agatha christie - assassinato no expresso do oriente
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Pouco depois da meia-noite, uma tempestade de neve para o Expresso do Oriente nos trilhos. O luxuoso trem está surpreendentemente cheio para essa época do ano. Mas, na manhã seguinte, há um passageiro a menos. Uma americano é encontrado morto em sua cabina, com doze facadas, e a porta estava trancada por dentro. Pistas falsas são colocadas no caminho de Hercule Poirot para tentar mantê-lo fora de cena, mas, num dramático desenlace, ele apresenta não uma, mas duas soluções para o crime.
ParteIOsfatos
CapítuloI
UMPASSAGEIROIMPORTANTEDOTAURUSEXPRESS
Eram cinco horas de uma manhã de Inverno na Síria. Aolongo da plataforma de Aleppo, estacionava o comboiopomposamente anunciado nos guias turísticos como o TaurusExpress: Vagão – restaurante, Vagão – dormitório, dois vagõescompoltronasparapassageiros.
ÀsubidaparaaVagão-dormitório,umjovemtenentefrancês,elegantemente fardado, conversava com um homenzinho,agasalhado até as orelhas, o que lhe deixava ver só o narizvermelhoeaspontasdobigodecurvo,voltadoparacima.
Fazia um frio glacial e a obrigação de conversar com umestrangeirodistintonãoeradecertoinvejável.Contudo,otenenteDubosc cumpria-a resolutamente, com frases amáveis, no maispuro francês. Não porque ele soubesse o que houvera. Corriamboatos, como sempre sucede em tais casos. O general – o seugeneral–diaadiasetornaramaisirritado.Apareceraentãoessebelga,vindodirectamentedaInglaterra,aoqueparecia.Decorreraumasemanadeestranhatensão.Depois,tinhamsucedidocoisassingulares. Suicidara-se um distinto oficial, outro se demitira.Certas fisionomiasansiosas tinhamserenado, certasprecauçõesmilitares haviam sido abandonadas. E o general – general dotenenteDubosc–derepentepareceuterrejuvenescidodezanos.
Duboscrecordoupartedaconversaqueouviraentreogeneraleoestrangeiro:
–Salvou-nos,meuamigo–disseraogeneralcomovido,comobigodebranco tremendo.–Salvouahonradoexército francêseimpediu que se derramasse muito sangue! Como possodemonstrar-lhe a minha gratidão por ter atendido ao meuchamado?Veiodetãolonge...
O estrangeiro, o Monsieur Hercule Poirot, responderaamavelmente,dizendo,entreoutrascoisas,afraseseguinte:
–Masosenhornãoselembradequeumavezjámesalvouavida?
Ogeneralprotestaracortesmente,negandoterqualquerméritonesseserviçoprestadooutroraemencionaradenovoaFrança,aBélgica, a glória, a honra e coisas semelhantes. Depois de se
abraçaremcordialmente,osdoishomenssepararam-se.Quanto ao que houvera, nada sabia o tenente Dubosc
encarregadodeacompanharosenhorPoirotaoTaurusExpress,tarefaquedesempenhavacomozeloprópriodeumoficialjovemcomumaauspiciosacarreiradiantedesi.
–Hojeédomingo–disseDubosc.–Amanhã,àtarde,osenhorestaráemIstambul.
Não era a primeira vez que fazia essa observação. Asconversaçõesnumaplataforma,àesperadapartidadocomboio,sãoemgeralpoucovariadas.
–Issomesmo.–ConcordouMonsieurPoirot.–Pretendedemorar-sealialgunsdias,não?– Claro que sim... Nunca visitei Istambul... Seria absurdo
passar por ali e não aproveitar para fazer uma visita – replicouPoirot,estalandosignificativamenteosdedos.–Nãotenhopressa.Possoficaralgunsdiascomoturista.
–A igreja deSantaSofia émaravilhosa – disseDubosc, quenuncaviraofamosotemplo.
Umventofriouivounaplataforma.Osdoishomenstiritavam.O tenente Dubosc deitou um rápido olhar ao relógio. Faltavamcincominutosparaascinco,maiscincominutosainda.
Receando que o seu companheiro lhe tivesse surpreendido ogesto,Duboscapressou-seacontinuaraconversação:
– Pouca gente viaja nesta época – disse ele, examinando asjanelasdoVagão-dormitório,poucoacimadeles.
–Issomesmo,–concordouPoirot.–EsperemosquenãofiquegeladonoTaurus!–Costumaacontecerisso?–Sim.Porém,esteano,aindanão.– Esperemos então que se realizem os seus votos – disse o
belga.–OboletimmeteorológicodaEuropaprevêmautempo.–Defato,muitomau.NosBalcãs,caiuneveemabundância.–NaAlemanhatambém,peloqueouvidizer.–Bem–disseDuboscprecipitadamente,percebendoqueoutra
pausa estava para acontecer. – Amanhã à tarde, às sete equarenta,estaráemConstantinopla.
–Sim–concordouPoirot,comdesespero–Aigreja,ouvidizer,émuitobonita.
–Magnífica,segundocreio.Acimadelescorreu-seacortinadeumcompartimentoeuma
moçaolhouparafora.Mary Debenham pouco dormira, desde que deixara Bagdad,
na quinta-feira anterior. Não conseguira adormecer nem emviagemparaKirkuk,nemnohoteldeMosulemuitomenosnessanoite que passara no comboio. Cansada de estar acordada nocalordacabina,levantara-seeolharaparafora.
DeviaserAleppo.Nadadeinteressanteparaver.Unicamenteaplataforma, comprida e mal iluminada, onde ressoavam asfuriosas altercações dos árabes. Abaixo da janela, dois homensfalavamfrancês.Umdeleseraumoficial;ooutroumhomenzinhodelongobigodecrespo.Amoçasorriulevemente.Nuncaviraumhomemtãoencapotado.Evidentementedeviaestarmuitofrio.Eisporqueaqueciamocomboiodessamaneira.Tentoubaixarmaisovidrodajanela,maselanãodesceu.
Ochefedaestaçãochegou-separaosdoishomens.Ocomboioiapartir;eramelhorquesenhorentrassenoseucompartimento.Ohomempequenotirouochapéu,pondoàmostraumacabeçaoval.Apesardassuaspreocupações,MaryDebenhamsorriu.Quehomenzinhoridículo!Quemolevariaasério?
O tenente Dubosc despedia-se do belga. Preparara comantecedênciaasfrasesdedespedidaeguardara-asparaoúltimoinstante.Eoseubrevediscursofoidefatobemtorneadoecortês.
O Monsieur Poirot respondeu-lhe, de acordo com acircunstância.
–Abordo,Monsieur!–Disseochefedaestação.Poirot seguiu a recomendação com grande relutância. O
revisor subiuatrásdele. Poirot agitouamão, o tenenteDuboscperfilou-se e o comboio, com um horrível solavanco, moveu-selentamente.
–Finalmente!–MurmurouHerculePoirot.–Brrrrr!–DisseDubosc,sentindoplenamenteofrioquefazia.– Voilá, Monsieur – disse o empregado, mostrando a Poirot,
comgestodramático,abelezadesuacabinaeoperfeitoarranjodasbagagens.–ColoqueiaquiamaletadeVossaExcelência.
Ogestodessamãoestendidaeraeloquente.Poirotpousou-lhenapalmaagorjeta.
–Merci,Monsieur–disseoempregado,assumindoumarmais
alegre e obsequioso. – Tenho aqui o seu bilhete.Queira dar-metambémopassaporte.SuaviagemterminaemIstambul,certo?
MonsieurPoirotanuiu.–Nãohámuitospassageiros,poisnão?–Perguntouele.–Não,Monsieur.Sómaisdoisviajantes,ambosingleses.Um
coronelvindodaÍndiaeumajovemsenhorainglesadeBagdad.Desejamaisalgumacoisa?
PoirotpediuumagarrafadePerrier.Cincohorasdamanhãé,sem dúvida, um horário desagradável para tomar um comboio.Ainda faltavamduashorasparaclarearodia.Comacertezadeuma noitemal dormida e de umamissão cumprida com plenoêxito, Poirot encolheu-se num canto e adormeceu. Quandoacordou,passavadasnoveemeia.Encaminhou-seentãoparaovagão-restauranteàprocuradecaféquente.
Nessemomento,haviaalisóumpassageiro,evidentementeajovem inglesamencionadapelo empregado.Eraumamoçaalta,esbeltaemorena...deviacontarunsvinteeoitoanos.Tomandooseu café e dando ordens ao criado para que a servisse pelasegundavez,tinhacertoareficiente,oquedenunciavapráticadomundo e de viagens. Trajava um vestido escuro, simples erelativamente leve, como o exigia a atmosfera aquecida docomboio.
Àfaltademelhorocupação,HerculePoirotpôs-seaobservá-ladiscretamente.Aseuver,eraotipodajovemquesabeguardar-seperfeitamente emqualquerocasião.Parecia calmae equilibrada.O belga admirava-lhe a severa regularidade das feições e adelicada palidez de sua pele, a cabeleira negra, lustrosa eondeada, os olhos frios, pardos e impenetráveis. Era, porém,demasiadopresunçosa–concluiuconsigomesmo–paraseroqueelechamavauma“joliefemme”.
Desúbito,outrapessoaentrounovagão-restaurante.Eraumhomemrobusto,dequarentaoucinquentaanos,magro,morenoelevementegrisalhonasfontes.
–OcoroneldaÍndia.–PensouPoirot.Orecém-chegadocumprimentouamoça:–Bomdia,MademoiselleDebenham.–Bomdia,CoronelArbuthnot.O oficial pousou a mão no espaldar da cadeira em frente à
dela.
–Importa-se?–Perguntou.–Não,decerto.Sente-se.–Bemsabequeaprimeira refeiçãonemsempre éhorapara
conversas...–Compreendo.Porém,nãomeimporto.Ocoronelsentou-se.–Rapaz.–Chamouimperiosamente,epediuovosecafé.Encarouum instanteHerculePoirot;depois,desviouoolhar
com indiferença. Interpretando perfeitamente o pensamento doinglês,obelgacompreendeuoqueelepensara:maisummalditoestrangeiro.
Fiéis à própria nacionalidade, os dois ingleses nãoconversavam muito. Trocaram breves palavras e, de súbito, amoçalevantou-seevoltouaoseucompartimento.
À hora do almoço tornaram a partilhar a mesma mesa e aignorar o terceiro viajante.Conversaramcommais animação.Ocoronel Arbuthnot falou de Punjab e fez à moça algumasperguntas casuais acerca de Bagdad, apurando, assim, que elaocuparaaliumpostodegovernanta.Nodecursodaconversação,descobriram diversos amigos comuns, o que os tornou maisexpansivoseanimados.FalaramentãodeTommyedeumJerryQualquerCoisaeocoronelperguntouàjovemseiadirectamenteaInglaterraousedeteriaemIstambul.
–Não,continuareiaviagem.–Nãoéumapena?–Naida,seguiestepercursoepasseitrêsdiasemIstambul.–Ah!Muitobem!Alegro-meentãodequevoltedirectamentea
Inglaterra, pois eu também sigo o mesmo itinerário. – Dizendoisto, o coronel fez um cumprimento desajeitado, corandovisivelmente.
“É oportunista o nosso coronel”, pensou Hercule Poirot,divertido.“Ocomboioétãoperigosocomoumaviagempormar.”
A jovem Debenham replicou que esse fato lhe seria muitoagradável,masosseusmodoseramumtantoreservados.
Poirot observou que o coronel a acompanhava aocompartimento.Mais tarde, enquanto atravessavam omagníficocenário do Taurus, olhando os montes da Cilician, a moçasuspirou.Poirot,colocadoapoucadistância,ouviu-adizer:
–Étãolindoisto...Euquisera...quisera...–Sim?
–Quiserapoderaproveitá-lo...Arbuthnot não replicou. A linha quadrada do seu queixo
tornou-se,porém,maisseveraecarregada.–Quemmederavê-labemlongedetudoisto!–Disseele.–Cale-seporfavor,cale-se!–Estábem–concordouocoronel.Depois,lançandoumolhar
deaborrecimentoaPoirot,prosseguiu:–Nãomeagradaasuavidadegovernanta,àsordensdemães
tiranasedecriançasinsuportáveis.Amoçariu-se,perdendoumtantodareservahabitual.–Oh!Nãopensenisso!Agovernantavítimaéummitomuito
explorado.Possoafirmar-lhequeospais,muitasvezes,têmmedodemim!
Seguiu-seumsilêncio.Arbuthnotenvergonhava-se,talvez,dasuavivacidade.“Umacomédiaoriginal”disseconsigoPoirot,comarpensativo.Maistarde,selembrariadessareflexão.
OcomboiochegouaKonyaessanoite,depoisdasonzeemeia.Osdoisinglesesdesembarcaram,paraexercitarosmúsculos,naplataforma, branca de neve. Poirot distraía-se observando omovimento da estação através da janela fechada. Ao fim de dezminutos,convenceu-sedequenãoseriamautomarumpoucodear.Tomouaprecauçãodeseenrolaremdiversossobretudosedeenfiar as galochas; assim protegido, pôs-se a percorrer aplataforma,afastando-sedocomboio.Foramasvozesconhecidasque lhe permitiram identificar os dois vultos indistintos,encolhidosàsombradeumvagão.Arbuthnotfalava:
–Mary...Amoçainterrompeu-o.– Não, agora não. Só quando tudo tiver passado. Quando
deixarmosistoparatrás...então...Poirot afastou-se discretamente. Estava espantado. Mal
reconheceraavoz fria e calmadameninaDebenham. “Curioso”disseeleconsigo.
Nodiaseguinte,oseuassombroaumentou,aoverqueosdoisinglesespareciamterbrigado.Trocavampoucaspalavras.Amoçaparecia ansiosa e tinha os olhos cercados por fundas olheiras.Pelas duas horas da tarde, o comboio parou. Os passageirosdebruçaram-seàsjanelas.Umgrupodehomens,colocadosjuntoaostrilhos,indicavaalgumacoisadebaixodovagão-restaurante.
Poirot saiu e interrogou o chefe de comboio, que passava emcorrida. O homem respondeu, Poirot voltou a cabeça, quasechocandocomMaryDebenham,queestavalogoatrásdele.
– Que houve? – Perguntou ela em francês, arquejando. –Porqueparamos?
– Não é nada. Incendiou-se qualquer coisa sob o vagão-restaurante.Nadadegrave.Ofogofoiextinto.Jáestãoarepararosdanos,nãoháperigo,podeestarcerta.
Amoçafezumgestodisplicente,comoquequisessemostrarasuaindiferençapeloperigo.
–Sim,sim,compreendo.Masotempo?–Otempo?–Sim,istovainosatrasar.–Épossível...sim–concordouPoirot.–Enãopodemosesperar.Estecomboiochegaexactamenteàs
seis e cinquenta e cinco, e é preciso atravessar o Bósforo, paraapanhar o Simplon Orient Express, na outramargem, às novehoras. Se houver uma ou duas horas de atraso, perderemos oexpressodoOriente.
–Épossível!–Admitiuobelga.Eleexaminava-acomcuriosidade.Amãodamoça,apoiadana
janela,tremiaeomesmotremoragitava-lheoslábios.–Issoiráprejudicá-lamuito?–PerguntouPoirot.–Sim.Sim.Precisodeapanharessecomboio.E ela afastou-se, indo reunir-se ao coronel Arbuthnot. Essa
ânsia era desnecessária.Dezminutos depois, o comboio partia,chegandoaHaydapassarapenascomcincominutosdeatraso.
O Bósforo estava agitado e a travessia não foi agradável aPoirot.Separadodoscompanheirosdeviagem,nobarco,nãoostornou a ver, e, desembarcando na ponte de Gálata, dirigiu-sedirectamenteparaoHotelTokatlian.
CapítuloII
OHOTELTOKATLIAN
Alichegado,Poirotpediuumapartamentoàrecepção.Depois,interrogouoporteirosobreacorrespondência.Haviaparaeletrêscartas e um telegrama. A vista deste último, Poirot franziu assobrancelhas.Nãooesperava.Abriu-ocomacalmahabitualeleuclaramente:“NodesfechoquepreviuparaocasoKassnerocorreuumimprevisto.Volteimediatamente!”
–Voilá,queissoédepasmar!–MurmurouPoirot,contrariado.Depoisolhouparaorelógio.
–Precisoseguirestanoite–disseeleaoempregado.–QuandoparteoSimplonOrient?
–Àsnovehoras.–Podearranjar-meumapassagem?–Certamente.Não é difícil nesta estação.Os comboios estão
quasevazios.Primeiraousegundaclasse?–Primeira.–Muitobem.Paraonde?–Londres.– Perfeitamente. Arranjarei um bilhete para Londres e lhe
reservareium lugarnoVagão-dormitóriodocomboio Istambul–Calais.
Poirottornouaconsultarorelógio.Faltavamdezminutosparaasoito.
–Tereitempoparajantar?–Naturalmente.Obelgafezumacenoafirmativo.Anulouopedidodeaposento
e atravessou o vestíbulo, emdirecção ao restaurante. Enquantodavaordensaogarçom,alguémpousouamãonoombro.
–Ah!Meu velho, que surpresa inesperada! –Exclamouumavoz,atrásdele.
Era um homem baixo, robusto, de certa idade, cabeloscortadosàescovinhaequesorriaalegremente.Poirotestremeceu.
–MonsieurBouc!–MonsieurPoirot!Bouceraumbelga,directordaCompagnieInternationaledes
Wagons Lits e o seu conhecimento com a primeira figura da
políciabelgadatavademuitosanos.–Encontro-o,então,longedecasa,moncher–disseBouc.–UnpetitproblèmenaSíria.–Ah!Evoltaparacasaquando?–Estanoite.–Esplêndido!Eutambém.Istoé,vouaLausanneemnegócio.
TomaráoSimplonOrient,nãoé?– Sim. Acabei de pedir uma passagem. Contava ficar aqui
alguns dias, mas recebi um telegrama, chamando-me aInglaterra,paraumcasoimportante...
–Ah!–disseBouc.–Lesaffaires... lesaffaires!Masosenhorestásatisfeito,hoje,monvieux!
–Tivealgunsbonsêxitos–replicouPoirot,comfalsamodéstia.Boucriu-se.–Encontrar-nos-emosmaistarde–disseele.Poirotabsorveu-senatarefadenãomolharobigodenasopa.
Terminado o prato, olhou em torno de si, enquanto esperava ooutro. Havia no restaurante talvez meia dúzia de hóspedes edessessódoisinteressaramPoirot.Essesdoisestavamsentadosauma mesa pouco distante. O mais novo era um belo rapaz decerca de trinta anos, evidentemente americano. Não foi ele,porém, e sim o companheiro, quem atraiu a atenção de Poirot.Eraumhomemdesessentaasetentaanos,comumaaparênciameiga de filantropo. A cabeça calva, a testa convexa, os lábiossorridentes, que deixavam ver a dentadura postiça, tudodenunciava uma criatura bondosa. Só os olhos, pequenos,profundos e astuciosos, destoavam dessa expressão. E não sóeles. Conversando com o seu jovem companheiro, o homemrelanceouoolharpelasala;ecruzando-oscomPoirot,umasúbitamalevolência escureceu-lhe o olhar. Levantou-se então, e,dirigindo-seaocompanheiro,disse:
– Heitor. Paga a conta. – A vozmacia era, porém, um tantorouca.
Quando Poirot se reuniu ao amigo no alpendre, os doishomens deixavam o hotel. Transportavam-lhes a bagagem. Omaisnovovigiavaoserviço.Depois,abrindoaportaenvidraçada,anunciou:
–Estátudopronto,Mr.Ratchett.Ovelhoanuiueafastou-se.
–Ehbien?–DissePoirot.–Quelheparecemessesdois?–Sãoamericanos–replicouBouc.–Certamente.Pergunto,oquepensadeles?–Omaisnovoémuitosimpático.–Eooutro?– Para ser franco, meu amigo, confesso que não me ocupei
dele.Causou-meumadesagradávelimpressão.Eavocê?Depoisdeuminstantedereflexão,Poirotreplicou:– Quando o vi no restaurante, tive uma sensação estranha.
Pareceu-me um animal feroz, mas decididamente selvagem.Compreende?
–Entretanto,dáaimpressãodepessoarespeitável.–Exactamente.Ocorpo,nagaiola é sempre respeitável,mas
atravésdasgrades,oanimalbravioespreita...–Estáfantasiando,meuvelho–observouBouc.–Talvez.Porém,écomoseodiabotivessepassadobemperto
demim.–Refere-seaorespeitávelcavalheiroamericano?– Ele mesmo. Nesse momento, a porta abriu-se e o porteiro
entrou,aparentementepreocupado.–Parece impossível, senhor–disseeleaPoirot. –Nãoháno
comboionenhumcompartimentodeprimeiraclasselivre.–Como?–ExclamouBouc.–Nestaépoca?Viajaacasoalguma
comitivadejornalistas...oudepolíticos?– Não sei, senhor – tornou o porteiro, dirigindo-se-lhe
respeitosamente.–Averdade,porém,éesta.– Bem, bem – disse Bouc, voltando-se para Poirot. – Não se
preocupe, meu amigo. Havemos de arranjar alguma coisa. Hásempre um compartimento desocupado, o número 16. Ocondutorcuidarádisto!–Depois,sorrindo,olhouparaorelógioeacrescentou:–Vamos.Estánahora!
Naestação,Boucfoirespeitosamentecumprimentadoporum
empregadodeuniformeescuro.–Boa-noite,senhor.Oseucompartimentoéonúmeroum.A uma ordem sua, os carregadores depositaram as pesadas
bagagens no comboio, onde se lia, em grandes letreiros:ISTAMBUL-TRIESTE-CALAIS
–Ouvidizerqueocomboioestácheio,éverdade?
– Parece incrível, senhor. Parece que todos escolheram estanoiteparaviajar.
– Contudo, é preciso encontrar acomodação para estecavalheiro.Éumamigomeu.Podedar-lheonúmero16.
–Estáocupado,senhor.–Quediz?O16?Os dois trocaram um olhar de entendimento e o empregado
sorriu.Eraumhomemdemeia-idade,altoedescorado.–Sim,senhor.Comojálhedisse,estamossuperlotados.– Mas que se passa? – Exclamou Bouc, encolerizado. – Há
algumaconferência?Algumafesta?– Não, senhor. Acontece simplesmente que muita gente
resolveuviajarestanoite.Boucteveumgestodeenfado.–EmBelgrado–disseele–háocomboioquevemdeAtenas,
bem como o Bucareste-Paris... Porém, não alcançaremosBelgrado,antesdeamanhãànoite.Nãoháumcompartimentodesegundaclasselivre?
–Umsomente.–Bem,então...– Mas é um compartimento para senhoras, já ocupado por
umaalemã...umadamadecompanhia.–Ora,ora,queaborrecimento!–DisseBouc.– Não se preocupe,meu amigo – disse por sua vez Poirot. –
Possotomarumcomboiocomum.–Nempensenisso! –Evoltando-separao empregado,Bouc
perguntou:–Jáchegaramtodosospassageiros?–Nemtodos–replicouohomemhesitando–,faltaum.–Fale.–Éocompartimentosetedasegundaclasse.Ocavalheiroque
o mandou reservar ainda não chegou e faltam quatro minutosparaasnove.
–Queméele?– Um inglês. Mr. Harris. – Acrescentou o empregado,
consultandoalista.– Um nome de bom agouro – observou Poirot – conheço
Dickens:OsenhorHarrisnãovirá.– Ponha as bagagens deste senhor no compartimento sete –
ordenouBouc.–SeosenhorHarrischegar,diga-lhequeémuito
tarde... que o compartimento não pôde ser reservado tantotempo...arranjaremosascoisasdeummodooudeoutro.QuemeimportaosenhorHarris?
– Como quiser – replicou o empregado e encaminhou ocarregadorparaocompartimentocedidoaPoirot.Depoisafastou-se,paraqueestepudesseembarcar.
–Eláaofundo,senhor–disseele.–Openúltimocamarote.Poirotatravessouacustoocorredor,ondeaindaseaglomerava
a maioria dos passageiros. Os seus corteses “pardon” erampronunciados com a regularidade de um pêndulo. Por fim,alcançou o compartimento indicado,mas ali encontrou o jovemamericanodoTokatlian.VendoentrarPoirot,orapaz franziuassobrancelhas.
–Desculpe–disseele.–Creioqueseenganou.Depois,repetiulaboriosamente asmesmas palavras em francês. Poirot replicoueminglês.
–ÉMr.Harris?–Não,chamo-meMacQueen.Eu...Entãoavozdoempregado
fez-seouvir,humildeeobsequiosa,portrásdePoirot.– Não há mais lugares no comboio, senhor. Este cavalheiro
terádeficaraqui.Enquanto falava,oempregado recebiada janelaasbagagens
de Poirot. Este notava-lhe, divertido, o tom embaraçado.Evidentemente fora-lhe prometida boa gorjeta, se conseguisseconservar o camarote só para uso do viajante. Entretanto, amelhor gorjeta perde o seu efeito, quando o director dacompanhia está presente e faz respeitar as próprias ordens.Terminada a sua tarefa, o empregado saiu do compartimento,dizendo:
–Pronto, senhor.Está tudoemordem.Oseubeliche é odecima,númerosete.Partiremosdentrodeumminuto.
Eafastou-serapidamentepelocorredor.Poirottornouaentrarnocompartimento.
– Acabo de assistir a um raro fenómeno – disse ele,jovialmente. – Um empregado de Wagon Lit arranjando asbagagens com as próprias mãos! É novidade! O jovem viajantesorriu.Evidentementeconformava-se.
–Ocomboioestálotado–observouele.Soou um apito e a locomotiva uivou lugubremente. Os dois
homenssaíramparaocorredor.Fora,ouvia-seumavozadvertir:–Embarquem,meussenhores!– Vamos partir – disseMacQueen. Porém, o comboio não se
movia;oapitovoltouatrilar.–Casoprefiraoleitodebaixo,senhor–disseorapaz–cedo-o
deboavontade.MacQueeneraevidentementeumrapazmuitoamável.–Não,não!–Protestouobelga.–Nãoqueroprivá-lo...–Masseriabom...–Édemasiadogentil...–Protestoscortesesdeambososlados.– Aliás, é só por uma noite – acrescentou Poirot. – Até
Belgrado...–Ah!Compreendo.OsenhorvaificaremBelgrado.–Nãoéissopropriamente.Éque...Houveumsúbito solavanco; osdois viajantesdebruçaram-se
para olhar a longa plataforma iluminada que ia desaparecendolentamente.OExpressodoOrienteiniciavaasuajornadadetrêsdias,atravésdaEuropa.
CapítuloIII
POIROTRECUSAUMCASO
No dia seguinte, Poirot entrou um tanto tarde no vagão-restaurante.Levantara-secedo,tomaraaprimeirarefeiçãoquasesozinhoepassaraamanhãrevendodadosreferentesaocasoqueochamaraaLondres.Malviraocompanheirodeviagem.
Bouc, jáabancado,gesticulouumcumprimentoe indicouaoamigoumlugarvazio,emfrenteaoseu.Poirotsentou-seeachou-seemposiçãofavorável,queeraservidaemprimeirolugarecomosmelhorespetiscos.Oalmoçotambémestavaexcepcionalmentebom. Foi só quando saboreavamum queijo delicioso, queBoucprincipiou a falar de assuntos estranhos ao almoço. Chegara aesseperíododarefeiçãoemquegeralmentesecostumafilosofar.
– Ah! – Suspirou ele. – Se tivesse a pena de um Balzac!Descreveriaestacena!–Assimdizendo,agitavaamão.
–Boaideia–dissePoirot.– Também lhe parece? Ninguém ainda o fez, que eu saiba.
Entretanto, seria um autêntico argumento para um romance,meuamigo.Cerca-nosgentedetodasasclassesenacionalidades.Durante três dias, essas pessoas, estranhas umas às outras,estarão reunidas,acomereadormirsobomesmo teto, semsepoderem separar. No fim desse prazo, cada qual tomará o seucaminhoetalveznuncamaissetornemaver.
–Ehámais–dissePoirot.–Imagineumacidente...–Ah!Issonão,meuamigo!– Do seu ponto de vista, poderá parecer desagradável,
concordo. Porém, suponhamos, por um instante, que issoacontecerealmente.Então,todososqueestãoaquitalvezfossemunidosmaisestreitamente...pelamorte.
– Um pouco de vinho! – Apressou-se a dizer Bouc. – Estásinistro,meuvelho!Provavelmenteéadigestão.
–Nãoduvido.ÉpossívelqueacomidadaSírianãosejamuitoapropriadaparaomeuestômago.
Poirotsorveuoseuvinhoerelanceouumolharpensativopelosalão. Viam-se ali, à roda das mesas, umas treze pessoas,pertencentes, como bem dissera Bouc, a todas as classes enacionalidades.Obelgapôs-seaobservá-las.
A mesa em frente à sua era ocupada por três viajantescomuns,reunidosalipelavontadedopessoaldorestaurante:umitaliano robusto e moreno que palitava os dentes; e um inglêsmagro, eleganteeemcujo rosto transpareciaumarevidentedecontrariedade. Junto dele, sentava-se um americanoespalhafatoso,talvezumcaixeiro-viajante.
Oamericanoeoitalianofalavamanimadamente.Oinglêsolhoupelajanelaetossiu.Poirotdesviouoolhar.Àoutramesasentava-se,muitoemproada,umadasmulheres
mais feias que ele já vira. Havia, porém, na sua fealdade, certadistinçãoquea tornavaatraente.Cingia-lheopescoçoumcolarde grossas pérolas legítimas, por mais incrível que pareça. Elatinha nas mãos inúmeros anéis e a capa de peles caída nosombros.Umricochapéupretoemoldurava-lhedesajeitadamenteorostoamarelado.Avelhadamafalavaaocriadoemtomclaroecortês,porémfrancamenteautocrático.
– Tenha a bondade de levar ao meu compartimento umagarrafadeáguamineraleumcopodesucodelaranja.Dêordenspara que me seja servido ao jantar um frango, sem temperoalgum,eumpoucodepeixecozido.
Ocriadoreplicourespeitosamentequeosdesejosdelaseriamatendidos. A dama anuiu, com um leve aceno de cabeça, elevantou-se.EncontrandooolhardePoirot,desviouosolhoscomaindiferençadisplicentedeumaaristocrata.
– É a princesa Dragomiroff – disse Bouc, em voz baixa. –Russa.Omaridoconverteuemdinheirotodososseusbens,antesda revolução, e empregou-os no exterior. Essa senhora éextraordinariamenterica...Umacosmopolita.
Poirotassentiu.OuvirafalarnaprincesaDragomiroff.– Uma personalidade. – Acrescentou Bouc. – Feia como o
pecado,masinteressante.Concorda?Poirottornouaanuir.Mary Debenham ocupava outra mesa, com duas senhoras.
Umadelas,umarobustamulherdemeia-idade,vestiaumablusadexadrezesaiadefazenda.Reuniraapesadamassadoscabelosamareladosemaltratadosnumchapéudesajeitado,usavaóculose tinhano rosto compridouma expressãomeiga e submissadecarneiro.Escutavanessemomentoaoutracompanheira,idosaerobusta, de fisionomia simpática e que falava com voz clara e
monótona,semtomarfôlegonemuminstante.– E assim a minha filha disse: “Porque não aplicam os
sistemasamericanosaestepaís?”Porqueopovoéindolentepornatureza. Não tem amenor iniciativa. Contudo, iria causar-lhesurpresaoqueonossocolégioestáafazeraqui.Reuniuumcorpodeprofessorescompetentes.Achoquenãohácomoaeducação.Aplicaremos os nossos métodos ocidentais e ensinaremos oOrienteareconhecê-los.Aminhafilhacostumadizer...
