual Gramsci ir

    discorrer no Quaderno 22, seja porque elas requerem um Estado adequado a essas

    transformaes. Estado esse que poderia ser, na verdade, o promotor do americanismo

    no caso italiano, ou seja, em um caso no qual a hegemonia no nascesse da fbrica:

    a americanizao exige um determinado ambiente, uma

    determinada estrutura social (ou a vontade decidida de cri-la) e um

    determinado tipo de Estado. O Estado o Estado liberal, no no sentido do

    liberalismo alfandegrio ou da efetiva liberdade poltica, mas no sentido

    mais fundamental da livre iniciativa e do individualismo econmico que

    alcana atravs de meios prprios, como sociedade civil, atravs do

    prprio desenvolvimento histrico, o regime da concentrao industrial e

    do monoplio. O desaparecimento do tipo semifeudal de acumulador de

    capitais , na Itlia, uma das condies bsicas para a transformao

    industrial (, em parte, a prpria transformao), e no uma conseqncia.

    A poltica econmico-financeira do Estado o instrumento para este

    desaparecimento: amortizao da dvida pblica, nominatividade dos

    ttulos e maior peso da taxao direta na formao da receita

    oramentria.67

    65 Idem, p. 2145-2146. 66 Idem. 67 Idem, p. 2157.

  • 24

    O que Gramsci aponta aqui a existncia de um complexo processo poltico de

    carter reacionrio que, contraditoriamente, age no sentido de promover alteraes na

    estrutura das classes dominantes italianas e, atravs do Estado reorganizar a indstria e

    modernizar a economia.68 O Estado assumiria, assim a qualidade de grupo financeiro

    (holding estatal, dir Gramsci), coordenando a poupana pblica e colocando-a

    disposio da grande indstria, agindo como um investidor de mdio e longo prazo,

    realizando aquelas funes que nos Estados Unidos foram levadas a cabo de forma

    espontnea pela prpria burguesia.69

    Ora, tais transformaes encontram-se firmemente vinculadas s relaes de

    foras entre as classes antagnicas. A criao de um novo trabalhador implica na

    destruio ou transformao dos trabalhadores at ento existentes, de seus movimentos

    sociais e de suas formas organizativas. Classes, movimentos e organizaes no

    desaparecem ou mudam sem oporem uma profunda resistncia a esses processos. Eis

    porque o americanismo e o fordismo no so apenas uma resposta a uma tendncia

    econmica, como tambm uma resposta poltica fora do proletariado expressa na

    Revoluo Russa. Como formas de concreo da revoluo passiva so uma contra-

    tendncia poltica que se exerce no campo da produo, atuando sobre o processo de

    trabalho.70

    Concluso: a anti-revoluo passiva como futuro

    Da economia poltica; da poltica economia. Ou, para sermos ainda mais

    explcitos, da estrutura superestrutura; da superestrutura estrutura. Estas dimenses

    no se encontram divorciadas no pensamento gramsciano. Embora no percurso que vai da

    anlise do Risorgimento do fascismo, americanismo e fordismo seja possvel perceber

    uma nfase maior no tema da estrutura neste ltimo bloco temtico, a poltica continua a

    ocupar um lugar central.

    68 Donatella Di Benedetto, Americanismo e corporativismo in Gramsci. Critica Marxista, Roma, n. 3-4, p. 88-97, mag.-ago. 2000., 2000, p. 91. 69 Antonio Gramsci, op. cit., p. 2175 70 Christine Buci-Glucksmann, Entrevista com Christine Buci-Glucksmann. Revista Mexicana de Sociologia, v. XLII, n. 1, 1980, p. 294-295.

  • 25

    O que a problemtica da revoluo passiva nos traz uma chave interpretativa

    para a anlise das formas de atualizao da dominao capitalista no mundo

    contemporneo. O argumento da revoluo passiva como interpretao da idade do

    Risorgimento e de toda poca complexa de mudana histrica, dir Gramsci.71

    Processos esses que se desenvolvem na articulao da economia e da poltica. Com o

    conceito de revoluo passiva, Gramsci procuraria interpretar no somente a ascenso e

    consolidao do bloco histrico burgus, mas, tambm, a defesa de suas condies

    fundamentais de existncia e de princpio: a primazia da poltica-hegemonia burguesa na

    direo do processo produtivo, do prprio Estado e, portanto, da cultura.72

    Chave interpretativa do programa da burguesia. Crtica desse programa. isto o

    que o conceito pretende fornecer e no um guia positivo de ao, como na verso de

    Benedetto Croce. A frmula de revoluo passiva, que em Vicenzo Cuoco possua um

    valor de advertncia e em Gramsci era critrio de interpretao, transformou-se, para uma

    importante corrente intelectual e poltica italiana, em uma concepo positiva, uma moral

    e um programa poltico.73 A possibilidade de uma transio sem revoluo fascinou esses

    intelectuais que viam nela o passaporte de entrada da pennsula italiana na modernidade

    capitalista.

