acesso à justiça por meio da educação: a importância dos conteúdos de direito para o projeto...
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A presente monografia investiga a educação na perspectiva do acesso à justiça. Para isto, traça-se um panorama sobre o acesso à justiça como direito fundamental, sua evolução conceitual no campo da Sociologia Jurídica, bem como sua dimensão de dever a ser prestado pelo Estado brasileiro, através da Defensoria Pública. Discutem-se ainda outras instâncias que colaboram na conquista do acesso à justiça pela população, tais como as assessorias jurídicas populares, os movimentos sociais e as associações de bairro, para demonstrar que existe uma demanda a ser desenvolvida, pela escola pública brasileira, fruto do mesmo dever estatal de garantia do acesso à justiça. Investiga-se, a seguir, o papel da educação como forma de propiciar o conhecimento de direitos fundamentais e das estruturas estatais pela população. Com este fim, descreve-se o sistema educacional brasileiro, a educação como direito social e o projeto pedagógico formativo do cidadão no país. São tecidas considerações a respeito da cidadania e sua afinidade conceitual com o acesso à justiça e, em seguida, vê-se em que medida a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, as Diretrizes Curriculares Nacionais e os Parâmetros Curriculares Nacionais abordam a questão da cidadania, perpassando pelos temas transversais e a transdisciplinaridade. Conclui-se sobre a importância de uma educação em direito, aprofundando o projeto educacional brasileiro, uma vez que este não tem a devida eficácia. O trabalho posiciona-se, assim, contrariamente à inserção de ensino jurídico, em uma matéria própria, por meio de lei.TRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE DIREITO
CURSO DE GRADUAO EM DIREITO
FREDERICO FAGUNDES SOARES
ACESSO JUSTIA POR MEIO DA EDUCAO: A IMPORTNCIA DOS CONTEDOS DE DIREITO PARA O PROJETO
EDUCACIONAL DO CIDADO BRASILEIRO
Salvador
2014
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FREDERICO FAGUNDES SOARES
ACESSO JUSTIA POR MEIO DA EDUCAO: A IMPORTNCIA DOS CONTEDOS DE DIREITO PARA O PROJETO
EDUCACIONAL DO CIDADO BRASILEIRO
Monografia apresentada ao Programa de Graduao em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para a obteno do grau de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Samuel Santana Vida
Salvador
2014
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TERMO DE APROVAO
FREDERICO FAGUNDES SOARES
ACESSO JUSTIA POR MEIO DA EDUCAO: A IMPORTNCIA DOS CONTEDOS DE DIREITO PARA O PROJETO
EDUCACIONAL DO CIDADO BRASILEIRO
Monografia apresentada ao Programa de Graduao em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obteno do grau de Bacharel em Direito.
Aprovada em ____ de _______________ de 2014.
Banca Examinadora
_______________________________________________ Orientador: Prof. Samuel Santana Vida
Professor da Universidade Federal da Bahia Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Estadual de Feira de Santana
_______________________________________________ Prof. Me. Maurcio Azevedo Arajo
Professor da Universidade Federal da Bahia Mestre em Direito pela Universidade de Braslia
_______________________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Soares de Freitas
Professor da Universidade Federal da Bahia Doutor em Sociologia pela Universidade de Braslia
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Aos entusiastas da escola pblica, minha modesta colaborao.
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer, primeiramente, minha famlia, base de tudo o que
mais prezo, para quem a concluso deste trabalho um motivo de imensa alegria.
Assim, agradeo a minha me, Carmem, que tanto quis que eu me formasse em
Direito, pelo amor e dedicao dados a mim diariamente. A meu pai, Roberto, pela
confiana permanente na minha inteligncia e em meu potencial de alcanar novas
conquistas. A meu irmo, Felipe, que me ensinou a ser dedicado e a amar o
conhecimento, pela certeza de que nunca estarei sozinho.
Agradeo tambm a Deus, por zelar pelos meus caminhos, e a todos aqueles,
com destaque aos professores, que me fizeram enxergar um pedao de mar em
meio ao serto das leis e ver, assim, o Direito como ferramenta de transformao
social. Ao Professor Samuel Vida, pela orientao tranquilizadora e firme, no s
neste trabalho, mas durante parte do curso de Direito.
Aos amigos da Faculdade de Direito, Larissa, Manuela, Bia, Flvia, Ribeiro,
Iamara e Allana, pela valiosa companhia, nos momentos de descontrao e de
desalento. Especialmente a Allana, pela cumplicidade, lealdade e ateno, em cada
percalo e por todas as alegrias.
A Isabella, Marquinhos, Marlia, Verena e Lus, pelos melhores anos que j tive
e por tanto sentimento mtuo.
Aos colegas e amigos do Ministrio Pblico da Bahia, que depositaram em mim
a confiana e a compreenso de que precisei em especial, Dra. Solange, Luciana,
Bruna, Larissa, Rafael, Gabriel, Cntia, Anderson, Pedro e Mayra.
A Marcos Dourado, pela preocupao constante e pela presena especial e
transformadora em minha vida.
A Marcos Cndido, pelo auxlio e disponibilidade no emprstimo de livros e por
ser o exemplo de sabedoria que tenho como norte para o meu futuro.
A meus familiares, por todo o carinho e pensamentos positivos, e aos ex-
colegas e amigos jornalistas, pela minha primeira vivncia universitria.
Meu mais sincero obrigado a todos aqueles que, de alguma forma, participaram
de todos esses anos e me ajudaram a finalizar o presente trabalho.
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DAS UTOPIAS
Se as coisas so inatingveis... ora!
no motivo para no quer-las...
Que tristes os caminhos, se no fora
a mgica presena das estrelas!
Mario Quintana1
ODE
Para ser grande, s inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
S todo em cada coisa. Pe quanto s
No mnimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Fernando Pessoa2
Telle est la vie
Tomber sept fois
Et se relever huit.3
1 QUINTANA, Mario. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2005. 2 PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. So Paulo: L&PM Pocket, 2006. 3 Assim a vida / Cair sete vezes / E levantar-se oito. Poema japons que acompanha a boneca Daruma, citado em BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. So Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 2003.
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SOARES, Frederico Fagundes. Acesso justia por meio da educao: a importncia dos contedos de Direito para o projeto educacional do cidado brasileiro. Monografia (Graduao em Direito) Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
RESUMO
O presente trabalho investiga a educao na perspectiva do acesso justia. Para isto, traa-se um panorama sobre o acesso justia como direito fundamental, sua evoluo conceitual no campo da Sociologia Jurdica, bem como sua dimenso de dever a ser prestado pelo Estado brasileiro, atravs da Defensoria Pblica. Discutem-se ainda outras instncias que colaboram na conquista do acesso justia pela populao, tais como as assessorias jurdicas populares, os movimentos sociais e as associaes de bairro, para demonstrar que existe uma demanda a ser desenvolvida, pela escola pblica brasileira, fruto do mesmo dever estatal de garantia do acesso justia. Investiga-se, a seguir, o papel da educao como forma de propiciar o conhecimento de direitos fundamentais e das estruturas estatais pela populao. Com este fim, descreve-se o sistema educacional brasileiro, a educao como direito social e o projeto pedaggico formativo do cidado no pas. So tecidas consideraes a respeito da cidadania e sua afinidade conceitual com o acesso justia e, em seguida, v-se em que medida a Lei de Diretrizes e Bases da Educao, as Diretrizes Curriculares Nacionais e os Parmetros Curriculares Nacionais abordam a questo da cidadania, perpassando pelos temas transversais e a transdisciplinaridade. Conclui-se sobre a importncia de uma educao em direito, aprofundando o projeto educacional brasileiro, uma vez que este no tem a devida eficcia. O trabalho posiciona-se, assim, contrariamente insero de ensino jurdico, em uma matria prpria, por meio de lei.
PALAVRAS-CHAVE: acesso justia; educao jurdica; cidadania; sociologia jurdica.
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ABSTRACT
This paper investigates education from the perspective of access to justice. For this, we make an overview of access to justice as a fundamental right, its conceptual evolution in the field of Sociology of Law, as well as its dimension as a duty to be provided by the Brazilian government, through the Public Defenders Office. Are also discussed other instances that collaborate in achieving access to justice by the population, such as the popular legal counseling, social movements and neighborhood associations, to demonstrate that there is a demand to be developed by the Brazilian public school, which is result of the same states duty to guarantee access to justice. We investigate, then, the role of education as a way to provide knowledge of fundamental rights and of state structures by population. For this purpose, we describe the Brazilian educational system, education as a social right and the formative pedagogical project of the citizen in this country. Considerations regarding citizenship and its conceptual affinity with access to justice are made and then we see the extent the Law of Guidelines and Bases of Education, the National Curriculum Guidelines and the National Curricular Parameters address the issue of citizenship, passing by cross-cutting themes and transdisciplinarity. We conclude on the importance of an education in law, intensifying the Brazilian educational project, since it does not have adequate efficacy. The paper stands contrary to the insertion, through law, of legal education in a separate school subject.
KEYWORDS: access to justice; legal education; citizenship; legal sociology.
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SUMRIO
1 INTRODUO ...................................................................................................... 9
2 ACESSO JUSTIA ....................................................................................... 11
2.1 ACESSO JUSTIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL ............................. 11
2.2 ACESSO JUSTIA: EVOLUO CONCEITUAL SOB A PERSPECTIVA SOCIOLGICA ....................................................................................................
13
2.3 ACESSO JUSTIA: DEVER PRESTACIONAL DO ESTADO ................... 21
2.3.1 Histrico da assistncia jurdica no Brasil ............................................ 23
2.3.2 Defensoria Pblica ................................................................................... 29
2.4 OUTRAS INSTNCIAS DO ACESSO: ASSESSORIA JURDICA POPULAR, MOVIMENTOS SOCIAIS E ASSOCIAES DE BAIRRO .................................
33
3 EDUCAO JURDICA: UMA DECORRNCIA DO DEVER DE ASSISTNCIA DO ESTADO .............................................................................
39
3.1 EDUCAO E DIREITO EDUCACIONAL ..................................................... 41
3.2 EDUCAO PARA A CIDADANIA ................................................................ 48
3.2.1 Cidadania: anlise histrica e conceito ................................................. 48
3.2.2 Educando o cidado: anlise do projeto educacional brasileiro ......... 54
3.2.2.1 Educao Bsica ..................................................................................... 60
3.2.2.2 Educao Infantil ..................................................................................... 67
3.2.2.3 Ensino Fundamental ................................................................................ 68
3.2.2.4 Ensino Mdio ........................................................................................... 76
3.2.3 Educao em Direitos Humanos ............................................................. 83
3.2.4 Comentrios acerca dos Projetos de Lei sobre a insero de disciplinas e temticas de Direito na Educao Bsica ................................
