acupuntura e psicologia

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O Contato entre a Acupuntura e a Psicologia Raphael Henrique Moreira 1 UERJ [email protected] Jorge Coelho Soares 2 UERJ Resumo O presente trabalho faz parte do projeto de monografia de conclusão de graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e tem o objetivo de pesquisar as possíveis relações entre dois saberes que têm o intuito de reduzir o sofrimento humano, porém advêm de pressupostos diferentes. É necessário pensar nesse momento qual é o papel da acupuntura no exercício da prática profissional psicológica, para que ela não seja descaracterizada para servir aos moldes ocidentais e para não se tornarem práticas sem nenhuma relação. O exercício da acupuntura foi regulamentado pelo conselho de psicologia com a resolução n° 005/2002 3 . A partir daquela data a acupuntura se tornou um recurso complementar à prática psicológica. Esse avanço na área da saúde não deixou de ser de forma dicotomizada desconsiderando outros recursos da medicina tradicional chinesa como, por exemplo, a dietoterapia, a fitoterapia e a shiatsuterapia, que continuam sendo práticas que ferem o código de ética do psicólogo, mas que não são praticadas de forma dissociada na China e em outros países que adotaram a prática como a França, Portugal e Estados Unidos. Destaca-se o equívoco nesse campo, pois não seria possível admitir os valores terapêuticos da acupuntura e negá-los ao shiatsu, pois a diferença dessas práticas é tão indissociável quanto o organismo por si próprio. Propondo-se a discutir o contato entre áreas distintas, serão utilizados os conceitos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade que Japiassu em seu livro O sonho transdisciplinar apresenta com o intuito de pensar formas de se fazer ciência: 1 Graduando do curso de psicologia e especializando em acupuntura e eletroacupuntura pela ABACO . 2 Prof. adjunto do PPGPS/UERJ. 3 “Art.1 º - Reconhecer o uso da Acupuntura como recurso complementar no trabalho do psicólogo, observados os padrões éticos da profissão e garantidos a segurança e o bem-estar da pessoa atendida; Art 2º - O psicólogo poderá recorrer à Acupuntura, dentro do seu campo de atuação, desde que possa comprovar formação em curso específico de acupuntura e capacitação adequada, de acordo com o disposto na alínea “a” do artigo 1o do Código de Ética Profissional do Psicólogo; Art.3 o - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação; Art. 4º - Revogam-se as disposições em contrário”.

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Page 1: Acupuntura e Psicologia

O Contato entre a Acupuntura e a Psicologia

Raphael Henrique Moreira1 UERJ [email protected]

Jorge Coelho Soares2 UERJ

Resumo

O presente trabalho faz parte do projeto de monografia de conclusão de graduação da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro e tem o objetivo de pesquisar as possíveis

relações entre dois saberes que têm o intuito de reduzir o sofrimento humano, porém advêm

de pressupostos diferentes. É necessário pensar nesse momento qual é o papel da

acupuntura no exercício da prática profissional psicológica, para que ela não seja

descaracterizada para servir aos moldes ocidentais e para não se tornarem práticas sem

nenhuma relação. O exercício da acupuntura foi regulamentado pelo conselho de psicologia

com a resolução n° 005/20023. A partir daquela data a acupuntura se tornou um recurso

complementar à prática psicológica.

Esse avanço na área da saúde não deixou de ser de forma dicotomizada desconsiderando

outros recursos da medicina tradicional chinesa como, por exemplo, a dietoterapia, a

fitoterapia e a shiatsuterapia, que continuam sendo práticas que ferem o código de ética do

psicólogo, mas que não são praticadas de forma dissociada na China e em outros países que

adotaram a prática como a França, Portugal e Estados Unidos. Destaca-se o equívoco nesse

campo, pois não seria possível admitir os valores terapêuticos da acupuntura e negá-los ao

shiatsu, pois a diferença dessas práticas é tão indissociável quanto o organismo por si

próprio.

