aegyptiaca do sacerdote egípcio maneto. isso se deve ao fato do … · 2017-08-21 · povo hebreu...
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Em busca da história: reflexões acerca de uma historiografia egípcia.
PETTERSON MAGNO DA SILVA SANTOS
Existe história no Antigo Egito? Se nesta reflexão Heródoto for considerado o pai da
história, e os gregos como o povo que primeiro se importou com ela, então a resposta que se
chegará é não. Mas se é somente com o homem de Halicarnasso que este fazer surge, então
deve-se assumir que os egípcios não se importavam com o seu passado? Os vestígios deixados
por esta sociedade permitem discordar dos resultados da reflexão inicial.
Claro que pode-se argumentar que a forma egípcia de se escrever sobre o passado é
radicalmente diferente da helênica, e, portanto, não deve ser considerado como história. O que
deve ser levando em conta não é a diferença entre a forma como os gregos e o povo africano
interpretavam o seu passado, mas sim, a distância entre o fazer histórico grego antigo e o nosso
atual. O povo antigo em questão escrevia história como se faz contemporaneamente? Evidente
que não. Assim sendo, por que os egípcios não escreveram história?
Acredita-se que seriam as listas reais egípcias, ou pelo menos algumas delas, os textos
históricos egípcios por excelência. Suas características de produção e formas de circulação pela
sociedade se comparados com outros textos da mesma levam a está conclusão. Neste artigo
serão analisadas duas delas, A Pedra de Palermo, datada do Antigo Império e o Cânone Real de
Turim, que data do Novo Império. Cabe então dizer, que aqui não será trabalhado o texto
Aegyptiaca do sacerdote egípcio Maneto. Isso se deve ao fato do mesmo ter escrito durante o período
de dominação grega no Antigo Egito, quando a cultura local já havia passado por um processo de
hibridização com a cultura helência, o que leva também a hibridização da forma do sacerdote escrever
a história.
Busca-se, portanto argumentar que existe uma historiografia egípcia. Com regras de
validação próprias e que está inserida na cultura deste povo, com suas conformidades e tensões
que lhe são próprias.
O que se propõe não é um comparativo entre a historiografia grega, egípcia e
contemporânea, para então, escolher uma vencedora entre elas. O que se propõe é que a história
Mestrando em história pela UFRRJ. E-mail: [email protected]
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é um saber socialmente construído e que cada sociedade o fez em conformidade com sua própria
cultura.
Há ainda um outro argumento que deve ser levado em conta. A história enquanto saber
socialmente institucionalizado já mudou bastante do século XIX até os tempos atuais, como
exemplo podemos citar as diferenças teóricas entre os antigos positivistas e o atuais pós-
modernos. Assim sendo, por que não se pode conceber e estudar diferentes historiografias
antigas? Refletir sobre diferentes concepções e usos do passado por diferentes povos antigos
não é só importante para compreendermos mais sobre eles, mas para se ter mais uma
oportunidade para se refletir sobre as características próprias da historiografia.
Ao longo deste texto, vai-se debater quais motivos levaram as pesquisas sobre
historiografia antiga à não se aprofundar muito nos estudos egípcios, além de se delinear as
características próprias da produção historiográfica deste povo.
Delimitando fronteiras: a historiografia oriental.
Como já dito acima, praticamente não existe nenhum estudo sobre a historiografia
egípcia. Contudo, os poucos trabalhos que existem sobre tal tema, acabam englobando esta
construção do saber histórico dentro de um quadro mais amplo, que seria o da historiografia
oriental.
De imediato pode-se perceber um problema nesta forma de classificação. A mesma
carece de rigor teórico, tendo-se em vista que engloba dentro de uma mesma categoria diversas
reflexões diferentes acerca do que seria a história, englobando assim, povos da África e da Ásia.
A existência desta classificação se baseia na ideia que uma há contraposição entre a
historiografia ocidental, representada primordialmente pelos gregos e romanos, e a
historiografia dita oriental, representada pelos principais povos do que se costumou chamar de
Antigo Oriente Próximo. Enquanto a historiografia ocidental seria representada como aquela
que daria origem a historiografia contemporânea, a escrita da história enquanto ciência, que
busca faze uma análise crítica das fontes e que pretende avaliar todas as versões de um da fato
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para saber qual é a melhor, a historiografia oriental é classificada como tendo um caráter
fortemente mitológico (CARREIRA, 1982: 334), e ou então, biográfico (MOMIGLIANO,
2004: 33).