91
3.3 ENSINO JURDICO NA EDUCAO BSICA: UMA DISCUSSO ............. 95
4. CONSIDERAES FINAIS ............................................................................ 100
REFERNCIAS ................................................................................................... 104
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1. INTRODUO
O presente trabalho monogrfico busca analisar o ensino de noes de
Direito, incorporadas educao formal bsica brasileira, como forma de colaborar
para o acesso justia no pas. A anlise do tema ser feita, assim, na perspectiva
da sociologia jurdica4, quanto ao acesso justia, bem como na seara do direito
constitucional (direitos fundamentais), com inseres na cincia da educao.
Almeja-se a interdisciplinaridade5 entre os referidos setores do conhecimento,
considerando que no se pretende fazer apenas uma articulao argumentativa de
tais reas; a pesquisa objetiva uma real interao discursiva, com vistas a transpor
as barreiras entre as disciplinas.
Conforme o paradigma cientfico emergente (SANTOS, 2004), as antigas
dicotomias, a exemplo daquela entre sujeito e objeto, devem ser superadas. O
pesquisador deve ser visto, assim, como um sujeito ativo na pesquisa e no mais
de forma impessoal. O presente estudo segue esta perspectiva, uma vez que parte
da vivncia e das subjetividades do pesquisador. Como tcnico administrativo do
Ministrio Pblico da Bahia, diversas inquietaes apareciam no dia a dia, ao
atender a vtimas, acusados de crimes e familiares de ambos. Em especial, tornava-
se patente o total desconhecimento do papel das instituies pblicas, bem como o
desamparo daqueles que procuravam o auxlio do Parquet. Da experincia como
estudante de Comunicao Social Jornalismo e, posteriormente, de Direito (e,
alm disso, membro do SAJU UFBA6), tornou-se claro que parte do aprendizado
jurdico seria de suma importncia para toda a sociedade e no apenas para os
futuros bacharis.
A inquietao que fez surgir a ideia desse tema ajuda, sem dvida, a
demonstrar a sua importncia e atualidade. Tal sentimento foi incensado, durante a
faculdade, com as leituras, nas disciplinas Histria do Direito e Sociologia Jurdica,
4 Para efeito deste estudo, no nos aprofundaremos na distino entre Sociologia do Direito e Sociologia Jurdica, bem explanada por Junqueira (1993). 5 A transdisciplinaridade uma meta a ser alcanada, por transpor as barreiras entre os conhecimentos das disciplinas, ainda visveis no tratamento interdisciplinar. Considerando o grau de dificuldade em concretiz-la, reconhecemos as limitaes do presente estudo. 6 Servio de Apoio Jurdico SAJU, projeto de extenso da Faculdade de Direito da UFBa.
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sobre o deficitrio acesso justia, visto, em paralelo, faticamente. por esse
prisma que se busca investigar se uma interveno no sistema de educao
brasileiro poderia colaborar para a obteno de maior conhecimento dos direitos,
minorando as violaes e desrespeitos praticados.
Trata-se, portanto, de uma pesquisa que se justifica pela prpria relevncia
social do tema discutido, provocando a reflexo no seio da sociedade sobre outras
formas de obter acesso justia, alm daquelas j estabelecidas. Alm disso,
acredita-se que contribuir para a comunidade acadmica, considerando que foram
encontrados poucos trabalhos que associem ensino jurdico na educao bsica e o
acesso justia, o que poder promover um ambiente de discusso na sociedade a
respeito do assunto, considerando que tramitam, no Poder Legislativo Federal,
projetos de lei afins temtica.
Objetiva-se, desta forma, investigar se a insero de Direito no currculo do
ensino bsico trar benefcios para o acesso a uma ordem de valores e direitos que
emana da Constituio Federal brasileira, bem como traar, de forma primria,
linhas demarcatrias do contedo a ser ministrado, na perspectiva dos princpios
norteadores da Lei de Diretrizes e Bases.
Adota-se a vertente jurdico-sociolgica, em face da anlise zettica a que se
prope a pesquisa, uma vez que se adota como setor do conhecimento tambm a
sociologia jurdica. A linha metodolgica, por sua vez, que permeia essa pesquisa
a da tecnologia social cientfica, uma vez que a produo terica est direcionada a
questes sociais (GUSTIN E DIAS, 2010).
Usa-se, assim, o raciocnio dedutivo, uma vez que se busca propor uma regra
geral a necessidade de implantar ensino jurdico no nvel mdio da educao
formal. O tipo jurdico-propositivo o adotado, tratando-se de uma pesquisa terica
(estratgia metodolgica) que analisa o contedo das Diretrizes Curriculares
Nacionais (DCN), dos Parmetros Curriculares Nacionais (PCN) e dos projetos de lei
relacionados ao tema.
O trabalho foi dividido em dois blocos o primeiro captulo estabelece um
panorama do acesso justia e ao Direito no Brasil; o segundo, por sua vez,
debrua-se sobre a educao direcionada a obter tal acesso.
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2. ACESSO JUSTIA
2.1 O ACESSO JUSTIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Direitos fundamentais, nas palavras de Canotilho (1998, p. 359), so os
direitos do homem, jurdico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-
temporalmente. Opem-se, assim, aos denominados direitos do homem ou direitos
naturais, advindos da prpria natureza humana, uma vez que so direitos vigentes
objetivamente em um ordenamento (CANOTILHO, 1998, p. 359).
Para Vieira de Andrade (2001), no entanto, os direitos fundamentais podem
ser vistos de forma tridimensional, sob as perspectivas jusnaturalista,
internacionalista e constitucional. Adotamos aqui apenas a viso constitucional do
termo, na esteira do que preleciona Canotilho (1998), sem embargo de salientar que
o aspecto internacionalista se faz de grande importncia, com a globalizao e as
complexas relaes entre pases aps as Grandes Guerras do sculo XX1. Por outro
lado, em que pesem as importantes reflexes de Bezerra (2007), que retoma o
direito natural, questionando a execrao deste nos meios jurdicos, a perspectiva
jusnaturalista no ser vista neste estudo, considerando-se que esta no teria
qualquer valor sem a constitucionalizao (AMARAL, 2010, p. 211) e que seu
contedo se ope veementemente ao paradigma multicultural apresentado por
Semprini (1999), que almejamos seguir.
O acesso justia , assim, um direito fundamental consubstanciado no art.
5, LXXIV da Constituio Federal: o Estado prestar assistncia jurdica integral e
gratuita aos que comprovarem insuficincia de recursos (BRASIL, 2014a). Trata-se
de um direito de carter dual um direito charneira, como evidenciou Boaventura de
Sousa Santos (1997), cuja inobservncia implica a no-efetivao de todos os 1 Esta perspectiva se mostra relevante, considerando, ainda, os Tratados de Direitos Humanos pactuados entre pases, bem como com o status de Emenda Constitucional que estes podem ter, a teor do 3 do art. 5, ou carter supralegal, conforme deciso do STF sobre o Pacto de San Jos da Costa Rica. Reitere-se que os Tratados so integrados ao ordenamento brasileiro, tornando despicienda a anlise da perspectiva internacionalista
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demais direitos sociais, que passariam a constituir apenas declaraes polticas sem
a devida eficcia (SANTOS, 1997).
Em sentido semelhante, para Canotilho (1998), o acesso ao direito2 e aos
Tribunais consiste em um dos princpios basilares do regime geral dos direitos
fundamentais (haveria, alm destes, o princpio da universalidade e o da igualdade)3,
ou seja, um princpio comum a todos os direitos e estruturante do Estado de Direito
(CANOTILHO, 1998, p. 395).
Sendo dedicado to somente o inciso supramencionado ao acesso justia,
faz-se necessrio compreender o alcance desta garantia, bem como de que forma
ela concretizada, no ordenamento. Conforme o 1, art. 5 da Carta Magna, os
direitos fundamentais tm aplicabilidade imediata, afastando-se o carter de norma
programtica. Mendes, Coelho e Branco (2010, p. 252), no entanto, afirmam que
isso no significa que sero sempre gerados, automaticamente, direitos subjetivos,
concretos e definitivos, havendo, portanto, casos em que tais normas constitucionais
no so autoaplicveis. Como exemplo, aduzem que o direito de acesso Justia
no dispensa legislao que fixe a estrutura dos rgos prestadores desse servio e
estabelea normas processuais que viabilizem o pedido de soluo de conflitos pelo
Estado, entregando-se, assim, considervel margem de discricionariedade ao
Poder Legislativo (MENDES, COELHO E BRANCO, 2010, p. 259).
Entendemos que o tratamento dedicado a esse direito por estes autores, bem
como por outros constitucionalistas4, equivocado. Neste caso particular,
primeiramente, a Constituio Federal delineia, de forma conclusiva, um dever de
prestao estatal de assistncia jurdica, institucionalizando, em outro captulo, a
Defensoria Pblica, como funo essencial justia, direcionada a garantir a
concretude desse Direito. Assim, j se conferiu eficcia mnima e imediata ao
dispositivo. Em segundo lugar, Mendes, Coelho e Branco (2010), assim como
Canotilho (1998), restringem o escopo do direito em exame noo de acesso ao
Judicirio.
2 Embora Canotilho (1998) mencione o termo acesso ao Direito de forma autnoma, toda a teoria construda pelo autor assenta apenas sobre o acesso ao Poder Judicirio. 3 Observe-se que, embora esse doutrinador se baseie, neste ponto, no ordenamento portugus, a base da Teoria Constitucional aplicvel ao sistema brasileiro, dadas as similaridades. 4 Jos Afonso da Silva (2005) dedica um tpico, por exemplo, para o que denomina Princpio da Proteo Judiciria. Alexandre de Moraes (2003), por sua vez, comenta apenas o acesso ao Judicirio, na perspectiva da necessidade de esgotar a Justia Desportiva.
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Da interpretao do dispositivo constitucional, extrai-se que a assistncia a
ser prestada pelo Estado jurdica no apenas judiciria , devendo ser integral e
gratuita. Apesar de o Poder Constituinte ter sido bastante sucinto em relao ao
acesso justia, se comparado ao Estado portugus5, resta claro que uma
concepo mais abrangente de acesso justia, como a que veremos a seguir,
encontra respaldo no dispositivo em anlise.