Propondo-se a discutir o contato entre áreas distintas, serão utilizados os conceitos de

interdisciplinaridade e transdisciplinaridade que Japiassu em seu livro O sonho

transdisciplinar apresenta com o intuito de pensar formas de se fazer ciência: 1 Graduando do curso de psicologia e especializando em acupuntura e eletroacupuntura pela ABACO . 2 Prof. adjunto do PPGPS/UERJ. 3 “Art.1º - Reconhecer o uso da Acupuntura como recurso complementar no trabalho do psicólogo, observados os padrões éticos da profissão e garantidos a segurança e o bem-estar da pessoa atendida; Art 2º - O psicólogo poderá recorrer à Acupuntura, dentro do seu campo de atuação, desde que possa comprovar formação em curso específico de acupuntura e capacitação adequada, de acordo com o disposto na alínea “a” do artigo 1o do Código de Ética Profissional do Psicólogo; Art.3o - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação; Art. 4º - Revogam-se as disposições em contrário”.

Page 2: Acupuntura e Psicologia

“Pesquisa interdisciplinar é a que se realiza nas fronteiras e pontos de contato

entre diversas ciências [...] A pesquisa interdisciplinar não se contenta em promover a

convergência e a complementaridade de várias disciplinas para atingir um objetivo

comum; busca utilizar essa colocação em presença para tentar obter uma síntese entre os

métodos utilizados, as leis formuladas e as aplicações propostas”. (Japiassu, 2006, p. 38-

39).

“Pesquisa transdisciplinar é a que se afirma no nível dos esquemas cognitivos podendo

atravessar as disciplinas e visando à criação de um campo de conhecimentos onde seja

possível a existência de um novo paradigma ou de um novo modo de coexistência e de

diálogo entre os filósofos e os cientistas, os esquemas nocionais devendo circular da

filosofia às ciências naturais e humanas, sem que haja nenhuma hierarquia entre esses

diversos modos de problematização e experimentação [...] Diferentemente da pesquisa

monodisciplinar, ela se interessa pela dinâmica gerada pela ação de vários níveis de

Realidade. Não constituindo uma nova disciplina, passa pelo conhecimento disciplinar e

dele se alimenta”. (Japiassu, 2006, p. 39-40).

No trabalho serão observadas obras publicadas no Brasil que se propõem a discutir o

contato entre psicologia e acupuntura com o intuito de descobrir de que forma esse contato

está ocorrendo. Além dessas obras, serão analisados trabalhos que discursam sobre o

contato da acupuntura com outras ciências médicas.

As pesquisas nos moldes ocidentais tentam verificar a eficácia da acupuntura ignorando

os conceitos e pressupostos de complexidade com os quais trabalha um acupunturista,

mostrando assim um choque existente entre a prática da pesquisa ocidental e esse

tratamento oriental. Não é possível utilizar-se uma mesma seqüência de pontos para

pessoas com o mesmo sintoma, por exemplo, pois cada indivíduo tem sua complexidade e

o mesmo sintoma pode significar uma desarmonia diferente, além de estar atrelado a outros

sinais gerando uma complexidade no desequilíbrio energética. Não há um sintoma com

uma única solução a ser quantificada com a pesquisa ocidental.

Nota-se que o fato de ignorar a questão da complexidade do diagnóstico chinês demonstra

a falta de diálogo entre essas práticas distantes, mostra que há uma tentativa de submissão

aos moldes dos métodos de pesquisa ocidentais. Sendo dessa forma distante dos contatos

interdisciplinares ou transdisciplinares propostos por Japiassu.

O trabalho de pesquisa está em processo, porém é possível delinear algumas discussões

como as feitas por Campiglia em seu livro Psique e Medicina Tradicional Chinesa. Neste

Page 3: Acupuntura e Psicologia

livro é possível ver tentativas de sincretismo: “Provavelmente, a atividade de liberação ou

acúmulo do Sangue, descrita nos antigos livros chineses, relaciona-se ao armazenamento de

energia que se dá no Fígado por meio do glucogênio hepático”. (Campiglia, 2004, p. 55). O

sincretismo abre mão de uma discussão interdisciplinar para achar convergências que não

trazem uma nova contribuição, mas somente uma correlação.