O comboio entrou num túnel. A voz calma e monótona daviajanteconverteu-senummurmúrioabafado.
ÀmesapróximaestavaocoronelArbuthnot...sozinho,comosolhosfixosnanucadeMaryDebenham.Nãoalmoçavamjuntos,sebemquenãolhesfossedifícilreunir-se.Porquê?
“Talvezamoçaseretraísse”,pensouPoirot. “Umagovernantaprecisa tomar cuidado, pois as aparências têm grandeimportância.Oseumododevidaexigiaqueelaseportassecomrigorosacorreção”.Poirotdesviouoolharparao ladoopostodovagão. Ali, sentada contra a parede, viu uma mulher de meia-idade,vestidadeescuroederostolargoeinexpressivo.“Alemãouescandinava”, pensou ele. “Talvez a governanta alemã”. Maisadiantealmoçavaumcasal.Ohomem,emboravestisseàinglesa,não era inglês, a forma da nuca e dos ombros mostravam-noclaramente. Era um belo tipo de cavalheiro. Voltando-sesubitamente,mostrouaPoirotoperfildeumindivíduodetrintaanos, com o lábio superior encimado por um bigode espesso.Diantedelesentava-seumamoçadecercadevinteanos.Trajavaum fato de saia e casaco preto, blusa branca de cetim e umelegantechapéupretodeúltimamoda.Tinhaumlindorostodeestrangeira,tezclara,grandesolhosescuroseoscabelosnegros.Fumando, exibia as mãos bem cuidadas e unhas com corvermelho escuro. Usava uma grande esmeralda engastada emplatinaeavozeoolhartraíamcertafaceirice.
–Lindaechique.–MurmurouPoirot.–Umcasal...não?Boucanuiu.–Embaixadahúngara,segundocreio–disseele. –Um lindo
casal.Restavamsómaisdoispassageiros:MacQueen,ocompanheiro
de Poirot, e o Mr. Ratchett. Este último ficava de frente para
Poirot,que lhepôdedenovoobservarorostoantipático,a falsabondadedoolhareosolhinhoscruéis.
Evidentemente, Bouc notara certa mudança no rosto doamigo,poisperguntou:
–Estáexaminandoafera?Poirot respondeu com um sinal afirmativo. Terminando de
sorverocafé,Bouc levantou-se.Vieraalmoçarantesdoamigoeterminavaprimeiro.
– Volto ao meu compartimento – disse ele. – Venha depoisconversarcomigo.
–Comtodooprazer–tornou-lhePoirot.Ficandosó,obelgatomoucaféepediulicor.Ocriadopassava
entre as mesas, recebendo os vales. A voz da velha americanasoou,agudaelamentosa.
–Aminha filhadisse: “Arranjeumacadernetade refeições enãoteráincómodos.”Aoqueparece,nãoéassim.Desconfioqueeles ganham dez por cento... E esta garrafa de água mineral,então!Umaespéciecuriosadeáguamineral!...EstranhoquenãosirvamEviannemVichy...
–Éque...comosabe,servemaágualocal–explicouasenhoraderostomeigoehumilde.
– Pois é muito estranho! – Repetiu a outra. E, olhandotristementeotrocoespalhadonamesa,acrescentou:–Vejaoquemederam...Quemoeda!... Lembraummontede trapos!Minhafilhadiz...
MaryDebenhamlevantara-seedespedia-sedascompanheirascomumligeirocumprimento.Erguendo-se,porsuavez,ocoronelArbuthnot acompanhou-a. A velha americana juntou o troco edeixou a sala, seguida pela outra senhora. Os húngaros já sehaviam retirado. Restavam no vagão-restaurante apenas Poirot,RatchetteMacQueen.Ratchettfalouaojovemamericanoqueselevantouesaiu.Ovelhotambémdeixouoseulugar,masemvezdeseguirocompanheiro,sentou-sediantedePoirot.
– Um fósforo, por favor? – Disse em voz macia e levementenasal.–Chamo-meRatchett.
Poirot respondeu-lhe com um leve cumprimento, tirou oisqueirodobolsoepassou-oaoamericano.Este recebeu-o, semcontudoseutilizardele.Depoisdisse:
– Creio que tenho o prazer de falar com Monsieur Hercule
Poirot.Nãoéexacto?– Perfeitamente. Houve um silêncio. O detective sentia-se
examinadopeloestranhoolhardooutro.–Naminhaterra–disseesteporfim–,costuma-seirdirecto
aoassunto.SenhorPoirot,desejoconfiar-lheumtrabalho.-Aminhaclientelaé,actualmente,muitoreduzida.Ocupo-me
depoucoscasos.–Compreendobem.Maseste,MonsieurPoirot,envolvemuito
dinheiro.Muitodinheiro!–RepetiuRatchett,comavozmaciaepersuasiva.Apósumacurtapausa,obelgaperguntou:
–Quedesejademim,MonsieurRatchett?– Sou muito rico... muito rico!... Um homem, nas minhas
condições,sempreteminimigos.Eutenhoum.–Sóum?–Quequerdizercomisso?–Inquiriuvivamenteoamericano.–Nada.Tenhoexperiênciabastanteparasaberqueoshomens
decertaposiçãotêminimigos,comoacabadedizer,masemgeral,nãoumsó.
Aparentemente aliviado por essa resposta, Ratchett tornou
comanimação:–Sim,compreendo.Inimigoouinimigos...nãoimporta.Oque
interessaéaminhasegurança.–Asuasegurança?–Fuiameaçado,MonsieurPoirot.Souumhomemqueprecisa
tomar precauções. – Assim dizendo, o velho tirou do bolso umrevólverautomático;depoiscontinuou:–Nãosouhomemquesedeixeapanharfacilmente!Comestaarma,sinto-memaisseguro.Creio que o senhor é a pessoade quepreciso, senhorPoirot.Elembre-se:dinheiro!...Muitodinheiro!
O belga encarou-o um instante, pensativo, com a fisionomiaabsolutamente impenetrável. Seria difícil adivinhar-lhe ospensamentos.
– Lamento – disse afinal. – Não o posso servir, MonsieurRatchett.Estefitou-ocomumaexpressãodeastúcia.
–Quepreçopede?–Poirotmeneouacabeça.– Não me entendeu. Fui muito feliz na minha profissão.
Ganhei o dinheiro preciso para as minhas necessidades e osmeus caprichos. Actualmente, ocupo-me só dos casos que me
interessam.–Osenhoréteimoso!–DisseRatchett.–Nãootentamvinte
mildólares?–Não.–Seinsiste,paraobtermais,engana-se.Avalioperfeitamentea
importânciadoquelhepeço.–Eutambém,MonsieurRatchett.– O que é que não lhe agrada na minha proposta? Poirot
levantou-se.–Desculpeafranqueza,senhorRatchett.Oquenãomeagrada
éasuafisionomia.Ecomestaspalavrasobelgadeixouosalão.
CapítuloIV
UMGRITONANOITE
OSimplonOrientExpresschegouaBelgradonessanoite,àsquinzeparaasnove.Nãopartiriaantesdasnoveequinze.Poirotdesceuàplataformaonde,porém,nãosedemorou.Estavamuitofrio.Apesardemuitoresguardada,aplataformaestavacobertadeneve. Avistando o viajante, o chefe da estação que procuravaaquecer-secomumrápidoexercício,disse:
–As suasbagagens foram transportadasparao camarotedosenhorBouc.
–Ondeficaele,então?–EmbarcanocarrodeAtenasqueacabadechegar.Poirot afastou-se, à procura do amigo que confirmou as
palavrasdoseusubordinado.–Não,não.Émelhorassim!OsenhorvaiaInglaterra.Logo,é
preferívelquetomeavagãoquepassaemCalais.Quantoamim,ficomuitobem.Aquihámaissossego.Osúnicospassageirosdavagãosomoseueummédicogrego.Quenoite,meuamigo!
Dizemqueháanosnãonevaassim.Esperemosqueanevenãonosbloqueie!Creiaqueistomeinquieta.
Às nove e quinze, pontualmente, o comboio partia. Poirot,despediu-sedoamigoedirigiu-separaoseucamarote,emfrenteaovagão-restaurante.Nessesegundoperíododeviagem,aboliam-setodasasbarreiras.
O coronel Arbuthnot estava à porta do seu compartimento,falando com MacQueen. À vista de Poirot, o jovem americanointerrompeu-se.Pareciamuitosurpreendido.
– Como! – Exclamou ele. – Pensei que nos tivesse deixado.DissequeficariaemBelgrado!
–Engana-se–replicouPoirot,sorrindo.–Lembro-medequeocomboiosaíadeIstambul,enquantofalávamos.
–Mas...assuasbagagensjánãoestãoaqui!–Foramlevadasparaoutrocamarote.–Ah!MacQueen recomeçou a conversar com Arbuthnot e Poirot
afastou-se. A duas portas do seu camarote, encontrou a velhaamericana, Mrs. Hubbard, falando com a sua companheira de
mesaqueera,afinal,umasueca.Mrs.Hubbardtinhanasmãosduasrevistas.
–Não. Leve isto,minha querida, tenhomuitas outras coisaspara ler. Não lhe parece que o frio é assustador? – Continuou,cumprimentandoafavelmentePoirot.
–Asenhoraémuitoamável–respondeuasueca.–Demodonenhum.Desejoquedurmabemequeamanhãa
suacabeçaestejamelhor.–Édofrio.Voufazerumachávenadechá.– Tem aspirina? De certeza? Eu trago em quantidade. Bem,
boanoite,minhaquerida.Malaoutradesapareceu,Mrs.Hubbardvoltou-separaobelga,
dispostaacontinuaraconversação.– Pobre criatura! É sueca; segundo creio,missionária... uma
professora. Boa pessoa; porém, quase não entende inglês.Interessou-semuitopeloquelhedissedeminhafilha.
E Poirot foi informado a respeito da filha deMrs. Hubbard,como,aliás,sucedianocomboioatodososqueentendiaminglês.Soube assim que a referida filha e o genro de Mrs. HubbardleccionavamnumimportantecolégioamericanodeSmyrna,queera essa a primeira vez que a respeitável senhora visitava oOriente, e que opinião ela formara acerca dos Turcos, dos seususosesistemasdeviação.
Aportavizinhaabriu-se.Apareceuumcriadomagroepálido.Poirot pode vislumbrar Ratchett, sentado na cama. À vista dobelga, uma expressão de cólera perpassou no rosto do velho.Depoisaportafechou-se.Mrs.Hubbardpuxouoseuinterlocutorparaumlugarmaisdistante.
– Sabe? Não posso tolerar esse homem. Não o criado. Ooutro... oamo.Temalgumacoisaquenãomeagrada.Aminhafilhacostumadizerquetenhoumaintuiçãoinfalível:“Quandoamãe tem uma suspeita, é sempre certa.” Assim diz ela. E eudesconfiodessehomem.Émeuvizinho,nãogostodisto.Anoitepassada, fechei a porta à chave; julguei ouvi-lo experimentar otrinco. Sabe? Não me admiraria que esse indivíduo fosseassassinoouladrão.Possoestarlouca;entretantoéoquepenso.Detesto-o. A minha filha disse que eu teria boa viagem. Talvezsejaabsurdo.Sinto,porém,quevaiaconteceralgumacoisa.Nãocompreendocomoessebelorapazpôdetornar-sesecretáriodesse
homem.Nesse momento, Arbuthnot e MacQueen passaram,
conversando amigavelmente, no corredor e desapareceram.Mrs.Hubbarddespediu-sedePoirot.
–Voulerparaacama–disseela.–Boanoite.–Boanoite,Madame.Porsuavez,obelgaentrounoseucamarote,contíguoaode
Ratchett.Despiu-se,deitou-se,leucercademeiahoraeapagoualuz. Acordou horas depois, sobressaltado. Despertara-o umgemido,quaseumgrito,muitopróximo.Nomesmoinstantesoouumacampainha.Poirot levantou-seeacendeua luz.Ocomboioparara.Provavelmentechegaraaumaestação.
Essegrito fizeraestremeceropolícia.Lembrando-sedequeocompartimento contíguo era ocupado pelo ricaço americano,Poirotabriuaportaexactamentenomomentoemqueochefedopessoal passava, a correr, e se detinha à porta de Ratchett.Deixando a do seu camarote entreaberta, Poirot espreitou pelafresta. O funcionário batera pela segunda vez, à porta docompartimento vizinho. Nesse momento, porém, tiniu outracampainhaealuzbrilhounoutropontodovagão.Ochefevoltouacabeçaparaobservareumavozadvertiudocompartimentodoamericano:
–Cen’estrien.Jemesuistrompé.–Bien,Monsieur.E o funcionário correu a atender a outra chamada. Poirot
voltou a deitar-se, aliviado, e apagou a luz. Consultara antes orelógio. Faltavam exactamente vinte e trêsminutos para a umahoradamanhã.
CapítuloV
OCRIME
Poirot não conseguiu adormecer. Cessara o movimento docomboio. E enquanto a estação se mostrava insolitamentesilenciosa, no comboio, porém, parecia haver uma agitaçãoextraordinária.ObelgajulgououvirRatchettcaminharnoquartovizinho e abrir a torneira do lavatório; distinguiu em seguida orumordaáguacorrente,depoisdoqualatorneirasefechou.
Soarampassosnocorredor,comosealguémopercorressedechinelos.Aindadeitado,Poirotpôs-seaolharparaoteto.Porqueseria tãosilenciosaestaestação?Eele tinhasede.Esquecera-sede pedir água mineral. Deitou um olhar ao relógio. Passavamquinze minutos da uma. Poirot pensou em chamar o chefe dopessoalepedir-lheaáguadesejada.Quandoiaapertarobotãodacampainha,ouviuum tinido.Desistiuentão,poiso funcionárionãopoderiaatendersimultaneamenteaváriaschamadas.
Trrim...trrim...trrim...A campainha continuava a tinir. Porque não a atendiam?O
passageiro já devia estar impaciente. Trrim... Fosse quem fosse,não tiravaodedodobotão.Desúbito,ospassosapressadosdochefeecoaramnocorredoreelefoibaternumcompartimentonãomuitoafastadododePoirot.Ouviram-sevozes.Adochefe,cortêse obsequiosa... uma de mulher, insistente e volúvel. Mrs.Hubbard! Poirot sorriu para consigo. A discussão durou certotempo,comdecididavantagemparaMrs.Hubbard.Afinalcessou.Poirot ouviu distintamente: – Boa noite,minha senhora. – E aporta fechou-se. O belga tocou então a campainha. O chefeatendeu-oprontamente.Pareciaexcitadoeaborrecido.
–Del’eauminérale,s’ilvousplaît.–Biensúr,Monsieur–Disseofuncionário.Talvezaexpressão
maliciosa do olhar de Poirot, o levasse a desabafar. – A damaamericana…
–Quehouve?Ochefeenxugouatesta.–Nãoimaginaotrabalhoquemedeu!Elainsisteemafirmar
queháumhomemnoseucompartimento.Imagine!Numespaçocomoeste!–Continuouele,mostrandoocamarotecomumgesto
–Ondesepoderiaesconderumhomem?Discuti, fizverqueeraimpossível. Ela tornou a insistir. Diz que acordou e viu umhomemnoquarto.Perguntei-lhe:“Comopôdeelefugir,deixandoaportatrancadaatrásdesi?”Masemvão.Elanãoquerentender.Como se já não houvesse aborrecimentos bastantes! Esta neve,porexemplo...
–Neve?– Sim. Não sabia? O comboio parou. Apanhamos uma
tempestadedeneve.SóDeussabeotempoquepassaremosaqui,presos.Lembro-medeque,umavez, fiqueibloqueadopelaneveumasemana.
–Ondeestamos?–EntreVincovcieBrod.–Ora,ora!–TornouPoirot,contrariado.Ohomemafastou-se,
voltandopoucodepoiscomaáguamineral.–Boanoite,Monsieur.Poirotbebeuedispôs-seadormir.Estavaquaseaadormecer,
quando um choque estranho o acordou. Teve a consciência dequequalquercoisabastantepesadacaíradeencontroàporta.Obelga levantou-se e abriu-a. Nada. Porém, à sua direita, viuafastar-se no corredor uma mulher envolta num quimonovermelho. Na outra extremidade, o condutor entretinha-se arabiscar figuras em largas folhas de papel. Reinava a completacalma.
– Evidentemente sofro dos nervos – disse consigo Poirot. Etornouadeitar-se,acordandosónamanhãseguinte.
O comboio ainda estava parado. Poirot correu a cortina eolhou. Pesados blocos de neve cercavam os carros. O belgaconsultouorelógioeviuquepassavadasnovehoras.
Àsquinzeparaasdez, elegante e aprumado, encaminhou-separaovagão-restaurante,dondepartiaumcorodelamentações.Todas as barreiras entre os passageiroshaviamdesaparecido.Adesgraça comum reunia-os. As queixas de Mrs. Hubbardsobressaíamdasdemais.
–Aminhafilhadiziaqueteriaamelhordasviagens!Bastavaacomodar-me no comboio e esperar que ele chegasse ao seudestino.E,agora,aqui ficaremospordiasedias– lamentava-seela. –Omeunaviopartedepoisdeamanhã.Comooapanhareiagora? Nem possomandar cancelar aminha passagem! Prefiro
nemfalardisto!O italiano apregoava que o esperavam importantes negócios
emMilão.Oamericanoclamava:– É o diabo! – E exprimia a esperança de que o comboio
recobrasseotempoperdido.–Aminha irmã... e aminha sobrinha esperam-me – dizia a
sueca, chorando. – E eu não posso avisá-las.Que irão pensar?Julgarãoquemeaconteceuumdesastre!
–Quanto tempo iremos ficar bloqueados? – PerguntouMaryDebenham.–Alguémosabe?
Havianasuavozcertaimpaciência,masPoirotnãonotounelaaânsiaquasefebrilquemanifestaranoTaurusExpress.
Mrs.Hubbardprosseguiu:– Ninguém sabe nada neste comboio! Nem procuram tomar
providências!Sãoumgrupode inúteis.Seestivéssemosnomeupaís,aestahora,jáalguémteriatentadofazerqualquercoisa.
Arbuthnot voltou-se para Poirot e falou-lhe num francêscorrectodeestrangeiro:
–Vousêtesundirecteurdelaligne,jecrois,Monsieur.Vouspouveznousdire...Sorrindo,Poirotrectificoueminglês:
–Não!Eunãosoudirectornenhumdesta linha.Confundiu-mecomomeuamigo.
–Oh!Desculpe!–Não tem importância.Émuitonatural.Eu estou agorano
camarotequeeleocupavaantes.Bouc não estava no vagão-restaurante. Poirot relanceou um
olhar pelo compartimento para tomar nota dos ausentes.Faltavam a princesa Dragomiroff, o casal húngaro, Ratchett, oseucriadoeagovernantaalemã.Asuecaenxugouosolhos:
–Sou tolana verdade! –Disse ela. –Queadianta chorar?Emelhorconformar-me,aconteçaoqueacontecer.
Entretanto,esseexemploderesignaçãocristãnãofoiimitado.– Está tudo muito bem – disse MacQueen, impaciente. –
Entretanto,ficaremosaquipormuitosdias.–Que lugaréeste?–Perguntouavelhaamericana,comvoz
queixosa.Disseram-lhequeeraaJugosláviaeelareplicou:–Oh!NosBalcãs!Quehavemosdeesperar?– É a única que vejo resignada – disse Poirot a Mary
Debenham.–Quesepodefazer?–Éumafilósofa,Mademoiselle.–Não. Isso implica completa indiferença, oquenão é omeu
caso.Aprendi,porém,aevitarasemoçõesinúteis.Amoça falavamaisparasimesmadoqueparaelee tinhao
olharfitoalémdasjanelas,nasmassasdeneve.– Julgo-a muito enérgica – continuou Poirot gentilmente. –
Creioqueé,dentredenós,amaisforte.–Oh!Não!Não,defato.Conheçoalguémmuitomaisfortedo
queeu.– E quem é...? A moça voltou, de súbito, à realidade e
compreendeu que falava a um estranho, a um estrangeiro comquem trocara até ali apenas algumas palavras. Riu-secordialmente,mascomcertareserva.
–Ora...avelhaprincesa,porexemplo.Provavelmentejáaviu.Émuitofeia,masaomesmotempofascinante.Basta-lhelevantarodedoepedircortesmentealgumacoisa...eocomboioempesoestaráaosseuspés.
–OmesmoaconteceaomeuamigoBouc–dissePoirot.–MasapenasporqueéodirectordaCompanhia.
Mary Debenham sorriu. A manhã passava. Muitospassageiros, entre eles o belga, ficaram no vagão-restaurante,compreendendo que, juntos, passariammelhor o tempo. PoirotsoubeassimmuitacoisadafilhadeMrs.Hubbardedo falecidoMr. Hubbard. Escutava a conversação da viajante escandinava,quandoumempregadodoWagonLitentroueseaproximoudele.
–Comlicença,senhor.–Quehá?–OMonsieurBoucenvia-lhecumprimentosepede-lheofavor
deirtercomelenuminstante.Poirotlevantou-se,pediudesculpaàsuainterlocutoraedeixou
o salão em companhia do empregado. Este fê-lo atravessar ocomboio,bateuaumaportaedesviou-separaodeixarentrar.Ocamarote não era o de Bouc e sim um de segunda classe,escolhidotalvezporserdosmaisespaçosos.Causavaentretantoaimpressão de estar apinhado. Bouc encontrava-se numa dasextremidades; diante dele, perto da janela, Poirot viu umhomenzinho moreno, entretido em observar a neve, e de pé,
obstruindo a passagem, um homenzarrão de uniforme azul, ochefedopessoaleoempregadoquetambémserviaodetective.
–Ah!Meubomamigo!–ExclamouBouc.–Entre.Precisamosdosenhor.
Ohomenzinhoencostadoà janelavoltou-se.Poirotsentou-sediantedoamigo.Afisionomiadesteassustou-o.Eraevidentequeaconteceraalgumfatoextraordinário.
–Quehouve?–Indagouobelga.– Tem razão de perguntar! Primeiramente, esta neve... E
depois...Bouccalou-se.OfuncionáriodoWagonLitsoltouumaespéciedelamento.
–Edepoisquehá?–InsistiuPoirot.– Apenas isto: um passageiro jaz morto... apunhalado... no
camarote.–Odirectorexprimia-secomumdesesperoporassimdizerindiferente.
–Umpassageiro?Qual?–Umamericano.Umhomemchamado...chamado...Ratchett;
sim, Ratchett concluiu Bouc, depois de consultar unsapontamentosquetinhadiantedesi.
– É issomesmo – confirmou o empregado. Poirot encarou-o:estavabrancocomocal.
–Émelhormandarsentaressehomem–sugeriuodetective.–Docontrário,eleacabarádesmaiando.
Ochefedopessoalafastou-seumpoucoeoempregadodeixou-
secairnumacadeira,escondendoorostonasmãos.–Brrr...–tornouPoirot.–Ocasoésério!–Oquehádemaissério!Estecrimeéumacalamidade.Ehá
mais: as circunstâncias são extraordinárias. Estamos parados;aquipodemosficardurantehorasoudias.Namaioriadospaísesque atravessamos, temos a polícia no comboio. Na Jugoslávia,não,compreende?
–Éumasituaçãomelindrosa–concordouPoirot.–Epiorsetornará.DoutorConstantino...esquecia-medeque
nãooapresentei.DoutorConstantino,MonsieurPoirot.Osdoishomenstrocaramumcumprimento.– Dr. Constantino julga que o crime foi praticado mais ou
menosàumahoradamadrugada.– É difícil ser exacto nesse particular – atalhou omédico. –
Creio,porém,queamorteocorreuentreameia-noiteeasduashorasdamadrugada.
–Quandofoivistovivo,pelaúltimavez,oMonsieurRatchett?– Parece-me que uns vinte minutos antes da uma hora
respondeuaoempregado–observouBouc.–Éverdade–confirmouobelga.–Eumesmooouvi.Étudoo
quesesabe?–É.Poirotvoltou-separaomédico,queprosseguiu:– A janela do camarote de Ratchett foi encontrada aberta, o
quefariacrerqueocriminosofugiuporali.Entretanto,naminhaopinião, a janela aberta não passa de uma astúcia.Quem querqueseguisseessecaminhodeixariaorastronaneve.Enãoháomenorvestígio.
–Quandosedescobriuocrime?–PerguntouPoirot.– Michel! – Chamou Bouc. – Diga a este senhor o que
aconteceu.O interpelado levantou-se e, ainda com o rosto pálido e
assustado,começoucomvoztrémula:–OcriadodosenhorRatchettbateradiversasvezesàportado
amo esta manhã. Não recebeu resposta. Uma hora depoisapareceu o empregado do vagão-restaurante. Queria saber se osenhor Ratchett almoçaria. Eram onze horas. Abri a porta docamarote com aminha chave, mas o cadeado fora fechado pordentro. Ninguém respondia. O quarto estava silencioso e frio.Muito frio! A neve entrava pela janela aberta. Desconfiei que opassageiro tivesse tido um ataque. Chamei o chefe do pessoal,quebramos a corrente e entramos. Ele estava... Ah! Que estadoterrível!”
Eopobrehomemtornouaesconderorostonasmãos.–Aportaestava,então,trancadapordentro–observouPoirot,
pensativo.–Nãoseráumsuicídio?Omédicogregoriu-seironicamente.– Já viu alguém suicidar-se com dez., doze ou quinze
punhaladas?–Perguntouele.Poirotarregalouosolhos.–Mas,nessecaso,éumaverdadeiraferocidade!– Foi umamulher – acudiu o chefe do pessoal, falando pela
primeiravez.–Deveser.Sóumamulherécapazdematarassim.O Dr. Constantino levantou o rosto em que se via uma
expressãopensativa.–Sósefosseexcepcionalmentevigorosa–objectouele.–Nãoé
minha intenção entrar emdetalhes técnicos que servemapenasparaatrapalhar... Posso, porém, afirmar queumoudois golpesforam desferidos com força, para que penetrassemprofundamente.
–Nãoé,peloquevejo,umcrimecientífico–observouPoirot.–Pelocontrário.Algumaspunhaladas foramdadasaoacaso,
outras não atingiram o alvo, como se alguém ferisse de olhosvendados,comumafúriacega.
–Foiumamulher–insistiuochefedopessoal.–Asmulheressãoassim.Quandoseenfurecem,têmumaforçaextraordinária.–Essaobstinaçãofaziacrernumaexperiênciapessoal.
– Talvez possa contribuir com alguns esclarecimentos paraessecaso–disseo investigador.–Ratchett falou-meanteontem.Fez-meentenderqueasuavidacorriaperigo.
–Bumpedoff, então.Nãoé esseo termoamericano? –DisseBouc. – Logo, não é uma mulher. Talvez um gangster ou umpistoleiro.
Ochefedopessoalpareciadesoladocomaderrocadadasuateoria.
–Seassimé–dissePoirot–foifeitocomperfeitoamador.Eoseutomexprimiaareprovaçãodoprofissional.
–Háumamericanonestecomboio–disseBouc–umhomemvulgaremaltrajado,cujosmodosnãosãodeboasociedade.Sabeaquemmerefiro?
Oempregadoaquemelesedirigiraanuiu.–Oi,Monsieur,onúmero16.Porém,nãopodetersidoele.Eu
tê-lo-iavistoentrarousairdoseucamarote.–Talveznão.Masvoltaremosa issodepois.Oque importa é
saberoqueháafazer–DisseBouc,falandoaPoirot.Obelgaencarou-o.–Venha,meuamigo–disseBouc.–Compreendeoquelhevou
pedir. Conheço a sua capacidade. Encarregue-se dasinvestigações.Não,não recuse.Éumcaso graveparanós.FalopelaCompagnieInternationaledesWagonsLits.QuandoapolíciaJugoslava chegar, seria muito bom que já lhe pudéssemosapresentar o caso resolvido. Senão, teremos atrasos,aborrecimentos emuitos outros incómodos. Talvez, quem sabe,
suspeitas infundadas. Em lugar disto... O senhor resolve omistérioenósdiremos:ocorreuumcrime...eisoassassino!
–Eseeunãooencontrar?–Ah!moncher!–TornouBouc,comumainflexãocarinhosa
navoz.–Conheço-lheareputação.Seialgumacoisaacercadosseus métodos. Este caso é ideal para o senhor. Investigar osantecedentesdetodaestagente,descobrir-lheaboafé,tudoissocusta tempo e incómodos. Mas, acaso, não o ouvi dizerfrequentemente que para resolver um caso basta recostar-se nacadeira e pensar? Interrogue os passageiros, veja o cadáver,observe os indícios e depois... Eu confio no senhor. Tenho acerteza de que não exagerou os seus méritos. Recoste-se nacadeira,pense...Use(comoeuoouvidizer)aspequeninascélulascinzentasdamenteedescobrirá.
E Bouc curvou-se, deitando ao investigador um olharamigável.
– A sua confiança comove-me, meu amigo – disse Poirot,impressionado.–Comobemdiz,estecasonãoserátãodifícil.Eumesmonanoitepassada...Bem,nãofalemosagoradesteassunto.Narealidade,esteproblemaintriga-me.Eudiziacomigomesmo,hámenosdemeiahora,quepoderíamoscontarcommuitashorasde tédio, enquanto estivéssemos aqui. E agora... tenho umproblemanamão.
–Aceitaentão?–PerguntouBouc,aliviado.–C’estentendu.Podeconfiar-meestecaso.–Bem!Estamostodosaoseudispor.– Para começar, gostaria de ter uma planta do comboio
Istambul-Calais, com o nome dos respectivos passageiros, dosquaisgostariadever,também,ospassaporteseaspassagens.
–Encarregue-sedisto,Michel.Oempregadoretirou-se.–Quais são os outros passageiros do comboio? – Perguntou
Poirot.–Nestevagão, somenteodoutorConstantinoeeu;novagão
vindodeBucareste,umvelhoaleijado,conhecidodocondutor.Osoutrosvagõesnãonosinteressam,porquesóentraramemserviçodepoisdojantar.AfrentedaIstambul-Calaisháapenasovagão-restaurante.
–Parece-me–disselentamentePoirot–quedevemosprocurar
o nosso criminoso no Istambul-Calais. Naturalmente esta étambém a sua opinião – concluiu ele voltando-se paraConstantino.Omédicoanuiu.
– Meia hora antes da meia-noite o comboio parou aqui enenhumpassageirodesembarcou,desdeentão.
– O criminoso está connosco, e no comboio... – disse Boucsolenemente.
CapítuloVI
UMAMULHER?
– Antes de tudo – disse Poirot – gostaria de falar comMacQueen.Talveznospossadaralgumainformação.
–Comcerteza–disseBouc.Depois,voltando-separaochefedopessoal,ordenou:
–VáchamaroMonsieurMacQueen.O empregado obedeceu. Entretanto, o outro funcionário
trouxera um maço de passagens e passaportes, que Bouc lhetiroudasmãos.
–Obrigado,Michel.Serámelhorvoltaragoraaoseutrabalho.Maistardeouviremososeudepoimento.