2.2 ACESSO JUSTIA: EVOLUO CONCEITUAL SOB A PERSPECTIVA
SOCIOLGICA
parte de seu fulcro normativo, o tema envolve questes estruturantes da
formao da sociedade. Como aborda Cappelletti (1988), o acesso justia, no
Estado liberal burgus, nos sculos XVIII e XIX, no era discutido, uma vez que no
se via o Estado como materializador de direitos tidos como naturais, os quais, por
sua natureza, no necessitariam de uma ao protetora, pois seriam anteriores
formao do Estado.
A justia era, assumidamente, segundo este autor, exclusiva queles que
poderiam arcar com suas custas, seguindo a lgica da igualdade formal que
vigorava. A anlise sociolgica, poca, era normativa-substantivista, sem uma
maior anlise das instituies, do processo e da aplicao do direito (SANTOS,
1997). O ensino jurdico, por sua vez, tambm permanecia margem, de forma que
5 A Constituio portuguesa foi mais explcita quanto extenso do direito, dedicando a este um artigo inteiro: Artigo 20. Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva 1. A todos assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, no podendo a justia ser denegada por insuficincia de meios econmicos. 2. Todos tm direito, nos termos da lei, informao e consulta jurdicas, ao patrocnio judicirio e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade. 3. A lei define e assegura a adequada proteco do segredo de justia. 4. Todos tm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de deciso em prazo razovel e mediante processo equitativo. 5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidados procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo til contra ameaas ou violaes desses direitos. (grifo nosso).
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as barreiras ao acesso no eram sequer reconhecidas como um problema
(CAPPELLETTI, 1988, p. 4).
Assim, muito embora j se discutisse a temtica do acesso justia na
ustria e na Alemanha, no incio do sculo XX, tal questo vem tona, de fato,
apenas com a busca por igualdade material e a criao de novos direitos sociais e
econmicos, no contexto do Constitucionalismo Social, marcado pelas Constituies
de Weimar e do Mxico, resultante da luta social de diferentes grupos (processo que
se intensificou na dcada de 1930 e no ps-guerra). Nesse sentido, Cappelletti
(1988, p. 4) especifica:
esses novos direitos humanos (...) so, antes de tudo, os necessrios para tornar efetivos, quer dizer, realmente acessveis a todos, os direitos antes proclamados. Entre esses direitos garantidos nas modernas constituies esto os direitos ao trabalho, sade, segurana material e educao. Tornou-se lugar comum observar que a atuao positiva do Estado necessria para assegurar o gozo de todos esses direitos sociais bsicos.
Tais fatores, aliados crise na administrao da justia que decorre do
aumento das lides em razo da conquista desses novos direitos, revelando a
necessidade de repensar a poltica judiciria so responsveis pelo surgimento de
uma anlise sociolgica sobre o acesso diferenciado ao direito e justia por grupos
sociais mais diversos em especial, os economicamente vulnerveis (SANTOS,
1997).
Assim, segundo Cappelletti (1988, p. 12), aps 1965, o interesse em torno do
acesso justia se deu em trs movimentos, mais ou menos sucessivos no tempo
o primeiro debruou-se sobre a assistncia judiciria (garantindo-se, por diversos
modelos, especialmente nos pases desenvolvidos, que quem no possa arcar com
as custas demande judicialmente), o segundo sobre a representao de interesses
difusos (permitindo que se avance na tutela de direitos do consumidor e
concernentes ao meio ambiente, por exemplo, ainda mais custosos para que um
cidado sozinho, como antes se pretendia, exija o cumprimento) e o terceiro, que
engloba os outros dois, situa a discusso sobre o acesso justia, de forma a
combater os obstculos a este de forma integrada e abrangente, incluindo solues
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extrajudiciais e procedimentos de preveno de demandas (CAPPELLETTI, 1988, p.
25).
Junqueira (1996) chama ateno para o caso do Brasil, que, diferentemente
de outros pases latino-americanos, no enviou suas experincias de acesso
justia ao Florence Project, coordenado por Cappelletti e Garth, que originou a obra
clssica Acesso justia. Segundo a autora, os estudos sobre acesso justia, no
pas, iniciaram-se to somente na dcada de 80, de forma que no visualizamos,
nos trabalhos nacionais, a metfora das trs ondas descrita por Cappelletti (1988).
Destaca, ainda, que as discusses a respeito do tema so provocadas no pela
crise do Estado de bem-estar social, como acontecia ento nos pases centrais, mas
sim pela excluso da grande maioria da populao de direitos sociais bsicos, entre
os quais o direito moradia e sade (JUNQUEIRA, 1996, p. 2).
Verifica-se uma polarizao das pesquisas sobre dois eixos o judicial e o
extrajudicial (que passa a englobar o anterior). Assim compreendemos o quanto
explana, acerca do conceito de acesso justia, Rodrigues (1994), que identifica
dois sentidos doutrinrios mais frequentes para a expresso, no Brasil. A primeira
acepo associa justia a Judicirio, como nica forma de regulao de condutas
que infringem normas jurdicas, bem como de soluo de conflitos. A segunda, por
sua vez, torna mais amplo o termo justia, que passa a ser uma ordem de valores
e direitos fundamentais para a convivncia em sociedade. O acesso estaria, neste
caso, ligado a uma ideia de subjetividade e regulao extrajurdica, bem como a
uma noo valorativa de justia no necessariamente vinculada s instituies.
A posio adotada neste trabalho a segunda, na qual se insere a ideia de
acesso ao judicirio, como apontado por Cappelletti (1998), na apresentao da
terceira onda. Nesse sentido, conforme afirma Sadek (2007, p. 10), acesso
justia, acima de tudo, o conhecimento de direitos e o reconhecimento de
situaes de quebra ou de ameaa a direitos. Esta seria a barreira basilar ao
acesso justia, pois, especialmente em interao com as demais, a seguir
explicitadas, interfere na prpria aptido de reconhecer a existncia de um direito
juridicamente exigvel. Trata-se do que entendemos como acesso ao Direito, parte
fundamental do acesso justia condio mnima para o exerccio da cidadania,
nos termos discutidos por Canivez (1991), conforme tpico 3.2.1.
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Em um pas com educao deficitria e indicadores sociais ainda alarmantes,
o desconhecimento dos prprios direitos impera, de modo que o acesso a uma
ordem de valores e direitos fundamentais no se d de modo satisfatrio, dada a
quantidade de violaes a direitos, em especial os direitos humanos, que
acontecem. Exemplo disso a quantidade de linchamentos6, considerados muitas
vezes pela populao como forma de justia (o que deixa clara a subjetividade
desse topi) que ainda acontecem no Brasil, bem como os abusos de poder
praticados pelas prprias instituies estatais em especial as Polcias.
Tais situaes demonstram o vnculo fraco que a populao brasileira tem
tanto com as instituies estatais como com o direito em si, como veculo de justia.
Endossando a ideia de fragilidade desse vnculo, Campilongo (1995) cita uma
pesquisa do IBGE sobre a relao da populao com o Judicirio, a qual informa
que a maioria (55%) dos conflitos jurdicos nos quais cidados estiveram envolvidos
no foi solucionada com a interveno nem do Poder Judicirio, nem de advogados.
65%, por sua vez, no acreditam nos servios jurdicos. No mesmo sentido, uma
pesquisa realizada por Grottera (1998) revela que, quando perguntados sobre quem
ajudaria mais a fazer justia para a maioria dos brasileiros, apenas 10% dos 200
entrevistados apontaram a Justia estruturada pelo Poder Judicirio. A resposta
majoritria (84%), em tal estudo, indicou a mdia como provedora de justia7.
Salientamos que, com a amplitude conceitual do acesso justia, no se
pretende desmerecer a atuao judicial, em que pese esta seja alvo de diversas
crticas pertinentes. Entendemos, como Streck (2001), que o direito e a dogmtica
tm importncia fundamental, em uma conjuntura em que as polticas pblicas
falham em efetivar direitos fundamentais e nisso se insere o Judicirio. Preservada
a importncia do Judicirio como concretizador de direitos, passamos a tratar dos
obstculos no acesso justia, seja de modo judicial ou extrajudicial.
6 Sobre linchamentos, ver estudo de Jos de Sousa Martins, As condies do estudo sociolgico dos linchamentos no Brasil, de 1995, com dados quantitativos dos linchamentos no pas, bem como sobre os linchamentos noticiados. Os linchamentos tm sido alvo de novos debates nos ltimos anos, considerando a nova onda justiceira que se v nos jornais consideramos fenmeno interligado questo do acesso justia sobre a qual a academia precisa se aprofundar. 7 Podem ser apontados, como exemplos, os programas sensacionalistas Se Liga Boco e Na Mira, fortemente associados, no imaginrio popular, ideia de justia. Tais atraes televisivas frequentemente violam direitos da criana e do adolescente e corroboram a construo de uma cultura pautada na violncia. Para uma anlise mais profunda, ver Ferreira et al (2011).
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Do ponto de vista econmico, conclui-se que os custos de um processo
judicial configuram um dos principais empecilhos ao Judicirio, especialmente, tendo
em vista que o aparato dispendioso pago pelo Estado, que inclui juzes, prdios para
abrigar litgios e processos, entre outras despesas. Estudos na Alemanha, Inglaterra
e Itlia apontaram para o fato de que, embora a justia civil seja cara, de modo
geral, ela proporcionalmente mais cara para cidados hipossuficientes, cujas
causas tm menor valor. A durao mdia de um processo judicial outro fator que
vitimiza ainda mais as classes populares, aumentando as custas ao longo do tempo
(SANTOS, 1997; CAPPELLETTI, 1988).
Nesse sentido, Monteiro (2006, p. 26) expe:
[pesquisa realizada pelo STF] mostra que o Poder Judicirio custa aos cofres pblicos R$ 19,24 bilhes por ano e deixou de julgar, no primeiro ano referente pesquisa, 59,27% dos processos que deram entrada no sistema recebendo nota 4,2 atinente ao seu desempenho. A pesquisa mostra que apenas 40,73% dos processos passam por algum julgamento logo no primeiro ano. O restante fica pendente para os anos seguintes, congestionando a Justia. A capacidade de satisfao do sistema de 41%. O custo-Justia medido pelo STF mostra que cada cidado gastou em mdia R$ 108,82 com o Judicirio em 2003. No perodo da pesquisa, entraram no sistema 17.494.906 processos - um para cada dez pessoas, considerando a estimativa de 183 milhes de brasileiros feita pelo IBGE.