Campiglia tem em seu estudo a psicoterapia Reichiana e estabelece em seu livro o

seguinte sincretismo: “Dos cinco elementos, existem as seguintes possibilidades de

associação com os tipos caracteriológicos descritos: Elemento Água – tipo fóbico;

Elemento Madeira – tipo fálico-narcisista; Elemento Fogo – tipo histérico; Elemento Terra

– tipo oral; Elemento Metal – tipo anal” (Campiglia, 2004, p. 39). Dessa forma se reduz a

possibilidade de diálogo, visto que uma correlação não traz um elemento novo para

discussão, e sim dois elementos e suas “similaridades”, tornando-se uma maneira de entrar

em contato com o novo da mesma maneira que já se havia feito.

Encontram-se dificuldades quando o objetivo é o sincretismo. A teoria Reichiana não

pode ser tomada como uma verdade acerca da psique, existem divergências entre as teorias

psicológicas quanto ao funcionamento do psiquismo. Já na filosofia da acupuntura a

construção conceitual se dá de forma uníssona. A acupuntura é uma prática utilizada na

intenção de restabelecer o equilíbrio energético do organismo, pressupõe que é possível

viver em harmonia consigo, com os outros e com a natureza. Esse conceito por si só

demonstra um ponto de fricção entre a acupuntura e a caracterologia Reichiana que acredita

que:

“Apresentam-se, a seguir, os caracteres neuróticos descritos por Reich e pelos

autores neoreichinanos: oral, compulsivo, fálico-narcisista, histérico e o caráter (o traço)

fóbico e a psicose. Cada um desses traços ou caracteres mostra aspectos quantitativos e

qualitativos de fixação da libido, ocasionando quadros bastante diversos. Todos temos

alguma fixação neurótica, maior ou menor, pode haver mais de uma fixação em uma

pessoa. O ser humano é complexo, bem como o seu desenvolvimento; não se pode

esperar encontrar indivíduos completamente ‘não-neuróticos’ sem conflitos ou

fixações”.(Campiglia, 2004, p. 28). Portanto, para essa teoria, o patológico é a norma, quando para a Medicina Tradicional

Chinesa somente o fisiológico é a norma.

Page 4: Acupuntura e Psicologia

Existe a possibilidade de um diálogo interdisciplinar entre a acupuntura e a psicologia,

porém é necessário cuidado, pois é facilmente factível que adotemos a acupuntura como

uma técnica a ser submetida e modificada aos moldes da psicologia ocidental. É necessário

que a relação entre esses paradigmas distantes se dê de forma a contemplar um

enriquecimento, a criação de novos conceitos. Por enquanto só é possível observar a

dificuldade de se lidar com uma prática diferente e a tentativa de assimilar esse novo

conhecimento a partir de um conhecimento já existente na psicologia.

Eixo temático: Saúde

Introdução

O presente trabalho faz parte do projeto de monografia de conclusão de graduação da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro e tem o objetivo de pesquisar as possíveis

relações entre dois saberes que têm o intuito de reduzir o sofrimento humano, porém advêm

de pressupostos diferentes. É necessário pensar nesse momento qual é o papel da

acupuntura no exercício da prática profissional psicológica, a fim de que ela não seja

descaracterizada de modo a servir aos moldes ocidentais e para não se tornarem práticas

sem nenhuma relação.

Propondo-se a discutir o contato entre áreas distintas, serão utilizados os conceitos de

interdisciplinaridade e transdisciplinaridade que Japiassu em seu livro O sonho

transdisciplinar apresenta com o intuito de pensar formas de se fazer ciência: “Pesquisa interdisciplinar é a que se realiza nas fronteiras e pontos de contato entre

diversas ciências [...] A pesquisa interdisciplinar não se contenta em promover a

convergência e a complementaridade de várias disciplinas para atingir um objetivo

comum; busca utilizar essa colocação em presença para tentar obter uma síntese entre os

métodos utilizados, as leis formuladas e as aplicações propostas”. (Japiassu, 2006, p. 38-

39).

“Pesquisa transdisciplinar é a que se afirma no nível dos esquemas cognitivos podendo

atravessar as disciplinas e visando à criação de um campo de conhecimentos onde seja

possível a existência de um novo paradigma ou de um novo modo de coexistência e de

diálogo entre os filósofos e os cientistas, os esquemas nocionais devendo circular da

filosofia às ciências naturais e humanas, sem que haja nenhuma hierarquia entre esses

Page 5: Acupuntura e Psicologia

diversos modos de problematização e experimentação [...] Diferentemente da pesquisa

monodisciplinar, ela se interessa pela dinâmica gerada pela ação de vários níveis de

Realidade. Não constituindo uma nova disciplina, passa pelo conhecimento disciplinar e

dele se alimenta”. (Japiassu, 2006, p. 39-40).