    Expoente da intelectualidade italiana, inspirador das correntes revisionistas alem

    e francesa, Croce ser criticado por Gramsci devido a sua moderao poltica, que

    estabelece como nico mtodo de ao poltica aquele no qual o progresso, o

    desenvolvimento histrico o resultado da dialtica de conservao inovao.74 Em

    linguagem moderna, dir o marxista italiano, tal forma de historicismo se chama

    reformismo.75

    A moderao poltica de Croce transparece em seus ensaios histricos,

    principalmente em Storia dEuropa e Storia dItalia. Neles, suas narraes tm incio a

    partir de 1815 e 1871, ou seja, a partir do prprio momento da restaurao. Alla fine

    71 Idem, p. 1827. 72 Dora Kanoussi e Javier Mena, La revolucin pasiva: una lectura a los Cuadernos de la Crcel. Mxico D.F.: Universidad Autnoma de Puebla, 1985, p. 126. 73 Antonio Gramsci, op. cit, p. 1220. 74 Idem, p. 1325. Para a relao entre Benedetto Croce e as correntes revisionistas de sua poca ver Antonio Gramsci, op. cit., p. 1213-1214. O tema desenvolvido por Edmundo Fernandes Dias, op. cit.. 75 Idem.

  • 26

    dellavventura napoleonica assim que Croce comea a Introduzione ad una storia

    dEuropa nel secolo decimonono.76 O momento da luta suprimido da histria, ficando

    fora dela o momento no qual se elaboram e agrupam e alinham-se as foras em

    contraste, o momento em que um sistema tico-poltico se dissolve e outro se elabora a

    ferro e fogo, no qual um sistema de relaes sociais se desintegra e decai e outro sistema

    surge e se afirma, e, pelo contrrio.77 Na histria de Croce s tem lugar o momento de

    expanso cultural, ou tico-poltico, no qual os grupos dirigentes j consolidaram sua

    dominao.

    A depurao que Croce produz na histria tem, segundo Gramsci, o objetivo de

    criar um movimento ideolgico correspondente quele da poca da restaurao, ou seja,

    um movimento que permita a ascenso da burguesia sem lanar mo da forma jacobino-

    napolenica, satisfazendo as demandas populares em pequenas doses, atravs do estrito

    cumprimento da lei, salvando, dessa forma, as velhas classes feudais e evitando a reforma

    agrria e o levante das massas populares. Assim, por uma dessas ironias da histria,

    Croce, chegou a contribuir com o fortalecimento do fascismo, fornecendo-lhe uma

    justificao ideolgica.

    O levante das massas populares. Esse continuava a ser o espectro que rondava a

    Europa. Temor atualizado. No se tratava mais do medo s hordas sans-culottes,

    inaugurado pela revoluo Francesa, e sim o pavor provocado pelo moderno proletariado,

    medo esse que se no foi criado, foi, sem dvida nenhuma, elevado ensima potncia

    pela Revoluo Russa.

    A concepo positiva da revoluo passiva, afirma o marxista italiano, baseia-se

    em um erro filosfico de origem prtica: a pressuposio mecnica de que no processo

    dialtico a tese deve ser conservada pela anttese para no destruir o prprio processo,

    que, portanto, previsto como uma repetio infinita, mecnica, arbitrariamente pr-

    fixada.78 Tal concepo no s restringe a amplitude da transformao social, colocando

    arreios na histria, como define, de antemo, o que deve ser preservado da antiga forma

    social e poltica.

    76 Benedetto Croce, Introduzione ad una storia dEuropa nel secolo decimonono. Bari: Laterza, 1931, p. 7. 77 Antonio Gramsci, op. cit., p. 1227. 78 Idem, p. 1221.

  • 27

    Essa forma de ver o processo dialtico prpria dos intelectuais, afirma o

    marxista italiano. Estes concebem a si mesmos como rbitros de toda luta poltica real,

    como personificaes da passagem do momento econmico-corporativo ao momento

    tico poltico, em suma, como a prpria sntese do processo dialtico. Ora, dir Gramsci,

    na histria real, a anttese tende a destruir a tese, a sntese ser uma superao, mas sem

    que se possa estabelecer a priori o que da tese ser conservado na sntese (...) Que isso

    ocorra de fato questo de poltica imediata, porque na histria real o processo

    dialtico se esmia em momentos parciais inumerveis.79

    O anti-Croce gramsciano s filosfico na medida em que tambm poltico. Ou

    melhor, ele poltico e por isso, tambm filosfico: Da luta contra o morfinismo

    poltico que exala de Croce e de seu historicismo.80 Gramsci rejeita, portanto, toda

    leitura positiva da revoluo passiva e destaca uma utilizao do conceito como critrio

    de interpretao: Portanto, no teoria da revoluo passiva como programa, como foi

    nos liberais italianos do Risorgimento, mas como critrio de interpretao na ausncia de

    outros elementos ativos em modo dominante.81 Se a revoluo passiva no , seno o

    prprio reformismo molecular da burguesia, a anti-revoluo passiva , para Gramsci, o

    anti-reformismo. A luta contra a revoluo passiva , dessa maneira, uma luta contra as

    formas atuais de exerccio da poltica. A anti-revoluo passiva exige, para Gramsci, uma

    anttese vigorosa,82 capaz de destruir a tese atravs da atividade do antagonista.

    79 Idem. 80 Idem. 81 Idem. 82 Idem.