Se combinados estes dados com aqueles da pesquisa anterior, que informa a
no utilizao do Judicirio para a resoluo de conflitos por 55% dos pesquisados,
conclui-se que a maioria das pessoas no se socorre do Judicirio e, mesmo que
isto ocorresse, no se encontraria, por via dele, uma resposta gil, muito embora se
tenha avanado bastante com a criao dos Juizados Especiais. Desses dados
decorre, ainda, a questo de que o Estado , em um contexto positivista, a principal
(BOBBIO, 1995), mas jamais a nica fonte de juridicidade. Considere-se, neste
ponto, que h expressivos grupos regulados margem do direito estatal, por, entre
outras razes, um vnculo enfraquecido com as instituies oficiais, como aponta
Santos (1997), ao relatar estudos em favelas cariocas na dcada de 70.
Tomando justia no como sinnimo de resoluo de litgio judicial,
compreende-se uma gama maior de fontes de direito. Seguindo essa linha de
raciocnio, o acesso ao Judicirio no deve suprimir a autoridade de formas de
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garantir a justia por vezes menos onerosas e mais rpidas. Assim, tais formas
devem ser, como afirma Cappelletti (1988), incentivadas, em sua convivncia com o
Judicirio:
Os juzes precisam, agora, reconhecer que as tcnicas processuais servem a funes sociais; que as cortes no so a nica forma de soluo de conflitos a ser considerada e que qualquer regulamentao processual, inclusive a criao ou o encorajamento de alternativas ao sistema judicirio formal tem um efeito importante sobre a forma como opera a lei substantiva com que frequncia ela executada, em benefcio de quem e com que impacto social. (CAPPELLETTI, 1988, p. 12-13, grifo nosso)
A isto se associa o pluralismo jurdico, termo que Wolkmer (2001) trata e
conceitua como multiplicidade de prticas jurdicas existentes num mesmo espao
scio-poltico, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou no oficiais e
tendo sua razo de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais
(WOLKMER, 2001, p. XVI). Para esse autor, o pluralismo configurado por um
espao pblico aberto e compartilhado democraticamente, pela participao direta
de agentes sociais na regulao das instituies-chave da sociedade, por um
controle exercido pelas bases comunitrias, de modo que o direito passe a ser
resultante das relaes sociais. Tal espao pblico seria marcado por uma
pluralidade de interesses e pela efetivao real das necessidades humanas neste,
a juridicidade emanaria do agir comunitrio em suas diversas formas8. Cappelletti
(1988), nesse sentido, aborda a conciliao e a arbitragem, deixando de fora o que a
mediao e a negociao, tratadas em outros estudos (MONTEIRO, 2006),
debruando-se, ainda, sobre possveis Tribunais de Vizinhana ou Sociais, como
instncias de resoluo de conflitos.
Voltando ao ponto em discusso, existem, ainda, obstculos de ordem social
e cultural ao acesso. Quanto menor o estrato social ocupado por um cidado, menor
a proximidade das instituies oficiais, bem como o conhecimento dos prprios
direitos e o reconhecimento, por consequncia, de um problema como jurdico.
Mesmo quando tais classes reconhecem a juridicidade do problema, h maior
hesitao em entrar com uma ao judicial para resolv-lo, em razo de uma
8 Ressalte-se que os movimentos sociais desempenhariam um papel fundamental na produo de uma nova cultura jurdica, fundada no paradigma do pluralismo (WOLKMER, 2001).
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desconfiana que parte tanto das experincias anteriores, pessoais ou de amigos e
familiares, quanto do medo de represlias ao recorrer aos tribunais (SANTOS,
1997).
H, ainda, grande formalismo por parte dos tribunais, nos quais os
representantes das partes, bem como os juzes, tornam difcil a compreenso das
pessoas do que de fato est sendo falado9. Trata-se de um problema que
transborda, claramente, os rgos jurisdicionais, uma vez que emana da prpria
complexidade do direito brasileiro. O desafio posto, nesse caso, a contradio
entre a linguagem utilizada nos prprios textos de lei, cujo tecnicismo torna o
conhecimento das normas esotrico, e no exotrico, e a positivao de uma norma,
qual seja, o art. 3 da Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro, que
determina que nenhum cidado pode se escusar de cumprir a lei sob a alegao
que no a conhece (BRASIL, 1942). Ora, como supor que o cidado comum
conhece o contedo das leis, com toda uma tcnica criada em torno delas e a
necessidade de advogados e juzes que as deslindem e as apliquem
(CAPPELLETTI, 1988, p. 29)?
Sobre isto enuncia Cappelletti (1988):
Nosso Direito frequentemente complicado e, se no em todas, pelo menos na maior parte das reas, ainda permanecer assim. Precisamos reconhecer, porm, que ainda subsistem amplos setores nos quais a simplificao tanto desejvel quanto possvel. Se a lei mais compreensvel, ela se torna mais acessvel s pessoas comuns (CAPPELLETTI, 1988, p. 157).
Ainda sobre o Judicirio, tambm a estrutura das cortes endossa a ideia de
estratificao social. O tratamento excessivamente respeitoso ao Juiz deixa clara
certa estratificao na administrao da justia, de modo que a magistratura parece
intocvel, com poderes inabalveis, sendo colocada, portanto, em um patamar
acima especialmente dos estratos menos favorecidos, o que aumenta a temeridade
das instituies, que aparecem no como prestadoras de um servio importante
9 Isto se d tanto por conta do uso de jarges jurdicos, prprios da tecnologia jurdica, criada de forma afastada da realidade, bem como pelo uso de termos em latim, que reforam esse distanciamento. Bastante elucidativa sobre o assunto a sentena pronunciada pelo juiz de direito da Bahia Gerivaldo Neiva, feita, segundo o juiz, para um marceneiro ler e entender (NEIVA, 2007).
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sociedade, mas portadoras de um poder arbitrrio a que esto sujeitos todos os
indivduos.
A figura do juiz outro ponto problemtico, pois a seleo para a carreira
pauta-se, principalmente, por critrios tecnicistas, como salienta Santos (1997),
priorizando uma formao legalista, formalista e tcnico-burocrtica, sem visar, com
maior destaque, uma formao humanstica, to necessria para o cumprimento
adequado da funo social do juiz. Em sentido semelhante expe Streck (2001)
sobre a prpria formao dos bacharis em Direito, anedtica, desconexa da
realidade e inconsciente do processo poltico em derredor da construo do Direito,
de modo que apenas se reproduz o que o autor denomina como senso comum
terico, sem que se questionem as instituies. Pode-se dizer, desse modo, que os
profissionais que atuam diretamente com o Direito10 (e no apenas o Juiz) padecem
de uma espcie de despolitizao, assumindo to somente os papis preconcebidos
e desumanizados o que no os torna militantes do acesso justia.
H ainda outros obstculos culturais ao acesso justia de resoluo ainda
mais complexa, como o que abordado por Srgio Adorno (1995), quanto questo
histrica e estruturante da sociedade brasileira relativa ao racismo:
Primeiro, rus negros tendem a ser alvo privilegiado da ao policial arbitrria. Segundo, rus negros tendem a ter maiores dificuldades de acesso justia penal, por isso entendendo-se maiores dificuldades de se valerem dos benefcios legais que podem, por assim dizer, suavizar a aplicao penal. Terceiro, quando punidos, os rus negros acabam sendo alvo de penas mais severas. (ADORNO, 1995, p. 8)
O acesso justia, portanto, visto sob trs dimenses: o acesso ao Direito
(condio para a cidadania); acesso ao Judicirio e acesso a meios extrajurdicos e
comunitrios de regulao (pluralismo). Importante se faz, por ora, a partir dos
fundamentos tericos lanados, traar um panorama do acesso justia no Brasil, a
comear pelas estratgias de facilitao deste adotadas pelo Estado, passando pela
discusso dos servios de assistncia jurdica popular, bem como sobre a
importncia dos movimentos sociais na questo.
10 Entendemos que o termo operador do direito deve ser abolido, por reforar o carter tcnico que o Direito detm atualmente, bem como pela ideia de mecanicidade e desumanizao que subjaz a expresso.
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2.3 ACESSO JUSTIA: DEVER PRESTACIONAL DO ESTADO
Gomes Canotilho (1998, p. 479) afirma que os deveres fundamentais so uma
categoria autnoma e no, como se costuma pensar, o outro lado dos direitos
fundamentais. Tal assertiva vincula-se ideia de que existem deveres autnomos,
como o de pagar tributos. No entanto, para o autor, podem existir deveres conexos
com direitos fundamentais e deveres fundamentais no autnomos, isto ,
relacionados a direitos so estes os que interessam ao presente estudo11.
O raciocnio de Canotilho (1998) no imputa apenas e diretamente ao Estado
os deveres fundamentais, mas tambm coletividade, que teria obrigaes que
emanam diretamente da Constituio, tuteladas pelo Estado, como o dever de voto
(tambm existente no Brasil), o dever de educar os filhos (este correspondente ao
direito de educao dos pais) e o dever de defesa do patrimnio. Em sentido
semelhante, Vieira de Andrade (2001, p. 167) sustenta a tese de que h deveres
fundamentais dos cidados, ainda que no escritos, que decorrem da obedincia de
todos os homens (...) a um conjunto de princpios axiolgicos e deontolgicos que
regem as suas relaes com os outros e com a sociedade em que necessariamente
vivem.
inegvel, porm, que certos deveres citados por Canotilho (1998), obrigam
uma atuao especfica do Estado e no dos particulares (ou no apenas destes, no
caso do dever de defesa do patrimnio, por exemplo), para o cumprimento de
direitos correlatos. Colocar os direitos fundamentais como deveres mandamentais
do Estado sendo, inclusive, valores de operao jurdicos e vetores da criao
legislativa no um raciocnio expresso pelos autores, que so bastante sucintos
a respeito do assunto. A prpria noo de existncia de deveres fundamentais,
como bem salienta Martins (2011), desmerecida pelo direito constitucional
11 Pode-se interpretar o discurso de Canotilho sob a seguinte perspectiva: de um direito, emana o dever de cumpri-lo, mas nem sempre o dever, por si, emanar de um direito. Vale destacar, ainda, a ideia de Constituio Dirigente, deste autor. Para ele, a fora dirigente e determinante dos direitos a prestaes (econmicas, sociais e culturais) inverte, desde logo, o objecto clssico da pretenso jurdica fundada num direito subjetivo: de uma pretenso de omisso dos poderes pblicos (direito de exigir que o Estado se abstenha de interferir nos direitos, liberdades e garantias) transita-se para uma proibio de omisso (direito a exigir que o Estado intervenha activamente no sentido de assegurar prestaes aos cidados) (CANOTILHO, 2001, p. 365, grifo nosso).