–Muitobem,senhordirector.–EMicheldeixouocamarote.–DepoisdeinterrogarmososenhorMacQueen–dissePoirot–
o doutor Constantino poderia acompanhar-me ao camarote domorto.
–Certamente.– Depois de terminarmos aqui... – Nisto entrou o chefe do
pessoal,acompanhadodeHeitorMacQueen.Bouclevantou-se.–Estamosumpoucoapertadosaqui–disseele,amavelmente.
–Queira ocupar aminha cadeira,MonsieurMacQueen.OmeuamigoPoirotsentar-se-ádefrontedosenhor.
E,voltando-separaochefedopessoaldocomboio,prosseguiu:– Mande desocupar o vagão-restaurante e reserve-o para o
senhorPoirot.Querfazeralioseuinterrogatório,moncher?–Seriamelhor–replicouobelga.MacQueenolhavaparaume
outro,evidentementesemcompreenderbemorápidodiálogoemfrancês.
–Qu’estcequ’ila?–disseele.–Pourquoi?Comumgestoenérgico,Poirotindicou-lheacadeira.Ojovem
americanosentou-seerepetiu:– Pourquoi? – Acrescentou em inglês, encarando
sucessivamente todos os presentes. – Que houve? Aconteceualgumacoisa?
Poirotfez-lheumsinalafirmativo.– Exactamente. Sucedeu alguma coisa. Prepare-se para um
choque.MonsieurRatchettmorreu.
MacQueen apertou os lábios num assobio; excepto o brilhodos olhos, não mostrou, porém, nenhum sinal de abalo ou dedesgostoedisse:
–Então,elesapanharam-no...–Quesignificaisso,MonsieurMacQueen?–Orapazhesitou.– Quer dizer – tornou Poirot –, que oMonsieur Ratchett foi
assassinado?–Enãofoi?–PerguntouMacQueen,commanifestasurpresa.–Naverdade–prosseguiuele lentamente – foi oquepensei.
Julgatalvezqueeletenhamorridoadormir?Ora,ovelhoeratãorijo como... tão forte... – O rapaz interrompeu-se, sorrindoimperceptivelmente.
–Não,não–dissePoirot–asuahipóteseéacertada.OsenhorRatchett foi morto. Apunhalado. Mas gostaria de saber porquetemosenhortantacertezadequesetratadeumcrime.
MacQueenhesitou.– Expliquemo-nos – disse ele. – Quem é o senhor? E donde
vem?– Represento a Compagnie Internationale desWagons Lits –
replicouobelga.E,depoisdumapausa,acrescentou:–Souuminvestigador.Chamo-meHerculePoirot.
Se esperava produzir alguma impressão, falhoucompletamente,poisMacQueenlimitou-seadizer:
–Ah!Sim?Eesperouqueooutroprosseguisse.–Conhece,acaso,omeunome?–Parece-meconhecido;apenassempre julgueiquefosseode
umcostureiro.–Poirotolhou-o,contrariado.–Éincrível!–Observou.–Queéincrível?–Nada.Continuemosonossoinquérito.Éprecisoquemediga
tudooquesabeacercadomorto.Nãoeraaparentadocomele?–Não.Souapenasoseusecretário.–Háquantotempoexerciaessafunção?–Hácercadeumano.–Tenhaabondadedemedartodasasinformaçõespossíveis.– Bem; encontrei o senhor Ratchett há um ano mais ou
menos,naPérsia...Poirotinterrompeu-o:–Quefaziaosenhorlá?– Viera de Nova Iorque para fiscalizar uma concessão de
petróleo.Nãocreioqueessespormenoresopossaminteressar.Osmeusamigoseeuvimo-nosemapuros,nessenegócio.OsenhorRatchett morava no mesmo hotel. Acabava de despedir o seusecretário. Convidou-me para substituí-lo e eu aceitei. Nascondiçõesemqueestava,agradeciasortedeterencontradoesseemprego.
–Edesdeentão?– Temos viajado. O senhor Ratchett desejava conhecer o
mundo.Nãoconhecendo línguas, sentia-seembaraçado.Tornei-memaispropriamenteumcorreiodoqueumsecretário.Eraumavidaagradável.
–Agoradiga-metudooquesabeacercadoseupatrão.Orapazencolheuosombros,comumaexpressãodeincertezanorosto.
–Nãoéfácil–replicouafinal.–Comosechamavaele?–SamuelEdwardRatchett.–Americano?–Sim.–DequeregiãodaAmérica?–Nãosei.–Bem;diga-meentãooquesabe.–Averdadeé,senhorPoirot,queeunadaseiaesserespeito.O
senhorRatchettnuncafalavadesinemdasuavidanaAmérica.–Nãosabedizerporquê?–Não.Suponhoqueseenvergonhavadasuaorigemhumilde,
comosucedeatantoshomens.–Parece-lhemotivoplausível?–Francamentenão.–Sabeseeletinhaparentes?–Nuncamencionounenhum.Poirotinsistiu:–Osenhordeveterformadoasuaopinião,senhorMacQueen.–Sim,defato.Suponhoqueoverdadeironomedelenãofosse
Ratchett.Desconfio que deixou aAmérica para fugir de alguémoudealgumacoisa.Eparece-mequeconseguiraoseuintento...porémsóatéhápoucassemanas.
–Eentão?–Começouarecebercartasameaçadoras.–Osenhorleu-as?–Sim.Euestavaencarregadodeatenderacorrespondência.A
primeirachegouháquinzedias.–Essascartasforamdestruídas?–Não.Creioqueaindatenhoduasdelas.Umafoirasgadapelo
senhorRatchett,numacessodecólera.Quervê-las?–Seriabom.MacQueensaiu,voltandopoucosminutosdepois,
comduasfolhasdepapelqueestendeuaPoirot.Aprimeiradiziaoseguinte:“Julgaquenosenganouepassaráimpune?Juramos-lheque
não.Estamosatrásdesi,Ratchett,evamosapanhá-lo.”Nãohavia assinatura. Semnenhum comentário, exceptoum
franzirdesobrancelhas,Poirotpassouàsegundacarta:“Não tardaremos a apanhá-lo, Ratchett. Dentro em pouco,
havemosdematá-lo.”Poirotlargouacarta.– O estilo é uniforme – observou. – Mais do que a letra.
MacQueenencarou-o.–Osenhornãoonotou–explicouobelga,jovialmente.–Isso
requer muita prática. Esta carta não foi escrita por uma sópessoa, senhor MacQueen. Duas ou mais pessoas colaboraramnela... Escrevendo uma letra cada uma. Além disto, a carta foiescrita à máquina, o que torna muito mais difícil identificar aletra.
Depoisdeumapausa,Poirotprosseguiu:–SabequeosenhorRatchettmepediraauxílio?– Ao senhor? O tom surpreso do rapaz convenceu Poirot de
queele,defato,nadasabia.– Sim. Estava alarmado. Diga-me: que efeito causou ao seu
patrãoaprimeiracarta?MacQueenhesitou:–Édifícildizer.Ratchett leu-aeriu-se,conservandoacalma
habitual.Notei,contudo,umleveestremecimento.Sentiqueessacalmaeraapenasaparente.
Poirotanuiu;depoisfezumaperguntainesperada:– Monsieur MacQueen, quer dizer-me com toda a franqueza
comoconsideravaoseupatrão?Tinha-lheamizade?Heitor MacQueen pensou um minuto ou dois, antes de
responder.–Não–disseafinal.–Nenhuma.–Porquê?
–Nãolhesaberiaexplicar.Eleerasempremuitocortês.–Apósuma breve pausa, o rapaz prosseguiu: – Serei franco, senhorPoirot. Eu detestava-o e desconfiava dele. Creio que era umhomemmaueperigoso.Confesso,porém,quenão tinha razõesparaformarestaopinião.
–Obrigado,MonsieurMacQueen.Maisumapergunta:quandoviupelaúltimavezoMonsieurRatchettvivo?
–Nanoitepassadacerca...–orapazpensouuminstante–dasdezhoras.Entreinocamarote,parairbuscarumasnotas.
–Notas?Acercadequê?–Sobrealgumaslouçaseporcelanasantigasqueeleadquirira
na Pérsia. O que lhe foi enviado não correspondia ao que elecomprara. Houve até uma correspondência longa e aborrecida,poressemotivo.
–EfoiaúltimavezqueoMonsieurRatchettfoivistovivo?–Creioquesim.– Sabe quando o Monsieur Ratchett recebeu a última carta
ameaçadora?–Sim.NamanhãdodiaemquedeixamosConstantinopla.–Mais uma pergunta,MonsieurMacQueen: A vossa relação
eraboa?Osolhosdorapazcintilaramsubitamente.–Chegamosaoponto,não?Mas,emboalinguagemcomercial,
osenhornãotemnadacontramim.EueRatchettvivíamosnosmelhorestermos.
–MonsieurMacQueen,querdar-meoseunometodoeoseuendereçonaAmérica?
MacQueenconcordou.Chamava-seHeitorWillardMacQueeneoseudomicílioeraNovaIorque.
Poirotrecostou-senoespaldardacadeira.–Étudoporora,MonsieurMacQueen–disseele.–Ficar-lhe-iamuitograto,senãodivulgasse,porenquanto,a
mortedosenhorRatchett.–Ocriadodele,Masterman,deveserinformado.–Talvezelejásaiba–dissePoirot,secamente.–Seassimfor,peço-lhequelherecomendesilêncio.Nãoserá
difícil. É um inglês que obedece à divisa: “guardar-se para si”.Tem uma opinião ruim dos americanos e nenhuma sobre asdemaisnacionalidades.
–Obrigado,MonsieurMacQueen.Ojovemamericanosaiu.–Então? –PerguntouBouc. –Acreditanodepoimentodesse
rapaz?– Parece honrado e sincero. Não simulou nenhuma amizade
pelo velho americano, o que provavelmente faria, se estivesseimplicadono crime.É verdade queRatchett não o informoudequeme havia pedido auxílio, mas isso não dá autoridade parasuspeitar.Imaginoqueovelhoamericanopreferiaguardarparasiasprópriasdecisões.
– Assim, parece-lhe que há, pelo menos, um inocente nestecrime–disseBouc,jovialmente.
Poirotlançou-lheumolhardecensura.–Só eu, por ora.Suspeito de todos até aoúltimo instante –
replicouele.–Contudo,confessoquenãovejoessefrioMacQueenperdendoacabeçaecravandodezouquinzepunhaladasnasuavítima.Psicologicamentenãoépossível...Nãopodeser.
–Não–concordouBouc,pensativo.–Estecrimeébemaacçãode um homem quase louco de ódio. E, ao mesmo tempo,denunciamaisumtemperamentolatino.Esugeretambém,comodisseonossoamigo,ochefedopessoal,aideiadeumamulher.
CapítuloVII
OCORPO
Seguido pelo Dr. Constantino, Poirot encaminhou-se para ocamarote do americano assassinado. O servente abriu-lhes aportacomachave.Osdoishomensentrarameodetectivedeitouumolharinterrogadoraocompanheiro.
–Houvemuitadesordemnocompartimento?–Nenhuma.–Tornouomédico.–Tiveocuidadodenãomover
ocorpo,enquantooexaminava.Poirotanuiueolhouàsuavolta.Aprimeiracoisaquesentiu
foiumfriointenso;ajanelaestavaabertaeacortinacorrida.–Brrr!–Articulouobelga.Omédicosorriuedisse:– Preferi não fechar. Entretanto, Poirot examinava
cuidadosamenteajanela.–Temrazão–disseele.–Ninguémdeixouocomboioporaqui.
Ajanelaabertadeviaservirsóparadespistar,masaneveanulouaprecauçãodocriminoso.
Continuando o exame com amesma atenção, o investigadortiroudobolsoumacaixinhaepulverizoutodoocaixilhocomumpoucodepó.
–Nenhumaimpressãodigital–anunciouele.–Istoatéparecelavado. Aliás, se houvesse impressões digitais, pouco nosadiantariam.PodiamserasdeRatchett,doseucriadooudochefedopessoal.Hojenenhumcriminosocainestelogro.Sendoassimacrescentou jovialmente – podemos fechá-la. Positivamente fazmuitofrioaqui.
Fechada a janela, Poirot voltou os olhos para o cadáver.Ratchettjaziadecostas.Ocasacodopijama,todomanchadodesangue,foradesabotoadoepuxadoparatrás.
–Fuieu–explicouomédico–paraexaminaranaturezadosferimentos. Poirot anuiu, curvou-se para o corpo e tornou alevantar-secomumacareta.
– Medonho! – Disse ele. – Alguém deve tê-lo apunhaladorepetidasvezes.Quantossão,aocerto,osgolpes?
–Conteidoze ferimentos.Umoudoissão tão levesquemaisparecemarranhões.Dosoutros,pelomenostrêssãomortais.
A inflexão da voz do médico despertou a atenção do
investigador,quelhelançouumolharpenetrante.Ogregofitavaocadávercomatestafranzida.
–Algumacoisa o impressionou,não é verdade? – PerguntouPoirot,amavelmente.–Fale,meuamigo.Há,defato,algumacoisaqueointriga?
–Acertou–disseooutro.–Queé?–Vêestesdoisferimentos...aquieali...?–Redarguiuogrego,
apontando-os.–Sãoprofundosedevemtercortadomuitosvasossanguíneos. Entretanto as orlas não se afastaram, nãosangraram,comoeradeesperar.
–Quepensadisso?– Que o homem já estavamorto quando esses golpes foram
desferidos.Entretanto,éabsurdo.– De fato – disse Poirot, pensativo. – Salvo se o nosso
criminoso, receando não ter desempenhado bem a sua tarefa,tivessevoltadoparasecertificar.Masdizbem:éabsurdo.Hámaisalgumacoisa?
–Sim,sómaisuma.–Qual?–Vejaeste ferimentoaqui,debaixodobraçodireito,pertodo
ombro.Tomeestemeulápis.Podedesferirsemelhantegolpe?Poirotbalanceouamão.– De fato – disse finalmente. – Com a mão direita é difícil,
quaseimpossível.Sóseogolpefossedadocomodorsodamão.Porém,desferidocomaesquerda...
– Exactamente, Monsieur Poirot. Este golpe foi dado com amãoesquerda.
–Logo,onossocriminosoécanhoto?Não,écoisamaisdifícil,nãoéverdade?
– Isso mesmo, Monsieur Poirot. Alguns dos outros golpesforamdesferidoscomamãodireita.
– Nesse caso, os assassinos são dois. Estamos, portanto noencalço de dois criminosos –murmurou o investigador. Depoisperguntousubitamente:–Havialuzacesa?
– Não sei. Habitualmente o registro é desligado pelo revisor,todasasmanhãs,pelasdezhoras.
– Os pequenos interruptores o dirão – observou Poirot,examinandoodalâmpadadotetoeodacabeceiradacama.
–Oprimeiroestavadesligadoeosegundotambém.– Bem – disse ele, pensativo. – Temos agora a hipótese do
primeiro e do segundo assassino, como diria o grandeShakespeare.Oprimeiroapunhalouavítimaesaiudocamarote,apagando a luz. O segundo entrou às escuras, não viu que atarefajáforacumpridaegolpeouocadáver.Queacha?
– Magnífico! – Disse o doutor, entusiasmado. Os olhos dePoirotcintilaram.
–Édesseparecer?Alegro-mepor isso.Desconfiavaque fosseumaideiaabsurda.
–Queoutraexplicaçãopoderiahaver?–Éno que estou pensando. Será coincidência?Haverá uma
incompatibilidadetal,queautorizeasuspeitardeduaspessoas?– Creio que sim. Alguns destes golpes denunciam uma
fraqueza:faltadevigorouirresolução.Nãoforamdesferidoscomforça.Maseste,eesteoutro...–acrescentouomédico,apontando-os–exigirammuitaforça.Penetraramnosmúsculos.
–Atribui-osaumhomem?–Estouquasecertodisso.–Nãopoderiamserdadosporumamulher?–Sóporummulhernova,atléticaerobusta,eespecialmente
dominadaporgrandeemoção.Porém,époucoprovável.Poirotcalou-sealgunsinstantes.Omédicoprosseguiu:–Compreendeoquequerodizer?–Perfeitamente–replicouPoirot.–Ofatocomeçaadelinear-se
commuitaclareza:O criminoso foi umhomemde grande vigor, um fraco, uma
mulher, alguémque se servedamãodireita eumcanhoto.Ah!c’estrigolo,toutça!
Depois,comumsúbitoassomodecólera,acrescentou:– E que fez a vítima durante este tempo? Gritou? Resistiu?
Defendeu-se?Poirot enfiou amãodebaixo do travesseiro e tirou o revólver
automático,queRatchettlhemostraranavéspera.–Completamentecarregado–disseele.Osdoishomensolharamemtornodesi.OternodeRatchett
pendiadoganchopresoàparede.Namesinhadolavatório,viam-se vários objectos, inclusive a dentadura postiça num copo deágua,outrocopovazio,umagarrafadeáguamineral,umgrande
frasco,umcinzeirocomapontadeumcigarro,pedaçosdepapeledoisfósforosqueimados.
Omédicoapanhouocopovazioelevou-oaonariz.–Aquiestáaexplicaçãodainérciadavítima.–Narcotizado?–Sim.Oinvestigadoranuiuepôs-seaexaminarcomatenção
osdoisfósforos.–Temumindício,então?–Perguntouvivamenteomédico.–Estesdoisfósforossãodeformadiferente–dissePoirot.–Umémaisarredondadodoqueooutro.Vê?– São dos que se encontram neste comboio, em caixas de
papel.PoirotrevistavaosbolsosdeRatchett.Encontrouumacaixade
fósforoseoscomparoucuidadosamente.–Oarredondadoerausadopelomorto.Vejamossehátambém
dosachatados.Masanovabusca foi infrutífera.OolhardePoirot, rápido e
penetrante,corriapelocamarote.Sentia-sequenadaescapariaaoseu exame. De súbito, ele soltou uma exclamação e curvou-separa apanhar alguma coisa. Era um retalho de cambraia fina,tendonumdoscantosbordadaainicialH.
–Umlençodemulher!–Disseomédico.–Ochefedopessoaltinharazão.Háumamulherimplicadanisto.
–Eesqueceuolenço!–DissePoirot.–Exactamentecomonosromances e nos filmes... E, para facilitar o trabalho, está aindamarcadocomumainicial.
–Queachado!–Exclamouomédico.–Nãoémesmo?–DissePoirot.Porém, certa inflexão da sua voz surpreendeu o grego. Mas
antesqueeleapudesseexplicar,Poirotfezoutroachadonochão:umlimpadordecachimbos.
–SeriadeRatchett?–Sugeriuomédico.– Não havia cachimbo no bolso dele nem fumo ou bolsa de
fumo.–Então,émaisumindício.–Comcerteza.Enote:masculino,destavez.Nãonospodemos
queixardeausênciadeindícios.Háquantidadedeles.Mas...Quefezdaarma?
–Nãoencontreinenhuma.Ocriminosolevou-a.
–Gostariadesaberporquê–dissePoirot.–Ah!–Exclamouomédico,queacabavadeexplorarosbolsos
dopijamadeRatchett.–Nãotinhaprestadoatençãoaisto–disseele.–Desabotoeiocasacoepuxei-oparatrás.
Dobolsodopeito,omédicoextraiuumrelógiodeouro,comsinaisdeviolentasamolgaduraseparadoaumaequinze.
– Vê – exclamou Constantino. – Aqui está a hora do crime.Confirma os meus cálculos. Entre a meia-noite e duas damadrugada,disseeu,eprovavelmentecercadaumahora,sebemque seja difícil ser exacto em tal assunto. Pois bem: eis aconfirmação.Umahoraequinze.Foiahoradoassassinato.
–Épossível.Ébempossível.Omédicoolhoucuriosamenteoinvestigador.
–Desculpe-me,senhorPoirot;nãooentendo.–Eutambémnãomeentendo–replicouPoirot.–Nãoentendo
coisaalguma,comovê,eistomeaborrece.Dito isso, o belga curvou-se sobre amesa, para examinar os
pedaçosdepapel.–Euprecisava,nesteinstante,deumacaixavelhadechapéus
demulher–murmurou.O médico tinha curiosidade de saber o que motivava esta
observação.Entretanto,Poirotnãolhedeutempoparaperguntas.Abrindo a porta, chamou o chefe do pessoal. Este acudiu,correndo.
– Quantas mulheres viajam no comboio? – Perguntou-lhe odetective.Oempregadocontoupelosdedos:
–Uma,duas,três...seis.Avelhaamericana,ajoveminglesa,asenhora sueca, a condessa Andrenyi e a princesa Dragomiroff,comadamadecompanhia.
Poirotmeditou.–Todastrazemchapeleira?–Sim,senhor.–Então traga-me... espere... sim, a da senhora sueca e a da
criadaalemã.Estasduassãoaúnicaesperança.Diga-lhesqueédapraxefazerisso...Desculpe-se,enfim,comoquiser.
– Sem problemas. Nenhuma das senhoras está, nestemomento,nocamarote.
–Então,andedepressa.O empregado saiu, voltando pouco depois com as duas
chapeleiras.Poirotexaminouadagovernantaalemãelogoapôsde lado.Abrindo,porém,adasueca,soltouumaexclamaçãodealegria. Removendo cuidadosamente os chapéus, deu comduasredesdearame.
–Eisoquemefaltava.Háquinzeanos,aschapeleirastinhameste feitio.Prendiam-seoschapéus,comumgancho,nestarededearame.
Enquantofalava,Poirotremexiacuidadosamenteemdoisdosganchos.Depoisfechouaschapeleiras,entregou-asaoempregadoeordenou-lhequeas tornasseapôrno lugar.Fechadaaporta,Poirotvoltou-separaomédico.
– Como vê, meu caro doutor, eu não me fio nos processosusuais. O que procuro é o elemento psicológico e não asimpressões digitais ou a cinza do cigarro. Porém, neste caso,abençoaria um pequeno auxílio científico. Este camarote estácheiodeindícios,maspossoteracertezadequevalem,defato,algumacoisa?
–Nãoocompreendi,MonsieurPoirot.– Bom, dar-lhe-ei um exemplo, encontramos um lenço de
mulher.Terásidoumamulherquemoperdeu?Ouoassassinodisseconsigo:“Façamoscrerquesetratadeumcrimedemulher.Apunhalarei o meu inimigo muitas vezes, desferindo algunsgolpes fracose ineficazesedeixareieste lençobemàvista”?Eisumapossibilidade.Háoutra.Nãoseráacriminosaumamulher,que deixou, para despistar, um limpador de cachimbos?Poderemos tomar a sério a hipótese de dois criminosos, umhomem e uma mulher, cada qual agindo separadamente eprocurandoescondercomessesindíciosaprópriaidentidade?Háexcessodecoincidências,aqui!
– Mas que relação tem a chapeleira com tudo isso? –Perguntouomédico,intrigado.
–Ah!Láchegaremos!Comoeudisse,estesindícios,orelógioparado numahora, o lenço, o outro objecto, podem ou não tervalor. Porém há um indício infalível. É este fósforo achatado.Creio que ele pertenceu ao criminoso e não a Ratchett. Talvezservisse para queimar algum documento comprometedor.Possivelmente uma nota. Se assim for, devia haver nessa notaalgum engano, um erro denunciador. Procurarei reconstruir oquepodiaser.
E Poirot saiu do camarote, voltando pouco depois com umalamparinaeumpardepinças.
–Uso-asparaobigode–explicouele,mostrando-as.Omédicoseguiu-ocomgrande interesse.Poirotdistendeuos
doisganchosdearameeenrolouopedaçodepapelnumdeles.Depois,agarrou-osamboscomapinça,expondo-osàchamadalamparina.
– E uma tentativa – explicou ele. – Esperemos que dêresultado.
O médico acompanhava atentamente a operação. O metalcomeçouabrilhar.Desúbito,apareceramténuessinaisdeletrasformaram-sepoucoapoucoalgumaspalavras...Palavrasdefogo.Ouviu-seum leve estalo.A frase constavade quatro palavras, aprimeiradelastruncada:“...bre-sedapequenaDaisyArmstrong.”
–Ah!Excelente!–ExclamouPoirot.–Descobriualgumacoisa?–Acudiuomédico.Osolhosdoinvestigadorcintilaram;eelelargouapinça,com
extremocuidado.–Sim–replicoufinalmente.–Seiagoraoverdadeironomeda
vítimaeporquedeixouaAmérica.–Comosechamavaele?–Cassetti.–Cassetti?–Constantinofranziuassobrancelhas.–Lembra-
mealgumacoisa.Já fazalgunsanos.Nãome recordobem.FoiumcasonaAmérica,não?
–Sim–confirmouPoirot.–UmcrimenaAmérica.Mais do que nunca, o belga não estava disposto a falar.
Continuavaaexaminaroqueocercava.– Chegaremos ao fim num instante – disse afinal. –
Certifiquemo-nosdequenadanosescapou.O detective tornou, rapidamente, a revistar os bolsos do
cadáver.Nadaencontrou.Experimentouaportaquecomunicavacom o aposento vizinho, mas encontrou-a fechada pelo outrolado.
– Uma coisa, porém, não entendo – disse Constantino. – Senão fugiu pela janela, se a porta que comunica com o outrocompartimento está fechada e a do corredor tinha o cadeado,comopôdeocriminosodeixarocamarote?
–É o que se diz a plateia, sempre queumapessoa, fechada
numacaixa,comasmãoseospésatados,desaparece.–Querdizerque...?–Suponho–dissePoirot–que,seocriminosonosquisfazer
crer que fugiu pela janela, procurou naturalmente mostrar aimpossibilidadedeseescapulirporoutrolado.Éumlogro,comoo da pessoa que desaparece misteriosamente. Cumpre-nosdescobriremqueconsiste.
EPoirotfechouaportadecomunicação.–Paraocaso–disseele –daexcelenteMrs.Hubbard tentar
arranjardetalhesemprimeira-mãosobreocrimeedepoisescrevê-losàfilha.
Odetectivedeuumúltimoolharemtornodesi.–Nãohámaisnadaa fazeraqui,segundomeparece.Vamos
procurarosenhorBouc.
CapítuloVIII
ORAPTODEDAISYARMSTRONG
EncontraramBouc,terminandoumaomeleta.– Achei melhor mandar servir imediatamente o almoço no
vagão-restaurante – disse ele. – Depois será desocupado e osenhor Poirot poderá começar o seu inquérito. Entretanto,ordeneiquenosservissemaqui.
–Umaideiaexcelente–dissePoirot.Nenhum dos três tinha fome, e a refeição terminou
rapidamente.Porém,sóaocafé,Boucaludiuaoassuntoqueospreocupava.
–Então?–Perguntou.– Descobri a identidade da vítima. Sei agora o motivo
imperiosoquealevouadeixaraAmérica.–Quemeraele?–Nãoselembradeterlidoqualquercoisaacercadapequena
Armstrong?RatchettfoioassassinodameninaDaisyArmstrong:Cassetti.
– Lembro-meagora!Umcaso impressionante, porémnãomerecordodepormenores.
–OcoronelArmstrongerainglês,meioamericanoporpartedamãe, filha de W.K. Vam der Halt, o milionário de Wall Street.Casou-secomafilhadeLindaArden,amaisfamosaactriztrágicadoseutempo.OcasalvivianaAméricaetinhaumafilhinhaqueadoravam.Aostrêsanos,estafoiraptada.Exigiram,pararestituí-la, uma soma exorbitante. Não o aborrecerei com todos osparticulares.Limito-meadizerque,pagaasomadeduzentosmildólares,descobriu-seocadáverdapequena,mortahaviaquinzedias.Ocasoprovocouaindignaçãopopular.Porém,aindahouvecoisa pior. A senhora Armstrong esperava outro filho. O abalodessa triste notícia causou a morte da mãe e da criança e ocoronel,desvairado,suicidou-se.
–Deus!Quetragédia!–ExclamouBouc.–Lembro-meagora!Senãomeengano,houveoutramorte.
– Sim, uma infeliz ama francesa ou suíça. Certa de que elaestava implicadano crime, a polícia recusou-se a crernas suasnegativas obstinadas. Afinal, a pobre moça, num acesso de
desespero,atirou-sedeumajanelaemorreu.Maistardeverificou-sequeestavainocente!
–Nemébompensarnisso!–DisseBouc.– Seismeses depois,Cassetti foi preso como chefe do bando
que raptara a criança. Usava sempre os mesmos métodos.Quando a polícia lhe andava no encalço, matava o prisioneiro,escondia-lheocorpoecontinuavaaextorquirdinheiro,antesqueocrimefossedescoberto.Creioquepodereiagoraexplicarmelhoro caso, meu amigo continuou Poirot. – Ele era Cassetti. Mas,graças à enorme riqueza que juntara e ao poder secreto queexercia sobre váriaspessoas, foi absolvido.Apesardisso, senãofosseesperto,serialinchadopelopovo.Compreendoclaramenteoquesedeu.ElemudoudenomeedeixouaAmérica.Desdeentão,tem-se apresentado como cavalheiro desocupado, viajando evivendodosrendimentos.
–Ah!Queanimal!–DisseBouc,comrepugnância.–Nãolhelamentoamorte!
–Concordo.– Contudo, não era preciso que fosse assassinado logo no
ExpressodoOriente.Háoutroslugares!Poirotsorriu.CompreendiaqueBoucdeviaestarcontrariado.–Oquerestasaber–disseele–éseocrimefoipraticadopor
um bandido rival de Cassetti e talvez enganado por ele, ou seestamosempresençadeumavingançaparticular.
Eexplicouoachadodaspalavrasescritasnopedaçodepapel.– Salvo erro, a carta foi queimada pelo criminoso. Porquê?
Porque havia o nome de Daisy Armstrong, chave de todo omistério.
–ViveaindaalgummembrodafamíliaArmstrong?–Infelizmente,nãosei.Parece-mequeouvifalardeumairmã
deMrs.Armstrong.Poirotcontinuouarelatarassuasconclusõeseasdomédico.
Boucanimou-se,aoouvirfalardorelógioparado.– Então saberíamos a hora exacta em que se deu o crime –
disseele.–Sim–dissePoirot.–Ébemprovável.Havia na sua voz uma inflexão estranha; os seus
companheirosolharam-nocomcuriosidade.– Disse-me que ouviu Ratchett falar ao empregado, às vinte
parauma.Poirotcontou-lhesoqueocorrera.–Bem–disseBouc – issoprova, aomenos, queCassetti ou
Ratchett,comocontinuoachamá-lo,àsvinteparauma.–Vinteetrêsparaauma,paraserexacto.– Então, digamos: à meia-noite e trinta e sete minutos,
Ratchettaindavivia.Odetectivenãoreplicou.Fitavapensativamenteoolhardiante
desi.Bateramàporta.Entrouumgarçom.–Ovagão-restauranteestálivre,Monsieur–anunciouele.–Vamosparalá–disseBouc,levantando-se.–Possoacompanhá-lo?–PerguntouConstantino.–Certamente,meucarodoutor!AnãoserqueosenhorPoirot
tenhaalgumacoisaemcontrário.–Nada.Absolutamentenada–dissePoirot.E,esquivando-secortesmentecadaqualparacederopassoaos
outros,ostrêshomensdeixaramocamarote.
ParteIIOsTestemunhos
CapítuloI
ODEPOIMENTODOCONDUTORDAWAGONLIT
No vagão-restaurante estava tudo pronto. Poirot e Boucsentaram-se a uma mesa. O médico ocupou um lugar maisafastado.Namesadiantedodetectivedesdobrava-seumaplantado expresso Istambul-Calais, com o nome dos respectivospassageiros,marcados com tinta vermelha.Os passaportes e aspassagens empilhavam-se um poucomais além. Havia tambémtinta,caneta,lápisepapel.