Está categoria de historiografia oriental é extremamente problemática, em primeiro
lugar porque ela se afirma de maneira negativa, a partir do que ela não é, a historiografia criada
por gregos e romanos, povos europeus. Ela é a historiografia de alguns asiáticos e africanos.
Em segundo lugar está categoria engloba dentro de um mesmo guarda-chuva diversos fazeres
historiográficos radicalmente diferentes entre si. Claro que estudos como os de John van Seters
(2009), que visam estabelecer comparativos e entender as trocas culturais entre povos é
importante, contudo se faz necessário compreender as especificidades de cada povo primeiro.
Justamente por ser uma categoria problemática, que engloba diferentes produções é fácil
apontar visões diferentes acerca de sua caracterização. Vejamos como José Nunes Carreira
caracteriza essa produção:
“Aí está o cordão umbilical da interpretação teológica a ligar a
historiografia clássica à pré-clássica. Se a «história teocrática» de Collingwood fosse
negação da história, teríamos de adiar para Tucídides a paternidade dessa ciência...
para, mesmo aí, ficarmos quase engasgados, ao engolir Alexandre como filho de Zeus
e descendente de Hércules e Aquiles” (CARREIRA, 1982: 357 ).
Na citação acima, Carreira mantém a opinião de que no Antigo Oriente Próximo existiu
uma historiografia que de fato é teocrática, contudo discorda da opinião de Colingwood que o
fato da mesma ser teocrática lhe tire seu mérito intelectual.
Agora vejamos como Arnaldo Momigliano caracteriza a dita historiografia oriental:
“Tanto Esdras quanto Neemias deram um toque judeu à tradição oriental genérica – mas
também especificamente persa – de escrever autobiografias em primeira pessoa...”
(MOMIGLIANO, 2004: 33).
Fica então evidente que as duas caracterizações sobre a categoria em questão não são
apenas concorrentes, mas excludentes.
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Contudo encontrou-se uma visão em comum entre os dois autores bastante interessante
e que ajuda este trabalho a continuar discordando acerca da pertinência da categoria
“historiografia oriental”. Ambos os historiadores consideram a historiografia hebreia como a
superior entre todas as ditas historiografias orientais. Vejamos o que diz Carreira:
“Que Israel foi pioneiro na tarefa de pensar e escrever história tornou-se
comunis opinio entre os especialistas do Antigo Testamento. Mesmo os construtores
De das civilizações, bem mais brilhantes que a hebraica, do Egipto e da Mesopotâmia
não teriam atingido o nível da historiografia autêntica” (CARREIRA, 1982: 335).
José Nunes Carreira aponta que durante muito tempo os especialistas em Antigo
Testamento colocavam a historiografia feita pelos povos hebreus como superior àquela
desenvolvida no Antigo Egito e na Mesopotâmia. Tal opinião é extremamente problemática,
pois acaba por hierarquizar diferentes formas de pensamento de diferentes povos. Contudo,
neste aspecto, a opinião de Arnaldo Momigliano é bem mais radical:
“Há claramente elementos orientais tanto na historiografia judaica quanto na
grega, mas estes elementos devem ser atribuídos a um cenário cultural comum do
Império persa mais do que uma influência persa específica. Se há uma influência
persa específica, ela está limitada ao uso de documentos e, talvez, ao estilo
autobiográfico” (MOMIGLIANO, 2004: 35).
Esta não é a única vez no livro em que o autor faz uma distinção entre povos orientais e
a sua influência no povo judeu. Tal distinção é minimante curiosa, afinal basta lembrar que o
povo hebreu tem sua origem no Oriente Médio, e, portanto, é um povo oriental tanto quanto os
antigos mesopotâmicos!