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brasileiro e pouco tratada pelo direito constitucional lusitano, em face
preocupao dos legisladores constituintes em instaurar regimes que afirmaram
Constituies dos direitos para esquecer as Constituies dos deveres dos perodos
totalitrios (MARTINS, 2011, p. 16).
Para Bobbio (2007, p. 42),
(...) no existem direitos sem deveres correspondentes. Portanto, para que a Declarao dos Direitos do Homem no seja (...) um elenco de desejos pios, deve existir uma correspondente declarao dos deveres e responsabilidades daqueles que fazem valer esses direitos.
No mesmo sentido, Martins (2011, p. 75) sustenta que a efetividade dos
deveres consiste num termmetro de efetividade dos direitos, aduzindo, guisa de
concluso, que tais deveres no se limitam aos expressos na Constituio formal, de
forma que devem ser admitidos deveres extraconstitucionais essenciais proteo
de direitos fundamentais12. no cumprimento dos direitos fundamentais, portanto,
que se encerram os deveres mais importantes do Estado.
Entendemos que a viso de que h deveres fundamentais cumpridos pelos
cidados salutar, em um perodo de constitucionalismo fraterno, sob uma
perspectiva de um direito pluralista (WOLKMER, 2001). No entanto, considerando
que o Brasil no passou pelo Welfare State, como bem salienta Streck (2001), tendo
uma modernidade tardia e arcaica, a fragmentao dos deveres nas mos dos
particulares refora a lgica neoliberal de negligncia social. Embora diversas
instncias do terceiro setor assumam para si, no caso particular deste trabalho, o
dever de concretizar o acesso justia, entendemos, como Streck (2001), que o
agente principal de toda poltica social deve ser o Estado, nos pases onde o Estado
Social no existiu.
nesta perspectiva que este autor enxerga o direito como campo necessrio
de luta para implantao das promessas modernas dentre as quais a prpria carta
de direitos assentada na Constituio de 1988 , bem como o papel da dogmtica
jurdica, preponderantemente por via do Poder Judicirio, em garantir eficcia de
12 Para uma leitura precisa dos deveres fundamentais em espcie, tidos como nmeros clausus por parte da doutrina constitucional, ver Captulo VII da obra Introduo ao estudo sobre os deveres fundamentais de Carlos Rtis Martins (2011).
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direitos individuais ou sociais, na inrcia do Legislativo e do Executivo em ditar
polticas pblicas lato sensu13 (STRECK, 2001).
Ainda que no se conceba a existncia de deveres fundamentais, faz-se
importante notar que os direitos fundamentais, na viso de Robert Alexy (2011) so
normas principiolgicas e mandamentos de otimizao. Para este autor, os direitos
fundamentais enquanto princpios produziriam seus efeitos por todo o sistema
jurdico, demandando uma ao positiva do Estado (ALEXY, 2011, p. 577), que
em uma viso clssica (associada, frequentemente, ao Liberalismo), implicaria mera
exigncia de absteno estatal14. Apesar de as teses de Alexy no serem unnimes
(COELHO, 2007, p. 74), h consequncias desta viso principiolgica, vistas no
Neoconstitucionalismo (SILVA NETO, 2010) e na interpretao constitucional
(COELHO, 2007). Endossa-se a ideia de que a eficcia dos direitos postos se d
internamente, perante o prprio Estado.
Na esteira do tratamento do acesso justia como um dever de prestao
estatal, cabe analisar o histrico desta obrigao, no Brasil, bem como quais os
rgos ou instncias que a assumem, na atual ordem constitucional.
2.3.1 Histrico da assistncia jurdica no Brasil
Trataremos, a seguir, das formas como, no Brasil, historicamente, se
entendeu o dever de assistncia jurdica e sua prestao pelo Estado. A partir de um
recorte metodolgico, inicia-se a anlise do histrico a partir do Brasil Colnia. No
perodo de vigncia do ordenamento jurdico portugus em territrio brasileiro, tinha-
se a viso do acesso justia pelos pobres em uma perspectiva de caridade,
permeada por aspectos religiosos de carter cristo (ALVES, 2005). A ttulo de
ilustrao, pode-se citar a seguinte norma: 13 Nessa perspectiva pode-se entender a importncia de um ativismo judicial, defendido, com ressalvas, pelo jurista Lenio Streck. 14 Por razes metodolgicas, no adentramos o conceito de norma-princpio e sua aplicao, em casos de coliso, considerando que tais reflexes, apesar de importantes, fogem ao foco deste estudo.
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Em sendo o agravante to pobre que jure no ter bens mveis, nem de raiz (imveis), nem por onde pague o agravo, e dizendo na audincia uma vez o Pater Noster pela alma do Rei Dom Diniz, ser-lhe- havido como que se pagasse os novecentos ris, contanto que tire de tudo certido dentro do tempo, em que havia de pagar o agravo - Livro III, Ttulo 84, 10 das Ordenaes Filipinas (ALMEIDA, 1870)15
Esse dispositivo, embora se refira apenas iseno das custas processuais
(reconhecimento importante, mas, como j explanado, no suficiente) uma
meno ao problema do acesso justia pelos mais pobres. Pode-se observar, no
entanto, o condicionamento da iseno enunciao da orao do pai nosso, o
que demonstra o teor religioso-cristo e a consequente lgica da caridade que
predominava em relao ideia de concretizao e reconhecimento de um direito.
Mesmo no Brasil ps-independncia, muito do ordenamento jurdico
portugus continuou a ter validade, pois Dom Pedro I, no ensejo de evitar um vcuo
legislativo, determinou que as leis vigentes em Portugal na data da independncia
continuariam vigorando no Brasil, salvo expressa disposio em contrrio (ALVES,
2005). O dispositivo supracitado foi recepcionado e manteve-se vigente no Brasil16.
Em sentido semelhante, relativa iseno das custas processuais, surge a
Lei n 241/1841, que reforma o Cdigo de Processo Criminal Brasileiro em diversos
termos, inclusive o seguinte (ALVES, 2005, p. 276):
Art. 99. Sendo o ru to pobre que no possa pagar as custas, perceber o Escrivo a metade dellas do cofre da Camara Municipal da cabea do Termo, guardado o seu direito contra o ro quanto outra metade.
No entanto, a iseno de custas est longe de ser suficiente para garantia do
acesso justia, o que foi, aos poucos, notado pelos juristas da poca. A partir
disso, Nabuco de Arajo, presidente do Instituto dos Advogados do Brasil poca,
sugeriu a implantao de um conselho para assistncia dos pobres e indigentes nas
15 Conforme Oliveira (2007, p. 67), as Ordenaes so Compilaes de leis portuguesas que vigoraram de 1446 a 1867, at ser aprovado o primeiro Cdigo Civil de Portugal. No Brasil, foram mantidas at 1916, quando se deu a promulgao do Cdigo Civil de 1916. Muitas disposies foram extradas dos direitos romano e cannico, quer diretamente, quer atravs das obras de comentadores. 16 Cabe ressaltar que esta foi uma opo poltica de D. Pedro I, uma vez que nas ex-colnias espanholas o mesmo no ocorreu cada pas tinha as suas prprias leis.
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causas cveis e criminais, o que efetivamente ocorreu (MORAES & SILVA, 1984, p.
84).
A ideia de assistncia judicial propagada por Nabuco de Arajo recebeu,
naturalmente, adeso dos abolicionistas, uma vez que o imenso contingente de
escravos libertos poderia vir a formar o pblico-alvo desse conselho. Considerando
que o movimento abolicionista foi um dos fatores que mais ativamente contribuiu
para a que se proclamasse a Repblica, em 1889, importante citar, ainda, o
Decreto n. 1030, de 14 de novembro de 1890, outorgado pelo Governo Provisrio
da Repblica, que, ao tratar da organizao da Justia do Distrito Federal, instituiu
oficialmente a assistncia judiciria gratuita no Brasil, nos seguintes termos (ALVES,
2005):
Art. 175 - Os curadores geraes se encarregaro da defesa dos presos pobres, requisio do presidente do Jury ou da camara criminal. Art. 176 - O Ministro da Justia autorizado a organizar uma commisso de patrocnio gratuito dos pobres no crime e cvel, ouvindo o Instituto da Ordem dos Advogados, e dando os regimentos necessrios.
Anteriormente a qualquer efetivao desse dispositivo normativo, promulgou-
se a constituio de 1891, que, considerando seu carter notadamente liberal, no
consagrou em seu texto nenhuma referncia ao acesso justia pelos menos
favorecidos. Somente seis anos depois, com a edio do Decreto n. 2 457, de 08 de
fevereiro de 1897, organizando a Assistencia Judiciria no ento Distrito Federal,
pde-se vislumbrar alguma efetividade do dispositivo epigrafado. Dentre as
inovaes trazidas, o Decreto procurou estabelecer parmetros para o conceito de
"pobre" como destinatrio do novo servio pblico (ALVES, 2005):
Art. 1. - instituda no Districto Federal a Assistencia Judiciria, para o patrocnio gratuito dos pobres que forem litigantes no cvel ou no crime, como autores ou ros, ou em qualquer outra qualidade. Art. 2. - Considera-se pobre, para os fins desta instituio, toda pessoa que, tendo direitos a fazer valer em Juzo, estiver impossibilitada de pagar ou adeantar as custas e despezas do processo sem privar-se de recursos pecunirios indispensveis para as necessidades ordinrias da prpria manuteno ou da famlia
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Este seria o primeiro servio de natureza pblica para a prestao de
assistncia judiciria brasileiro, que comeou a ser reproduzido em alguns estados
da federao (ALVES, 2005).
A promulgao do Cdigo Civil de 1916 estimulou os Estados a realizarem
reformas nos seus Cdigos de Processo Civil (na poca, competncia legislativa
estadual), e percebeu-se uma tentativa de efetivao de uma instituio pblica para
representao judicial dos pobres. A ttulo de ilustrao, tem-se o Cdigo de
Processo do Estado da Bahia, de 1915, que dedicou captulo especial ao tema: "Da
Representao Judicial das Pessoas Pobres" (arts. 38 a 43) (ALVES, 2005).
Em 1930, criou-se a Ordem dos Advogados do Brasil OAB. Em seguida, foi
promulgado o Decreto n. 20 784, de 14 de dezembro de 1931, que declarava, em
seu art. 91 que A assistncia judiciria, no Distrito Federal, nos Estados e nos
Territrios fica sob jurisdio exclusiva da ordem. Nesse sentido, o dever dos
advogados de assistir as pessoas pobres em juzo deixa de ser moral, relegado
conscincia de cada um, para ser considerado dever jurdico cuja violao poderia
implicar em sano (ALVES, 2005).