–Muito bem – disse Poirot. – Podemos começar o inquérito.Ouviremosprimeiroodepoimentodochefedopessoal.Conheceessehomem?Quecaráctertemele?Epessoaemcujapalavrasepossaconfiar?
– Certamente. Pierre Michel serve a Companhia há quinzeanos. É francês... dos arredores de Calais. Absolutamentehonradoerespeitável.Talveznãomuitointeligente.
Poirotanuiu,comexpressãocompreensiva.–Bom–disseele.–Ouçamo-lo.PierreMichelrecobraraparte
dasuacalma,masaindasemostravamuitonervoso.– Espero, senhor, que não me julgue culpado de alguma
negligência–disseele,ansiosamente,correndooolhardePoirotparaBouc.–Oqueaconteceuéhorrível!Confioemquenãomejulgueresponsável.
Depois de tranquilizar o pobre homem, Poirot começou ainterrogá-lo.Pediu-lheprimeiroonomeeoendereço,osanosdeserviço, e o tempo que servia nessa linha. Já conhecia essesparticulares, mas as perguntas de rotina serviam para pôr ofuncionárioàvontade.
–Agora–dissePoirot–passemosaosacontecimentosdanoitepassada. Quando se retirou Monsieur Ratchett para o seuaposento?
–Logodepoisdojantar.Nocaso,antesdedeixarmosBelgrado.Pedira-me que lhe preparasse a cama, enquanto ele jantava, eassimfiz.
–Entroualguémnocamarotedele,maistarde?–Ocriadoeosecretário.–Maisalguém?
–Não,queeusaiba.–Bom.Efoiessaaúltimavezqueoviuououviu?– Não, senhor. Lembra-se dele ter chamado às vinte para
uma...Poucodepoisdetermosparado.–Quehouveentão?–Batiàportaeeledisse-mequeseenganara.–Eminglêsouemfrancês?–Emfrancês.–Quedisseele?–Cen’estrien.Jemesuistrompé.–Muitobem–dissePoirot.–Foioqueouvi.E,depoisdisso,o
senhorretirou-se?–Sim,Monsieur.–Voltouaoseulugar?–Não.Atendiantesoutrachamada.–Agoravoufazer-lheumaperguntaimportante.Ondeestava,
àumahoraequinze?–Eu?Estavanomeulugar.–Temacerteza?–Sim...pelomenosaté...–Diga...– Até que passei ao vagão de Atenas, para conversar com o
meu colega. Falávamos da neve. Era poucomais de uma hora,nãotenhobemacerteza.
–Quandovoltou?–Voltei,paraatenderumachamada... lembro-medeque lhe
contei.Eraasenhoraamericana.Tocaraváriasvezes.–Lembro-me–dissePoirot.–Edepois?–Depois? Atendi a sua chamada e trouxe-lhe águamineral.
Daí ameia hora fui fazer a cama noutro camarote, a do jovemamericano,osecretáriodeMonsieurRatchett.
–OsenhorMacQueenestavasónocamarote?– Não; encontrei-o conversando com o coronel inglês do
número15.–Quefezocoronel,quandodeixouMacQueen?–Voltouaocamarotedele.–Onúmero15.Bempertodoseulugar,não,Michel?– Sim, senhor. É o segundo camarote, a partir do fundo do
corredor.
–Estavafeitaacama?–Sim.Eufizera-a,enquantoelejantava.–Quehoraseram?–Nãoseiaocerto.Nãomaisdeduashoras,emtodoocaso.–Edepoisdisso?–Depois?Fiqueinomeulugar,atéamanhecer.–NãovoltouaovagãodeAtenas?–Não,Monsieur.–Dormiu,talvez?– Creio que não. Estando o comboio parado, eu não podia
dormir,comodecostume.–Viualgumpassageiropassarpelocorredor?Michelreflectiu.–Umadassenhorasentrounotoaletesenãomeengano.–Qualdelas?–Nãosei.Elaestavalongee,alémdisso,decostasparamim.
Vestiaumquimonodetecidovermelho,estampadocomdragões.Poirotanuiu.–Edepois?–Nadamais,atéamanhecer.–Temacerteza?–Ah!pardon!Osenhortambémabriuaportaeolhouporum
momentoparafora.–Bem,meuamigo–dissePoirot.–Alegro-medequeselembre
disso.Fuiacordadoporumrumor, semelhanteaodeumcorpopesado, caindo de encontro à porta. Tem ideia do que pode tersido?Ohomemencarou-o.
–Nada,senhor.Nãoseidenada!–Tiveentãoumpesadelo–dissePoirot,calmamente.–Anãoser–atalhouBouc–quefossenocamarotevizinho.Poirotnãotomounotadasugestão.Talveznãoquisessefazê-lo
diantedochefedopessoal.–Vamosaoutroassunto–disseele. –Suponhamosque,na
noite passada, um assassino entrasse no comboio. De fato, elenãopoderiadeixarocomboiodepoisdecometeressecrime?
PierreMichelmeneouacabeçanegativamente.–Nempoderáestarescondidonocomboio?–Fizeram-setodasasbuscas–atalhouBouc.–Abandoneessa
ideia,meuamigo.–Aliás–disseMichel–,ninguémpoderiaterdeixadoaVagão-
dormitóriosemqueeuovisse.–Qualfoiaúltimaparagemdocomboio?–Vincovci.–Aquehoras?–Creioquesaímosdaliàsonzeecinquentaeoito.Mas,devido
aotempo,atrasámo-nosunsvinteminutos.–Poderiaalguémentrarnocomboiopelosvagõescomuns?–Não,senhor.Depoisdojantar, fecha-seaportadosvagões-
dormitóriosquecomunicacomosvagõescomuns.–OsenhordesembarcouemVincovci?–Sim,senhor.Desciàplataforma,comodecostume,eparei
noestribodocomboio.Osmeuscolegasfizeramomesmo.–Eaportapróximadovagão-restaurante?–Estásemprefechadapordentro.– Agora não –. Michel parou surpreendido; depois a sua
fisionomiailuminou-se.–Decerto,algumdospassageirosaabriu,paraolharaneve.
–Provavelmente–concordouPoirot.Eodetective tamboriloucomosdedosnamesa,umoudoisminutos.
– Não me repreende por isso, senhor? – Perguntou Micheltimidamente.Poirotsorriucombondade.
–Tevepoucasorte,meuamigo,nadamais –disse ele. –Ah!Outra coisa! Diz que, enquanto atendia Ratchett, ouviu outrachamada?Defato,eutambémouvi.Quemera?
–AprincesaDragomiroff.Queriaqueeulhechamasseadamadecompanhia.
–Cumpriuessaordem?–Sim,Monsieur.Poirotexaminoupensativamenteaplantado
comboio.Depoiscurvouacabeça.–Basta,porenquanto–disseele.–Obrigado,Monsieur.Michellevantou-seeolhouparaBouc.– Não se aborreça – disse bondosamente o director da
Companhia. –Nãovejonestecasonenhumanegligênciadasuaparte.
Aliviado,ofuncionáriodeixouacabina.
CapítuloII
ODEPOIMENTODOSECRETÁRIO
Duranteumoudoisminutos,Poirotreflectiu.–Creio–disseele–que,depossedestesesclarecimentos,seria
convenientefalarcomoMonsieurMacQueen.Ojovemamericanoapareceuprontamente.–Bem–disseele.–Comovãoascoisas?– Não muito mal. Descobri alguma coisa... a identidade de
MonsieurRatchett.MacQueenanimou-se:–Sim?–Perguntou.– Ratchett, como o senhor suspeitava, não passava de um
nomefalso.RatchetteraCassetti,ohomemquesecelebrizouemraptar crianças, inclusive no famoso caso da pequena DaisyArmstrong.
Uma expressão de espanto passou pela fisionomia deMacQueen;depoisumasombraescureceu-lheorosto.
–Malditaraposa!–Exclamouele.–Nãodesconfiavadisso,Mr.MacQueen?–Não–disseresolutamenteojovemamericano.–Decontrário,
preferiacortaramãodireitaaservir-lhedesecretário.–Essecasoimpressiona-omuito,senhorMacQueen.–Tenhorazõesparticularesparaisso.Meupaieraopromotor
encarregado do caso. Vi mais de uma vez Mrs. Armstrong, eraumapessoamuitoamável.Tãogentiletãodesolada!–Orostodojovemtornou-sesombrio.–Sealgumavezumhomemmereceuoqueobteve,essehomemfoiRatchettouCassetti.Nãolhelamentoamorte.Esseindivíduonãoeradignodeviver!
–Osenhorfalacomosetivessepensadoemmatá-lo.–Defato.Eu...,–Ojovemcalou-seummomento,paradepois
prosseguir,muitovermelho.–Parecequemeestouincriminando.– Inspirar-me-ia mais suspeitas, se mostrasse um desgosto
exageradopelamortedoseupatrão.–Creioquenãoofingiria,nemparamesalvardamorte–disse
MacQueen,comarsombrio.Depoisacrescentou:– Se não for indiscrição, diga-me como conseguiu descobrir
isso?Querodizer:aidentidadedeRatchett.
–Porumpedaçodepapel,queencontreinocamarotedele.–Foientãoumdescuidodovelho?–Conformeopontodevista–replicouPoirot.Parecendo desconfiar dessa resposta, o rapaz encarou o
detective,comoseesperassefazê-lofalar.– O que tenho a fazer – disse Poirot – é averiguar os
movimentos de todos os passageiros do comboio. Ninguém sedeveofendercomisto.Éapenasumaformalidade.
–Certamente.Continue,eeuexplicar-lhe-eitudooquepuderameurespeito.
–Nãoprecisoperguntar-lheonúmerodoseucamarote–dissePoirot,sorrindo–porqueopartilheicomosenhorumanoite.Éum camarote de segunda classe, números 6 e 7, ocupadoexclusivamentepelosenhor,depoisqueeusaí.
–Muitobem.–Agora,MonsieurMacQueen,queroquemedigaoquefezna
noitepassada,desdequedeixouovagão-restaurante.– É muito simples. Fui ao meu camarote, li um pouco,
desembarqueinaplataformadeBelgradoe,comofaziamuitofrio,torneiaembarcar.Faleiuminstantecomumamoçainglesa,queocupaumcamarotepróximodomeu,e,emseguida,entretive-mea conversar com o coronel Arbuthnot. Lembro-me até de que osenhorpassoupelocorredor,enquantofalávamos.Maistarde,fuiaocamarotedosenhorRatchettbuscarumasnotas,comojálhedisse.Depois dei-lhe as boas noites e saí.O coronel Arbuthnotaindapasseavanocorredor.Oseucamaroteestavaprontoparaanoiteeeuconvidei-oaacompanhar-meatéaomeu.Pedibebidasepusemo-nosentãoadiscutirváriosassuntos.
–Sabedizeraquehorassesepararam?–Muitotarde,cercadasduashoras,segundocreio.–Notouqueocomboiotinhaparado?–Sim.Admirámo-nosumpouco.Olhamosparaforaevimosa
neve espessa que nos cercava; não julgamos, porém, que fossecasosério.
– Que aconteceu, quando, afinal, o coronel Arbuthnot sedespediu?
–Logoqueeleseafastou,mandeichamarochefedopessoalparafazer-meacama.
–Ondeficouosenhor,enquantoelefaziaesseserviço?
–Nocorredor,àfrentedaporta,fumandoumcigarro.–Edepois?–Depois?Deitei-meedormiatéaoamanhecer.–Ontemàtardenãodesembarcou?–Arbuthnoteeuqueríamosdescerem...comosechamaesse
lugar?... Vincovci, para fazer um pouco de exercício.Mas comoestavamuitofrio,voltamoslogo.
–Porondedeixouocomboio?–Porumaporta,próximadonossocamarote.–Aportacontíguaaovagão-restaurante?–Sim.–Nãoselembraseestavatrancada?MacQueenreflectiu.–Sim,parece-mequeestava.Haviaumatranca...umaespécie
deferrolhonotrincodaporta.Éaissoqueserefere?–Sim.Quandovoltou,colocoudenovoatranca?– Não sei... creio que não... É ponto de importância? –
Perguntousubitamenteorapaz.–Não sei. Pode ser.Suponhoque, enquanto o senhor falava
comocoronelArbuthnot,aportadoseucamaroteestavaaberta,não?
MacQueenassentiu.–Gostaria quemedissesse, se alguémpassoupelo corredor,
desde que deixamos Vincovci, até que o senhor se separou docoronel.
MacQueenfranziuassobrancelhas.– Vi o chefe do pessoal passar uma vez, vindo do vagão-
restaurante.Eumamulherpassounadirecçãocontrária.–Quemera?– Não sei. Não prestei atenção. Discutia com Arbuthnot.
Vislumbreiapenasumreflexodesedaescarlate;nãoafixei.Aliás,nãolheveriaorosto.Comosabe,omeucamaroteéemfrenteaovagão-restaurante, e, indo nessa direcção, a passageira deviaforçosamenteestariadecostasparamim.
Poirotanuiu.–Elaiatalvezaotoalete?–Presumoquesim.–Viu-avoltar?–Não,agoralembro-medequenãoavipassar.Massuponho
quevoltou.
–Maisumapergunta:fumacachimbo,Mr.MacQueen?–Não,senhor.Poirotcalou-seuminstante.–Porora,basta–disseenfim.–Gostariaagoradefalarcomo
criadodeRatchett.Apropósito,osenhoreele viajavamsemprenasegundaclasse?
– Ele sim. Eu quase sempre ia de primeira, no camarotecontíguoaodosenhorRatchett.Elepunhaquasetodasassuasbagagens no meu camarote e assim tinha-as, como a mim, aoalcancedamão.Mas,destavez, todososcamarotesdeprimeiraclasseestavamtomados,exceptoodele.
–Compreendo.Obrigado,MonsieurMacQueen.
CapítuloIII
ODEPOIMENTODOCRIADO
Ao americano seguiu-se o inglês, de rosto pálido einexpressivo, que Poirot avistara dias antes. Perfilado, esperavacorrectamenteasordensdodetective,queomandousentar.
–OuvidizerqueeraocriadodosenhorRatchett?–Sim,senhor.–Comosechama?–EdwardHenryMasterman.–Queidadetem?–Trintaenoveanos.–Oseuendereço?–FriarStreetnúmero21,Clerkenwell.–Sabequeoseupatrãofoiassassinado?–Sim.Éumfatoimpressionante.– Quer dizer-me quando viu pela última vez Monsieur
Ratchett?–Ocriadoreflectiu.–Deviamsernovehoras,oupoucomais.–Diga-meoquehouve.–FuiaocamarotedoMr.Ratchett,comodecostume,pedir-lhe
asordens.–Quaiseramassuasobrigações?– Dobrar e pendurar-lhe a roupa. Pôr na água a dentadura
postiçaecuidardequenadalhefaltasse,duranteanoite.–Notoualgumadiferençanomododele?Ocriadoreflectiuum
instante.–Desconfioqueeleestavaumpoucoagitado.–Porquê?–Porcausadeumacartaquerecebera.Perguntou-mesefuieu
que a tinha posto no camarote. Naturalmente respondi-lhe quenão,eleporémpraguejouereclamoucontratudooquefiz.
–Issonãoeranaturalnele?– Oh! Bem natural. Ele encolerizava-se frequentemente, em
geralsemprequeestavaagitado.– O seu amo costumava tomar algum narcótico? – O Dr.
Constantinoagitou-se.–Emviagem,sim.Diziaque,docontrário,nãopoderiadormir.
–Sabeoqueelecostumavatomar?– Não sei. Não havia rótulo no frasco. Unicamente esta
indicação:“Soporíferoparatomaràhoradedormir”.–OsenhorRatchettfezusodele,nanoitepassada?–Sim,senhor.Eumesmoopreparei.–Nãooviutomar?–Não,senhor.–Queaconteceudepois?–Perguntei-lhe sedesejavamaisalgumacoisa eaquehoras
queria que o acordasse no outro dia. Respondeu-me que,enquantonãomechamasse,nãoqueriaserperturbado.
–Costumavaprocederassim?– Sim, senhor. Quando estava disposto a levantar-se,
mandava-mechamarpelochefedopessoaldocomboio.–Levantava-secedooutarde?–Conforme.Àsvezescedo,outrasvezessóàhoradoalmoço.–Assimnãoestranhou,estamanhã,quenãoochamassem?–Não,senhor.–Sabiaqueoseupatrãotinhainimigos?– Sim, senhor. – O criado não manifestava a menor
perturbação.–Comoosabia?–Ouvi-odiscutircomMr.MacQueen,acercadeumascartas.–Tinhaalgumaamizadecomseupatrão,Masterman?Orosto
docriadoperdeuumpoucodahabitualimpassibilidade.–Propriamentenão.Entretanto,eleeramuitogeneroso.–Evocênãogostavadele?–Nãogostomuitodosamericanos.–JáestevenaAmérica?–Não,senhor.– Lembra-se de ter lido alguma coisa acerca do caso
Armstrong?–Ocriadocoroulevemente.–Sim.Umamenina,nãoéverdade?Umcasoimpressionante.– Sabia que o seu patrão foi o principal responsável desse
caso?–Não,decerto!–Replicouocriadocomcaloresentimento.–
Malpossoimaginarsemelhantecoisa.– Entretanto, é verdade. Agora vejamos: que fez na noite
passada? É apenas uma formalidade, compreende? Que fez,
depoisdedeixaroseupatrão?–DisseaMr.MacQueenqueopatrãolhequeriafalar.Depois
fuiparaomeucamaroteeli.–Oseucamaroteéo...?– O último da segunda classe. Perto do vagão-restaurante.
Poirotdeitouumolharàplantadocomboio.–Compreendo...equaléoseuleito?–Odebaixo.–Onúmero4?–Sim,senhor.–Temalgumcompanheirodecamarote?–Sim.Umrapazitaliano.–Eessefalainglês?–Ora,umaespéciedeinglês–disseocriado,comdesdém.–
EstevenaAmérica,emChicago,segundoouvidizer.–Conversammuito?–Não,senhor.Euprefiroler.Poirot sorriu. Ele imaginava a cena: o italiano robusto e
volúveleoardecensuradesseespécimedegentleman.–Possoperguntar-lheoquelê?–Continuouodetective.–AgoraestoualeroCativodoAmordeArabelaRichardson.–Éumbomlivro?–Émuitodivertido.–Bem,continuemos.Voltouentãoaocamaroteepôs-sealero
CativodoAmoratéquando?– Cerca das dez emeia, o italiano quis dormir e o chefe do
pessoalveiofazerascamas.–Deitou-seedormiu?–Deitei-me,porémnãopudedormir.–Porquê?–Tinhadordedentes.–Ora,ora!Issoédoloroso.–Muito!–Fezalgumcurativo?– Um pouco demalva,mas assimmesmo não pude dormir.
Entãoacendialuzecontinueialer,paramedistrair.–Enãodormiuanoitetoda?–Adormecipelasquatrohorasdamadrugada.–Eoseucompanheiro?
–Orapazitaliano?Oh!Chegouaroncar!–Nãooviusairdocamarote,duranteanoite?–Não,senhor.–Evocê?–Tambémnãosaí.–Ouviualgumacoisa?– Não. Nada de estranho, pelo menos. Quando o comboio
paroutudoestavanomaiorsilêncio.Poirotcalou-seuminstante,depoisprosseguiu:–Bem,creioqueétudo.Nadamaispodeadiantar?–Infelizmente,não.– Não sabe se havia alguma discussão ou atrito entre o seu
patrãoeMonsieurMacQueen?– Oh! Não, senhor. Mr. MacQueen é um cavalheiro muito
amável.–OndeestavaantesdeservirosenhorRatchett?–Eu?EmcasadeSirHenryTomlinson,emGrosvenorSquare.–Porquedeixouoemprego?–OmeupatrãopartiuparaaÁfricaOriental,dispensandoos
meusserviços.Estivecomeleváriosanos.–HáquantotemposerviaoMonsieurRatchett?–Háunsnovemeses,senhor.–Obrigado,Masterman.Escute:costumafumarcachimbo?–Não,senhor,fumosócigarros.–Estábem.Porenquanto,nãoprecisodemaisnada.E,comumaceno,Poirotdespediuocriado.Estehesitouum
instante.Porfim,disse:– Desculpe-me, senhor,mas a senhora americana está num
estadoincríveldeexcitação.Leva-aadizerquesabetudoacercadoassassino.
–Nessecaso–dissePoirot,sorrindo–serámelhorouvi-laemprimeirolugar.
– Quer que a chame, senhor? Ela está aí, a pedir que umaautoridadeaouça.Ochefedopessoaltentouinutilmenteacalmá-la.
– Então chame-a – concordou Poirot. – Ouviremosimediatamenteoseudepoimento.
CapítuloIV
ODEPOIMENTODADAMAAMERICANA
Mrs.Hubbard entrouno vagão-restaurante tão excitada, quemalpodiafalar.
– Mas, digam-me uma coisa: não há uma autoridade aqui?Tenho importantesdeclaraçõesa fazeredesejoprestá-lasdiantedeumaautoridade.Seossenhores,cavalheiros...
Aamericanacorreuoolharpelostrêshomens.Poirotinclinou-se.
–Diga-metudooquesabe,minhasenhora.Masantes,queirasentar-se.
Mrs. Hubbard caiu pesadamente na cadeira em frente à dodetective.
– O que tenho a dizer é o seguinte: havia um assassino nocomboio,estanoite,eeleestavaexactamentenomeucamarote.–A americana calou-se, para emprestar certa ênfase dramática àsuadeclaração.
–Temacerteza,minhasenhora?–Naturalmente!Que ideia! Sei o que digo!Dir-lhe-ei tudo o
que sei. Ontem me deitei, adormeci e acordei sobressaltada,estava escuro, e eu vi umhomemnomeu camarote. Fiquei tãoapavoradaquenemtivecoragemdegritar.Fiqueiimóvelepensei:”Pronto! Vou ser assassinada!” Não lhe posso descrever o quesenti.“Estesmalditoscomboios!”,pensei,lembrando-medetodosos atentados que li. Reflecti, contudo, que ele não me poderiaroubar as jóias, que trago escondidas numa meia, debaixo dotravesseiro... não é muito confortável, convenhamos, porém,encontrareimelhor,sepuder.Mas...ondeestavaeu?
– Dizia que percebeu a presença de um homem no seucamarote.
–Bem.Então, comodisse, fiquei deitada, de olhos fechados,pensando:“Felizmenteaminha filha ignoraoapuroemquemeacho!”Depoisrecobreiosanguefrioechameiochefedopessoal.Cansei-mede tocar,semqueeleatendesse.Juro-lhequepenseiqueomeucoraçãoparassedebater."Misericórdia!”,dissecomigomesma, “todos foram assassinados neste comboio!” Estávamosparadosereinavaprofundosilêncio.Continuei,porém,aapertar
o botão, até ouvir, com grande alívio, o chefe do pessoal docomboio, que veio, correndo, bater à porta. “Entre!”, gritei.Acreditaquenãohavianinguémnocamarote?
EMrs.Hubbardcalou-seobservandooefeitodasuarevelação.–Edepois,minhasenhora?–Conteitudoaochefedopessoalquenãoquisacreditar-me.
Julgava que eu tivesse sonhado. Mandei-o revistar debaixo dacama, embora ele dissesse que não havia no camarote espaçosuficiente para um homem se esconder. Era evidente que ocriminoso fugiraeeuquaseenlouquecicomaspalavrasquemedizia o chefe do pessoal do comboio parame acalmar. Eu nãocostumomentir...Mr....Comoéoseunome?
– Poirot, minha senhora; este cavalheiro é o senhor Bouc,directordaCompanhia,eodoutorConstantino.
–Muitoprazeremconhecê-los–murmuroudistraidamenteasenhora Hubbard. E, voltando à sua narração, continuou: –Confesso que eu poderia ter sido mais esperta. No primeiromomento,imagineiquefosseomeuvizinho...opobrehomemquefoiassassinado.Mandeiochefedopessoal examinaraportadecomunicação,certadequenãoestavatrancada.Fi-lopôratrancae,quandoelesaiu,paramaiorsegurança,levantei-meeempurreiumamaladeencontroàporta.
–Quehoraseram,Mrs.Hubbard?–Nãoseiaocerto.Nemmelembreidever.Estavatãoagitada!–Equaléasuaopinião,agora?– Ora! É claro que o homem que vi nomeu camarote era o
assassino.Quemmaispoderiaser?–Supõequeelepassouaocamarotevizinho?–Comoquerquesaiba?Eutinhaosolhosbemfechados.–Elepodeterfugidoparaocorredor.–Nãosei.Comojálhedisse,tinhaosolhosfechados.–EMrs.
Hubbardpôs-seasoluçarconvulsivamente.–Misericórdia!Quesusto!Seaminhafilhasoubesse...
–Quemsabeseobarulhoqueouviunãoprovinhadoquartoondesedeuocrime?
–Não,Mr....Mr. Poirot. O homem estava nomeu camarote.Tenhoprovas!
Ea americana exibiu triunfalmenteumamaletademão, emcujo interior sepôsa remexer.Apareceramsucessivamentedois
lenços, um par de óculos de aros de tartaruga, um tubo deaspirina, um pacote de sal Glauber, um tubo de celulóide dehortelã-pimenta,ummaçode chaves,umparde tesouras,umacadernetadechequesdeexpressoamericano,uminstantâneodeuma criança de aspecto vulgar, algumas cartas, cinco fios decontasfalsasdoOrienteeporfimumbotãodemetal.
–Vêestebotão?Nãoémeu.Encontrei-oestamanhã,quandomelevantei.
Mal a velha senhora o pousou namesa, Bouc inclinou-se esoltouumaexclamação.
–MaséumbotãodajaquetadosempregadosdaWagonLit!–Háumaexplicaçãonaturalparaisso–dissePoirot.Depois,
voltando-se para a americana, prosseguiu amavelmente: – Estebotão pode ter sido perdido pelo chefe do pessoal quandorevistavaocamaroteouquandoarranjouacama.
–Nãoseioquequeremdizer.Mascreioquefazemobjecções.Agora escutem: ontem, antes de me deitar, lia uma revista.Quando ia apagar a luz, larguei a revista num banco perto dajanela.Compreenderam?
E,comoelesrespondessemafirmativamente,avelhasenhoracontinuou:
–Bem;ochefedopessoalrevistouocamarote,trancouaportadecomunicação,masesqueceu-sedechegarà janela.Poisbem,estamanhãencontreiobotãoemcimadarevista.Quechamamaisto,podesaber-se?
–Naminhaopinião, chama-seum indício,minha senhora –replicouodetective.Essarespostapareceusossegaraamericana.
– Quase enlouqueço, quando não acreditam no que digo! –Explicouela.
–Asenhora trouxe-noso indíciomaisclaroevalioso–dissePoirot suavemente. Agora dá licença para que lhe faça umasperguntas?
–Comonão?Damelhorvontade.– Por que razão, desde que suspeitava de Ratchett, não
trancouaportaquecomunicavacomocamarotedele?–Eutinha-atrancado–afirmouresolutamenteMrs.Hubbard.–Ah!Sim?– Ou antes: perguntei à senhora sueca, uma excelente
criatura,seaportaestavatrancadaeelarespondeu-mequesim.
–Porquenãoaexaminouporsimesma?– Porque eu estava deitada e o meu saco com objectos de
banho,penduradonotrincodaporta.– Que horas eram, quando fez essa pergunta à sua
companheira?–Vejamos:talvezdezemeiaouquinzeparaasonze.Elaveio
pedir-meumaaspirina.Eeudisse-lheondeapodiaencontrar.–Estavadeitada?–Sim.–Desúbito,avelhaamericanariu-se:–Pobrecriatura,
estava fora de si. Imagine que abriu por engano, a porta docamarotevizinho.
–DeMonsieurRatchett?– Sim. O senhor sabe como é difícil andar pelo comboio
quando todas as portas estão fechadas. Ela enganou-se. Ficoudesesperada. Ao que parece, ele soltou uma gargalhada edesconfioquefoiumtantogrosseiro.Coitada!Eladesculpou-se:“Enganei-me, senhor. Tenho horror de me enganar." E elerespondeu:“Jáestámuitovelha.”
Constantinoabafouumarisada,avelhaamericanafulminou-ocomumolhar.
–Eraummau tipo – disse ela. –Dizer isso auma senhora!Nãosedeverirdestascoisas!
Constantinoapressou-seapedirdesculpas.– Ouviu algum ruído no camarote de Mr. Ratchett? –
PerguntouPoirot.–Bem...istoé.–Quequerdizer,minhasenhora?– Bem... – A americana calou-se um instante, depois
acrescentou:–Eleroncava.–Ah!Sim?–Terrivelmente!Nanoiteanterior,nãomedeixaradormir.– Não o ouviu roncar, depois de ver o homem no seu
camarote?–Comoseriapossível,senhorPoirot,seeleestavamorto?–Ah!Éverdade–concordouodetective,visivelmenteconfuso.
E acrescentou: – Lembra-se do caso Armstrong, senhoraHubbard?
– Sim, naturalmente. E o criminoso conseguiu escapar!Quiseratê-lonasminhasmãos!
–Nãoescapou.Estámorto.Morreuestanoite.– Não quererá dizer... – E a senhora, muito excitada, quase
chegoualevantar-se.–Issomesmo.Ratchetteraocriminoso.–Ah!Quemopoderia imaginar?Vouescreveràminha filha.
Não lhedisse,ontemànoite,queele tinhaumacaradiabólica?Eraverdade!Aminhafilhasemprediz:"Quandoamãetemumasuspeita,podemapostarqueécerta.”
– Conhecia algum membro da família Armstrong, minhasenhora?
– Não. Eles viviam num círculo de relações muito restrito.Porém,ouvidizerqueMrs.Armstrongeraadorávelequeomaridoaidolatrava.
–Bem.Asenhoraauxiliou-nosmuito...imensamente.Nãonosquerdaroseunomeporextenso?
–Semdúvida.CarolineMartaHubbard.–Querescreveroseuendereçoaqui?–Aamericanaobedeceu,
continuando,porém,afalar.– Nunca imaginei semelhante coisa. Cassetti neste comboio!
Eudesconfiavadessehomem,nãoéverdade,senhorPoirot?–Éverdade,minhasenhora.Escute!Trazacasoumquimono
desedaescarlate?– Misericórdia! Que pergunta indiscreta! Não tenho, não!
Trouxe dois roupões... um de flanela cor-de-rosa, próprio paraumaviagempormar,eoutroqueaminhafilhamedeu...umdesedacordepúrpura.Mas,quelhepodeadiantaracordosmeusroupões?
–Minhasenhora,umapessoadequimonoescarlateentrou,nanoitepassada,noseucamaroteounodeRatchett.Comomuitobemdiz,éfáciloenganoquandotodasasportasestãofechadas.
–Ninguémentrounomeucamarotedequimonovermelho.–EntãofoinodeRatchett.Mrs.Hubbardapertouoslábiose
dissecomarsombrio:–Issonãomesurpreende.Poirotagitou-se.–Ouviualgumavozdemulhernocamarotecontíguo?–Não sei comopode imaginar isso, senhor Poirot!Não ouvi!
Bom...Vamosver...Creioqueouvi.– Entretanto afirmou, há pouco, que só ouvira Ratchett
roncar.