No trabalho são observadas três obras publicadas no Brasil que se propõem a discutir o

contato entre psicologia e acupuntura com o intuito de descobrir de que forma esse contato

está ocorrendo, são elas: Acupuntura e psicologia de Yves Requena, Psique e medicina

tradicional chinesa de Helena Campiglia e Psiquismo em Medicina Oriental de Ilka

Domingas Penna.

1. Acupuntura e psicologia – Yves Requena

Yves Requena é um médico acupunturista francês.

Em seu segundo capítulo intitulado “A Psicologia” o autor apresenta uma caraterologia

de Gaston Berger e fala da psicologia como se a psicanálise englobasse todo o seu

conhecimento. A contribuição que o livro se propõe apresentar é analogia entre essa

caraterologia de Berger e os seis temperamentos da acupuntura.

No capítulo quatro, Requena descreve as cinco constituições da acupuntura (Madeira,

Fogo, Terra, Metal e Água): “A constituição chinesa irá definir a vulnerabilidade específica

de um ou de outro órgão ou funções chinesas, para um dado indivíduo”. (REQUENA, 1990

p. 110). Demonstram-se características morfológicas e se uma desarmonia se apresenta

onde ela é mais propensa por ser constitucional, poderão aparecer características psíquicas.

O conceito de constituição não restringe uma única constituição à pessoa, essa

vulnerabilidade apresentada pode se dar em mais de um órgão, tornando complexa a

apresentação da morfologia.

Existe ainda, na ciência ocidental, uma grande necessidade de explicar o que acontece nos

processos psíquicos ao invés de concentrar esforços em como se dá o processo de

adoecimento e como se dá o processo de cura. Ainda é notável que a maior necessidade é a

de entender, complicando o estudo quando se tenta dominar toda a complexidade humana,

o esforço é notado na passagem: “O interesse de aproximar a acupuntura das análises caracteriológicas da psicologia é

grande. Ela permite ao acupuntor dar mais exatidão ao caráter de seu paciente e de

Page 6: Acupuntura e Psicologia

deduzir os desequilíbrios de energia nos meridianos em função de seu comportamento

[...] Por último, a mesma permite atualizar de outra maneira a relação psiquê-soma,

contida na acupuntura, mas imperfeitamente sistematizada até agora, relação que aliás

sempre preocupou os médicos e psicólogos ocidentais em suas pesquisas de correlações

entre o caráter e o humor, a morfologia dominante ou a atividade preponderante de tal ou

qual glândula endócrina, ou de algum sistema de tal folheto embriológico em relação aos

outros, etc.” (REQUENA, 1990, p. 78)

O Nei Jing é o texto mais antigo de acupuntura e por essa característica trazer uma

dificuldade de compreensão, ele é dotado de simbolismo. Apesar de reconhecer que não há

uma exatidão, pois o livro é de ampla compreensão, isso não impediu o autor de estabelecer

uma correlação direta entre os temperamentos chineses e os caráteres de Berger. O fato

numérico não impediu o autor de dividir dois desses temperamentos chineses em mais dois,

sem estipular o critério que utilizou: “O texto não é de grande exatidão (o autor está se

referindo ao Nei Jing), mas entretanto é possível estabelecer uma relação precisa entre os

seis temperamentos chineses e os oito caráteres de Gaston Berger, sendo duplos dois desses

temperamentos”. (REQUENA, 1990, p. 93)

O texto perde confiança ao demonstrar falta de rigor na sua descrição das consituições

chinesas: “É preciso dizer que é em parte, graças a essa classificação em cinco diáteses feita

por Jacques Ménétrier, fundador do método, que conseguimos definir as cinco constituições

chinesas” (REQUENA, 1990, p. 131). Nota-se que por efeito do sincretismo o autor já não

se preocupa em descrever as constituições chinesas para depois promover o contato com

outra teoria, o sincretismo acontece como que de imediato.