Pode-se dizer, nesse sentido, que o poder pblico reconhecia, de forma
implcita, o direito subjetivo do cidado assistncia judiciria. Cabe reiterar que,
ainda neste ponto da histria, no se cogitava assistncia que no fosse restrita aos
atos judiciais. Por outro lado, possvel enxergar, neste ato normativo, uma
incongruncia com a ideologia da poca, j parcialmente focada em polticas
pblicas e em um Estado prestacional. O que se v uma absteno do Estado, a
fim de que os particulares tomem conta de assegurar direitos essenciais do cidado,
notadamente quanto ao acesso justia.
Em seguida, em 1934, promulgou-se uma nova Constituio, que, em sua
seo dedicada aos direitos e garantias individuais, previa, no art. 112, 32, que A
Unio e os Estados concedero aos necessitados assistncia judiciria, criando,
para esse efeito, rgos especiais assegurando, a iseno de emolumentos, custas,
taxas e selos (BORGE, 2010). Desta maneira, o poder pblico voltou a obrigar-se
prestao direta da supramencionada assistncia, na esteira dos valores do Estado
de Bem-Estar Social, influncia da Constituio de Weimar (ALVES, 2005).
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Vale ressaltar que, desde ento, se definem competentes para prestao de
assistncia a Unio e os Estados, mas no os municpios modelo subsistente at a
atualidade (ALVES, 2005). A Constituio de 1934, no entanto, durou pouco tempo.
A Constituio de 1937, por sua vez, no fez qualquer meno assistncia
judiciria, considerando sua procedncia atrelada a um governo ditatorial, no qual
foram tolhidas diversas liberdades individuais (ALVES, 2005).
Com as presses ps Segunda Guerra Mundial, finaliza-se o Estado Novo e o
Brasil redemocratizado, com a convocao de nova Assembleia Nacional
Constituinte, cujo resultado foi uma Constituio que tentava, de forma notvel,
equilibrar a ordem liberal e o Estado Social (ALVES, 2005). Resgatou-se o valor j
expresso na Constituio de 1934, com o seguinte dispositivo: Art. 141, 35: O
poder pblico, na forma que a lei estabelecer, conceder assistncia jurdica aos
necessitados (BORGE, 2010).
Ressalte-se, pois, a utilizao pioneira no ordenamento jurdico-constitucional
brasileiro do termo assistncia jurdica, no lugar da usual assistncia judiciria. A
previso, entretanto, era consideravelmente abstrata e necessitava de uma lei
regulamentadora para ter efeitos. Essa lei veio em 1950 e vale citar que, a despeito
de ter sofrido muitas modificaes ao longo das dcadas, foi recepcionada pela atual
Constituio (SILVA, 2005).
A lei citada a de n. 1060/1950, na qual havia uma previso inovadora para
a poca, qual seja, a do seu art. 5, que se referia ao fato de que a nomeao de
advogado particular para prestao de tal servio s ocorreria em caso de ausncia
do servio pblico respectivo (SILVA, 2005). O Estado toma de volta para si, de
forma ostensiva, a obrigao de prestar assistncia jurdica gratuita.
Com a crise poltica que culminou no Golpe de 1964 e no regime ditatorial que
se instalou no Brasil por mais de duas dcadas, surge nova ordem constitucional. As
Constituies de 1967 e 1969 previam, tambm, dispositivos referentes ao acesso
justia, nos seguintes termos (art. 153, 32 da CF/69 e art. 150 32 da CF/67): Ser
concedida assistncia judiciria aos necessitados, na forma da lei (BORGE, 2010).
Nesse sentido, pode-se observar uma mudana significativa no texto constitucional
com relao ao anterior, que referia expressamente que tal assistncia seria
prestada pelo Poder Pblico. Apesar do valor simblico dessa modificao, seguiu
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vigorando a Lei n. 1060/1950, e, portanto, continuou sendo obrigao do Estado
prestar assistncia judiciria aos necessitados, em seus termos (ALVES, 2005).
Em que pese o fato de constituir um regime de exceo, pode-se observar
considervel evoluo na prestao de assistncia jurdica pelo poder pblico ao
longo da Ditadura Militar. Assim, como explicita Francisco Alves (2005, p. 286), ao
longo do perodo ditatorial, as diversas unidades federadas que antes no possuam
servio pblico de assistncia judiciria gratuita passaram a t-lo, a exceo de
Santa Catarina. Os rgos ou entidades que prestavam esses servios nem sempre
eram independentes ou autnomos, podendo estar presentes nas Procuradorias do
Estado (como foi o caso de Gois), nas Secretarias de Justia ou at mesmo no
Ministrio Pblico (ALVES, 2005). Nesse sentido, vale citar que a Lei Complementar
n. 40/1981, em seu art. 22, XII, previa expressamente que era dever do membro do
Ministrio Pblico prestar assistncia jurdica onde no houvesse rgos prprios.
No atual contexto constitucional, isso no seria possvel, uma vez que a Defensoria
Pblica consagrada como funo essencial justia, devendo ser implantada em
todos os Estados e perante a Justia Federal.
No que tange Ditadura, importante tambm ressaltar que no havia nem
sequer um esboo de assistncia judiciria no mbito da Justia Federal os
litigantes hipossuficientes dependiam de advogados dativos a serem designados
pelos juzes, nos termos do Provimento n. 210, de 1981, do Conselho da Justia
Federal17 (ALVES, 2005).
A partir da dcada de 80, por fatores histrico-sociais dos mais diversos,
iniciou-se o processo de redemocratizao do Estado brasileiro. A Constituio de
1988, posteriormente denominada como Constituio Cidad, foi elaborada com
uma preocupao maior com a positivao dos direitos e garantias fundamentais,
notadamente em funo do longo perodo de regime autoritrio e cerceador de
liberdades a que se segue. Nesse sentido,
17 Ainda sobre a ditadura brasileira, vale lembrar a citao, feita por Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 155) do Professor Branies, jurista chileno, em pleno regime Pinochet, que afirmava que no fazia sentido, no seu pas, lutar pelo acesso justia por parte das classes populares, uma vez que o direito substantivo era demasiadamente discriminatrio em relao a elas. Meno a este mesmo jurista feita por Cappelletti (1988, p. 57).
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(...) trata-se de uma Constituio com caractersticas muito singulares, que apresenta, como sua marca mais notvel, a preocupao central com os direitos humanos. Esse foco evidencia-se desde j pela prpria estruturao do texto constitucional: se, nas constituies anteriores, primeiro tratava-se da organizao do Estado, e s ao fim eram consagrados os direitos, agora inverte-se essa ordem e os direitos passam a ser afirmados antes, como uma espcie de testemunho de sua prioridade axiolgica. (SARMENTO, 2005, p. 24)
O captulo de Direitos Fundamentais da Carta de 1988 garante
expressamente o pleno acesso das pessoas pobres justia. Retomam-se os
precedentes das Constituies de 1946 e 1934, mas com novas configuraes.
Garante-se o acesso justia como todo e no somente quanto aos litgios em juzo
uma assistncia jurdica integral e gratuita, nos termos do seu art. 5, LXXIV.
Outro ponto importante a se destacar a elevao desse dispositivo ao patamar de
clusula ptrea, por se tratar de direito individual, a partir do art. 60, 4, VI.
A referida assistncia jurdica integral e gratuita coaduna-se com o conceito
lato de acesso justia supramencionado: um acesso substancial, no somente
focado em iseno de custas e em representaes em lides judiciais
compreendendo, alm disso, o aconselhamento, a consultoria, a informao jurdica
e tambm a assistncia em atos jurdicos extrajudiciais.
2.3.2 Defensoria Pblica
Em que pese no seja o foco deste trabalho questionar a Defensoria Pblica,
uma vez que os acertos de tal rgo so maiores e evidentes, cabe a ns explicitar
as linhas de atuao desta, compreendendo sua evoluo e eventuais limitaes,
para traar um panorama das vias de acesso justia disponveis.
A Constituio de 1988 atribuiu ao Estado a incumbncia de prestar a
assistncia jurdica, em uma oficializao institucional da Defensoria Pblica, no
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captulo das Funes Essenciais Justia. Disciplina, assim, a Carta Magna, aps a
Emenda Constitucional n. 80/2014:
Art. 134. A Defensoria Pblica instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expresso e instrumento do regime democrtico, fundamentalmente, a orientao jurdica, a promoo dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5 desta Constituio Federal (grifo nosso).
Alm disso, pode-se citar o 1 do art. 134, que estabeleceu que a Defensoria
Pblica teria sua organizao fixada em Lei Complementar, e que deveria ser
mantida nos nveis Federal e Estadual. Determinou-se tambm que os cargos de
Defensor Pblico sero preenchidos por concurso pblico e foi concedida a estes a
garantia da inviolabilidade, vedando-se o exerccio da advocacia privada.
Aps a Emenda Constitucional n. 45/2004, assegurou-se autonomia
funcional e administrativa s Defensorias Pblicas Estaduais, que passaram a ter,
tambm, a iniciativa de sua proposta oramentria nos limites da lei de diretrizes
oramentrias. Tais prerrogativas foram asseguradas Defensoria Pblica da Unio
com quase dez anos de atraso, a partir da aprovao da Emenda Constitucional n
74/2013.
Vive-se um momento de afirmao do papel e da importncia da instituio
em apreo, com a Emenda Constitucional n. 80/2014 e com a criao de
Defensorias Pblicas nos Estados em que esta ainda no existia, em grave
omisso18. A Emenda supracitada adequou a redao do art. 134, aprofundando o
conceito e a finalidade da Defensoria nos moldes de um sistema jurdico que visa
outras solues que no as judiciais, reafirmando a importncia da instituio na
tutela de direitos individuais e coletivos. Esta mudana concretiza, ressalte-se, a
assistncia jurdica ampla, a teor do que j foi discutido neste trabalho19.
Outra alterao importante advinda da Emenda foi a incluso do 4 no art.
134, que constitucionalizou os princpios institucionais j assentados na legislao
18 Conforme o mapa da Defensoria Pblica no Brasil (http://www.ipea.gov.br/sites/mapadefensoria), pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada IPEA em parceria com a Associao Nacional dos Defensores Pblicos, oito Estados brasileiros criaram suas Defensorias nos anos 2000, sendo os ltimos o Paran, em 2011 e Santa Catarina, em 2012 (ANADEP, 2013). 19 Nestes moldes j havia sido elaborada a Lei Complementar n. 80/1994 (BRASIL, 1994).
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infraconstitucional Unidade, Indivisibilidade e Independncia Funcional e
equiparou a carreira de Defensor Pblico de magistrado, pleito antigo da categoria.