–Eéverdade.Eleroncoupartedotempo.Quantoaoresto...–Mrs.a Hubbard corou levemente. – Não gosto de falar nesseassunto...
–Aquehorasouviuessavozdemulher?–Nãolheseidizer.Emcertomomento,acordeieouviumavoz
feminina.Nãomecustouperceberdondeprovinhaepensei:“Nãomeenganeiarespeitodessetipo!”Torneiaadormecerejuroquenão teria dito semelhante coisa a três cavalheiros se, por assimdizer,ossenhoresnãomeobrigassemafalar.
–Foiantesdedarcomohomemnoseucamarote?–De novo amesma pergunta? Julga que ele poderia falar a
umamulher,depoisdemorto?–Desculpe.Asenhoradevejulgar-mebemtolo!–Calculoquedeveandartonto.Nãopossocompreendercomo
essemonstrodoCassetti...Aminhafilhadirá...Poirot levou habilmente a velha dama a arrumar amaleta e
acompanhou-aatéàporta.Nolimiar,disse-lhe:– A senhora perdeu um lenço. A americana viu o lenço de
cambraiaqueodetectivelheestendia.–Nãoémeu,senhorPoirot.Tenhoomeuaqui.–Desculpe.Penseiquefosse,porcausadestainicialH...– Curioso! Porém, não é meu. Os meus trazem as iniciais
C.M.H.,esãograndes,enãotraposcarosdeParis.Dequeserveumlençodesses?
Nenhum dos três homens replicou e Mrs.a Hubbard saiu,triunfante.
CapítuloV
ODEPOIMENTODADAMASUECA
Bouc examinava o botão que a velha americana deixara namesa.
–Nãopossoexplicaroaparecimentodestebotão.Quererádizerque Pierre Michel está envolvido nisto? – Disse ele. Após brevepausa,vendoquePoirotnãorespondia,perguntou-lhe:–Quetemadizer,meuamigo?
– Esse botão sugere muitas possibilidades – disse Poirot,pensativo.–Antesdediscutirmosodepoimentoqueacabamosdeouvir,interroguemosapassageirasueca.
Poirotremexeunapilhadepassaportesquetinhadiantedesi.–Ah!Aquiestá!GretaOhlsson,quarentaenoveanos.Boucdeuordemaoempregadodovagão-restauranteparaque
chamassem a senhora sueca e, pouco depois, a senhora decabelos amarelados e rostomeigo de carneiro, apareceu.Deitouatravés dos óculos um rápido olhar a Poirot, mas aparentavacalma.
O interrogatório desenrolou-se em francês, idioma que elaconheciamuitobem.Poirotpediu-lheonome,aidade,oendereçoe depois a profissão. A sueca respondeu-lhe que dirigia umaescolamissionáriapertodeIstambul.Eraenfermeira.
–Decertojásabeoqueaconteceuestanoite.– Naturalmente. Foi horrível! A senhora americana disse-me
queocriminosoestavanocamarotedela.–Ouvidizerquefoiasenhoritaquemviuavítimapelaúltima
vez.– Não sei. É provável. Abri a porta dele por engano. Fiquei
muitoenvergonhada.Foiumenganolamentável.–Viu-o,então?–Sim.Eleestavaaler.Desculpei-meesaílogo.–Eledisse-lhealgumacoisa?–Aenfermeiracorou.–Riu-seedissequalquercoisaquenãoentendibem.– E que fez a senhorita, depois disso? – Indagou Poirot,
mudandodeassunto.– Fui ao camarote da senhora americana e pedi-lhe uma
aspirina.
–Enãoexaminou,apedidodela,seaportadecomunicaçãocomocamarotedeRatchettestavatrancada?
–Sim.–Estava?–Sim,senhor.–Edepois?–Depois,volteiaomeucamarote.Tomeiaaspirinaedeitei-me.–Quehoraseram?–Quandomedeiteifaltavamcincoparaasonze.Seiaocerto,
porqueolheiparaorelógio,antesdeotirar.–Dormiulogo?– Não. Embora melhorasse da dor de cabeça fiquei muito
tempoacordada.–Parouocomboio,antesdasenhoraadormecer?– Creio que não. Parávamos numa estação, creio, quando
comeceiaadormecer.– Era Vincovci, com certeza – observou o detective. E,
apontando a planta, perguntou: – É este o seu camarote,Mademoiselle?
–Éessemesmo.–Temoleitodecimaouodebaixo?–Odebaixo,número10.–Temalgumacompanheira?– Sim, uma jovem inglesa. Muito boa e amável. Vem de
Bagdad.–DepoisqueocomboiosaiudeVincovci,araparigadeixouo
camarote?–Tenhoacertezadequenãosaiu.–Comopodeteracerteza,seestavaadormir.–Tenhoumsonomuitoleve.Acordoaomínimoruído.Seela
descessedacamaeuacordariacomtodaacerteza.–Easenhorita?Saiudocamarote?–Não.Sóestamanhã.–Usaumquimonovermelho,Mademoiselle?–Não,tenhoumroupãomuitocómododetecidoJaeger.–EMissDebenham?Dequecoréoroupãodela?– É de um tecido lilás, comum no Oriente. Poirot assentiu.
Depoiscontinuou,emtomamigável:–Comquefimfazestaviagem?Estáemférias?
–Sim,voltoparacasaapósumgozode férias.Antes,porém,ireiaLausannepassarumasemanacomaminhairmã.
–Quer fazer o favor deme dar o nome e o endereço da suairmã?
– Com todo o prazer. – E, tomando o lápis e papel a suecasatisfezodesejodePoirot.
–JáestevenaAmérica,Mademoiselle?–Não.Estivequasepara irumavez.Deviaacompanharuma
senhoradoente,mas,àúltimahora, fuidispensada.Lamentei-obastante. Os americanos são muito bons. Dão muito dinheiroparafundarescolasehospitais.Sãomuitopráticos.
–Lembra-sedeterouvidofalardocasoArmstrong?– Não... de que se tratava? – Poirot deu-lhe as explicações
indispensáveis.Greta Ohlsson indignou-se; o rolo dos cabelos amarelados
tremia-lhe.–Pareceincrívelquehajanomundosemelhanteindivíduo!É
quasededuvidar.Pobremãe!Lamento-asinceramente.E a boa enfermeira deixou o aposento, comovida e com os
olhos húmidos. Poirot escrevia rapidamente num pedaço depapel.
–Queestáfazendo,meuamigo?–PerguntouBouc.– Mon cher, é meu costume proceder com ordem. Estou
fazendoumaespéciedeesquemadosacontecimentos.Terminandodeescrever,obelgapassouopapelaoamigoque
leu:09h15–OcomboiodeixaBelgrado09h40 Aproximadamente. O criado retira-se do camarote de
Ratchett,depoisdeprepararosoporífero.10H00–MacQueendespede-sedeRatchett.10H40–GretaOhlsson,aúltimapessoaqueviuRatchettvivo,
encontra-oaler.00H10–OcomboiodeixaVincovci.00H30–Ocomboioapanhaumatempestadedeneve.00H37–ChamamdocamarotedeRatchett.Ochefedopessoal
acodeededentrorespondem-lhe:"Nãoénada;enganei-me."01H17 Aproximadamente – A Sr.a Hubbard julga ver um
homemnoseucamaroteechamaochefedopessoal.Terminada a leitura, Bouc fez um sinal de aprovação e
observou:–Estámuitobem!– Não há nisso nada que lhe pareça estranho? – Perguntou
Poirot.– Não, tudo está muito claro. É evidente que o crime foi
praticado à uma hora e quinze. O relógio nos mostra e odepoimento de Mrs. Hubbard confirma-o. Tenho uma ideia,quanto à identidade do criminoso. Desconfio desse italianocorpulento. Ele vem da América... de Chicago... e lembre-se dequea facaéaarmados italianosequeavítimafoiapunhaladanãoumaesimváriasvezes.
–Éverdade.– Eis, sem dúvida, a solução do mistério. Talvez que esse
homem estivesse implicado com Ratchett no caso Armstrong.Cassettiétambémnomeitaliano.ProvavelmenteRatchettlogrouo outro e este o perseguiu, escreveu-lhe cartas ameaçadoras efinalmentevingou-sedessemodo.Ébempossível.
Poirotmeneouacabeçaemardedúvida.–Nãoétãosimplescomoparece–ponderouele.– Tenho a certeza de que é assim – insistiu Bouc, cada vez
maisencantadocomasuaopinião.–Quedisse,então,ocriadocomdordedentes?Nãojurouque
oitalianonãosaíradocamarote?–Eisadificuldade!–Poirotpiscouosolhos.– De fato, isto aborrece. Infelizmente para o senhor e
felizmenteparaonossoamigoitaliano,ocriadodeRatchetttinhadordedentes.
– Tudo está esclarecido – Afirmou Bouc, com certezainabalável.Poirottornouamenearacabeçaemurmurou:
–Nãoétãosimplesassim!
CapítuloVI
ODEPOIMENTODAPRINCESARUSSA
–VejamosoqueoPierreMichelsabedizerdestebotão.Ochefedopessoalfoichamadonovamente.Entrando,deitou
aospresentesumolharinterrogador.Boucpigarreou.– Michel – disse ele – eis um botão do seu uniforme,
encontrado no camarote da senhora americana.Que sabe dizerdisto?
Oempregadolevoumaquinalmenteamãoàjaqueta.–Nãoperdinenhumbotão–disseele.–Devehaverengano.–Éestranho!–Nadapossoadiantar,senhordirector.Apesardesurpreso,o
funcionárionãomostravanenhumembaraçoouconfusão.Boucprosseguiu:
– Dadas as circunstâncias em que se encontrou este botão,talvez pertença ao homem que estava no camarote de Mrs.Hubbard,estanoite,quandoelatocouacampainha.
–Masnãohavianinguémali!Mrs.Hubbarddevetersonhado.–Elanãopodiasonharsemelhantecoisa,Michel.Oassassino
doMr.Ratchettfugiupelocamarotedelaeperdeuestebotão.A estas palavras do director, que o atingiam directamente,
Michelmanifestouviolentaagitação.– Não é verdade! Não! – Bradou ele. – Acusam-me do crime!
Eu? Estou inocente! Absolutamente inocente! Porque havia dematarumhomemquenuncavi?
–Ondeestava,quandoMrs.Hubbardochamou?– Já lhe disse. Estava no outro vagão conversando com um
colega.–Mandareichamaressehomem.–Poisbem,Monsieur!Façaisso!Peço-oporfavor!Chamado,ochefedovagãoconfirmoulogoasdeclaraçõesde
Michel, acrescentando que o seu colega do vagão de Bucarestetambém estava presente. Todos três comentavam a situação,criada pela tormenta de neve. Ao fim de dez minutos, PierreMichel julgara ouvir uma chamada. Abrindo as portas decomunicaçãocomosoutrosvagões,todostrêstinhamouvidosoarcominsistênciaumacampainha.Michelcorreraaatender.
–Comovê,nãosouculpado–disseMichel,ansioso.–Comoexplicaoaparecimentodestebotão?–Nãosei.Éummistério.Nãoperdinenhumbotão.Osoutros
dois empregados também afirmaram não ter perdido nenhum.Demais,nenhumdelesentraranocamarotedeMrs.Hubbard.
–Sossegue,Michel–disseBouc–elembre-sedomomentoemquefoiatenderMrs.Hubbard.Encontroualguémnocorredor?
–Não,senhor.–Viualguémafastar-senoutradirecção?–Não,senhor.–Éestranho!–PonderouBouc.– Não tanto – replicou o detective. – É questão de tempo.
Acordando, Mrs. Hubbard deu com um estranho no camarote.Durante um ou dois minutos, ficou paralisada e de olhosfechados. Evidentemente isso bastou para que o homem seescapulisse pelo corredor. Só então ela tocou a campainha. Ochefe do pessoal não atendeu logo. Ouviu apenas a terceira ouquartachamada.Houvetemposuficientepara...
–Paraquê?Paraquê,meucaro?Lembre-sedequeocomboioestácompletamentecercadopelaneve.
–Haviaduassaídasparaonossomisteriosoassassino–dissePoirot lentamente.–Entrarnumdosvários toaletesounumdoscamarotes.
–Estavamtodosocupados.–Defato.– Quer dizer então que ele entrou no próprio camarote? –
Poirotanuiu.– Pode ser, pode ser. – Repetiu Bouc. – Durante esses dez
minutosdeausênciadochefedopessoal,oassassinosaiudoseucamaroteeentrounodeRatchett,matouoamericano,trancouepôsocadeadonaporta,invadiuocamarotedasenhoraHubbardevoltou,sãoesalvo,aoseucamarote,antesquechegasseochefedopessoal.
–Não é tão simples comoparece,meuamigo –murmurouodetective.–Onossoamigo,doutorConstantino,lhediráamesmacoisa.
Comumgesto,Boucdispensouostrêsempregados.–Falta-nosainda interrogaroitopassageiros–dissePoirot.–
Cinco da primeira classe: princesa Dragomiroff, Conde e
CondessaAndrenyi,CoronelArbuthnoteMr.Hardman,etrêsdasegunda classe: Miss Debenham, António Foscarelli e a dama-decompanhiaalemã,FrauleinSchmidt.
–Quemseráoprimeiro?Oitaliano?– Não quer largar o italiano! Não, começaremos pelo alto da
árvore.Talvezaprincesasedigneconceder-nosalgunsminutosdoseutempo.Chame-a,Michel.
–Oui,Monsieur–replicouofrancês,enquantoiasaindo.–Diga-lhequepoderáreceber-nosnocamarote,sequiser.Não
precisateroincomododeviratéaqui–recomendouBouc.MasaprincesaDragomiroffdeclinouessaoferta.Apresentou-
senovagão-restaurantee,cumprimentandocomumleveaceno,sentou-se diante de Poirot. A dama tinha o rosto ainda maisamareladodoquenavéspera.Erafeia,defato,contudo,osseusolhos negros e imperiosos, brilhantes como pedras preciosas,revelavam uma energia latente e um poder intelectual que sepoderia fazer sentir. A sua voz era profunda, clara e um tantoestridente.
– Não precisam desculpar-se, senhores – disse ela,interrompendoa fraseobsequiosadeBouc.–Seiquehouveumassassinato. Naturalmente precisam interrogar todos ospassageiros.Estouprontaaajudá-losnoquepuder.
–Émuitabondadesua,Madame–dissePoirot.–Demodonenhum.Éumdever.Quedesejasaberdemim?– O seu nome de baptismo e o endereço, Madame. Talvez
prefira escrevê-los? Poirot estendeu uma folha de papel, que aprincesarepeliu.
– Pode tomar nota – disse ela. – Não é difícil... NatáliaDragomiroff,AvenidaKléber,17,Paris.
–VemdeConstantinopla,Madame?– Sim. Estive na Embaixada austríaca. Acompanha-me uma
damadecompanhia.–Querterabondadedemerelataroquefeznanoitepassada,
depoisdojantar?–Comprazer.Enquantojantava,pediaochefedopessoaldo
comboioquemefizesseacama.Deitei-melogodepoisdojantar.Liatéàsonzehoraseapagueialuz.Nãopodiadormir,porcausade umas dores reumáticas de que sofro. Cerca da uma hora,chamei a minha dama de companhia. Ela fez-me algumas
massagenseleuemvozaltaatéqueadormeci.Nãoseidizeraquehoraselasaiu.Talvezmeiahoradepois.
–Ocomboiojáhaviaparado?–Sim.–Nadaouviudeestranho,duranteessetempo,Madame?–Nada.–Comosechamaasuadamadecompanhia?–HildegardeSchmidt.–Hámuitotempoqueaserve?–Háquinzeanos.–Considera-apessoadeconfiança?– De absoluta confiança. Nasceu numa propriedade de meu
marido,naAlemanha.– Já esteve na América, Madame? – À súbita mudança de
assunto,avelhadamafranziuassobrancelhas.–Muitasvezes.– Conheceu uma família Armstrong, à qual ocorreu uma
tragédia?–Eramamigosmeus.–ConheceuentãoocoronelArmstrong?– Ele, muito pouco. Porém, Sónia Armstrong era minha
afilhada. Fui amiga damãe, a actriz LindaArden. LindaArdeneraumgénio,umadasmaiores trágicasdomundo.NinguémaigualavaemLadyMacbethouMagda.Eunãosóaadmirava,masrelacionava-mecomela.
–Jámorreuessasenhora?– Não. Vive, mas retirou-se completamente do teatro. O seu
estadodesaúdeobriga-aapassaramaiorpartedotempodeitadanumsofá.
–Elatemoutrafilha,segundocreio.–Sim,muitomaisjovemdoqueMrs.Armstrong.–Viva?–Certamente.–Ondeseencontra?–Avelhaprincesadeitouaodetectiveum
olharpenetrante.– Gostaria de saber o motivo destas perguntas. Que relação
têmelascomocrimeocorridonestecomboio?–Aseguinte,Madame:osenhorRatchetteraoautordorapto
edamortedapequenaArmstrong.
– Ah! – A princesa, muito emproada, tornou a franzir assobrancelhas.–Então,ameuver,estecrimeéumacontecimentomilagroso.Desculpeomeupontodevista.
–Émuitonatural,Madame.E,agora,voltemosàperguntaquelhefizhápouco.OndeestáafilhamaisjovemdeLindaArden,airmãdeMrs.Armstrong?
– Francamente, não sei. Perdi de vista a segunda filha daminha amiga. Parece-me que casou há poucos anos com uminglês e foi para Inglaterra. Não me lembro agora o nome domarido.
Depoisdeumminutodesilêncio,avelhadamacontinuou:–Desejammaisalgumacoisa?–Umasó,Madame,edecaráctermuitopessoal:dequecoréo
seuroupão?Aprincesafranziuassobrancelhas.–Suponhoque temrazõespara fazersemelhantepergunta–
disseela.–Omeuroupãoédesedaazul.–Basta,Madame.Fico-lhemuitogratopelaprestezacomque
respondeuàsminhasperguntas.Aprincesafezumgestocomamãoaneladaelevantou-se.Os
três homens imitaram-na. Detendo-se um instante, elaperguntou:
– Queira desculpar, senhor, mas como se chama? A suafisionomianãomeédesconhecida.
–HerculePoirot...àssuasordens,Madame.–Hercule Poirot! – Repetiu a princesa, depois de uma breve
pausa.–Sim.Lembro-meagora.Éodestino!Eafastou-se,comarigidezhabitual.–Eisumagrandefidalga–comentouBouc.–Quepensadela,
meu amigo? Hercule Poirot limitou-se a menear a cabeça ereplicou:
–Gostariadesaberoqueentendeelapordestino.
CapítuloVII
ODEPOIMENTODOCONDEEDACONDESSAANDRENYI
Convocaram-se em seguida oConde e aCondessaAndrenyi.Entretanto, o conde apresentou-se sozinho. Era inegavelmenteumbelohomem,deummetroeoitentadealtura,ombroslargosecorpoesbelto.Vestidoàinglesa,poderiapassarporinglês,senãofosseolongobigodeeumtraçoindefinívelnasmaçãsdorosto.
–Àssuasordens–disseele.–Emquelhespossoserútil?–Compreenderá,Monsieur–explicouPoirot–que,àvistado
queocorreu,mevejoobrigadoainterrogarospassageiros.– Perfeitamente – concordou o conde. – Compreendo. Receio
apenas que eu e minha esposa pouco lhe possamos adiantar.Dormíamosenadaouvimos...
–Sabedaidentidadedavítima?– Ouvi dizer que era americano... Um homem francamente
antipático.Sentava-seàquelamesa.–Ecomumaceno,ocondeindicouamesadeRatchetteMacQueen.
–Sim,éisso;sabeonomedomorto?– Não – replicou o conde, visivelmente intrigado. Depois
acrescentou: – Se quiser conhecer-lhe o nome, certamente oencontraránopassaporte.
–NopassaporteháodeRatchett–dissePoirot.–Porém,essenão passa de umnome falso. Ratchett era Cassetti, o autor doraptodeumacriançanaAmérica,umcrimecélebre.
Falando, o detective observava atentamente o conde. Este,porém,nãomanifestousurpresa,apenasarregalouumpoucoosolhos.
–Ah!–Disseele.–Issocertamenteconcorreráparaesclarecerocaso.AAméricaéumpaísextraordinário.
–Acasojáestevelá?–EstiveumanoemWashington.–ConheceuporventuraafamíliaArmstrong?–Armstrong... Armstrong... é difícil lembrar-me... conhece-se
tantagente!Eocondesorriu,encolhendoosombros.–Mas, voltemos ao assunto, senhores – disse ele. – Em que
maislhespossoserútil?–Aquehorasseretirouontem,senhorconde?
Poirot relanceou o olhar pela planta. Os condes Andrenyiocupavamdoiscamarotescontíguos,12e13.
–Tínhamosumdoscamarotesprontosparaanoite,desdeahora do jantar. Terminado este, passamos ao outrocompartimento,ondeficamosalgumtempo...
–Emqualdeles?– No número 13. Jogamos... Cerca das onze horas, minha
esposaretirou-se.Ochefedopessoalpreparouomeucamaroteeeutambémmedeitei.Dormiatéaoamanhecer.
–Nãonotouaparadadocomboio?–Sóestamanhã.– E a senhora condessa? – O conde sorriu. – Em viagem,
minha esposa toma sempre um soporífero. Assim fez ontem. –Houveumapausa.–Lamentonãoospoderauxiliar–concluiuoconde.Poirotapresentou-lhecanetaepapel.
–Obrigado,senhorconde.Apenasmaisumaformalidade,querdeixar-meoseunomeeendereço?
Ofidalgotraçou-oslentaecuidadosamente.– Escrevi o melhor possível para o senhor – disse ele
amavelmente. – O nome daminha residência de verão é difícil,paraquemnãoconhecealíngua.
E,devolvendoopapelaPoirot,levantou-seeacrescentou:– Parece-me desnecessário o interrogatório deminha esposa.
Elanãolhepoderádizermaisdoqueisto.NosolhosdePoirotbrilhouumrápidoclarão.– Sem dúvida – replicou ele. – Contudo, desejo dizer duas
palavrasàsenhoracondessa.– Asseguro-lhe que é inútil – insistiu o conde, em tom
autoritário.– Será uma simples formalidade – tornou o detective
amavelmente.–Compreende,porém,queénecessáriaparaomeurelatório.
–Comoquiser.Ocondecederacomrelutância.Comumligeirocumprimento,
deixouvagão.Poirot estendeu amão paraumpassaporte. Este continha o
nome e os títulosdo conde emais a informação: acompanhadopela esposa, Elena Maria, de vinte anos, nome de família:Goldenberg.Umamancha de gordura atestava a negligência de
algumfuncionário.– Um passaporte diplomático! – Observou Bouc. – Sejamos
prudentes.Essagentenadatemquevercomocrime.– Sossegue, mon vieux, serei prudente. É uma simples
formalidade.Mal o detective acabara de falar, a condessa Andrenyi
apareceu,umtantotímidaeextraordinariamenteformosa.–Desejamfalar-me,senhores?– Pura formalidade, Madame – disse Poirot, erguendo-se
cortesmente e indicando à jovem o lugar fronteiro ao seu. –Apenas saber se estanoite viu ou ouviu alguma coisa, quenospossatrazeralgumesclarecimento.
–Nada,senhores.Dormianoitetoda.– Não ouviu, por exemplo, nenhum ruído, no camarote
contíguoaoseu?Asenhoraamericana,queoocupa,tevequaseumacessohistéricoechamouochefedopessoal.
–Nãoouvinada.Tinhatomadoumsoporífero.– Compreendo. Bem, não queremos retê-la mais. Apenas –
acrescentouodetectiveaoverajovemlevantar-serapidamente–maisumapalavra...estespormenores:asuaidade,oseunomedefamília,etc.,sãoexactos?
–Absolutamentecertos.–Entãoqueiraassinarestememorando.A jovemobedeceue
traçoucomletrainclinadaegraciosa:ElenaAndrenyi.–AcompanhouoseumaridoàAmérica,Madame?–Não,senhor.–Replicouela,sorrindoecorandolevemente.–
Aindanãoéramoscasadosnaquelaépoca;casamosháumano.–Ahsim?Obrigado,senhoracondessa.Desculpe:seumarido
fuma?Prontaparasair,ajovemfitouodetective.–Sim,senhor.–Cachimbo?–Não.Sócigarros.–Ah!Obrigado.A condessa hesitou, olhando-o com curiosidade. Tinha uns
lindos olhos negros e amendoados, com longos cílios que lhesombreavamaadorávelpalidezdorosto,lábiosrubros,levementeentreabertos.Eralindaeexótica.
–Porqueperguntaisso?–Madame–ePoirotagitouamão–osdetectivesfazemtodaa
espéciedeperguntas.Porexemplo:dequecoréoseuroupão?Ajovemencarou-oedesatouarir.–Cordetrigo.Émuitoimportante?–Muito,senhoracondessa.– Falo de fato com um detective? – Tornou ela, com
curiosidade.–Àssuasordens,Madame.– Julguei que não houvesse detectives de comboios na
Jugoslávia.AtéchegarmosàItália.–Nãosoujugoslavo,Madame,esimdetectiveinternacional.–PertenceàLigadasNações?–Pertençoaomundo,Madame–replicouobelga,comênfase.
–TrabalhoquasesempreemLondres.Falainglês?–Acrescentounesseidioma.
–Sim,umpouco–replicouajovemcondessa,comumacentoencantador.Poirotinclinou-se.
–Nãoqueremosretê-lamais,Madame.Comovê,nãoeranadadeterrível.
Ajovemsorriu,inclinouacabeçaeretirou-se.–Lindamulher!–ComentouBouc,emtomadmirativo.–Não
nosvaleumuito–Acrescentou,comumsuspiro.–Não,de fato – concordouobelga. –Duaspessoasquenão
viramnemouviramcoisaalguma!–Veremosagoraoitaliano?Odetectivenãoreplicoulogo.Observavaamanchadegordura
nopassaportediplomáticohúngaro.
CapítuloVIII
ODEPOIMENTODOCORONELARBUTHNOT
Voltandoasi comum levesobressalto,Poirotpestanejou,aoencontraroolhardeBouc.
– Ah meu caro amigo – disse ele. – Sabe que me estoutornando o que se chama um snobe? Atenderemos a primeiraclasse,antesdasegunda.AgorainterrogaremosoamávelcoronelArbuthnot.
Comoofrancêsdooficialeranaverdademuitolimitado,Poirotresolveu interrogá-lo em inglês. Informado do nome, idade,endereço e guarnição do coronel, o detective passou aointerrogatório.
–VemdaÍndia,emlicença,comodizemosnós?O coronel, indiferente aos termos que habitualmente
empregam os forasteiros, respondeu com autêntico laconismoinglês:
–Sim.–Porém,nãoveioporviamarítima?–Não!–Porquê?– Por motivos particulares. E ele parecia querer dizer:
“Aprendam,intrometidos!”–VeiodirectamentedaÍndia?Ocoronelreplicousecamente:– Parei uma noite para ver Ur, na Caldeia e três dias em
Bagdad,comumvelhoamigo.– Esteve três dias em Bagdad! Ouvi dizer que a jovemMiss
DebenhamvemigualmentedeBagdad.Encontrou-aali?–Não.Vi-apelaprimeiravez,quandotomamosocomboiode
KirkukparaNissibin.Poirot curvou-se. Tornou-se persuasivo e um pouco mais
estranhodoqueeranecessário.–Vejo-meobrigadoaapelarparaasuagentileza,coronel.Miss
Debenhameosenhorsãoosdoisúnicosinglesesnestecomboio.Tenhodeperguntaracadaumaopiniãoquetemdooutro.
–Procedimentomuitoirregular.–Objectoufriamenteomilitar.– Nem tanto assim. Muito provavelmente, este crime foi
praticadoporumamulher.Avítimarecebeunadamenosdedozepunhaladas.Oprópriochefedopessoaldocomboiodisse:"Éumamulher!"Poisbem:qualéaminhaprimeiraobrigação?Observartodasas senhoraspresentesneste comboio.Entretanto, édifíciljulgaruma inglesa.Sãomuito reservadas.Apeloparaosenhor,coronel, em nome da justiça. Que espécie de pessoa é MissDebenham?Quesabearespeitodela?
– Miss Debenham – replicou o coronel com calor – éabsolutamenterespeitável!
– Ah! – Disse Poirot, aparentemente muito satisfeito. –Portanto,nãolheparecequeelapossaestarenvolvidanocrime?
–Umaideiaabsurda–afirmouocoronel.–Essehomemera-lhecompletamenteestranho:elanuncaovira.
–Foielaqueodisse?– Sim. Comentou também o aspecto antipático desse
americano.Seumamulherestiverimplicadanisso,comopensa,semfundamento,masapenasporhipótese,asseguro-lhequenãoéMissDebenham.
–Osenhorexalta-senesteassunto–observouPoirot,comumsorriso.Ocoroneldeitou-lheumolharglacial.
–Nãocompreendo,realmente,oquequerdizer–replicouele.OolhardoinglêspareciaembaraçarPoirot;baixandoosolhos,obelgacomeçouaremexernospapéisquetinhanafrente.
– Tudo isso não tem importância – disse ele. – Sejamospráticosecaminhemosdireitoaos fatos.Temosrazõesparacrerque o crime ocorreu à uma hora e quinze da madrugada. Éformalidadeindispensávelperguntaraospassageirosdocomboiooquefaziamaessahora.
–Perfeitamente.Àumaequinze,euconversavacomo jovemamericano,secretáriodofalecido.
–Ah!Estavanocamarotedeleouelenoseu?–Euestavanodele.–Refere-seaosenhorMacQueen,nãoéverdade?–Exactamente.–Éseuamigoouapenasumconhecido?–Nadadisso,nuncaoviraantesdestaviagem.Conversamos
casualmente ontem e simpatizamosum como outro.Emgeral,nãogostodosamericanosepoucasrelaçõestenhocomeles.
Poirotsorriu,lembrando-sedasrestriçõesdeMacQueenacerca
dosIngleses.– Entretanto gostei desse rapaz. Ele tem certas ideias tolas
acercadaÍndia;odefeitodosamericanoséseremtãoidealistasesentimentais.Bem,eleinteressou-sepeloqueeulhedizia,tenhoquasetrintaanosdepráticanaÍndia.Porminhavez,interessei-me pelo que ele me contou da situação financeira da América.Depois falamos de vários assuntos. E a dado momento vi comsurpresa,nomeurelógio,quefaltavamsóquinzeminutosparaasduas.
–Foientãoquesedespediudoseucompanheiro?–Sim.–Quefezdepois?–Retirei-meparaomeucamarote.–Estavafeitaacama?–Sim.– É o camarote... deixe ver... número 15, o penúltimo, no
fundodocorredor?–Sim.–Ondeestavaochefedopessoal,quandoosenhorvoltouao
camarote?–Noseu lugar.Porsinal,MacQueenchamou-onomomento
emqueeuestavanomeucamarote.–QuedesejavaosenhorMacQueen?–Quelhearrumasseacama,suponho.Aindanãoforafeita.– Agora, Coronel Arbuthnot, peço-lhe que reflicta bem.
EnquantofalavacomMacQueen,viualguémpassarnocorredor?–Muitagente,parece-me.Nãopresteiatenção.– Refiro-me à última hora e meia da sua conversa.
DesembarcouemVincovci?–Sim,porémsóalguns instantes.Faziamuito frio.Embora,
dandograçasaoscéusporencontrarabrigonocomboio,confessoque o sobreaquecimento destes comboios é simplesmenteescandaloso.