Antes mesmo de descrever os seis temperamentos da acupuntura (Tai Yang, Shao Yang,

Yang ming, Tai yin, Jue yin e Shao yin), o autor traça um paralelo entre os mesmos e os

oito caráteres de Berger (colérico, nervoso, sentimental, passional, apático amorfo,

sanguíneo e fleugmático). Ele resolve o problema numérico dividindo dois temperamentos

da acupuntura (Yang ming-terra, yang ming-metal, Tai yin-terra, Tai yin-metal) de forma a

corresponder as duas teorias de forma sincrética: “Para se determinar o mais exatamente possível o comportamento psicológico desses

seis temperamentos, pode-se de modo muito simples, estabelecer uma correspondência

com os oito caráteres descritos por Gaston Berger. Esses oito caráteres, como dissemos,

são definidos pela variação de três fatores que são atividade, a emotividade, e o rancor

Page 7: Acupuntura e Psicologia

(acessório). Esses três fatores podem ser transpostos em acupuntura da seguinte forma

analógica” (REQUENA, 1990, p.142).

Posteriormente ele apresenta um teste chamado TC40, uma adaptação de um teste de

1959 de Berger onde apresenta quarenta afirmativas para a pessoa classificar como “sente-

se incluído” – muito (10 pontos), bastante (5 pontos) , pouco (2 pontos) ou nada (0 pontos).

Frases essas cuja pontuação corresponde a uma das fusões entre os temperamentos chineses

e os caráteres de Berger, reduzindo a complexidade humana a apenas quarenta afirmativas,

entre elas: “Em geral convencido de estar com a razão gosta de discutir e cortar os cabelos

em quatro” (REQUENA, 1990, p. 152). Cada fusão tem 5 frases. Somente após explicar

seu teste ele apresenta os temperamentos da acupuntura. Esse teste também é baseado no

teste multifásico que originalmente tem 500 afirmativas.

Existe uma extensa combinação possível entre os temperamentos chineses, podendo

envolver três ou mais temperamentos, até todos (REQUENA, 1990). Essa diversidade de

relação entre os temperamentos demonstra a inutilidade de se restringir em um teste os

temperamentos chineses.

Requena critica o próprio teste de Berger e apresenta dados de entrevista com 133

pessoas com uma estatística de acerto do seu teste de 69,92%, ou seja de cerca de 30% de

erro, justificando os erros com um motivo que poderia servir como demonstrativo que a

complexidade supera o teste: “Por que o teste de Berger torna-se falho? Não é tanto porque a avaliação das perguntas

sobre os fatores seja mal feita a uma possível imprecisão dessas perguntas, mas como já

destacamos é porque a emotividade ou a atividade ou ainda a reflexão, ou dois desses

fatores são em geral ambivalentes nos pacientes, porque justamente eles oscilam entre

dois caráteres, onde esses fatores são contraditórios. Nesses casos, muito freqüentes, a

contagem das dez perguntas sobre um ou dois desses fatores, numerado até 100, em lugar

de ser francamente elevado, ou francamente baixo, oscila próximo da média, a 50. Mas o

resultado bruto do teste não leva isso em conta. Tomemos um exemplo: seja um paciente

cujo caráter é ao mesmo tempo colérico e quase também sentimental, Shao yang – Shao

yin. No teste, ele é então muito emotivo, ativo e secundário; o resultado dá: passional.

Ora, a estrutura de seu caráter não corresponde em nada aquele do passional, mas a uma

mistura do colérico e do sentimental; o mesmo acontece com sua morfologia e patologia”

(REQUENA, 1990. p. 211-212).

Page 8: Acupuntura e Psicologia

O desenvolvimento da pesquisa de Yves Requena não se dá de forma nem interdisciplinar

nem de forma transdisciplinar, o resultado se mostrou empobrecido, pois se utiliza de um

sincretismo entre a acupuntura e uma parte da psicanálise sem contribuição.

2. Psique e Medicina Tradicional Chinesa – Helena Campiglia

Helena Campiglia é médica, acupunturista, formada em análise Junguiana e análise

Reichiana.