Outra crítica que acredita-se ser importante demonstrar que estes trabalhos estão
preocupados demais em generalizar toda a historiografia do oriente que acabam por não
perceber as especificidades de cada uma dessas. Curiosamente tanto no estudo de José Nunes
Carreira como o de Jonh Van Sters, quando ambos buscam relacionar a historiografia egípcia
as outras historiografias existentes, eles se preocupam apenas com as trocas culturais
desenvolvidas entre os antigos egípcios e os povos mais próximos dessas sociedades na Ásia;
contudo, é necessário dizer que esses contatos só se deram de maneira mais intensa a partir do
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Novo Império, ou seja, se esta datando a historiografia egípcia a partir de um ponto já bastante
tardio do seu desenvolvimento, sem se lembrar que antes do Novo Império existe um passado
muito rico e importante. Seria fundamental se os novos estudos que buscam tratar das trocas
culturais neste campo se preocupassem em saber das influências africanas na historiografia
egípcia, pois como se sabe, o Antigo Egito encontra-se na África.
O que se percebe é que para afirmar a proeminência de uma maneira grega e romana
superior de se escrever a história é necessário demonstrar como os ditos povos orientais
produziram reflexões históricas de baixa qualidade. Tal demonstração foi possível através de
uma completa desqualificação nos textos produzidos por estes povos. Obviamente que não se
acredita que está desqualificação se deu de maneira premeditada, mas sim, que sua exclusão foi
causada durante a construção dos paradigmas históricos, que no decorrer do séculos XIX e
início do XX foram marcados pelo eurocentrismo.
Este trabalho concorda com a possibilidade levantada por Carreira, para poder-se
estudar e compreender melhor a historiografia de outros povos.
“A melhor maneira de julgar a historiografia e a ideia de história da
Antiguidade Oriental não é, porém, comparando-as com as clássicas ou as modernas,
mas enquandrando-as no seu ambiente cultural e nos pressupostos essenciais de
qualquer actividade historiográfica. A historiografia oriental é produto da sua época,
como a história da Igreja de Eusébio era filha da apologética e a dos tempos
modernos se reconhece na filosofia racionalista” (CARREIRA, 1982: 358).
As listas reais, os textos historiográficos do Antigo Egito.
Tal como as mais diversas sociedades humanas, os antigos egípcios também produziram
diversos textos sobre o seu passado. Todavia, acredita-se que não é todo texto que fale do
passado que se constitui em um texto historiográfico. Para se ficar em um exemplo
contemporâneo, as diferenças que separam um texto escrito por um historiador, de outro escrito
por um romancista e um último escrito por um deputado são radicalmente diferentes. Todos
eles escrevem sobre o passado; contudo, a forma, os motivos e objetivos de cada um são
distintos e somente aquele texto produzido pelo historiador será, a princípio, considerado
cientifico para os fins acadêmicos. Evidentemente que não se trata de procurar no Antigo Egito
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as distinções que foram aqui apresentadas, até porque buscar uma história científica como é
feita hoje nesta sociedade seria cometer o pecado do anacronismo.
Acredita-se que as listas reais acabam por se constituir, na produção historiográfica
deste povo. Aqui iremos descrever e analisar as duas listas reais egípcias mais conhecidas, a
Pedra de Palermo e o Cânone Real de Turim, para tentar entender quais os propósitos de sua
produção e por que se concebe estes documentos como tal.
Iniciando pela Pedra de Palermo, que, como o próprio nome diz, é uma pedra entalhada
onde se encontra linhas horizontais com cartuchos, onde cada cartucho traz um nome de cada
rei. A abrangência de seus registros vai do período pré-dinástico até fins da V dinastia. Este
documento está um pouco fragmentado, sendo sua principal parte localizada na cidade de
Palermo na Itália, embora existam outros seis fragmentos, destes cinco estão com o Museu do
Cairo, e o restante está em Londres no Museu Petrie de arqueologia egípcia. Devido à sua
sofisticação, acredita-se que não se trate de um documento arquivístico, mas sim, feito para
exposição, embora não se saiba ao certo o seu destino.
Embora já seja uma fonte bastante clássica para o estudo do Antigo Egito, a Pedra de
Palermo ainda continua envolta em grandes mistérios com relação à sua confecção e aos
motivos que levaram a ela. Como já dito, estes anais reais encontram-se um pouco
fragmentados; contudo existe uma grande discussão bibliográfica em relação a todos estes
fragmentos e se os mesmos pertenceriam ao mesmo documento original ou não (WILKINSON,
2000: 24-28).