Tal alterao estende as prerrogativas dos Defensores, garantidas anteriormente
com menor intensidade na Lei Complementar n. 80/1994, sendo um importante
reconhecimento da atuao desses profissionais20.
Ampliou-se, ainda, a autonomia administrativa e funcional da Defensoria
Pblica, uma vez que a instituio passou a ter a iniciativa de projetos de lei sobre a
alterao do nmero dos seus membros, a criao e extino de cargos e a
remunerao dos seus servios auxiliares, bem como a fixao do subsdio de seus
membros, a criao ou extino dos seus rgos e a alterao de sua organizao
(ROSSS, 2014).
A Unidade representa o fato de a Instituio Defensoria Pblica, aqui
englobando a da Unio, a dos Estados e a do Distrito Federal e territrios, ser um
todo orgnico, sob a mesma direo, mesmo fundamento e mesmas finalidades
(ALVES & PIMENTA, 2004, p. 112). Em outras palavras, um membro da Defensoria
Pblica age em nome da instituio e no a ttulo prprio. Disto decorre o princpio
da Indivisibilidade, que permite a substituio de um membro por outros. Nos autos
de um processo, intima-se a Defensoria Pblica e no o defensor, at mesmo para
que frias, licenas e afastamentos no signifiquem o no atendimento das
demandas dos assistidos.
O princpio da independncia funcional, por sua vez, representa o fato de que
seus membros so apenas subordinados a uma hierarquia administrativa, mas no
funcional, isto , no sero questionados seus atos, a no ser quanto legalidade e
constitucionalidade. A partir disso, vale destacar que a Unidade no representa
continuidade de opinies, podendo haver divergncias entre os membros, desde que
abarcadas pela Constituio Federal e ordenamento infraconstitucional. Nesse
sentido, a conformao do convencimento tcnico-jurdico dos membros livre e
independente.
20 Passa-se, em tese, a assegurar a vitaliciedade tambm aos Defensores, de modo que estes s perdero o cargo por motivo de sentena transitada em julgado. Rosss (2014) destaca, porm, que a clusula aberta no que couber, na equiparao das carreiras, d ensejo propositura de ADIs ou ADCs, que delinearo os termos reais da extenso das garantias dos magistrados aos defensores pblicos. As demais prerrogativas j estavam presentes na Lei Complementar n. 80/1994. Ressalte-se que outro ponto polmico a equiparao de subsdio, embora os Estados e a Unio venham conferindo contraprestaes mais justas aos Defensores Pblicos, progressivamente.
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A maior conquista, entretanto, advinda da Emenda reside na incluso do art.
98 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias ADCT, da Constituio
Federal. Positivou-se norma programtica que determina, no prazo de oito anos, a
presena de defensores pblicos em todas as unidades jurisdicionais, devendo a
lotao dos novos defensores ser feita prioritariamente nos locais onde h maior
excluso social e adensamento populacional. Garantiu-se, ainda, a terica
proporcionalidade entre o nmero de Defensores e a demanda pelo servio da
Defensoria Pblica.
A importncia desse dispositivo reside na operao atualmente limitada da
instituio no Brasil. Dados do Ipea, em parceria com a Anadep indicam que apenas
28% das comarcas brasileiras conta com atuao do rgo (ANADEP, 2013). O
mesmo estudo aponta que, estimando a obrigatoriedade de um defensor por
comarca (o que se mostra, ainda assim, suficiente apenas para comarcas de porte e
populao pequenos), h um dficit de 10.578 defensores pblicos.
Apesar disso, cumpre-nos salientar que ao modelo da Defensoria Pblica,
como se estruturou no Brasil, no tm sido feitas muitas crticas sendo inclusive
recomendado pela OEA para outros pases (ANADEP, 2013). Conclui-se que a
Defensoria Pblica , assim, um rgo ainda em estruturao. Faz-se necessrio o
crescimento deste rgo, para que seja possvel cumprir as funes designadas na
Constituio Federal e na legislao infraconstitucional21, com o aumento de
defensores e a possvel conquista das prximas pautas da categoria, dentre as
quais se encontra a autonomia oramentria, em moldes semelhantes que detm
o Ministrio Pblico.
21 A Lei Complementar n. 80/1994 enumera funes da Defensoria Pblica, em concretude ao dispositivo constitucional em que esta se fundamenta. Dentre elas se destacam algumas, que se relacionam notadamente com o acesso justia (no s ao judicirio) e a defesa dos direitos fundamentais: Art. 4 So funes institucionais da Defensoria Pblica: (...) II promover, prioritariamente, a soluo extrajudicial dos litgios, visando composio entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediao, conciliao, arbitragem e demais tcnicas de composio e administrao de conflitos; III promover a difuso e a conscientizao dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurdico (BRASIL, 1994, grifo nosso)
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2.4 OUTRAS INSTNCIAS DO ACESSO: ASSESSORIA JURDICA POPULAR,
MOVIMENTOS SOCIAIS E ASSOCIAES DE BAIRRO
Completando o panorama atual do acesso justia, faz-se necessrio tratar
de outras instituies que fazem assistncia jurdica. A respeito das assessorias
jurdicas populares, trata-se de uma realidade heterognea e de difcil apreenso22.
Acreditamos existir, no entanto, uma similitude ideolgica e de procedimentos no
movimento da Assessoria Jurdica Popular (AJP), conforme a literatura sobre o
assunto relata.
Nesse sentido, Maia (2006, p. 15) define:
A Assessoria Jurdica Popular AJP se desenvolve no meio acadmico (nas universidades) atravs de projetos de extenso universitria23 e na sociedade atravs da assessoria a movimentos populares, sindicatos ou organizaes no governamentais, sempre ligada temtica dos direitos humanos.
Maia (2006) entende que h um carter de movimento jurdico na AJP, em
face do grau de mobilizao e organizao em rede, no podendo ser confundido
com os movimentos populares assessorados. Assim, pode-se compreender a AJP
como uma categoria autnoma, dissociada dos servios legais, uma vez que a
denominao servios legais populares seria de grande abstrao e
compreenderia, por exemplo, a ajuda pro bono advocatcia, bem como uma lgica
de acesso ao Judicirio, apenas (MAIA, 2006).
Cabe distinguir, nesse ponto, a atuao da AJP universitria daquela
praticada pelos escritrios-modelo, geralmente presentes em Faculdades
22 O mapeamento e uma anlise sistematizada do fenmeno das assessorias jurdicas populares e ncleos de educao popular consistem em um tpico cuja expanso dos estudos se faz importante. Os estudos encontrados sobre Assessoria Jurdica Popular so difusos e debruam-se sobre experincias diferentes em diversos pontos do pas. Foi encontrado, no entanto, o trabalho Mapa Territorial, Temtico e Instrumental da Assessoria Jurdica e Advocacia Popular no Brasil (GEDIEL et al, 2011) que mapeou 96 entidades, distribudas em 117 pontos de atuao, feito pela organizao Terra de Direitos e pela Dignitatis Assessoria Tcnica Popular. Maiores informaes no site: http://terradedireitos.org.br/2013/06/18/pesquisa-apresenta-mapa-da-assessoria-juridica-e-advocacia-popular-no-brasil/ 23 Para maior noo sobre o trip ensino, pesquisa e extenso, formador da universidade pblica, ver Santos (2004).
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particulares de Direito, havendo ou no integrao com o ncleo de prtica destas
instituies. Tais escritrios, conforme Pereira (2011), se baseiam em um referencial
terico tradicional e assistencialista, promovendo assistncia judiciria (no jurdica)
nos moldes da advocacia privada. Esse modelo de extenso completamente
diferente da AJP, considerando que se pauta em uma relao vertical entre o jurista
e o cliente, onde o conhecimento jurdico sacralizado, ficando restrito aos ditos
operadores do direito (CAMPILONGO, 1991, p. 17).
Isto porque, para esta autora, a AJP se baseia em uma noo crtica de
Direito, sob uma perspectiva emancipatria, dedicando-se, ainda, educao
popular, direcionando-se e trabalhando em conjunto com os novos sujeitos coletivos
de direito, termo que designa os movimentos sociais protagonistas na
redemocratizao do pas (GOHN, 2004) e pode ser associado, tambm, aos termos
sujeito histrico, sujeito popular, povo, novos movimentos sociais (WOLKMER,
2001)24.
Junto aos movimentos sociais, a AJP realiza uma educao em direitos
humanos, como projeto pedaggico emancipatrio, possibilitando um espao de
criao, de valorao, de redefinio e de compreenso do jurdico (MAIA, 2006, p.
30), auxiliando, ainda, juridicamente a propositura de aes judiciais, tendo em
vistas a preservao de direitos fundamentais (MAIA, 2006).
Assim, a literatura (OLIVEIRA, 2003; MAIA, 2006; PEREIRA, 2011) lista como
pressupostos desta assessoria a compreenso do Direito sob a perspectiva da
Teoria Crtica, do Direito Alternativo e do Pluralismo Jurdico, uma noo ampla de
acesso justia e a Educao Popular. A AJP busca suprir, assim, as limitaes
apresentadas por Santos (1997) na assistncia jurdica a falta de uma educao
jurdica sobre os direitos do trabalhador, consumidor, etc., e a noo individualista
perceptvel no distanciamento dos problemas de cada cidado daqueles
coletivamente sofridos pelas classes desprestigiadas.
24 Vale identificar, nesse caso, os atores sob a designao de novos sujeitos coletivos de direito, que, como reconhece Maia (2006), no so estritamente novos novo pode ser considerado o seu protagonismo, fruto de um contexto pluralista reconhecido progressivamente. So eles os movimentos sociais rurais e urbanos, como o MST Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra e os movimentos de luta por moradia, o movimento indgena e o negro, o movimento pela igualdade de gnero, as organizaes de defesa e promoo dos direitos das crianas e adolescentes, dentre outros (MAIA, 2006).
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No entanto, reconhece-se que, em que pese a atuao da AJP se
fundamente em um paradigma dialgico e educacional, forjado com base nas
Teorias do Direito Crtico e do Direito Alternativo (OLIVEIRA, 2003), a principal e
preferencial estratgia de luta deste movimento se faz pela judicializao frente ao
Poder Judicirio, provocado a se posicionar sobre as novas demandas e a
reconhecer direitos, transformando a sociedade (MAIA, 2006) o que vai ao
encontro do papel do Judicirio na conjuntura atual, destacado por Streck (2001).