Embora o foco da obra seja a análise Reichiana, o contato mais frutífero se dá entre na

ênfase que a autora dá ao estudo dos símbolos, por sua influência Junguiana, e o potencial

explorado de representações simbólicas que os Cinco Elementos têm. Foi capaz de traduzir

a importância do símbolo, e como este tem o poder de comunicar: “Para entender a

dimensão do mundo psíquico é preciso transcender o pensamento linear e racional [...] A

holografia [...] é uma figura que representa, em cada uma das suas partes, o todo, mas o

todo transcende às partes” (CAMPIGLIA,2004, p. 22).

Ao propor um diálogo entre Reich e a acupuntura, a autora se apressa a mostrar

convergências: “Reich descreveu de modo bastante similar àquele da Medicina Chinesa, o

modo como a energia (libido) afeta o psiquismo e molda a maneira de ser do indivíduo”

(CAMPIGLIA,2004, p. 25) A questão é que a libido ou a bioenergia de Reich não pode ser

simplesmente equiparada ao Qi da acupuntura e não é apresentado como é possível atribuir

essa similaridade.

Encontram-se dificuldades quando o objetivo é o sincretismo. A teoria Reichiana não

pode ser tomada como uma verdade a cerca da psique, existem divergências entre as teorias

psicológicas quanto ao funcionamento do psiquismo. Já na filosofia da acupuntura a

construção conceitual se dá de forma uníssona. A acupuntura é uma prática utilizada na

intenção de restabelecer o equilíbrio energético do organismo; pressupõe que é possível

viver em harmonia consigo, com os outros e com a natureza. Esse conceito por si só

demonstra um ponto de fricção entre a acupuntura e a caracterologia Reichiana que acredita

que: “Apresentam-se, a seguir, os caracteres neuróticos descritos por Reich e pelos autores

neoreichinanos: oral, compulsivo, fálico-narcisista, histérico e o caráter (o traço) fóbico e

a psicose. Cada um desses traços ou caracteres mostra aspectos quantitativos e

Page 9: Acupuntura e Psicologia

qualitativos de fixação da libido, ocasionando quadros bastante diversos. Todos temos

alguma fixação neurótica, maior ou menor, pode haver mais de uma fixação em uma

pessoa. O ser humano é complexo, bem como o seu desenvolvimento; não se pode

esperar encontrar indivíduos completamente ‘não-neuróticos’ sem conflitos ou

fixações”.(Campiglia, 2004, p. 28).

Ao afirmar que sempre há uma fixação neurótica, está se afirmando que o neurótico, o

patológico é a norma, é o que será sempre encontrado. Essa visão mostra um conflito com a

visão chinesa pois para a acupuntura visa o equilíbrio, equilíbrio esse alcançável.

Campiglia tem em seu estudo a psicoterapia Reichiana e estabelece em seu livro o

seguinte sincretismo: “Dos cinco elementos, existem as seguintes possibilidades de

associação com os tipos caracteriológicos descritos: Elemento Água – tipo fóbico;

Elemento Madeira – tipo fálico-narcisista; Elemento Fogo – tipo histérico; Elemento Terra

– tipo oral; Elemento Metal – tipo anal” (Campiglia, 2004, p. 39). Dessa forma se reduz a

possibilidade de diálogo, visto que uma correlação não traz um elemento novo para

discussão, e sim dois elementos e suas “similaridades”, tornando-se uma maneira de entrar

em contato com o novo da mesma maneira que já se havia feito. É necessário evidenciar

que essa correlação não foi argumentada.

O estudo da acupuntura se mostra como uma tentativa de encaixar aos moldes ocidentais

para poder compreender: “Provavelmente, a atividade de liberação ou acúmulo do Sangue, descrita nos antigos

livros chineses, relaciona-se ao armazenamento de energia que se dá no Fígado por meio

do glucogênio hepático. Como o Sangue é um veículo de energia, pode-se concluir que ao

armazená-lo, o Fígado também retém a energia” (CAMPIGLIA, 2004, p. 55).

Isso reduz a complexidade que do conceito chinês pois o Sangue é a tradução para o

termo Xue, que engloba o Sangue imaterial sua função energética e também o sangue

material. Essa é uma tentativa de reduzir o conhecimento chinês ao que foi descoberto

dentro do conhecimento ocidental, sem considerar que talvez a ciência ocidental tenha que

se desenvolver muito para achar algo e assim equipara a esse sangue imaterial, o

movimento é sempre levando em consideração que o que foi encontrado pelos chineses,

será equiparado a um conceito ocidental.