Os principais motivos que levaram a tal dúvida são a diferença de espessura entra os
sete fragmentos, a diferença de estilo nos hieróglifos contidos nestes e pequenas diferenças
estruturais do texto entre os fragmentos. Por outro lado, os argumentos para o pertencimento de
todos os vestígios em uma mesma pedra se baseiam na descoberta de poucos fragmentos desta
lista real, no fato de nenhum deles se contradizer ou mesmo se acumular e, por fim, que as
pequenas diferenças no estilo dos hieróglifos se devem ao trabalho de diferentes escribas, tendo-
se em vista que para gravar um texto em uma pedra mais de um funcionário era usado.
Wilkinson, depois de apresentar todos estes argumentos e analisar os mesmos com base em
alguns fragmentos, conclui que a Pedra de Palermo, o Primeiro Fragmento do Cairo e o Terceiro
Fragmento do Cairo pertencem à mesma pedra, enquanto o Segundo Fragmento do Cairo e o
Quarto Fragmento do Cairo aparentemente fazem parte de uma segunda pedra ou pertencem a
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diferentes pedras idênticas (WILKINSON, 2000: 28). O autor não chega a analisar o Quinto
Fragmento do Cairo ou o Fragmento de Londres.
As discussões apresentadas acima são bastante relevantes, principalmente quando se
leva em conta a seguinte pergunta: quais os motivos levaram os antigos egípcios a compilarem
estes anais reais? Afinal deve-se levar em conta que todas estas inscrições foram feitas em pedra
e, portanto, não deveriam se tratar de um simples documento de arquivo, mas sim, de um
monumento para ser exposto (SETERS, 2009: 148). Então dever-se-ia perguntar, por que os
antigos egípcios fizeram mais de uma pedra? Será que elas ficavam expostas em lugares
diferentes? Infelizmente, não temos como responder essa pergunta; contudo, o fato de não se
saber direito qual a procedência de cada fragmento torna a hipótese levantada provável.
No que se refere à data e ao local de produção deste documento, também não se tem
muitas respostas. Todos os fragmentos destes anais foram comprados das mãos de mercadores
e, portanto, não se sabe exatamente qual era o seu local de origem. Destes a única exceção é o
Quarto Fragmento do Cairo, que tem a sua procedência bem definida, tendo sido encontrado
entre as ruínas de Menfis (WILKINSON, 2000: 21). Dessa forma, a única localização possível
que pode ser estipulada para o local de convecção destes anais é Mênfis! Já no que diz respeito
à data da produção deste documento, o estilo dos hieróglifos e a forma como os nomes dos reis
das primeiras dinastias encontram-se escritos conforme a grafia da época leva à conclusão de
que a fonte em questão é de fato do Antigo Império. Sendo esta inscrição uma espécie de anais
reais, cabe a pergunta: que registros forma feitos sobre a Pedra de Palermo e os outros
fragmentos? Basicamente estes documentos trazem os registros dos eventos mais importantes
de cada rei ano após ano, sendo a grande maioria dos eventos retratados de caráter religioso ou
então algum tipo de conflito militar com os vizinhos do Egito. A abrangência de seus registros
vai do período Pré-dinástico até a V dinastia. Há uma indicação no início do documento em
relação a reis pré-dinásticos que teriam governado os estados do Alto Egito e do Baixo Egito;
porém, devido ao seu caráter bastante fragmentado, não se pode tirar mais informações em
relação a isso. Contudo, é importante que se diga que os trechos referentes à IV e V dinastias
trazem uma riqueza de detalhes muito maior que os referentes às dinastias anteriores.
Aparentemente, os registros contidos nestes documentos foram inspirados em diversas fontes,
que procediam dos templos religiosos e da residência real. Porém, o que mais chama a atenção
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na Pedra de Palermo e nos outros fragmentos é grande frequência com a qual os mesmos
registram o nível da cheia do Rio Nilo. Sobre isso diz Wilkinson:
“There is no doubt that the level of the Nile inundation was an important
statistic which the court would have been keen to record for fiscal purposes, to
calculate the tax payable on agricultural land (cf. Clagett 1989: 109 n. 14). Yet it is
unlikely that this information would have been recorded on stone in the first instance.