Boucsuspirou.– É difícil agradar a todos – disse ele. –Os ingleses querem
todasasjanelasabertas,osoutros,tudofechado.Édifícil,muitodifícil!
Entretanto,nemPoirotnemocoronellhederamatenção.–Agora,Coronel,voltemosatrás–continuouobelgaemtom
animador. – Estava frio fora do comboio. O senhor tornou aembarcar.Sentou-se,fumou...umcigarro...talvezcachimbo...
Poirotcalou-seumsegundo.–EufumavacachimboeMacQueenumcigarro.– O comboio partiu. O senhor fumava o seu cachimbo.
DiscutiasobreaEuropaeomundo.Ashoraspassaram.Muitospassageiros já se tinham retirado. Passou alguém no corredor?Pensebem!...
Arbuthnotfranziuatesta,numesforçoparaselembrar.–Édifícildizer–replicouafinal.–Nãopresteiatenção.–Contudodeveter,porassimdizer,aatençãodosoldadopara
osdetalhes.Ocoroneltornouareflectir,depoismeneouacabeça.– Não sei. Não me lembro de ter visto quem quer que seja
excepto o chefe do pessoal. Espere um instante... uma mulhertambém...segundocreio.
–Viu-a?Eravelha...nova?–Nãoavi.Nãoolhavanessadirecção.Sentiapenasumruídoe
umperfume.–Perfume?Bom?– Bem, um aroma de frutas, explico-me bem? Sente-se a
grandedistância.Lembre-se,porém–acrescentoulogoocoronel–dequeissofoinasprimeirashorasdanoite,e,comoacabadedizer, uma dessas coisas que se notam sem sentir. Em dadomomentodissecomigo:“Perfumefeminino...muitointenso.”Masrepare:sótenhoacertezadeque...Sim.FoidepoisquedeixamosVincovci.
–Porquê?– Porque me lembro de ter desatado a rir, quando a
conversaçãoversavasobreoplanoquinquenaldeStalin.SeiquealembrançadeumamulhermetrouxeraàmemóriaaposiçãodamulhernaRússia.EseiquenãofalamosdaRússia,senãoquasenofimdanossaconversa.
–Nãosepoderiaexplicarmelhor?–Não.Devetersidonaúltimameiahora.–Depoisdocomboioparar?–Sim.Dissotenhoquaseacerteza–anuiuocoronel.–Bem,continuemos.JáestevenaAmérica?–Nunca.Nemdesejoir.–Conheceu,acaso,umCoronelArmstrong?
– Armstrong... Armstrong... conheci dois ou três. Havia umTommy Armstrong,do sexagésimo regimento... É a esse quealude?ESelbyArmstrongmortonoSomme.
– Refiro-me ao Coronel Armstrong, casado com umaamericana,ecujafilhafoiraptadaemorta.
– Ah, sim. Lembro-me de ter lido alguma coisa acerca dessecaso impressionante.Nãome lembrocomo,porém,conheciessecamarada.TobyArmstrong,sim.Bomrapaz.Todosoestimavam.Teveumabrilhantecarreira.
–Ohomemassassinado estanoite foi o autor do rapto e damortedapequenaArmstrong.
Orostodocoroneltornou-sesombrio.–Então, ameuver, esse velho teveoquemerecia.Contudo,
prefeririavê-loenforcadoouelectrocutado.–Entãopreferealeiàvingançaparticular?–Ora, não é cómodo aplicar os processos daCórsega ou da
Máfia– tornouArbuthnot.–Digaoquequiser,umprocessonotribunaléomelhorsistema.
Poirot olhou-o pensativamente, durante uns dois minutos.Depoisdisse:
–Sim.Creioqueosenhorprocederiacomodiz.Bem,coronelArbuthnot,parece-mequenadamaisrestaaperguntar-lhe.Nãose lembra de nenhum acontecimento da noite passada e quepossasersuspeito?
Arbuthnotreflectiu.–Não–dissedepois.–Nada.Anãoser...Ooficialhesitava.–Continue,façaofavor.– Bem, na realidade é coisa insignificante – disse ele muito
devagar.–Mas,comodisse“qualquercoisa"...–Sim,sim.Continue.– Oh! Não é nada. Um simples detalhe. Voltando ao meu
camarote,noteiqueaportacontíguaàminha...aúltima,sabe...–Sim.Onúmero16.– Bom, essa porta não estava fechada. E o passageiro
espreitava furtivamente. Depois fechou-a depressa. Pareceu-meestranho.Étãonatural,penseieu,abriraportaepôracabeçadefora para ver qualquer coisa. Porém, o modo como ele o fez,intrigou-me.
–Sim–dissePoirot,hesitante.
– Disse-lhe que não era nada – desculpou-se Arbuthnot. –Porém,compreendequedemadrugada...,nomaiorsilêncio...ascoisastomamumaspectosinistrodecrimepolicial.Tolices!
Assimdizendo,Arbuthnotlevantou-se.–Sejánãoprecisamdemim...–Obrigado,coronel.O oficial hesitou um instante. O aborrecimento desse
interrogatório,feitoporestrangeiros,desvanecera-se.–QuantoàMissDebenham–disseele,quasecomtimidez.–
Asseguro-lhe que é uma pessoa muito correcta. É uma pukkasahib–E,corandolevemente,omilitarsaiu.
–Quesignificapukkasahib?–PerguntouConstantino,cominteresse.
–Querdizer–explicouodetective–queopaieosirmãosdeMiss Debenham frequentaram o mesmo colégio que o CoronelArbuthnot.
– Ah! – Disse o médico, desapontado. – Então nada que serelacionecomocrime.
Exactamente – confirmou o belga. Em seguida pôs-se areflectir,tamborilandocomosdedosnamesa.
–OcoronelArbuthnotfumacachimbo–disseele.–Encontreino camarote de Ratchett um limpador de cachimbos. Ratchettfumavasócigarros.
–Julgaentão...– É ele o único homem que declarou fumar cachimbo.
Conhecia denome o coronelArmstrong...mas, nestemomento,nãooadmitiadeboavontade.
–Achapossível...?Poirotsacudiuvivamenteacabeça.–Éimpossível...impossívelqueuminglêshonrado,rectoeum
tanto tolo, possa apunhalar doze vezes um inimigo. Não vêem,meusamigos,quetaléimpossível?
–Épurapsicologia–observouBouc.–Ecumprerespeitá-la.Oautordestecrimenãoé,decerto,o
CoronelArbuthnot.Masprossigamosoinquérito.DessavezBoucnãomencionouoitaliano,entretantopensava
nele.
CapítuloIX
ODEPOIMENTODEMR.HARDMAN
O último passageiro da primeira classe interrogado, Mr.Hardman, era o americano robusto e espalhafatoso. Usava umternodetecidogrosso,camisacor-de-rosa,umagravatadecoresberrantes e entrou no vagão mastigando qualquer coisa. Umaexpressãodebomhumoriluminava-lheorostolargo,grosseiroevulgar.
– Bom dia, cavalheiros – disse ele. – Que posso fazer pelossenhores?
–Ouviufalardocrime,Mr.Hardman?–Naturalmente–replicouele,disfarçandoconvenientementeo
quemastigava.– Somos obrigados a interrogar todos os passageiros do
comboio.–Estouplenamentedeacordo.Calculoqueéoúnicomeiode
conseguiralgumacoisa.Poirotconsultouopassaportequetinhadiantedesi.–OsenhoréCyrusBethmanHardman,cidadãoamericanode
quarenta e um anos, caixeiro-viajante de fitas de máquinas deescrever?
–Eumesmo.–ViajadeIstambulparaParis?–Sim.–Porquemotivo?–Negócios.–Viajasempreemprimeiraclasse,Mr.Hardman?– Sim, senhor. As despesas das minhas viagens correm por
contadafirma.–Eoamericanopiscouoolho.–Agora,Mr.Hardman,passemosaosacontecimentosdanoite
passada.Hardmananuiu.–Quepodeadiantaraesserespeito?–Exactamentenada.–Ah.Épena!Querdizer-nos,Mr.Hardman, que fez ontem,
depoisdo jantar?Pelaprimeira vez oamericanonão respondeulogo.Masfinalmentedisse:
– Desculpem-me, cavalheiros, mas quem são os senhores?
Queiraminformar-me.–Este éMonsieurBouc, director daCompagniedesWagons
Lits.Esteoutrocavalheiroéomédicoqueexaminouocadáver.–Eosenhor?–HerculePoirot.Encarregadodedirigiroinquérito.– Conheço-o de nome – disse Hardman. – Começo a
compreender–acrescentou,depoisdebrevepausa.– Então explique-nos o que sabe – replicou secamente o
detective.–Eudiriamuitacoisa,sesoubesse.Porémnadasei.Contudo,
deveria saber alguma coisa. Eis o que me preocupa. Deveriasaber.
–Explique-se,senhorHardman.Oamericanosuspirou,removeuoquemastigavaemexeunum
dos bolsos. Aomesmo tempo, toda a sua pessoa pareceu sofreruma mudança. Perdeu o jeito espalhafatoso e tornou-se maisnatural,atéavoznasalmudoudetimbre.
–Essepassaporteé falso–começouele.–Aqui temaminhaverdadeiraidentidade.
Poirot examinou o cartão que o outro lhe estendia. Boucespreitava-lheporcimadoombro.
CYRUSB.HARDMANAgênciadeDetectivesMcNeilNovaIorquePoirotconheciaonome,eraodeumadasprincipaisagências
particularesdeNovaIorque.–Agora,Mr.Hardman–disseobelga–explique-nososentido
disto.–Comprazer.Oqueháéoseguinte:vimàEuropa,noencalço
deumpardevigaristasquenadatêmcomestecaso.Terminadoomeuserviço,emIstambul,telegrafeiaochefe,pedindoinstruçõesparaavoltaejáestavanocaminhodavelhaNovaIorque,quandorecebi isto.–EoamericanoexibiuumacartacomocarimbodoHotelTokatlian,naqualselia:
Carosenhor:Foi-meindicadocomoumdosbonsdetectivesdaAgênciaMc
Neil.Queiravirfalarcomigohojeaohotel,àsquatrohoras.”AassinaturaeradeS.E.Ratchett.–Então?
–FuiàhoramarcadaeosenhorRatchettpôs-meaocorrentedasituação.Mostrou-meummaçodecartasquerecebera.
–Pareceu-lhealarmado?– Embora disfarçasse, estava bem preocupado. Fez-me uma
proposta.Eupartiria com ele nomesmo comboio e velaria pelasuasegurança.Então, cavalheiros,aceitei,masalguém iludiuaminhavigilância.Estoumuitoaborrecido.Nãoémuitoagradávelparamim.
–Receberaalgumainstruçãoacercadoquedeviafazer?–Naturalmente!OsenhorRatchetttinhaumplanopreparado.
Queriaqueeuocupasseocamarotecontíguoaodele,oquenãofoipossível.Oúnicolugarquepudeobterfoinonúmero16eamuitocusto.Ochefedopessoalpretendiaguardá-loparaoseuusoexclusivo.Mas,afinal,oinconvenientenãoeragrande;noteique o número 16me oferecia um óptimo ponto de observação.AdiantedoVagão-dormitório,háapenasestevagãocujaportaétrancadaànoite.Oúnicomeiodealguémseintroduzirnovagão-dormitório era, pois, a porta do fundo e, nesse caso, quementrasseteriadepassardiantedomeucamarote.
–Temideiadoaspectodoassassinoeventual?–SópeladescriçãoquemefezMr.Ratchett.–Ah!Ecomoera?Ostrêshomensmostraramgrandeinteresse.– Um homenzinho moreno, de voz estridente, segundo me
disseovelhocontinuouHardman.–Naopiniãodele,oatentadonãosedarianaprimeiranoite,masnasegundaounaterceira.
–Logo,elesabiaalgumacoisa–observouBouc.–Sabiamaisdoquedisseaosecretário–concordouPoirot.–
Contou-lhealgumacoisaarespeitodesseinimigo,Mr.Hardman?Disse-lhe,porexemplo,porqueeraameaçado?
– Não; explicou-me apenas que o homem o odiava e queriamatá-lo.
–Umhomenzinhomoreno,devozestridente–repetiuobelgapensativo. Depois, deitando ao colega um olhar penetrante,perguntou:
–Sabiaquemeraessehomem?–Quem,Mr.Poirot?–Ratchett.Nãooreconheceu?–Nãocompreendo.
– Ratchett era Cassetti, o criminoso do caso Armstrong.Hardmansoltouumassobioeexclamou:
–Quesurpresa!Sim,senhor!Nãooreconheci,não!Quandosedeu esse caso, eu estava no Oeste. É possível que tenha vistofotografiasdeCassettinaimprensa,porém,eunãoreconheceriaaminha mãe, num retrato de jornal. Agora não estranho queRatchettfosseperseguido!
– Sabe de alguém que, relacionado com o caso Armstrong,respondaaessessinais:baixo,moreno,vozestridente?
Hardmanreflectiu.–Édifícildizer–tornouafinal.–Quasetodososinteressados
morreram.–Lembra-sedajovemquesesuicidou?– Naturalmente. É uma ideia. Talvez tivesse algum parente.
Nãoesqueçamos,porém,queocasoArmstrongnão foi oúnico.Cassetti exerceu por certo tempo a sua actividade. Não noslimitemosaencararsóumcaso.
–Sim,masnós temos razõesparacrerqueopresente crimeestáligadoaocasoArmstrong.
Hardman fitou no colega um olhar indagador; como Poirotnadadissesse,oamericanomeneouacabeça.
– Nãome lembro de ninguém interessado neste crime e quecorrespondaaossinaisdadospelomorto.Nãotrateidessecasoepoucoseiaesserespeito.
–Bem,continue,Mr.Hardman.– Pouco há que dizer. Dormi de dia e fui acordado pelo
despertador,aoescurecer.Nadadesuspeitosucedeunaprimeiranoite nem na segunda, que eu saiba. Eu entreabrira a porta eespreitavapelafresta.Nenhumdesconhecidopassounocorredor.
–Temacerteza,senhorHardman?– Plena certeza. Ninguém entrou no comboio nem veio dos
outrosvagões.Possojurar.–Podiaverochefedopessoalnoseucamarote?–Sim.Eleocupavaumbanco,quasedefronteàportadomeu
camarote.–Viu-osair,depoisqueocomboioparouemVincovci?– Na última estação? Sim, foi atender a diversas chamadas,
quandoocomboioparoudefinitivamente.Depoispassoucercadequinze minutos noutro vagão. Uma campainha soou com
insistênciaeelevoltou,correndo.Saíparaocorredorparaveroquehavia...estavaumtantoassustado,compreendeporquê?Masera apenas a senhora americana, que se queixou de qualquercoisa.Ri-mebastante.Ochefedopessoalvoltouentãoàprocurade água mineral, não sei para quem. Mais tarde, foi à outraextremidade do corredor, arrumar a cama de um passageiro.Depois,creioquenãosemexeuatéàscincohorasdamanhã.
–Temacerteza?–Issonãopossodizer.Éprovávelqueeletenhasaídooutras
vezes.Poirot anuiu e, estendendo maquinalmente a mão para os
papéis dispersos na mesa, tornou a apanhar o cartão do seucolega.
–Tenhaabondadedecompletaronomequeestásónainicial.–Ooutroobedeceu.
– Não há quem possa confirmar a sua identidade, não éverdade,Mr.Hardman?
– Neste comboio propriamente, não. Excepto o jovemMacQueen.Conheço-obemdoescritóriodopai,emNovaIorque,mas não é certo que ele se lembre de mim. O senhor precisaesperar que a neve se derreta, para telegrafar a Nova Iorque.Porém, é a verdade, não estou a inventar. Bem, até logo,cavalheiros.Prazeremconhecê-lo,MonsieurPoirot.
Poirotestendeu-lheacigarreira.–Preferetalvezocachimbo?– Não. – O americano levantou-se e saiu. Os três homens
entreolharam-se.–Julgaqueeledisseaverdade?–PerguntouConstantino.– Sim. Conheço o tipo. Aliás, seria uma mentira fácil de
descobrir.–Deu-nosumindíciovalioso–atalhouBouc.–Defato.– Um homenzinho moreno, de voz estridente – murmurou
Bouc,pensativo.–Ossinaisnãoseaplicamanenhumpassageiro–concluiu
Poirot.
CapítuloX
ODEPOIMENTODOITALIANO
– Agora – disse Poirot, piscando o olho – vamos satisfazer osenhorBouceouviroitaliano.
AntónioFoscarellientrounovagão-restaurante,comumpassorápido de felino. O seu rosto alegre, moreno e corado, eragenuinamente italiano. Falava francês correntemente, com umleveacento.
–Chama-seAntónioFoscarelli?–Sim,senhor.–É, pelo que vejo, naturalizado cidadão americano.O rapaz
fezumacareta.–Sou.Questãodenegócios.–ÉagentedacompanhiaFord?–Sim,comovê...Oitalianoestendeu-senumalongaexplicação,informandoos
trêshomensdosseusnegócioseviagens,daopiniãoquefaziadosEstadosUnidosedenumerosospaíseseuropeus.Nãoerahomemdequemsepudesseobterinformações,poisdivagavafacilmente.Oseurostojovialiluminou-se,quando,comumúltimogesto,elesecalou,enxugandoatestacomolenço.
– Como vêem – concluiu – faço grandes negócios. Soumoderno.Entendodoassunto.
–EsteveentãonosEstadosUnidosestesúltimosdezanos?– Sim, Monsieur. Ah! Lembro-me do dia em que embarquei
paraaAméricatãolonge!Minhamãe,minhairmãzinha...Poirotcortou-lheofiodasrecordações.–DuranteasuaestadaemNovaIorque,encontroualgumavez
Mr.Ratchett?– Nunca. Mas conheço o tipo. Ah! Sim! – E o italiano fez
estalar significativamente os dedos. – Muito respeitável, bemtrajado, mas por baixo tudo vai mal. Por experiência, poderiadizer que era um vigarista. Dou-lhe a minha opinião pelo quevale.
–Muitoacertada–replicouodetective.–RatchetteraCassetti,oraptordecrianças.
– Que lhe disse eu? Aprendi a ler nas fisionomias. É
necessário.NaAméricaéoúnicomeiodeaprenderanegociar.–Lembra-sedocasoArmstrong?–Não.Donomesim.Eraumamenina...umacriança...nãoé
verdade?–De fato,umcasomuito trágico.O italiano foi oprimeiroa
discordardessepontodevista.– Coisas que acontecem numa grande civilização, como a
americana–comentouele,filosoficamente.Poirotinterrompeu-o:–Encontrou,poracaso,algummembrodafamíliaArmstrong?–Não.Creioquenão.Édifícildedizer.Mostrar-lhe-eialguns
algarismos.Noanopassadovendi...–Nãoseafastedoassunto,porfavor.–Milperdões–disseoitaliano,juntandoasmãosnumgesto
dedesculpa.–Diga-meoquefezontem,apósojantar.– Com prazer. Fiquei neste vagão, quanto pude. É tão
divertido! Conversei com o americano, meu vizinho de mesa.Vendefitasdemáquinadeescrever.Depoisfuiaomeucamarote.Estavavazio.OmiserávelJohnBull,queopartilhacomigo,foraatenderopatrão.Afinalvoltoudecaraamarrada,comosempre.Ele nunca fala... diz apenas “sim” e “não”. Que raça triste, ainglesa!Nadasimpática.Elesentou-seaumcanto,aler.Depois,ochefedopessoalveioarrumarasnossascamas.
–Números4e5.–Murmurouobelga.–Exactamente, oúltimo camarote.Omeu leito é o de cima.
Deitei-me,fumandoelendo.Oinglêstinhadordedentes,aoqueparece. Aplicou um remédio de cheiro forte. Depois deitou-se agemer.Mais tardeadormeci.Semprequeacordava, ouvia-lhe osgemidos.
–Nãosabeseelesaiudocamaroteduranteanoite?–Creio quenão.Eu ouviria... A luz do corredor... E sabe, a
gente acorda automaticamente, pensando que é a alfândega dealgumafronteira.
–Eo inglês?Faloudopatrão?Mostroualgumrancorcontraele?
–Jálhedissequeelenãofala.Nãoésimpático.Umpeixe!–Acabadedizerquefumou.Cachimbo,cigarros?–Sócigarros.Poirotofereceu-lheum,orapazaceitou-o.–JáesteveemChicago?–PerguntouBouc.
– Sim. Bonita cidade. Porém conheço melhor Nova Iorque,Washington,Detroit.JáestevenosEstadosUnidos?Não?Deveriair...
Poirotestendeu-lheumafolhadepapel.– Faça o favor de assinar o nome e endereço. O italiano
obedeceu.Depoislevantou-secomumsorrisoamável.–Nadamais quer demim?Bomdia, senhores.QueiraDeus
que nos possamos livrar da neve. Esperam-me em Milão – e,meneandotristementeacabeça,concluiu:–Perdereionegócio.
FoscarellisaiuePoirotdeitouumolharaBouc.–EleestevemuitotemponaAmérica–disseeste–éitalianoe
os italianos usam o punhal e são uns mentirosos! Não gostodeles.
–Está-seaver–dissePoirotcomumsorriso.–Bem,éprovávelque o senhor tenha razão; porém, o certo é que não há provaalgumacontraessehomem.
–Épsicologia?Ositalianosnãocostumamapunhalar?– Admito-o – concordou o detective. – Especialmente se
exaltadosporumaaltercação.Porém,estecrimeédeespéciebemdiversa. Naminha opinião foi muito bem calculado, é fruto delonga reflexão e não, como direi... um crime “latino”. Denunciaantesumcérebrofrioedeliberado,umcérebroanglo-saxão.
Oinvestigadorapanhouosdoisúltimospassaportesedisse:–OuçamosagoraMissDebenham.
CapítuloXI
ODEPOIMENTODEMISSDEBENHAM
Entrandonocarro.Muitoelegante,noseucostumeescuro,deblusa cinzenta, com as ondas macias do cabelo negroperfeitamentearranjadas,aparentavaabsolutacalma.Sentando-sediantedeBoucedePoirot,interrogou-oscomoolhar.
–Chama-seMaryHermioneDebenhametemvinteeseisanos,nãoéverdade?–Começouodetective.
–Sim.–Éinglesa?–Sim.– Quer ter a bondade de escrever neste papel o seu nome e
endereço?Amoçaobedeceu.Tinhaumaletraclaraelegível.–Eagora,quenospodedizeracercadoacontecimentodesta
noite?–Receionãoternadaparadizer.Deitei-meedormi.–Causa-lhemuitopesar,o fatodeseterpraticadoumcrime
nestecomboio?Aestapergunta inesperada,osolhospardosdamoçadilataram-selevemente.
–Nãocompreendo–disseela.–Perguntei-lheumacoisamuitosimples.Repetireiapergunta:
lamentaquesetenhapraticadoumcrimenestecomboio?– Francamente nãome preocupei com isso, não posso dizer
queissomecausepesar.–Umcrimeéassimcoisatãonormalparasi?– Naturalmente, é desagradável – replicou Mary Debenham,
comcalma.–Asenhoritaébeminglesa,nãomostranenhumaemoção.A
moçasorriulevemente.– Receio não poder mostrar a minha sensibilidade. Aliás,
morretantagente,todososdias!–Defato.Porém,oscrimessãoumpoucomaisraros.–Certamente.–NãoconheciaMr.Ratchett?–Vi-opelaprimeiravezontem,àhoradoalmoço.–Comolhepareceuele?
–Maloobservei.–Nãolhecausouaimpressãodeumtipoequívoco?Amoçaencolheuosombros.–Francamentenãopenseinisso.Poirotfitou-acomumolhar
penetrante.–Desconfioquenãolevamuitoasérioasminhasperguntas–
disse ele, pestanejando. – “Um inquérito inglês seria bemdiferente”,éoquepensa.Seriaconcisoeseco.Tenhoasminhasoriginalidades. Observo primeiro as testemunhas e interrogo-asde acordo com as minhas observações. Acabo de ouvir umcavalheiro,queteimavaemexprimir-measuaopiniãosobretodasas coisas. Pois bem: obriguei-o a manter-se estritamente noslimitesdeste inquérito,pedindo-lhequerespondesseapenassimounão.Sucede-lhea senhorita.Vi logoqueépessoacorrecta emetódica. Limitar-se-ia ao assunto e as suas respostas seriamlacónicas. E como a natureza humana é malévola, fiz-lheperguntas completamente diversas. Quis saber o que pensa esente.Nãolheagradaosistema?
– Se desculpar a franqueza, lhe direi que me parecedesperdício de tempo. A minha opinião acerca de Mr. Ratchettnãoajudará,decerto,aencontrarocriminoso.
–ConheciaaverdadeiraidentidadedeRatchett?Amoçaanuiu.–Mrs.Hubbardcomunicou-oatodos.–QuepensadocasoArmstrong?–Foi simplesmenteabominável – replicouela.Poirot olhou-a
pensativo.–VemdeBagdad,segundocreio,nãoéverdade?–Sim.–VaiaLondres?–Sim.–QuefaziaemBagdad?–Eragovernantadeduascrianças.–Voltaráaesseposto,depoisdasférias?–Nãoseiaocerto.–Porquê?– Bagdad é muito distante. Prefiro, se for possível, ficar em
Londres.–Compreendo.Imaginoquevaicasar.
MaryDebenhamnãorespondeueencarouodetective.Oseuolhardiziaclaramente:“Queimpertinência!”
–Quepensadasuacompanheiradecamarote,Mrs.Ohlsson?–Pareceumacriaturasimpleseamável.–Dequecor éo roupãodela?MaryDebenhamarregalouos
olhos.–Escuro...demalhadelã.– Ah! Quanto à senhorita, posso dizer, sem indiscrição, que
vislumbreiacordoseuroupãonaviagemdeAleppoaIstambul.Lilásclaro,senãomeengano.
–Exactamente.–Temoutroroupão?Umvermelho,porexemplo?–Não,nãoémeu.–Poirotcurvou-se.Dir-se-iaumgatopronto
paraabocanharumrato.–Dequeméentão?Amoçateveummovimentodesurpresa.–Nãosei.Porquepergunta?–A senhoritanãodisse: “Não tenhoum roupãoassim",mas
respondeu:“Nãoémeu”,fazendocrerqueessapeçadevestuáriopertenceaalguém.
Ajovemanuiu.–Aumapassageira?–Sim.–Quemé?– Francamente, não sei. Acordei esta madrugada, cerca das
cincohoras,comasensaçãodequeocomboioestavaparadohámuito tempo. Abri a porta, julgando que estivéssemos numaestação. E vi alguém, com um roupão vermelho, afastar-se nocorredor.
–Nãopôdeverquemera?Loira?Morena?Grisalha?–Nãoseidizer.Essapessoausavaumatoucaeeusólhevia
nuca.–Equantoàestatura?–Pareceu-mealtaeesbelta;oroupãoeradetecidoestampado
comdragões.– Sim, sim! É isso! – Poirot calou-se um instante; depois
murmurouconsigomesmo: –Nãoposso compreender...Não fazsentido...Levantandoosolhos,acrescentou:
–Nãovoumaistomarseutempo.
–Oh!–Protestouajovem.Pareciaumtantoadmirada;todavialevantou-seprontamente.
Nolimiar,hesitouumminutoevoltouatrás.– A passageira sueca...MissOhlsson, não é?Estáum tanto
aflita. Segundome disse, ouviu-o declarar que ela foi a últimapessoaqueviuMr.Ratchettvivo,edesconfia,peloquemeparece,queosenhorsuspeitadela.Possodizer-lhequeestáenganada?Creia,éumacriaturaincapazdefazermalaumamosca.
Eassimdizendo,araparigasorriulevemente.–Aquehorasaviusair,parairbuscaraaspirinaaocamarote
dasenhoraHubbard?–Pelasdezemeia.–Demorou-semuitotempo?–Unscincominutos.–Tornouasairdocamarote,duranteanoite?–Não.–Poirotvoltou-separaomédico.–Ratchettpodetersidoassassinadoaessahora?Constantino
meneouacabeça.– Então, Mademoiselle, creio que pode tranquilizar a sua
amiga.–Obrigada–replicouamoça,sorrindo-lhecomsimpatia.–Ela
lembra-meumcordeiro,sabe?Quandoalgumacoisaaaflige,põe-seabalir.
E,comestaspalavras,ajoveminglesavoltou-seedesapareceu.
CapítuloXII
ODEPOIMENTODADAMADECOMPANHIAALEMÃ
Boucexaminavaoamigocomcuriosidade.–Nãooentendo,meuvelho.Quepretendefazer?–Procuravaumpontofraco.–Umpontofraco?– Sim... na armadura de domínio de si mesma dessa jovem
inglesa.Desejavaabalaroseusangue-frio.Seráqueoconsegui?Nãosei.Deumacoisa,porém,estoucerto:elanãoesperavaqueeutratasseoassuntocomofiz.
– Desconfia dela – disse Bouc lentamente. – Porquê? Pareceumajovemencantadora,aúltimapessoasobrequempoderecairasuspeitadesemelhantecrime.
– Concordo – atalhouConstantino. – É fria. Não se comove.Seriaincapazdeapunhalarumhomem,maisfacilmenteolevariaperanteotribunal.
Poirotsuspirou.–Ossenhorespersuadiram-sedequeesseassassínionão foi
premeditado. Suspeito de Miss Debenham por dois motivos:Primeiro, por uma conversa que surpreendi e que os senhoresignoram.
E o detective referiu rapidamente as frases que ouviracasualmentenocaminhodeAleppo.
–Estranho,semdúvida–comentouBouc.–Serianecessárioesclareceresseponto.Issofazcrerqueambos,elaeoinglês,estãoimplicadosnocaso.
Poirotanuiu.–Eisjustamenteoquenãoseapoiaemfatos–disseele.–Se
fossem cúmplices, cada um deles trataria naturalmente dearranjar álibi para o outro. Entretanto, assim não sucedeu. OálibideMaryDebenhamprovémdessasueca,queelanuncaviu,e o do coronel, deMacQueen, o secretário domorto. Não, estasoluçãodoenigmaseriamuitofácil.
– Disse que tem um outro motivo para suspeitar dela –lembrouBouc.Poirotsorriu.
–Ah!É,porém,purapsicologia!Perguntoamimmesmo: "ÉpossívelqueMaryDebenhamtenhaplaneadoestecrime?”Estou
convencidodequeocriminosoéumcérebrocalmo,inteligenteecheio de recursos. EMaryDebenham corresponde bem a estascondições.
Boucmeneouacabeça.– Creio que se engana, meu amigo. Não vejo nessa jovem
inglesaumaassassina.– Pois bem – disse Poirot, apanhando o último passaporte –
passemosaonomequefechaanossalista.HildegardeSchmidt,adamadecompanhiaalemã.
Chamada pelo empregado, a alemã entrou no vagão-restaurante e aguardou respeitosamente as ordens. Poirotmandou-a sentar-se. Ela obedeceu, cruzou as mãos e esperoucalmamente que a interrogassem. Parecia uma criaturasossegada,respeitável,nãomuitointeligente.
Poirot adoptou com ela um método muito diferente do queusara com Mary Debenham. Deixando-a completamente àvontade, fez-lhe escrever o nome e o endereço, passandodepoisinsensivelmenteaointerrogatórioemalemão.
–Desejamossaberomaispossívelacercadosacontecimentosdestanoite–disseele.–Sabemosquenadanospoderáadiantarquanto ao crime, porém, talvez tenha visto ou ouvido algumacoisaquenospossaserútil.Compreende?