Ao mesmo tempo em que apresenta o Shen como parte indivisível do corpo, como a força

que move o corpo, como o conceito de vitalidade, faz uma ligação do Shen ao neocórtex

Page 10: Acupuntura e Psicologia

(CAMPIGLIA, 2004). Nessa ligação entre Shen e neocórtex, além de faltar uma explicação

para a conexão, não houve uma argumentação de contribuição na mesma.

O texto é perpassado por falta de informação nos sincretismos, e uma falta de objetivo

dos mesmos. Existe uma seção de recomendação de pontos de acupuntura de acordo com o

elemento, e em momento algum se faz uma ligação aos caráteres Reichianos nessa seção. A

maior contribuição da obra talvez esteja na pequena enciclopédia de sentidos para os

símbolos Fogo, Terra, Metal, Água e Madeira.

3. O Psiquismo em Medicina Oriental – Ilka Domingas Penna.

Ilka Penna é psicóloga, acupunturista, shiatsuterapeuta, formada em medicina

psicossomática, com mestrado em Eletroacupuntura.

Uma das associações centrais do livro é a entre os Cinco Elementos e a Psicanálise. A

autora divulga uma relação entre Ego, Superego e Id através de relações que os Cinco

elementos têm, substituindo o elemento Fogo por Ego, o elemento Terra por Superego, e o

elemento Água por Id. A pulsão que o Id investe no Ego pode ser direcionada a Madeira

por contrageração causando frustração ao Id (PENNA, 2004). Ela acredita trazer mudanças

significativas para a psicanálise em campos considerados estruturais: “Em contrapartida,

posso dizer que alguns princípios da Psicanálise, engajados na dinâmica dos Cinco

Elementos da medicina Chinesa, são passíveis de manipulação terapêutica com grande

eficácia”. (PENNA, 2004, p. 76). Penna afirma poder tratar o Superego através da

shiatsuterapia. Nenhuma dessas correlações tem embasamento apresentado.

No livro é demonstrada uma relação, sem argumentação, entre os Cinco Elementos e os

tipos de Elias, integra assim o tipo cérebro-espinhal ao elemento Fogo, o tipo Gastro-

intestinal ao elemento terra, o tipo Bronco-Pulmonar ao elemento Metal, o tipo Genito-

urinário ao elemento Água, o tipo Muscular ao elemento Madeira.

A Madeira está relacionado às Gônadas, o Fogo tem ligação às glândulas Hipófise e

Pituritária, a Terra tem conexão com o Timo e o Pâncreas, o Metal liga-se à Tireóide, e a

Água tem relação com as Adrenais (PENNA, 2004). Hormônio é um aspecto da fisiologia

humana que não foi considerado pela acupuntura chinesa, embora o tratamento englobe

disfunções hormonais para os chineses essas disfunções tem o nome de desarmonias e são

consideradas somente como sintoma. Apesar de conseguir englobar o aspecto hormonal

Page 11: Acupuntura e Psicologia

mesmo não o considerando, a autora acredita ser necessário determinar quais glândulas

estão relacionadas a quais elementos. A analogia é demonstrada mas o raciocínio que as

liga não é mostrado.

Penna tem a proposta de integrar conhecimentos e técnicas visando uma unidade

psicossomática, uma complementação (PENNA, 2004), e com esse intuito promoveu

diferentes sincretismos sem uma exposição de lógica. Porém ela apresenta em muitos

momentos como uma visão pode ampliar a visão de outro campo se aproximando de um

“novo modo de coexistência” (JAPIASSU, 2006, p. 39-40): “No caso do vazio energético do Hun, a exteriorização não se produzirá e a pessoa pode

manifestar-se apagada ou excessivamente tolerante, faltando-lhe a assertividade e tendo

uma visão restrita da vida. Tratar tonificando o Vazio da Madeira e despertando, ao

mesmo tempo, o potencial criativo do paciente, bloqueado pelo vazio. Trabalhar também

a assertividade, a capacidade de perceber, sentir, ver e valorizar as coisas ao redor e a

maneira de adaptar-se a esta realidade” (PENNA, 2004, p. 39).