More probable is that the readings would have been copied onto a monumental
inscription for official display” (WILKINSON, 2000: 60 - 61).
Além disso, a Pedra de Palermo e os fragmentos restantes focam os seus registros na
figura do rei; para ser mais preciso, no papel do soberano enquanto garantidor da ordem tanto
do ponto de vista político, ao citar os seus combates contra inimigos, quanto do ponto de vista
religioso, ao tratar da fundação de templos. Além disso, na busca por registrar tais eventos,
muito provavelmente existiu um processo de pesquisa para registrar os acontecimentos em
questão.
Já o que consta em relação ao Cânone Real de Turim, este é uma lista real datada da
época de Ramsés II e está bastante fragmentada, encontrando-se hoje no museu da cidade de
Turim. Em seu conteúdo, temos uma lista real que vai dos reis mitológicos que governavam o
Egito até mais ou menos a época de Ramsés. Este documento é aparentemente de caráter
arquivístico, tendo-se em vista que nele constam até mesmo os regentes hicsos, que geralmente
são ignorados por outras listas reais.
Como o próprio nome deste documento indica, o mesmo é uma lista real que foi
produzida em papiro e que data da época de Ramsés II, no século XIII a.C. Hoje o mesmo
encontra-se bastante fragmentado; contudo, especula-se que originalmente o Cânone Real de
Turim abrangesse um período que vai deste uma época mitológica onde os deuses governavam
o Egito até o fim do Segundo Período Intermediário (SETERS, 2009: 151). Atualmente este
documento pode ser encontrado no Museu Egípcio de Turim, na Itália.
Ao apresentar os governantes que reinaram o Egito, esta fonte não se inicia com Menés,
o primeiro unificador das duas terras, mas sim, a partir de alguns reis míticos que teriam
governando no passado antes que o poder fosse transferido para os homens. A partir daí segue-
se uma lista rei por rei, com a duração de cada reinado e uma hora ou outra introduzem alguma
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pequena informação histórica. Além da duração de cada reinado, esta lista real também busca
agrupar os reis em pequenos grupos conforme o local da residência real e a genealogia de cada
rei. Curiosamente diferente de outros documentos oficiais reais, o Cânone Real de Turim não
exclui os regentes hicsos, que foram governantes estrangeiros e por isso, acabam sendo
excluídos de outras listas.
Em relação ao Primeiro Período Intermediário e ao Segundo Período Intermediário, este
documento apresenta mais de uma dinastia reinando de maneira simultânea. Este dado aponta
para a possibilidade de que a sua produção levou em conta fontes de diferentes procedências,
tendo-se em vista que cada parte do Egito nestas épocas era governada por diferentes regentes.
Passamos então para a análise de suas possibilidades enquanto material historiográfico.
Com relação à Pedra de Palermo, Wilkinson se mostra bastante decepcionado com o
tipo de registro que a fonte traz e afirma que os seus dados não são interessantes para os
historiadores modernos, pois a mesma apresenta poucos fatos políticos registrados
(WILKINSON, 2000: 62). Visivelmente o autor lamenta que a Pedra de Palermo e os outros
fragmentos a ela associados deem um enfoque nos atos religiosos egípcios e no papel real com
relação a estes atos. O historiador busca então dar um enfoque diferente para a fonte,
relativizando o seu potencial enquanto produção historiográfica e buscando perceber nestes
anais o papel de portador da antiga mentalidade cultural egípcia (WILKINSON, 2000: 64 - 65).
No que diz respeito ao Cânone Real de Turim, Wilkinson mantém a mesma postura pessimista
quando afirma:
“The same is probably true, though to a lesser extent, of the Turin Canon. The list is
likely to have been influenced by the quality and quantity of records available in the
temple archives from which it was compiled. Even at a remove of a thousand years, it
seems unlikely that the sources would have included accurate reign lengths for all of
Egypt's earliest kings. Whilst the Turin Canon may be considered more accurate than
Manetho, it seems to have replicated mistakes found in other New Kingdom king lists,
notably the placement of a king Nebka (given a reign of 19 years) between Khasekhem
wyand N etjerikhet; the archaeology of the Second-Third Dynasty transition makes
such an intervening reign impossible (WILKINSON, 2000: 76).”