Aoqueparecia,aalemãnãoentendera.Noseurosto, largoebondoso,permaneciaamesmaexpressãodeplácidaestupidezeelarespondeu.
–Nãoseinada,Monsieur.–Bem, lembra-se, por exemplo, que a sua patroa amandou
chamarestanoite?–Sim,senhor.–Aquehoras?– Não sei ao certo. Eu dormia quando o empregado me
chamou.–Bem.Asuapatroacostumachamá-laaessashoras?– Sim, às vezes. Sua Graça precisa frequentemente de
cuidados,ànoite.Nãoconseguedormirbem.–Entãofoichamadaelevantou-se.Vestiuumroupão?–Nãosenhor;vestiaroupadodia.Nãogostodemeapresentar
aSuaExcelênciaderoupão.–E o seu roupão é bonito... vermelho,não?A alemã fitou o
detectivecomespanto.–Édeflanelaazul-marinho.–Ah!Continue.Foiumsimplesgracejo.Eentãofoiatendera
princesa.Quefez?– Fiz-lhemassagens e depois li em voz alta. Não leio muito
bem,masSuaExcelência contenta-se comoque faço.A leituraajuda-a a dormir. Antes de adormecer, dispensou-me: fecheientãoolivroevolteiaomeucamarote.
–Quehoraseram?–Nãosei.–Quantotempoestevecomaprincesa?–Cercademeiahora.–Bem,continue.–Antesdetudo,leveiaSuaExcelênciaumcobertorpesadodo
meucamarote.Faziamuitofrio,apesardovagãoestaraquecido.Arranjei-lhe o cobertor e ela deu-meboanoite. Preparei-lheumpoucodeáguamineral,apagueialuzesaí.
–Edepois?–Nadamais.Volteiaomeucamaroteedormi.–Encontroualguémnocorredor?–Não,senhor.– Não viu, por exemplo, uma senhora com um quimono
vermelho,bordadocomdragões?Aalemãarregalouosolhos.– Não, decerto. Não vi ninguém, excepto o chefe do pessoal.
Todosdormiam.–Viuentãoochefedopessoal?Quefaziaele?–Saíadeumdoscamarotes.–Qual?–InterveioBouc.–Qualdeles?Hildegarde Schmidt pareceu assustar-se e Poirot deitou um
olhardecensuraaoamigo.–Naturalmente – disse o belga. –O chefe do pessoal atende
muitas vezes a chamadas, durante a noite. Lembra-se de quecamarotesaiu?
–Eranocentrodovagão,senhor.Duasoutrêsportasantesdocamarotedaprincesa.
–Ah!Diga-nosexactamenteondeeraeoqueaconteceu.– Ele quase me deu um encontrão. Eu ia ao camarote da
princesa,levar-lheocobertor.
–Eelesaiudocamaroteequaseesbarroucomasenhora?Emquesentidoia?
–Vinhaaomeuencontro.Desculpou-seepassouadiante,emdirecção ao vagão-restaurante. Uma campainha começou atilintar;nãocreio,porém,queeleatendesseachamada.
Aalemãcalou-seuminstante,depoisacrescentou:–Nãocompreendo.Porquedesejam...–Poirottranquilizou-a.– É só questão de tempo – disse ele. – Pura formalidade. O
pobre chefedopessoal parece que teveumanoite cheia entre oacordarasenhoraeatenderaschamadas.
–Nãofoiessechefedopessoal,oquemeacordou.Eraoutro.–Ah,outro?Jáotinhavistoantes?–Nãosenhor.–Ah!Julgaqueoreconheceria,seovisse?–Achoquesim.Poirot cochichou ao ouvido de Bouc. Este levantou-se e
encaminhou-se para a porta, para dar uma ordem. O detectivecontinuavaoseuinterrogatório,comummodocordial.
–JáestevenaAmérica,FrauSchmidt?–Nunca.Deveserumbelopaís.–Talvezjásaibadaverdadeiraidentidadedoassassinado.Era
oautordamortedeumacriança.–Sim,ouvidizer.Éhorrível!ObomDeusnãodeveriapermitir
certascoisas.Nós,alemães,nãosomostãomalvados.E os olhos da humilde criatura encheram-se de lágrimas. O
seucoraçãomaternalcomovera-se.–Foiumcrimeabominável–dissegravementePoirot.Depois,
tirandodobolsoumquadradodecambraia,estendeu-oàalemãedisse:
–Éoseulenço,FrauSchmidt?Houveumminutodepausa, enquanto a alemã examinava o
lenço.Elareflectiuummomentoecoroulevemente.–Não,Monsieur.Nãoémeu.–TrazainicialH,veja.Eisporquepenseiquelhepertencesse.– Ah! Monsieur, é o lenço de uma dama. Um lenço caro.
Bordadoàmão.AchoquevemdeParis.–Nãoéseunemsabeaquempertence?–Eu?Não,senhor.Dostrêshomens,sóPoirotnotouumahesitaçãoimperceptível
nessa resposta.Boucmurmurou-lhealgumacoisaao ouvido.Obelgaanuiucomumsinaledisseàalemã:
– Os três chefes do pessoal de todo o comboio vão serchamados.Querterabondadede indicaroqueencontrou,estanoite,quandosedirigiaaocamarotedasenhoraprincesa?
Os três funcionários entraram. PierreMichel, o condutor dovagãoAtenas-Paris, louro e robusto, e odo vagãodeBucareste,baixoecorpulento.
HildegardeSchmidtexaminou-osemeneouacabeça.–Não,senhor–disseafinal.–Nenhumdeleséohomemquevi
estanoite.–Mas estes são os únicos funcionários do comboio. Veja se
nãoseengana.– Estou certa do que digo. Estes três são homens altos e
robustos. O que eu vi era baixo e moreno. Tinha bigode. Equandodisse“Pardon”,disse-ocomumavozdemulher.Lembro-memuitobem,senhor.
CapítuloXIII
RESUMODOSDEPOIMENTOSDOSPASSAGEIROS
–Umhomenzinhomoreno,comvozdemulher...–comentouBouc.
Os três funcionários e a criadaalemã jáhaviamsaído.Boucfezumgestodedesespero.
– Não compreendo. Não compreendo nada de tudo isto! Oinimigo de que falava Ratchett, estava, então, no comboio? Eonde estáagora?Comosepôde evaporar?Aminha cabeça estárodando! Diga alguma coisa, meu amigo, por favor! Mostre-mequeoimpossívelpodeserpossível!
–Éumaboafrase–replicouPoirot.–Oimpossívelnãopodeocorrer, mas o impossível pode ser possível a despeito dasaparências.
–Explique-meentãooquesedeunanoitepassada.– Não sou feiticeiro, meu caro. Estou, como você, muito
intrigado.Estecasotoma,defato,umafeiçãoestranha.–Nãoadiantamosnada,tudoestácomoestava.Poirotmeneou
acabeça.–Nãoéverdade–replicou.–Avançamosumpouco.Sabemos
certascoisas.Ouvimosodepoimentodospassageiros.–Eoquenosdisserameles?Nada!–Nãosoudessaopinião,meuamigo.– Exagerei talvez.O americano,Hardman, e a alemã deram-
nosalguns esclarecimentos. Isto é, tornaramo caso aindamaiscomplicadodoqueera.
–Não,não–dissePoirotcalmamente.Boucvoltou-separaele.–Faleentão,ouçamosasabedoriadeHerculePoirot!– Não lhe disse que estou também muito intrigado? Acho,
porém, quepodemos afrontar o problema. Precisamosdispor osfatoscomordememétodo.
–Continue–atalhouConstantino.Poirotsuspirou,aliviado,edesdobrouumafolhadepapel.
– Examinemos o caso no ponto em que está. Há fatosindiscutíveis. Ratchett ou Cassetti, como quiserem, foiassassinadonanoitepassadacomdozepunhaladas.Eisumfato.
–Concordo...concordo...meuvelho–disseBouc,comironia.
Poirotnãolhedeuatençãoecontinuoucalmamente.– Não mencionarei certas aparências, que o doutor
Constantino e eu discutimos. Lá chegaremos daqui a pouco.Agoraosegundofatoimportanteéahoraemquesedeuocrime.
–Éumadaspoucascoisasqueconhecemos–tornouBouc.–Ocrimefoipraticadoàumaequinzedamadrugada.Pelomenos,tudoconcorreparaafirmarestahipótese.
– Tudo não. Seria exagerar. Há apenas algumas aparênciasqueparecemconfirmá-la.
–Alegro-medequetambémsejadessaopinião–disseBouc.Poirotprosseguiucomamesmacalma:–Hátrêssoluçõespossíveis.Primeira:ocrimefoipraticadoà
umaequinze,comodiz,oqueéconfirmadopelorelógioepelosdepoimentosdeMrs.HubbardedaalemãeconformeahipótesedodoutorConstantino.Segunda:ocrimeocorreumaistardeeaprovadorelógionãopassadeumlogro.Terceira:ocrimedeu-seantes e do mesmo modo a prova do relógio é nula. Agora, seaceitarmos a primeira hipótese, como a mais provável econfirmada pelos depoimentos, devemos considerar certos fatos,decorrentesdessasuposição:seocrimefoipraticadoàumahoraequinze,ocriminosonãopôdefugir.Ondeestáeleentão?Quemé? Examinemos os depoimentos: Soubemos da existência dohomenzinhomoreno,devozestridente,apenaspelodepoimentodeHardman.Ratchettfalara-lhedesseindivíduoepedira-lhequeo vigiasse. Nenhuma prova nos confirma este fato, senão apalavra do detective americano. Examinemos outro ponto. SeráHardman, de fato, o que pretende ser, isto é, agente de umainstituição policial de Nova Iorque? O que me parece maisinteressante, é quenão temos certas facilidades, comque contageralmenteapolícia.Nãopodemosinvestigarosantecedentesdetodaestagente.Temosdenoslimitaràsimplesdedução.Istonãoé obra rotineira, mas puro trabalho cerebral. Pergunto: possoaceitar, como verdadeira, a identidade de Hardman? Estou emdizerquesim.
– Baseia-se na intuição... isto é, no que os americanoschamamhunch?–AtalhouConstantino.
–Não.Levo emcontaapenasaspossibilidades.SeHardmanviaja com passaporte falso, isso é indício suspeito. A primeiracoisa que a polícia fará, entrando em cena, será prendê-lo e
certificar-se de que ele disse a verdade. Tratando-se de muitospassageiros, torna-se difícil investigar-lhes os antecedentes, namaioriados casosnemseprocurará, visto quenãohánenhumindíciocontraeles.NocasodeHardman,porém,éfácil.Éounãoa pessoa que pretende ser? Afirmo, todavia, que está tudo emordem.
–Isenta-o,pois,desuspeitas?– Não. Não me entendeu. Qualquer investigador americano
podeterassuasrazõesparticularesparaassassinarRatchett.Oque quero dizer, é que poderemos aceitar como verdadeira aidentidadedeHardman.OfatodeRatchetttersolicitadoosseusserviçospodeserverdadeiro.Desdequeaceitemosestashipóteses,vejamos os fatos que as confirmam. Encontramo-los, antes detudo, no depoimento de Hildegarde Schmidt. A descrição dohomem que ela viu com o uniforme de chefe do pessoal docomboioadapta-seperfeitamenteaosupostoassassino.Depois,obotão encontrado pela senhora Hubbard no seu camarote. Eaindaháoutrofatoquenãomencionamos.
–Qual?–OCoronelArbuthnoteMacQueenafirmaramtervistopassar
ochefedopessoal.Não ligaram importânciaao fato,entretanto,Pierre Michel afirmou não ter deixado o seu lugar, senão paraatender chamadas, que não o poderiam levar à extremidade dovagão,ondeestavamaquelesdoispassageiros.Logo,aversãodohomenzinho moreno, de voz estridente, uniformizado como opessoaldocomboio,éconfirmada,directaouindiretamente,porquatrotestemunhas.
– Um aparte. – Interveio Constantino. – Se o depoimento deHildegardeSchmidt é exacto,porquemotivoo verdadeiro chefedo pessoal não mencionou tê-la visto, quando foi atender achamadadeMrs.Hubbard?
– Explica-se. Quando o chefe do pessoal foi atender Mrs.Hubbard,agovernantajáestavajuntodaprincesa.E,quandoelavoltou ao seu camarote, o chefe do pessoal ainda estava no deMrs.Hubbard.
Bouc,quesecontiveraacusto,esperandocomimpaciênciaofimdessaexplicação,atalhou:
–Sim,sim,meuamigo.Emboraadmirandoasuaprudênciaeo seu método de proceder lentamente, digo-lhe que ainda não
chegou ao ponto que interessa. Todos acreditamos que essapessoaexista.Masaquestãoésaberondeestá?...
Poirotmeneouacabeça,emardecensura.– Engana-se. Quer levar o carro adiante dos bois. Antes de
perguntar a mim mesmo: “Como se evaporou esse homem?”pergunto: “Existe, realmente, esse homem?” Vejamos: se essecriminoso fosse mera invenção, seria mais fácil fazê-lodesaparecer.Assim,antesdetudo,procuroaveriguarseeleexiste,realmente.
– E, chegando à conclusão de que ele existe... onde estaráagora?
–Hásóduassoluções:ouestáescondidonocomboioemlugartalquenuncanos lembraremosde revistarouentão,porassimdizer,onossocriminosocorrespondeaduaspessoas:éohomemqueRatchetttemiaeestavaaomesmotempotãobemdisfarçado,queavítimanãooreconheceu.
–Éumaboaideia–disseBouc,comorostoiluminado.–Háporém,umaobjecção...–acrescentoucomtristeza.
– A estatura do homem, não é verdade? – Disse Poirot,completando-lhe as palavras. – Excepto o criado de Ratchett,todosospassageirossãoaltos...oitaliano,ocoronel,MacQueeneo conde Andrenyi. Resta-nos o criado, hipótese pouco provável.Há,contudo,outrapossibilidade:lembre-sedavozestridente,vozdemulher.Istooriginaváriasalternativas.Ocriminosopodeter-sedisfarçadodehomemeapresentar-seagoracomoamulherqueé. Em trajes masculinos, até uma mulher de elevada estaturaparecebaixa.
–MasRatchettdecertosabia...– Talvez soubesse. Quem sabe se essa mulher já não lhe
atentara contra a vida, em trajemasculino, para executarmaisfacilmenteoseupropósito?Afimdeprevenirumarepetiçãodesselogro,RatchettpediuaHardmanquevigiasseumhomem.
–Éprovável–concordouBouc.–Todavia...– Escute, meu amigo, creio que lhe posso comunicar certas
observaçõesinteressantes,feitaspelodoutorConstantino.E o detective relatou as conclusões, a que ele e o médico
haviam chegado, acerca da natureza dos ferimentos. Bouc fezouvirummurmúriolamentosoeapertouacabeçanasmãos.
– Compreendo – disse Poirot, com simpatia – compreendo o
quesente.Temacabeçatonta,nãoéassim?–Tudoissoéumafantasia!–BradouBouc.–Exactamente.Éabsurdo...improvável,inverosímil,comoeu
mesmoo julgo, entretantoé issomesmo.Nãosepode fugirdosfatos.
–Umaloucura!– Não acha? Parece uma coisa tão insensata, que por
momentostenhoaimpressãodequedevesermuitosimples;masissoéapenasumadasminhas"pequenasideias”...
– Dois assassinos... – Gemeu Bouc. – E no Expresso doOriente...Eestalembrançaquaseofezchorar.
– Agora tornemos esta fantasia ainda mais fantástica –prosseguiu Poirot jovialmente. – Na noite passada, havia nocomboio dois estranhos misteriosos: o chefe do pessoal,correspondendo à descrição deHardman e visto porHildegardeSchmidt,peloCoronelArbuthnoteMacQueen,eumamulherderoupão vermelho, alta e esbelta, vista por Pierre Michel, MaryDebenham, MacQueen e por mim mesmo e "pressentida",digamos, pelo Coronel Arbuthnot. Quem era ela? Nenhumapassageira confessou ter um roupão vermelho. Essa mulhertambém se evaporou. Será omesmo chefe do pessoal ou outrapersonalidade, bem distinta? Onde estão esses dois? E ondeestarãoouniformeeoroupãovermelho?
–Ah,eisumelementopositivo!–ExclamouBouc,levantando-
sedeumsalto.–Revistemostodasasbagagensdospassageiros!Sim,havemosdeencontrarqualquercoisa.
Poirottambémselevantou.–Façoumaprofecia–disseele.–Sabeondeosencontraremos?–Tenhoumaideia.–Onde?Diga?– Encontrará o roupão vermelho na bagagem de um dos
passageiros e o uniforme de chefe do pessoal nas malas deHildegardeSchmidt.
–HildegardeSchmidt?Julgaque...?–Nãoéoquepensa,masoseguinte:seHildegardeSchmidté
culpada, o uniforme pode ser encontrado na sua bagagem...porém,seelaestiverinocente,seráencontradocomcerteza.
– Mas como...? – Principiou Bouc. E interrompeu-se, paraexclamar:
– Que barulho é este? Parece o de uma locomotiva emmovimento.
O rumoraproximava-se.Eramgritos e protestosdeuma vozfeminina.Aportadovagão-restauranteescancarou-seeasenhoraHubbardprecipitou-senosalão.
–Éhorrível–bradouela.–Édemais!Naminhamaleta...Naminhamaleta...Umpunhaltodoensanguentado!
E de súbito, perdendo as forças, a americana desmaiou noombrodeBouc.
CapítuloXIV
APISTADAFACA
Commais vigor do que galanteria, Bouc pousou namesa acabeçadadamadesmaiada.Constantinochamouumdoscriadosdorestaurante,ohomemacudiu,correndo.
– Mantenha-lhe a cabeça levantada – explicou o médico aoempregado. – Quando ela voltar a si, dê-lhe um pouco deconhaque.Compreende?
Dadas essas ordens, reuniu-se à pressa aos seus doiscompanheiros.Oseuinteresseconcentrava-setodonessecrime...os desmaios das damas idosas não o impressionavam.Provavelmente, Mrs. Hubbard recobrou os sentidos com maisfacilidade do que se lhe tivessem dispensado algum cuidado.Poucosminutosdepois, jáseendireitavanacadeira,sorvendooconhaqueeexpandindo-senacostumadaloquacidade.
– Não sei dizer o horror que senti! Desconfio que ninguémestá, aqui, em condições de compreender asminhas sensações.Semprefuimuitosensível,comoumacriança.Avistadosangue.Ai!Sódepensarnisso,quasedesmaiooutravez!
Ocriadoestendeu-lhepressurosamenteocopo.–Maisumpouco,Madame...– Acha que me fará bem? Nunca tomo álcool. Na minha
família, todos são abstémios. Enfim, como é apenas pararemédio...
Eavelhaamericanatornouabeber.EntretantoPoiroteBouc,seguidospelomédico,encaminhavam-separaocamarotedeMrs.Hubbard. Todos os viajantes estavam à porta dos seuscompartimentos.Ochefedopessoalcomumaexpressãodeterrornafisionomia,tentavacontê-los.
–Nãohánadaparaver–diziaeleemdiversaslínguas.–Deixem-mepassar,porfavor–disseBouc.Abrindo caminho entre os passageiros, o director da
Companhiaentrounocamarote,seguidopelodetective.– Alegro-me de que tenha vindo, senhor – disse o chefe do
pessoal do comboio, com alívio. – Todos queriam entrar. Asenhora americana gritava tanto, que julguei que também aestivessem a matar. Vim logo a correr. Encontrei-a, a chamar
comolouca,dizendoqueiriaprocurá-loenocaminhocontavaatodos o que lheaconteceu.Estáali, senhor – continuouMichelcomumgesto:–Nãomexiemcoisaalguma.
Penduradanotrincodaportadecomunicaçãocomocamarotevazio, via-se uma larga bolsa de borracha. Debaixo dela, comocaíra dasmãos deMrs.Hubbard, estava umpunhal de lâminarecta, aparentemente uma arma oriental, de cabo cinzelado elâmina pontuda, em que se viam manchas semelhantes aferrugem.Poirotapanhou-ocomcuidado.
– Sim – murmurou ele. – Não é possível enganar-me. Eis aarmaquesesumira,nãoachadoutor?
Constantinoexaminou-aporsuavez.– Não tenha tanto cuidado – disse Poirot. – Não traz
impressõesdigitais,salvoasdeMrs.Hubbard.Omédico,porémnãosedemoroumuitotempoaexaminaro
punhal.– É a arma, de fato – disse ele – e corresponde a todos os
ferimentos.–Peço-lhe,meuamigo,quenãodiga isso!Omédicopareceu
surpreendido.–Somosperseguidospelas coincidências – objectouPoirot. –
Nanoitepassada,duaspessoasresolveramapunhalarRatchett.Ébomdemaisqueambasescolhessemarmasidênticas.
–Nãoé tão estranho, comoparece –disseomédico. –Estasarmasvendem-seaosmilharesnosbazaresdeConstantinopla.
– Consolo-me um pouco... Mas muito pouco – tornou odetective.
E fitou,pensativo,aportadecomunicação,depois, tirandoabolsadeborracha,experimentouotrinco.Aportaestavafechada.Poucoabaixodo trinco,haviaum ferrolho.Poirotpuxou-oparatrásetornouaexperimentarotrinco,masnãoconseguiuabriraporta.
– Nós fechamo-la pelo lado de dentro, lembra-se? – Disse omédico.
– É verdade – replicou o detective, distraído. Poirot pareciapreocupado;umarugasulcava-lheatesta.
– Isto explica-se, não é verdade? – Perguntou Bouc. – Ohomempassouporaqui.Fechandoaportadecomunicaçãoatrás
de si, deu com essa bolsa e ocorreu-lhe de repente a ideia deenfiarali dentroaarmaensanguentada.Depois, semsaberqueacordaraMrs.Hubbard,fugiupelaoutraporta.
– É o que deve ter acontecido – disse Poirot. Entretantocontinuavaamostrar-seintrigado.
– Que há? – Perguntou Bouc. – Alguma coisa que não osatisfaz,meuamigo?Poirotdeitou-lheumrápidoolhar.
– Essa mesma coisa não o intriga também? Não,evidentemente.Bem,éumacoisainsignificante.
Ochefedopessoalassomouàporta.–VemaíMrs.Hubbard–anunciouele.Constantino sentiu-se constrangido, percebia que não se
portara bem com a velha dama. Mas a americana não tinhatempoparacensurá-lo, todaasuaenergiaconvergiaparaoutroponto.
–Sóumapalavra–disseela,ofegante,assomandoàporta.–Nãoqueroficarnestecamarote.Nãodormiriaaí,estanoite,nemquemedessemummilhãodedólares!
–Mas,Madame...–Seioquevaidizeredesdejárespondoquenãoquerosaber
disso!Prefiropassaranoitesentadanocorredor!Oh!Seaminhafilha soubesse! – Continuou logo, elevando a voz. – Se ela mevissenesteinstante...
Poirotinterrompeu-a.–Entendeumal,minhasenhora.Oseupedidoémaisdoque
razoável.Assuasbagagensserãoremovidas,desdejá,paraoutrocamarote.
AsenhoraHubbardbaixouolenço.–Falaverdade?Oh!Jámesintomelhor!Masocomboioestá
repletoe,anãoserqueumdoscavalheiros...Bouctomouapalavra.– A sua bagagem,minha senhora, será transportada para o
vagãoenganchadoemBelgrado.–Esplêndido!Nãosoulámuitonervosa,porém,dormirneste
camarote,juntoaodeummorto...–eaamericanaestremeceu.–Istomedeixaráquaselouca.
– Michel. – Chamou Bouc. – Leve estas bagagens para umcamarotevaziodovagãoAtenas-Paris.
–Sim,senhor...omesmonúmerodeste,onúmero3,não?
– Não – acudiu Poirot, antes que Bouc respondesse. – CreioqueseriamelhorparaMrs.Hubbardteroutronúmero.Onúmero12,porexemplo.
–Sim,senhor.O chefe do pessoal pegou nas malas e a senhora Hubbard
voltou-separaagradeceraPoirot.–Quebondadeedelicadeza!–Disseela.–Seiapreciá-la,creia.– Nem diga isso, Madame! Acompanhá-la-emos, para nos
certificarmosdequeficabeminstalada.Escoltadapelostrêshomens,Mrs.Hubbarddirigiu-separao
seunovocamarote,queexaminoucomsatisfação.–Bonito!–Disseela.– Agrada-lhe, minha senhora? Como vê, é idêntico ao que
acabadedeixar.– É isso mesmo. Apenas dá para o outro lado. Mas não
importa; estes comboios andam ora numa direcção ora noutra.Eutinhaditoàminhafilha:“Queroumcamarotedefrenteparaalocomotiva” e ela respondeu... “Não,mãe,não lhe convém,pois,quandoadormecer,ocomboioandaránumsentidoeaoacordar,encontrá-lo-á seguindo noutra direcção.” É verdade. Foi o queaconteceuemBelgrado.
–Então,estásatisfeita?– Propriamente, não. Estamos bloqueados pela neve e
ninguémpode fazernada.Entretanto,omeuvaporsairádepoisdeamanhã.
– Minha senhora – atalhou Bouc. – Todos nós estamos nasmesmascondições.
– É verdade – concordou a senhora Hubbard. – Todavia,ninguémencontrou, altashorasdanoite,umassassinono seuprópriocamarote.
–Eisoquemeintriga–dissePoirot.–Comopôdeessehomementrar no seu camarote, se a porta de comunicação, como asenhora disse, estava trancada? Tem a certeza de que estavatrancada?
–Sim,MissOhlssonexperimentou-a,àminhavista.– Procuremos reconstituir a cena. A senhora não podia
certificar-seporsimesma,porquejáestavadeitada,nãoéassim?–Não,porcausadosaco.Oh!Precisocompraroutro!Revira-
meoestômago,sódeolharparaesse.
Poirot apanhou-o e pendurou-o no trinco da porta decomunicaçãocomocamarotevizinho.
– Perfeitamente – disse ele. – O ferrolho está logo abaixo dotrincoeosacoesconde-o.Dasuacamaasenhoranãopodiaverseaportaestavaounãoaferrolhada.
–Poisfoioqueeulhedisse!– E a senhora sueca ficou aqui, entre a senhora e o saco?
Experimentouaportaedisse-lhequeestavafechada?–Exactamente.–Contudo,elapodeter-seenganado.Compreendeoquequero
dizer?–PerguntouPoirot,ansiosoporseexplicar.–Oferrolhoéapenasumatirademetal.Voltadoparaadireita,trancaaporta,para a esquerda, deixa-a aberta. Provavelmente experimentou otrinco e como o passageiro do outro camarote a fechara do seulado...
–Bem!Elanãodeixadetersidotola!–Madame, nem sempre a pessoamelhor emais amável é a
maisinteligente.–Éverdade.–Apropósito:vemdeSmyrna,Madame?–Não,desembarqueiemIstambul,ondeumamigodaminha
filha, Mr. Johnson, um perfeito cavalheiro, gostaria que oconhecessem, me recebeu e levou a visitar a cidade toda. Umlugarhorrível!E essasmesquitas e as pantufas que enfiamporcimadossapatos.Ondeestavaeu?
–DiziaqueosenhorJohnsonarecebeu.– Isso mesmo. E ele viu-me a bordo do navio francês de
Smyrnaeomeugenro,aesperarnocais.Quediráele,quandosouberdisto?Aminhafilhaasseguravaqueseriaaviagemmaiscómoda e segura: “A mãe acomoda-se no comboio e vai aoencontro logodoexpressoamericano.”E... oh!Senhor!Queheidefazerparacancelaraminhapassagem?Teriadeescrever-lhesisto!Enãoposso!Édemais!
As lágrimas reapareciam nos olhos de Mrs. Hubbard. Jáaborrecido,Poirotaproveitouaoportunidade.
– Sofreu um verdadeiro choque, Madame. É melhor que oempregadolhetragacháealgunsbiscoitos.
–Nãocreioqueochámefaçabem–disseavelhaamericana,desfeitaemlágrimas.–Émaisumhábitoinglês...
–Entãocafé.Precisadeumestimulante.–Oconhaquefez-merodaracabeça.Prefirocafé.–Muitobem.Issolheressuscitaráasforças.–Queexpressãoesquisita!–Antes,porém,maisumaformalidade.Permitequelhereviste
asbagagens?–Paraquê?–Teremosderevistarabagagemdetodosospassageiros.Não
lhequerolembrarumadesagradávelocorrência.Pense,porém,nasuabolsa.
– Misericórdia! Talvez seja melhor! Francamente, não tenhocoragemparasuportarnovassurpresasdestegênero.
A busca não durou muito. Mrs. Hubbard trazia poucasbagagens–chapeleira,umamalagrandeeamaletabemcheia.–O conteúdo delas foi examinado rapidamente e a busca seriaainda mais rápida, se a senhora Hubbard não insistisse emmostrarasfotografiasdafilhaedosnetos.
CapítuloXV
INDÍCIOSNASBAGAGENS
Livrando-se de Mrs. Hubbard com algumas hipocrisiasdelicadas e assegurando que lhe mandaria levar o café, Poirotretirou-secomosseusdoiscompanheiros.
–Bemdoutor,fizemosumabuscainfrutífera–disseele.–Quemviráemseguida?–Creioqueserámelhorpercorrertodoocomboio,decamarote
em camarote. Comecemos pelo número 16... o do amável Mr.Hardman.
O detective americano entretinha-se, fumando um cigarro, erecebeu-osafavelmente.
–Entrem,senhores...istoé,seforpossível.Sóemfantasiaestecompartimentopoderáabrigarumgrupo.
Boucexplicou-lheomotivodavisita.Oamericanoconcordou.–Perfeitamente.Admirava-medeque jánãoo tivessem feito.
Aquiestãoaschaves,sequiseremrevistar-meosbolsos,estouàsordens.Voulevantarasmalas.
–Não,ochefedopessoalofará.Michel!A revista à bagagem do americano pouco tempo levou. As
malas continham uma quantidade talvez excessiva de bebidasalcoólicas.Hardmanpiscouoolho.
– Em geral não se revistam as bagagens na fronteira,especialmentequandosedágorjetaaocondutor.Jáespalheiporaíummaçodenotasturcase,tãocedo,nãomeaborrecerei.
–EemParis?Hardmantornouapiscaroolho.–Quandoláchegar–replicouele–oquerestardetudoisso
caberánumfrascodeloçãoparaocabelo.–Osenhornãoépartidáriodaleiseca?–ObservouPoirotcom
umsorriso.–Ora!–DisseHardman.–Aleisecanuncameincomodou.– Ah! – Disse Bouc. – Os speakeasy – acrescentou,
pronunciandocomcuidadoesaboreandoovocábulo.–Comosãointeressanteseexpressivosostermosamericanos!–Concluiuele.
–EugostariadeiràAmérica–dissePoirot.–Osenhoraprenderiamuitacoisanova–afirmouHardman.–
AEuropaprecisaacordar.Estámeioadormecida.–Naverdade,aAméricaéopaísdoprogresso–concordouo
belga. – Eis o que admiro nos americanos. Talvez eu seja umpouco antiquado, acho as mulheres americanas menosencantadorasdoqueasnossas.Asmoçasfrancesasebelgas,tãovivasegraciosas,ameuver,nãotêmrivais.
Hardmanvoltou-separaolharaneveduranteumminuto.–Talveztenharazão,MonsieurPoirot–disseele.– Creio, porém, que cada nação gosta mais das próprias
mulheres.Oamericanopestanejou,comoseabrancuradaneveoofuscasse.