4. Comprometimentos do sincretismo

Os autores dos três livros afirmam utilizar da analogia para fazer as correlações entre a

acupuntura e certas áreas da psicologia. O que é possível observar é que essa analogia sem

restrições, sem parâmetros está passível de falhas e contradições, e é o que se apresenta

nesses três trabalhos como o relacionamento da estrutura Id ao Rim (Shen) feito por Penna

e ao Po (alma vegetativa do Pulmão) por Campiglia.

Ao discursar sobre o Hun (aspecto mental, também considerado como espírito, relacionado

Fígado), Requena e Campiglia discordam quanto à estrutura relacionada: “Hun é a porta

entre o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo [...] Está ligado ao cosmos, à rede de

conexões que existe entre nós e o universo. Sua relação com o espaço e o tempo é tênue,

tudo é relativo para o Hun, sua lógica não é linear, mas circular” (CAMPIGLIA, 2004, p

99). A autora aqui faz uma correlação entre o que é etéreo e o inconsciente, puramente

relacionando os dois por sua ligação ao cosmos e ao abstrato. Já Requena enxerga de outra

forma: “Temos também bons motivos para pensar que o inconsciente, em sua estrutura, foi

considerado pelos médicos chineses antigos; é o caso especial que se refere a estrutura Po,

‘alma vegetativa’ da qual falamos” (REQUENA, 1990, p. 217). Portanto o Incosciente

Page 12: Acupuntura e Psicologia

psicanalítico está ligado ao Hun para Campiglia e ao Po (relacionado ao Pulmão) para

Requena.

O mesmo acontece com o Complexo de Édipo. Relatando o elemento Madeira Penna

afirma: “As sensações sexuais que ocorrem da primeira floração (comparada à fase

Edipiana) podem ser suprimidas quando se transformam em fontes de sofrimentos,

humilhações e perigos” (PENNA, 2004, p. 37). Já Campiglia mostra outra versão,

relacionando ao Fogo: “Ao elemento Fogo, cabe o desenvolvimento da fala, da expressão no mundo, da

sensualidade e da sexualidade. O Fogo está presente na formação do vínculo com o pai,

no caso da menina, e com a mãe, no caso do menino. Ou seja, esse elemento predomina

na fase do complexo de Édipo” (CAMPIGLIA, p. 130).

Conclusão

Existe a possibilidade de um diálogo interdisciplinar entre a acupuntura e a psicologia,

porém é necessário cuidado, pois é facilmente factível que adotemos a acupuntura como

uma técnica a ser submetida e modificada aos moldes da psicologia ocidental. É necessário

que a relação entre esses paradigmas distantes se dê de forma a contemplar um

enriquecimento, à criação: “Enfim, a ciência determinista clássica cede lugar a uma ciência

pluralista: respeitando outros questionamentos, outras culturas, cuja mensagem parece

poder se integrar em um campo cultural mais vasto, inaugurando talvez uma nova era do

saber” (PRIGOGINE apud LIMA, 2005, p. 179). Nenhum livro apresenta um ponto de

tensão, um conflito entre a acupuntura e psicologia

Por enquanto só é possível observar a dificuldade de se lidar com uma prática diferente e

a tentativa de assimilar esse novo conhecimento a partir de um conhecimento já existente

na psicologia. A troca entre essas duas áreas ainda se dá prioritariamente dando vazão à

uma necessidade de explicar de forma exata, de compreender a luz da ciência ocidental o

avanço da acupuntura.

Referência Bibliográfica:

CAMPIGLIA, H. Psique e Medicina Tradicional Chinesa. São Paulo: Roca, 2004.

Page 13: Acupuntura e Psicologia

JAPIASSU, H. O Sonho transdisciplinar: e as razões da filosofia. Rio de Janeiro: Imago,

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LIMA, P. V. A. A gestalt-Terapia no contexto científico e intelectual contemporâneo.

HOLADO, A. (org) Gestalt-Terapia e contemporaneidade: contribuições para uma

construção epistemológica da teoria e da prática gestáltica. Campinas: Livro Pleno, 2005.

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REQUENA, Yves. Acupuntura e psicologia. São Paulo: Andrei, 1990.