Sem dúvida, este ponto deve ser de grande preocupação para o entendimento do Cânone
Real de Turim enquanto produção historiográfica. Afinal, tendo-se em vista o espaço de tempo
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entre a sua produção e o Antigo Império, é bem provável que muitas das fontes originais daquela
época já estivessem perdidas e, portanto, as suas informações também estariam bastante
comprometidas.
Fica claro e evidente o que já foi dito aqui neste trabalho e que se torna a repetir: não se
pode buscar nos antigos egípcios uma postura com relação à história que seja similar à grega,
muito menos à contemporânea! Wilkinson, apesar de sua postura bastante crítica quanto à
possibilidade da Pedra de Palermo e os demais fragmentos constituíram uma fonte
historiográfica para o estudo do Antigo Egito, critica da seguinte forma os autores que fazem
uma interpretação literalista desses documentos:
“As we have seen, the scholars who have studied the annals have, for the most part,
taken a literalist approach: they have interpreted the information contained in the
annals at face value, as though it were an accurate, objective record of historical fact.
Such an approach takes no account of the particular cultural context of the annals. It
ignores the ideological purposes for which Egyptian monumental inscriptions were
created” (WILKINSON, 2000: 65).
As críticas do autor a acadêmicos que buscam interpretar estes textos antigos sem levar
em conta a cultura que os está produzindo são, sem dúvida, bastante pertinentes; entretanto, o
próprio Wilkinson se esquece disso ao contestar a capacidade da Pedra de Palermo e os demais
fragmentos, e o Cânone Real de Turim como fontes de uma produção historiográfica egípcia.
Sem levar em conta que a concepção de história política e objetiva já foi contestada há muito
tempo na academia e em segundo lugar, porque o próprio autor não busca compreender o que
seria história para os antigos egípcios.
No início do capítulo cinco do livro Em busca da história historiografia no mundo antigo
e as origens da história bíblica, John van Seters afirma:
“Muitos estudos da civilização egípcia retratam a ideologia da
monarquia e do estado, enfatizando o caráter estático do pensamento
egípcio. De acordo com essa visão, o surgimento de uma noção de
história e a possibilidade de progresso através do tempo seriam um
contrassenso” (SETERS, 2009: 143).
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Contudo está concepção é errônea, basta lembrar de textos como Ensinamentos de
Amenemhat I para o seu filho Senuseret (CANHÃO, 2010: 169 - 175), onde se assume que o
fundador da XII dinastia foi assassinato, uma clara quebra da ideologia real.
Em busca de uma concepção do que seria história para os antigos egípcios, José Nunes
Carreira aponta: “Historiografia é literatura régia, porque a história é função do rei divino. Em
rigor, só o faraó é objecto de historiografia. Por ele e em relação a ele tudo acontece”
(CARREIRA, 1982: 345).
Depois de tudo que foi mostrado até aqui ficou bastante claro que a noção de história
que foi desenvolvida no Antigo Egito comporta muitas especificidades em relação à ideia de
história que se tem hoje e também daquela desenvolvida pelos povos antigos consagrados como
matrizes do pensamento das potências contemporâneas: os gregos e os romanos. A
especificidade deste povo deve ser compreendida a partir da força de duas outras ideias centrais
para mentalidade egípcia, sendo elas: a ideologia real e o conceito de Maat.
A força da ideologia real pode ser percebida até os dias de hoje. Se for feita a seguinte
pergunta para qualquer pessoa que não seja estudiosa do tema: “o que você sabe sobre o Antigo
Egito?” Muito provavelmente a resposta que se vai obter é algo parecido com “o Antigo Egito
é o milagre do rio Nilo, as pessoas acreditavam que o seu rei era um deus e construíam grandes
pirâmides para ele que eram templos onde ficariam guardados o seu corpo mumificado.” É
justamente a ideia da monarquia divina, ou seja, de que o rei era o filho e sucessor do deus
criador que se define como ideologia real.
Já Maat era uma deusa filha de Rá, que representava a justiça, harmonia e ordem.