Como exemplos paradigmticos de Assessoria Jurdica Popular, temos o
Servio de Assistncia Judiciria SAJU/UFRGS e o Servio de Apoio Jurdico da
UFBA25, surgidos nas dcadas de 50 e 60, respectivamente, frutos de uma
insatisfao com o ensino jurdico tradicional (OLIVEIRA, 2003). So estes os mais
antigos servios de assistncia jurdica popular, embora tenham sido fechados, no
perodo ditatorial, por consistirem, poca, centros articuladores do movimento
estudantil e, assim, de dissidncia com o governo, suscitando um debate em busca
da emancipao social e da educao jurdica e poltica de grupos sociais mais
vulnerveis. Somente nos anos 80 o SAJU/BA foi reaberto (OLIVEIRA, 2003), sendo
este perodo, especialmente com a promulgao da Carta Magna de 1988, marcado
pela multiplicao de experincias semelhantes em outras reas do pas.
O Servio de Apoio Jurdico da UFBa, atualmente, divide-se entre o Ncleo
de Assistncia Jurdica e o Ncleo de Assessoria, conforme Oliveira (2003), por
motivos operacionais. Composto por um contingente maior de pessoas, o Ncleo de
Assistncia integrado por advogados-monitores e estudantes, inclusive do
Bacharelado Interdisciplinar de Humanidades, e destina-se assistncia jurdica em
Direito Civil por questes estruturais e de logstica, as outras reas so
encaminhadas ou para a Defensoria Pblica, ou para os Escritrios-modelo na
cidade de Salvador.
O Ncleo de Assessoria26, por sua vez, destina-se a causas coletivas. Surgido
em meados de 1995, ao engajar-se no Projeto Cansano, no Projeto UFBA em
25 Denominao atual do SAJU, que j se chamou, anteriormente, nos moldes do servio da UFRGS, Servio de assistncia jurdica. 26 O Ncleo de Assessoria, que durante alguns anos passou a ser chamado de Ncleo de Educao Popular (NEP), segundo a descrio da pgina do Facebook, trabalha com trs eixos, todos dentro da temtica macro da questo fundiria: questo agrria, em parceria com o assentamento Azimbo, do movimento CETA; questo urbana e direito cidade, em parceria com o MSTB; comunidades
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Campo27 e, posteriormente, no Programa Juristas Leigos (desde 1992 executado
pela AATR) e no Projeto Monitoramento do Recncavo, este Ncleo se dedica
educao popular na perspectiva dialgica de Paulo Freire, seguindo o aporte
metodolgico da AJP, em constantes esforos para superar os problemas de
fragmentariedade e falta de planejamento decorrentes da transitoriedade da
condio de estudante, bem destacada por Oliveira (2003).
Sobre as dificuldades enfrentadas em perseguir uma educao jurdica
popular, Maia (2006, p. 93) reconhece que no fcil manter-se (sic) imune aos
vcios dos servios legais tradicionais, j que esses constituem a prtica dominante.
Assim, embora a ideologia da AJP se distinga dos chamados servios legais
tradicionais, por seu carter emancipador e tendente a tratar de demandas
coletivas, nota-se que parte da assessoria sob exame acaba se destinando a aes
individuais, de alimentos, etc., tradicionais, em face da grande demanda social por
tal assistncia sem perder de vista, entretanto, os ideais de atuao (MAIA, 2006).
Faz-se, ainda, evidente que a AJP no objetiva tomar o protagonismo dos
movimentos sociais (MAIA, 2006), considerando-se a militncia efetiva destes pelo
acesso, pela populao, a uma ordem de valores e concretizao de direitos. Tais
movimentos lutam, assim, pelo prprio acesso justia, amplamente considerado,
uma vez que a questo atual proteger direitos postos na Constituio. Isto porque
a positivao de direitos opera como acachapante luta social, ao passo que os tais
direitos no so concretizados, em aproximao quilo que Karl Loewenstein
considera como Constituio nominal (SILVA NETO, 2010).
Alm disso, os movimentos sociais so instncias de juridicidade cujo
protagonismo deve ser amplamente reconhecido, no atual contexto que deu ensejo
ao Decreto 8.243/201428, que institui a Poltica Nacional de Participao Social e
concretiza o princpio democrtico, assentado constitucionalmente, para o qual o
processo decisrio no se resume aos partidos polticos (LEMES, MARIANO, 2014).
Alm dos movimentos sociais, outras instncias de juridicidade interagem
para o acesso justia, especialmente em favelas ou comunidades:
tradicionais, em parceria com o Quilombo Rio dos Macacos. Mais informaes na pgina da rede social criada pelos membros: https://www.facebook.com/assessoriasaju. 27 Para maiores detalhes sobre essas experincias, ver Oliveira (2003). 28 Por se tratar de um dispositivo legal recente, ainda no foram feitos estudos sobre suas implicaes.
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a inacessibilidade justia oficial por parte da populao das favelas pesquisadas juntamente com (sic) o descrdito inerente ao ente estatal, fazem que as instncias jurdicas comunitrias sejam as verdadeiras e nicas opes de que dispe o povo para a resoluo de seus conflitos (ROCHA, 2010, p.4)
Instncias comunitrias, assim, frequentemente atuam em paralelo nos locais
em que o Estado no se faz presente, ou para os quais os entes estatais e a lei so
fruto de medo. Rocha (2010) aborda experincias desta natureza para expor o
contexto pluralista em que vivemos, comeando pelos estudos de Boaventura Sousa
Santos na favela carioca do Jacarezinho, onde a associao de moradores se
estruturou como instncia decisria em conflitos pela posse de terras (ocupadas
irregularmente, segundo a lei) (SANTOS, 1988) e de Raissa Melo na praia de
Redonda, em Icapu, no Cear, onde a colnia local de pescadores tambm se
utiliza de normas prprias (MELO, 2001).
Tais estudos permitem compreender a importncia de tribunais alternativos
na resoluo de conflitos comunitrios, de modo que Rocha (2010) conclui que tais
experincias pluralistas no devem ser destinadas apenas queles cujo acesso
justia formal impossibilitado, mas consideradas por todos os profissionais do
Direito:
Temos de nos comprometer fortemente com as lutas sociais, caso contrrio, incorreremos na possibilidade de vermos nosso pas transmutado em um emaranhado de leis decorativas que no so usadas com os fins ticos a que, ao menos teoricamente, devem ser destinadas (ROCHA, 2010, p. 35).
Importante se faz mencionar, ainda, as experincias de democratizao
jurdica citadas por Leonelli e Mesquita (2004, p. 82):
Exemplos significativos nessa linha de atuao, no Brasil, tem-se, dentre outros, na experincia da Themis, no Rio Grande do Sul, com as promotoras legais populares, projeto de referncia para aes semelhantes em outras regies; nos Balces de Direito, implantados pelo Viva Rio que tambm inspiram outros projetos: nos Escritrios Populares de Mediao em Salvador, Bahia; nos Juristas Leigos, projeto capitaneado pela Associao de Advogados dos Trabalhadores Rurais-AATR no interior da Bahia; nos projetos Justia Comunitria do Tribunal de Justia do Distrito Federal e no Balco de Justia e Cidadania do Tribunal de Justia do Estado da
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Bahia, nos de iniciativa de Defensorias Pblicas, do Ministrio Pblico ou de Secretarias de Justia que so importantes referncias do Poder Pblico nessa rea. Os projetos, em sua grande maioria apoiados pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos, adotam, como princpio, a participao de representaes da comunidade na sua execuo, variando as formas e intensidade dessa participao. (grifo nosso).
No se pretende esgotar toda a multiplicidade de agentes jurdicos em nosso
complexo sistema. Buscou-se, com isto, traar um panorama sobre o acesso
justia no Brasil, para entender quais as limitaes com que lidamos. Assim,
passamos a analisar a tese principal desse trabalho: a necessidade de uma
educao jurdica generalizada no ensino formal. Veremos, dessa forma, a escola
pblica como instrumento de materializao do acesso justia.
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3. EDUCAO JURDICA: UMA DECORRNCIA DO DEVER DE ASSISTNCIA
JURDICA DO ESTADO
Costuma-se colocar como principais alternativas, para contemplar o acesso
justia, instituies estatais (no caso do Brasil, a Defensoria Pblica), medidas
alternativas ao Estado (ouvidorias de bairros, associaes da sociedade civil
voltadas para a resoluo de conflitos), bem como sistemas de assessoria (ou
assistncia) jurdica, a exemplo do Servio de Apoio Jurdico da UFBA SAJU.
Assim, da anlise do estudo da arte sobre o tema, percebe-se que as
discusses sobre o acesso justia so centradas, basicamente, nas dificuldades
de obter acesso ao Judicirio. Quando os estudos versam sobre justia lato sensu,
como enunciado anteriormente, enveredam apenas por caminhos estatais
(Defensoria Pblica, etc.) ou de assistncia jurdica, bem como abordam a
necessidade de uma educao jurdica popular, geralmente ligada a movimentos
sociais, fenmeno importante na perspectiva pluralista j descrita. Esses ltimos
no estatais aproximam-se do tratamento amplo conferido ao acesso justia pela
comunidade acadmica, nos termos aqui relatados.
Os trabalhos sobre a Defensoria Pblica, de modo geral, quando dispensam
um tpico sobre a atuao extrajudicial da instituio, fazem-no de modo reduzido,
sem o grau de concretude visto na atuao judicial. Enfoca-se no que a instituio
pode fazer fora do Judicirio, sem estudar se esta realmente faz. Poucos, assim, so
os estudos que abordam, realmente, o acesso justia em suas mltiplas vertentes,
especialmente o acesso a uma ordem de direitos e valores que emana da
Constituio Federal.
No enxergamos tais estudos como equivocados, uma vez que todas estas
vias de obter acesso justia so vlidas e pertinentes a relao entre os
trabalhos aqui j citados e o presente , portanto, de complementaridade. No
entanto, a atual conjuntura revela uma insuficincia nos modelos, uma vez que estes
ainda atingem uma parcela restrita da populao e que, se considerados de forma
macroestrutural, deixam uma grande lacuna especialmente quanto ao to
necessrio conhecimento dos prprios direitos.
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Isto porque, primeiramente, a Defensoria Pblica, ainda em estruturao,
embora tenha competncias legais para atuar no campo da educao jurdica,
contemplando o acesso em sentido amplo justia, pela atual precariedade
visualizada no estudo Mapa da Defensoria Pblica no Brasil (ANADEP, 2013),
concentra a atuao na seara do Judicirio, uma vez que o litigioso judicial j
representa uma demanda excessiva carga de trabalho aos poucos Defensores
Pblicos presentes no Brasil.
A AJP, bem como os movimentos sociais, como ressaltamos, desempenham
um pap