Entretanto Maat não deve ser entendida apenas como uma deusa, ou muito menos como uma
juíza, ela era um princípio cultural, a ordem cósmica. Todos deveriam agir a partir dos seus
princípios, incluindo o rei, todavia o monarca era o próprio mantedor da ordem, Maat, ou seja,
caso o rei não agisse com justiça para manter a ordem, o caos primordial inundaria tudo, não
apenas o Egito, mas todo o mundo.
Não se deve perder de vista que a ideologia real e o conceito de Maat são centrais para
a historiografia egípcia, como lembra Carreira: “História é apenas um aspecto parcial da maat:
os inimigos do estrangeiro como as feras do deserto são manifestações do caos, pois o mundo
é o Egipto; garante da ordem cósmica, o faraó tinha, por necessidade dogmática, de esmagar
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esses restos de caos” (CARREIRA, 1982: 346). Jonh van Seters apresenta uma visão um pouco
diferente da do historiador português. Em sua opinião os documentos historiográficos egípcios
apresentam uma contradição entre o ideal histórico e a própria história (SETERS, 2009: 145).
De todo o modo, o importante é não perder de vista que em se tratando da sociedade egípcia,
história, ideologia real e maat estão fortemente relacionados.
Uma prova disso são as duas listas reais aqui apresentadas, a Pedra de Palermo e o
Canon Real de Turim. Como já demonstrado Wilkinson dúvida veementemente da utilidade da
Pedra de Palermo e demais fragmentos associados como fonte historiográfica, pois para ele está
fonte em certos momentos acaba por aumentar de maneira proposital o número de determinados
feitos, como os butins (WILKINSON, 2000: 65). Cabe ressaltar que esta opinião é totalmente
oposta à de Sters que vê na Pedra de Palermo um documento sem grandes influências
ideológicas (SETERS, 2009: 149). Entretanto o mesmo admite que o Canon Real de Turim tem
sim uma forte carga ideológica, afinal a fonte chega apontar para a existência de reis deuses,
que governaram o Egito antes dos homens (SETERS, 2009: 151). Se visão de Wilkinson sobre
a Pedra de Palermo e os demais fragmentos estiver correta, e levando em conta o início do
Canon Real de Turim como ainda se pode considerar tais textos como historiográficos? Seters
aponta uma reposta para essa questão:
“Otto aponta que essa tendência de mitologizar a história já se fazia presente
num processo anterior de historicização do mitologia, segundo a qual a genealogia
divina se desenvolvia como parte de uma elaborada cosmologia que acabava
emendando com a história. A historicização da mitologia desempenhou um papel
importante na configuração da ideologia real, na qual o rei personificava Hórus,
filho de Osíris” (SETERS, 2009: 152).
A historicização do mito e a mitologização da história por parte dos antigos egípcios
podem ser entendidas como o resultado da relação desses dois conceitos chaves da mentalidade
egípcia, a ideologia real e a maat, com aquilo que pode ser chamado de historiografia egípcia.
Conclusão
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O que este artigo se propôs demonstrar que escondida entre os estereótipos de uma
historiografia oriental, e a falta de pesquisas sobre o tema, existe uma historiografia egípcia.
A importância de novas pesquisas neste tema não está na possibilidade de se discutir ou
não qual seria a melhor historiografia antiga, mas sim, para uma maior compreensão não só do
povo e da cultura egípcia, como também das diversas maneiras em que a história pode vir a
surgir em diferentes culturas.
Bibliografia
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CARREIRA, José Nunes. História e historiografia na antiguidade oriental. Didaskalia, Lisboa,
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COELHO, Liliane Cristina; SANTOS, Moacir Elias. A escrita da história do Antigo Egito.
Nearco, Rio de Janeiro, v.7, n.1, p. 260 – 284, jan./dez. 2014.
SANTOS, Petterson Magno. A escrita da história no Antigo Egito: a biografia do rei
Amenemhat I e a memória do Primeiro Período Intermediário. Rio de Janeiro, 2015.
Monografia (Graduação) – Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal do Estado do
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SETERS, John van. Em busca da história historiografia no mundo antigo e as origens da
história bíblica. São Paulo: Edusp, 2009.
WILKINSON, Toby A. H. Royal annals of ancient Egypt The Palermo Stone and its
associated fragments. Kegan Paul International: Londres, 2000.