– Uma espécie de deslumbramento, não? – Disse ele. –Asseguro-lhe que esta situação começa a enervar-me. Crime!Neve!... E não poder fazer nada! Depender dematar o tempo omelhorpossível!Precisoocupar-mecomalguémoualgumacoisa.
–EisogenuínoespíritodeacçãodoOeste–observouPoirot,sorrindo.
O chefe do pessoal tornou a arrumar as malas e os trêshomens passaram ao compartimento seguinte, onde o CoronelArbuthnotfumavaeliaumjornal.
Poirotexplicou-lheomotivodavisita.Ocoronelapressou-seasatisfazê-los.Traziaduasmalaspesadasdecouro.
–Orestodasminhasbagagensvaiporviamarítima–explicouele.
Como a maioria dos soldados, o coronel era de uma ordemescrupulosa.Arevistanassuasbagagensocupouapenaspoucosminutos e Poirot deu com um embrulho de limpadores decachimbos.
–Usa-ossempredamesmaqualidade?–Perguntouele.–Geralmente...–Ah!–Comentouobelga.Os limpadores de cachimbos eram idênticos ao que se
encontrara no camarote de Ratchett. Constantino comentou ofato,logoquedeixaramoaposentodocoronel.
– Contudo – disse Poirot – custa-me a crer. Não condiz comessecarácterequemdizistodiztudo.
AportadocamarotedaprincesaDragomiroff estava fechada.Baterameavozgravedavelhadamaconvidou-osaentrar.Bouc,
muito cortês e deferente, deu a explicação habitual. A princesaescutou-o,caladaeimpassível.
–Desde que énecessário – disse ela – dou licença.Aminhacriadatemaschaves.Elaosajudará.
–Éasuacriadaquemasguardahabitualmente?–Perguntouobelga.
–Decerto!–Esedenoite,chegandoàfronteira,fornecessárioabriruma
dasmalas?Avelhadamaencolheuosombros.–Époucoprovável.Nessecaso,ochefedopessoalchamá-la-ia.–Confiatantonela,minhasenhora?–Jálhedissequesim–replicouaprincesacalmamente.–Não
empregogenteemquenãopossaconfiar.–Sim–dissePoirotpensativo.–Aconfiançaémuitacoisanos
nossosdias.Talvezsejamelhorterumacriadamodesta,emquese possa confiar, do que outra mais chique, uma graciosaparisiense,porexemplo.
Os olhos negros e inteligentes da aristocrata voltaram-selentamente,paraencararPoirot.
–Quequerdizercomisso,senhorPoirot?–Nada,Madame.Eu?Nada.–Sim.Pensaquetenhoalgumafrancesaeleganteparaatender
àminhatoalete?–Seriamuitonatural,Madame.Elameneouacabeça.– Schmidt é muito dedicada – e, acentuando lentamente as
palavras,acrescentou.–Nãohádinheiroquepagueadedicação.Entretanto a alemã chegara com as chaves. Depois de lhe
ordenar em russo que abrisse as malas e auxiliasse os trêshomensnabusca,aprincesasaiuparaocorredoraolharaneve.Poirotacompanhou-a,deixandoaBoucoencargodefiscalizaraoperação. A velha dama encarou o belga com um sorrisoescarninho.
–Peloquevejo,nãoointeressaoconteúdodasminhasmalas?Obelgameneouacabeça.–Nãopassadeumaformalidade,Madame.–Temacerteza?–Noseucaso,sim.– Entretanto conheci e estimei Sónia Armstrong. Em que
pensaentão?QuenãoquismancharasmãoscomumvelhacodaespéciedeCassetti?Bem,talveztenharazão.
–Depoisdebrevepausa,aprincesaacrescentou:–Sabeoquegostaria de ter feito a esse homem?Chamar osmeus criados eordenar-lhes: “Fustiguem-no até à morte e atirem-no ao lixo.”Dantesprocedia-seassim.
Odetective continuava a escutá-la atentamente, sem falar. Aprincesaencarou-oe,comsúbitaveemência,disse:
–Osenhornãofala!Emqueestápensando?Poirotfitou-aporsuavez.–Acho,minhasenhora,queasuaforçaestánavontadeenão
nobraço.A princesa olhou os próprios braços magros, escondidos na
mangapreta,easmãosamareladas,longascomogarrasecheiasdeanéis.
– É verdade – disse ela. – Não tenho força nos braços...Nenhuma.Nãoseisefelizouinfelizmente.
Depois, voltando-se com um gesto repentino, entrou nocamarote, onde a criada se azafamava em volta das malas. AprincesainterrompeuasdesculpasdeBouc:
–Nãoprecisajustificar-se–disseela.–Praticou-seumcrime.Certasformalidadessãoindispensáveis.
–Émuitoamável,minhasenhora.Aprincesacumprimentou-oseelessaíram.Asportasdosdois
camarotescontíguosestavamfechadas.Bouccoçouacabeça.– Diabo! – Disse ele. – Poderíamos passar adiante. Eles têm
passaportediplomático.Abagagemgozadeimunidade.–Naalfândega,sim.Masumcrimeécoisadiversa.–Sei.Contudo...nãocriemoscomplicações.– Não se aborreça,meu amigo. O conde e a condessa serão
razoáveis.Lembre-sedaamabilidadedaprincesa.–Elaéumaverdadeirafidalga.Essesdoistambémosão,mas
o conde não mostrou boas disposições. Não gostou de que osenhor insistisse em interrogar a condessa. E agora vamosaborrecê-laaindamais.Passemosadiante.Aliás,nãoéadmissívelque eles estejam implicados nisto. Que necessidade temos denovosincómodos?
– Não concordo – disse Poirot. – Tenho a certeza de que ocondeserárazoável.Emtodoocaso,tentemos.
E, antes que Bouc pudesse responder, o detective bateu àportadocamarotenº13.Umavozconvidou-osaentrar.Sentadopertodaporta,ocondeliaumjornal.Acondessaocupavaocantooposto, juntoda janela.Descansavaacabeçanumtravesseiro epareciaterdormido.
–Desculpe,senhorconde–começouPoirot.–Queiraperdoarestainvasão.Équeestamosapassarrevistaatodasasbagagens.Pura formalidade, mas indispensável. O senhor Bouc lembrouque,comotempassaportediplomático,pode,sequiser,isentar-sedestabusca.
Ocondereflectiuuminstante.–Obrigado – disse ele. – Porém,não quero formar excepção.
Prefiro que as nossas malas sejam examinadas, como as dosoutrospassageiros.
E,voltando-separaaesposa,perguntou:–Nãovêinconvenientenisso,Elena?–Não–respondeuajovem,semhesitar.Seguiu-se uma rápida busca. Poirot parecia embaraçado, ao
fazerobservaçõescomoesta:–Háumrótulohúmidonasuamala,Madame.E,assimdizendo,erguiaumestojoazul,cominiciaisecoroa.
Acondessanãoreplicou.Pareciaaborrecidacomaquelapesquisae não se moveu do seu lugar, olhando vagamente pela janela,enquantoostrêshomenslheexaminavamasmalas,nocamarotecontíguo. Terminada a busca, Poirot abriu o armário, acima dolavatório, e revistou-lheo conteúdo,umaesponja,umcremedebeleza, pó-de-arroz e um frasquinho de trional. Depois, compalavrasamáveisdeparteaparte,os trêsdeixaramocamarote.OsseguinteseramosdeMrs.Hubbard,deRatchettedopróprioPoirot. O grupo dirigiu-se, pois, para os compartimentos desegundaclasse.
No primeiro encontraramMaryDebenham, a ler um livro, eGretaOhlssonqueacordousobressaltada,quandoelesentraram.Poirotrepetiuaexplicação.Asuecaagitou-se,enquantoajoveminglesa se mantinha completamente calma. Poirot dirigiu-se àprimeira:
–Senosderlicença,examinaremosassuasbagagens,depois,talvez,nosqueirafazerofavordeverseasenhoraamericanaestábemacomodada.Elamudou-separaoutrovagão,masaindaestá
muito nervosa pela descoberta que fez na maleta. Mandei-lheservircafé,acho,porém,queparaelanãoháremédiomelhordoquetercomquemconversar.
A sueca prontificou-se logo a ir. E, como tinha a sua malaaberta,aproveitouparatirarumpoucodeamoníaco.Gretasaiuea revista efectuou-se num instante. Ela trazia tão pouca coisa!Evidentemente, ainda não dera pela falta dos ganchos dachapeleira.Pondoolivrodelado,MaryDebenhamseguiaPoirot,com o olhar. Quando o detective lhe pediu as chaves, a jovementregou-as. Depois, enquanto o investigador abria uma dasmalas,perguntou:
–Porqueafastouaminhacompanheira,MonsieurPoirot?–Eu?Pedi-lheapenasquefosseverMrs.Hubbard.–Umbompretexto...masaindaumpretexto.–Nãoacompreendo.– Creio que me entende muito bem. – E a moça sorriu. –
Queriadeixar-mesó.Nãoéverdade?–Está-meatribuindocoisasquenãodisse,Mademoiselle.–Emuitasideiasnacabeça?Não,nãoéisso.Asideiassempre
estiveramlá.Acertei,ounão?–Mademoiselle,temosumprovérbio...– Quem se desculpa acusa-se. Não é o que quer dizer?
Convença-sedequetenhocertasagacidadeeumpoucodebomsenso.Porummotivoqualquer,osenhordesconfiadequetenhoalgumarelaçãocomestecrime.Oassassinatodeumhomemquenuncavi.
–Estáimaginandocoisas!–Não,nãoestouimaginando.Parece-metempoperdido,oque
segasta,escondendoaverdade.Querendoalcançarofimporviasindirectas.
– Sim, tantomais que a senhora detesta a perda de tempo.Prefere irdirectoao fim.Querométododirecto.Poisbem,sereifranco. Desejo perguntar-lhe o que significam as frases, quesurpreendiduranteaviagemnaSíria.DesembarqueinaestaçãodeKonyapara“esticaraspernas”,comodizemosingleses,eouviasuavozeadoCoronelArbuthnot.Easenhoradizia-lhe:“Não,agoranão.Sóquandotudotiverpassado!Quandodeixarmosistoparatrás!”Quesignificavamestaspalavras,minhasenhora?
– Pensa que se referiam ao crime? – Perguntou a moça
calmamente.–Éoqueestouperguntando.Amoçasuspirouepensouuminstante.Depoisdisse:– Essas palavras tinham um sentido que eu não lhe posso
dizer. Posso apenas dar-lhe a minha palavra de que nunca viRatchett,anãosernestecomboio.
–Entãorecusaexplicarassuaspalavras?– Sim, desde que quer franqueza, recuso. Elas referiam-se a
umamissãodequemeincumbi.–Umamissãoqueterminouagora?–Quequerdizer?–Terminou,nãoéverdade?–Porquedizisso?–Escute, lembrar-lhe-eioutroincidente.Houveumatrasodo
comboio,nodiaemquedevíamoschegaraIstambul.Asenhora,tãocalmaeseguradesi,estavamuitoagitada.
–Nãoqueriaperderocomboio.–Assimodisse.MasoexpressodeixaConstantinoplatodosos
dias.Emboraoperdesse,seriaapenasquestãodevinteequatrohoras.
Pelaprimeiravez,MaryDebenhampareceuperderacalma.–Nãocompreendequesepossateramigosànossaespera,em
Londres,equeumdiadeatrasocausemiltranstornos?– Ah! É por isso? Tem amigos à sua espera? Não lhes quer
causarincómodos?–Naturalmente!–Entretanto...écurioso!...–Curiosoporquê?– Neste comboio teremos novamente um atraso. E desta vez
mais sério, pois a senhoranão pode telegrafar aos seus amigosnemfalar-lhespelo...pelo...
–Telefone?–Isso.Ochamadoportmanteaucall,comosediznaInglaterra.
MaryDebenhamsorriuinvoluntariamenteeemendou:– Não, o chamado trunk call. Sim, como diz, é bem
desagradávelnãopoderavisá-losportelégrafooutelefone.–Entretanto,oseumododeestaré,destavez,completamente
diverso. Mademoiselle não mostra nenhuma impaciência. Pelocontrário!Encaraascoisascomcalmaefilosofia.
Ainglesacorouemordeuoslábios.Jánãosorria.–Nãoresponde?–Lamento-o!Porém,nãoseioqueresponder.–Sabesim,explicaráasuamudançadeatitude.– Não acha que está fazendo barulho semmotivo,Monsieur
Poirot?Obelgadesculpou-secomumgesto.–Éprovavelmenteumafraquezadosdetectives.Exigimosum
procedimentosempreigual.Nãoadmitimosmudançasdeatitude.MaryDebenhamnãoreplicou.–ConhecebemoCoronelArbuthnot,Mademoiselle?Odetectivepercebeuqueamudançadeassuntoaaliviara.–Encontrei-opelaprimeiraveznestaviagem.–TemalgummotivoparacrerqueeleconhecesseRatchett?Ajovemsacudiuacabeçaresolutamente.–Tenhoacertezadocontrário.–Porquê?–Pelomodocomoelefalou.–Contudo, achamosno camarote da vítimaum limpador de
cachimbo.EoCoronelArbuthnotéoúnicopassageiroquefumacachimbo.
Poirot observava fixamente a moça. Porém, ela não mostrounemsurpresanememoçãoelimitou-seadizer:
–Umverdadeiroabsurdo:ocoroneléoúltimohomememquepoderecairasuspeitadesemelhantecrime.
Tal era tambéma opiniãodePoirot; nesseponto concordavaplenamentecomasuainterlocutora.
– Preciso lembrar-lhe, Mademoiselle, de que não o conhecebem–disseele.Elaencolheuosombrosetornou:
–Conheçootipo.Obelgainsistiugentilmente:– Então recusa explicar-me o sentido das palavras: “Quando
deixarmosistoparatrás”?–Nadatenhoadizer–replicouamoçafriamente.–Não importa –dissePoirot. –Heidedescobrir.E, comum
aceno,odetectivesaiudocamarote,fechandoaportaatrásdesi.–Teriasidoprudente,meuamigo?–PerguntouBouc.–Pôsa
moçaemguardaepormeiodelaocoronel.–Meuamigo,quandosequerapanharumcoelho,mexe-seem
suatoca.Seeleestiverali,foge,comcerteza.Foioquefiz.
Entretanto, paravam diante do camarote de HildegardeSchmidt. Calma e deferente, a alemã pôs-se à disposição dodetective. Este examinou com um rápido olhar o conteúdo deumamaleta.Depoispediuaocriadoquelevantasseasmalasmaispesadas.
–Aschaves?–Perguntou.– Não estão fechadas,Monsieur. Poirot levantou as alças da
tampadeumadasmalaseabriu-a.–Ah–disseele, voltando-separaBouc. –Que lhedisseeu?
Olhe!Bem por cima das roupas estava um uniforme de chefe do
pessoaldocomboioenroladoàpressa.Àvistadisso,acalmadaalemãtransformou-seemaflição.
–Ach!–Bradouela.–Nãoémeu!Nãofuieuquemoguardouali.Nãotorneiamexernessamala,desdequedeixamosIstambul.Acreditem!Éverdade!
Eadesorientadamulhercorriaoolharsuplicantedeunsparaosoutrosdospresentes.Poirotsegurou-lhebrandamenteobraço,procurandoacalmá-la.
– Não é nada! Confiamos na senhora. Não se aflija. Tenhotantacertezadequenãoescondeuouniformecomodequeéumaboacozinheira.Escute.Éboacozinheira,não?
Aalemãsorriuinvoluntariamente.–Sim,todasasdamasqueservioafirmaram.Eu...Ecalou-se,
denovo,assustada.–Não,não!–RepetiuPoirot.–Asseguro-lhequenãoénada.
Vou contar-lhe o que se deu: o homem que a senhora viuuniformizado saiu do camarote da vítima. Esbarrou com asenhora. Era um mau encontro, para quem esperava não servisto.Quehaviadefazerentão?Precisavalivrar-sedafarda,quejánãoeraumdisfarceesimumperigo.
E Poirot lançou um olhar a Bouc e Constantino, que oescutavamatentamente.
– Veja, a neve estragou-lhe todos os planos. Onde poderiaesconderesseuniforme?Todososcamarotesestavamocupados.Passandodiantedeste,viuaportaaberta, julgou-odesocupado.Devia ser o da mulher com quem esbarrara. Ele entrou então,despiuouniformee escondeu-oàpressanumadasmalas.Nãoseriafácilencontrá-lo.
–Edepois?–PerguntouBouc.–Dissosetratarámaistarde–dissePoirot,advertindo-ocom
um olhar. O detective levantou o uniforme. Faltava o terceirobotãodajaqueta,decujobolsoobelgatirouachave,queserviaaoschefesdopessoalparaabriroscamarotes.
–Eiscomoeleconseguiupassarpelasportasfechadas–disseBouc. – A sua pergunta à Mrs. Hubbard era inútil. O nossohomempodiapassarpelaportadecomunicação,estivesseounãofechada.Aliás,umavezqueexisteouniformedechefedopessoal,porquenãoexistiriaachave?
–Defato–concordouodetective.–Devíamos ter pensadonisso. Lembra-se de queMichel nos
disse que, quando atendeu a chamada de Mrs. Hubbard,encontrouaportafechada?
–Éisso,Monsieur.–Atalhouochefedopessoal.–EisporquejulgueiqueMrs.Hubbardtivessesonhado.
– Explica-se agora – continuou Bouc. – Ele queria fechar aporta de comunicação, mas talvez ouvisse algum barulho, eassustou-se.
– Falta-nos apenas – concluiu Poirot – achar o roupãovermelho.
–Justamente.Porém,osdoisúltimoscamarotessãoocupadosporhomens.
–Nãodeixaremos,contudo,deprocurar.– Ah! Naturalmente! Lembro-me do que profetizou. Heitor
MacQueenconcordouprontamentenoquelhepediam.– É bom que revistem quanto antes – disse ele, sorrindo. –
Reconheçoquesoususpeito.Falta-lhessóacharumtestamento,emqueovelhoamericanomedeixatodososseusbens.
Bouclançou-lheumolhardesconfiado.– É um gracejo – apressou-se a acrescentar o rapaz. – Ele
nuncame deixaria um vintém. Eu servia-lhe apenas para falarlínguas estrangeiras. A pessoa que só sabe legítimo americanoestá sujeita a contratempos. Não sou poliglota, mas sei algunstermos indispensáveis nos hotéis, para compras e frases emfrancês,italianoealemão.
Avozdorapazsoavamaisestridentequedecostume.Apesardasuaboavontade,abuscapareciaembaraçá-lo.
–Nada–disseBouc.–Nemamenorherançacomprometedora.
MacQueenrespirou.–Bem,umpesoamenos–disseelejovialmente.–Eagora?–PerguntouBouc.Os trêshomenspassaramao camarote vizinho.Abuscanas
bagagens do italiano e do criado foi infrutífera. E todos três,percorridoinutilmenteovagão,entreolharam-se.
–Voltemosaovagão-restaurante–dissePoirot.–Jásabemostudoqueépossívelsaber.Temosodepoimentodospassageiros,aprova das bagagens e a dos nossos olhos. Nadamais podemosesperar.Cumpre-nosagorapôremacçãoosmiolos.
EPoirotprocurounobolsoacigarreira,estavavazia.–Voltojá–disseele.–Precisodecigarros.Quecasocuriosoe
complicado! Quem vestia o quimono escarlate? Onde está eleagora?Parecequeadivinho.Háalgumacoisanestecasoquenãocompreendobem.Édifícil,porqueassimotornaramdepropósito.Masdiscutiremosdepois.Comlicença.
Eodetectivecorreuaoseucamarote.Traziaumaprovisãode
cigarros numa das malas. Entrou, fechou a porta e estacouestupefato. Em cima da mala avistara o quimono de sedaescarlate,bordadocomdragões.
– Ah, sim? – Murmurou ele. – É isso mesmo! Um desafio!Muitobem,aceito-o!
ParteIIIHerculePoirotpárapara
pensar
CapítuloI
QUALDELES?
BouceConstantinoconversavam,quandoodetectivechegouaovagão-restaurante.Odirectorpareciaabatido.
–Etvoilá!–Disse,aoverentrarPoirot.–Depois,enquantooinvestigadortomavalugaràmesa,acrescentou:–Seresolverestecaso,meuamigo,começareiacreremmilagres.
–Aborrece-oestecaso?–Naturalmente!Nãovejonistopésnemcabeça!– Concordo – acudiu Constantino. Depois, olhando com
curiosidadeodetective,disse:–Francamente,nãoseioquefaráagora–afirmouele.
–Não?–RedarguiuPoirotpensativo.Depoistiroudobolsoacigarreiraeacendeuumcigarrocomomesmoardistraído.
– Para mim eis o mais interessante do caso – começou. –Estamos bem longe dos processos rotineiros habituais. Todosessespassageirosqueprestaramdepoimentofalaramverdadeoumentira? Não podemos sabê-lo, senão com o auxílio do nossocérebro.
–Tudoissoémuitobonito–atalhouBouc.–Masquepretendefazer?
–Oqueacabeidedizer.Temosodepoimentodospassageiroseaprovadosnossosolhos.
– Belo depoimento, o dos passageiros! Não nos adiantouabsolutamentenada!Poirotmeneouacabeça.
– Não sou desse parecer, meu amigo – disse ele. – Essesdepoimentosprestaram-nosesclarecimentosimportantes.
–Podeser–disseBouc,céptico.–Entretanto,nãomeparece.–Éporquenãoescutou.–Bem,diga-mequefoioquenãoouvi?– Por exemplo, o primeiro depoimento que ouvimos, o de
MacQueen.Umadasfrasesdeleimpressionou-me.–Arespeitodascartas?– Não. Segundo creio, foi a seguinte: “Depois viajamos. O
senhor Ratchett queria ver omundo. Aborrecia-o o fato de nãoconhecer línguas. Eu era mais um intérprete do que umsecretário.”
EPoirotencarousucessivamenteosdoiscompanheiros.– Então? Ainda não percebem? É imperdoável... Tantomais
queeleacaboudedizeragoramesmo:“Umapessoaquesósabefalarlegítimoamericano,estásujeitaacontratempos.”
–Querdizerque...?–PerguntouBoucintrigado.– Ah! Estou vendo que preciso explicar-me claramente. Pois
bem:Ratchettnãofalavafrancês.Entretanto,quandoochefedopessoalacudiuàsuachamada,nanoitepassada,umavozdisse-lhe em francês que chamara por engano. E com uma fraseperfeitamente idiomática e não a que usaria uma pessoa poucoafeitaaofrancês:“Cen'estrien.,jemesuistrompé.”
–Éverdade!–BradouConstantino,excitado.–Deveríamosterpensado nisso! Lembro-me de como você sempre acentuou essefato. Agora compreendo a sua relutância em aceitar a prova dorelógio.Àsvinteetrêsparauma,Ratchettestavamorto.
–Eoseuassassinofalava!–ConcluiuBouc,dramático.Poirotlevantouamãocomardecensura.– Devagar! Contentemo-nos com o que sabemos. Basta-nos,
por enquanto,dizerqueàsvinte e trêsminutosparaumahorahaviaalguémnoquartodeRatchett:um francêsoupessoaquefalacorrentementeesseidioma.
–Émuitoprudente,monvieux.–Éprecisogalgarumdegraudecadavez.Nadanosprovaque
Ratchettàquelahoraestivessemorto.–Eogritoqueoacordou?–Éverdade.–Sejacomofor–disseBouc,pensativo–estadescobertanão
alteraabsolutamente os fatos.O senhor ouviualguémmover-senoquartovizinho.EssealguémnãoeraRatchett.Evidentementelavava as mãos sujas de sangue e queimava a cartacomprometedora. Depois esperou que tudo estivesse quieto:fechou a cadeado o camarote de Ratchett, abriu a porta decomunicação com o de Mrs. Hubbard e fugiu. É o queimaginamos, com esta diferença: Ratchett foi assassinado cercademeiahoraantes.Orelógioparadonaumahoraequinzeeraapenasumálibi.
– Não muito hábil – disse Poirot. – Os ponteiros marcavamumaequinze,ahoraexactaemqueocriminosodeixouacenadocrime.
–Éverdade–disseBouc,atrapalhado.–Entãoquesignificavaorelógio?
–Seosponteirosforamalterados,notequedigose,ahoraquemarcavamdeviaterumsignificado.Areacçãonaturalésuspeitardequemtinhaumálibiaceitávelparaessahora.
–Sim,sim!–Acudiuomédico.–Éumbomraciocínio!–Devemostambémprestaratençãoàhoraemqueocriminoso
entrounocamarote.Quandoteveessaoportunidade?Anãoserqueadmitamosacumplicidadedoverdadeirochefedopessoal,sópodetersidoquandoocomboioparouemVincovci.DepoisqueocomboiodeixouVincovci,ochefedopessoalvoltouaoseulugare,aindaqueninguémonotasse,eleeraaúnicapessoaquepoderiaestranharapresençadoseusupostocolega.
–Esefosseumpassageiro?Qualseriadeles?–Poirotsorriu.– Redigi uma lista – disse ele. – Se quiser vê-la talvez lhe
refresqueamemória.OmédicoeBouccurvaram-sesimultaneamenteparaopapel.
Claraemetódica,alistaobedeciaàordemdosinterrogatórios.Heitor MacQueen – Americano. Camarote nº 6. Segunda
classe. Motivo – Possivelmente suspeito de cumplicidade com omorto.Álibi–Dameia-noiteàsduashoras.(Dameia-noiteàumahora e trintaminutos confirmadopeloCoronelArbuthnot, edaumahoraequinzeminutosàsduaspelochefedopessoal.)Provacontraele–Nenhuma.
PierreMichel–Chefedopessoal–Francês.Motivo–Nenhum.Álibi–Dameia-noiteàsduashoras.(VistoporHerculePoirot,nomomento em que falava do camarote deRatchett, às 12:37.Daumahoraàumaedezasseisminutosconfirmadopeloscolegas.)Prova contra ele – Nenhuma. Circunstâncias suspeitas – Ouniformeencontradoparecetersidoumatentativaparaotornarsuspeito,é,pois,umpontoaseufavor.
EdwardMasterman– Inglês.Camarotenº5.Segundaclasse.Motivo – Eventualmente idêntico ao de MacQueen, Mastermanera o criado da vítima. Álibi – Da meia-noite às duas horas.(Confirmado por António Foscarelli) Prova contra – Nenhuma.Circunstâncias suspeitas – Nenhuma, excepto ser ele o únicohomem que poderia vestir o uniforme do chefe do pessoal. Poroutrolado,nãoéprovávelquesaibafalarbemfrancês.
Mrs. Hubbard – Americana. Camarote nº 3. Primeira classe.
Motivo–Nenhum.Álibi–Dameia-noiteàsduashoras,nenhum.Prova contra ou circunstâncias suspeitas – A história docriminoso, que se introduziu no camarote, é confirmada porHardmaneHildegardeSchmidt.
Greta Ohlsson – Sueca. Camarote nº 10. Segunda classe.Motivo–Nenhum.
Álibi – Dameia-noite às duas horas. (Confirmado por MaryDebenham.)Nota:foielaaúltimapessoaqueviuRatchettvivo.
Princesa Dragomiroff – Francesa naturalizada. Camarote nº14. Primeira classe. Motivo – Íntima da família Armstrong emadrinha de Sónia Armstrong. Álibi – Da meia-noite às duashoras. (Confirmado pelo chefe do pessoal e pela criada.) Provacontraoucircunstânciassuspeitas–Nenhuma.
CondeAndrenyi–Húngaro.Passaportediplomático.Camarotenº13.Primeiraclasse.
Motivo–Nenhum.Álibi–Dameia-noiteàsduashoras.(Confirmadopelochefedo
pessoal,exceptodaumahoraàumaequinzeminutos.)CondessaAndrenyi–Camarotenº12.Motivo–Nenhum.Álibi
– Da meia-noite às duas horas. Tomou trional e dormiu.(Confirmadopelomarido.Frascodetrionalnolavatório.)
CoronelArbuthnot–Inglês.Camarotenº15.Primeiraclasse.Motivo – Nenhum. Álibi – Da meia-noite às duas horas. Faloucom MacQueen até à uma hora e trinta minutos. Entrou nocamarotedondenão tornouasair (confirmadoporMacQueenepelochefedopessoal).Provacontraoucircunstânciassuspeitas–Limpadordecachimbos.
Cyrus Hardman – Americano. Camarote nº 16. Motivo –Nenhum conhecido. Álibi – Da meia-noite às duas horas. Nãodeixou o camarote (confirmado por MacQueen e pelo chefe dopessoal).Provacontraoucircunstânciasuspeita–Nenhuma.
António Foscarelli – Americano. (Italiano de nascimento.)Camarote nº 5. Segunda classe. Motivo – Nenhum conhecido.Álibi – Da meia-noite às duas horas. (Confirmado por EdwardMasterman.) Prova contra ou circunstâncias suspeitas. –Nenhuma, excepto que a arma usada condiz com o seutemperamento(videoSr.Bouc).
MaryDebenham– Inglesa.Camarotenº11.Segunda classe.Motivo – Nenhum. Álibi – Da meia-noite às duas horas
(confirmado por Greta Ohlsson). Prova ou circunstânciassuspeitas–ConversaçãosurpreendidaporHerculePoiroteasuarecusadeexplicá-la.
HildegardeSchmidt–Alemã.Camarotenº8.Segundaclasse.Motivo–Nenhum.Álibi–Dameia-noiteàsduashoras(confirmadopelochefedo
pessoaleprincesaDragomiroff.Deitou-se.Acordadapelochefedopessoalàs12:28,aproximadamente,foiatenderaama.)
Nota: Estes depoimentos são confirmados pela afirmação dochefe do pessoal que ninguém entrou ou saiu do camarote deRatchett dameia-noite à uma hora (quando o chefe passou aovagãovizinho)edaumaequinzeàsduashoras.
– Este documento – explicou Poirot – é um relatório do queouvimos,dispostodestemodoporsimplesconveniência.
Boucdevolveuopapel,comumacareta.–Nãoesclarecegrandecoisa–disseele.–Talvezistolheagrademais–dissePoirot,sorrindolevemente
eestendendo-lheumasegundafolhadepapel.
CapítuloII
ASPERGUNTAS
Essepapelcontinhaoseguinte:fatosquerequeremexplicação:I–OlençomarcadocomainicialH.Aquempertence?II – O limpador de cachimbos. Foi perdido pelo coronel
Arbuthnotouporoutrapessoa?III–Quemvestiaoquimonoescarlate?IV – Quem era o homem, ou mulher, disfarçado com o
fardamentodechefedopessoaldocomboio?V–Porquemarcavaorelógioumahoraequinzeminutos?VI–Foiocrimepraticadoaessahora?VII–Maiscedo?VIII–Maistarde?IX–SeráexactoqueRatchettfoiapunhaladopormaisdeuma
pessoa?X – Que outra explicação haverá para a natureza dos
ferimentos?–Bem,vejamosoqueháafazer–disseBouc,animando-se.–
Comecemospelolenço.Sejamosordenadosemetódicos.–Certamente–concordouodetective,comsatisfação.Boucprosseguiu:– A inicial H indica três pessoas: Mrs. Hubbard, a jovem
Debenham,cujosegundonomeéHermione,eacriadaHildegardeSchmidt.
–Ah!Equaldastrês?–Édifícildizer.Voto,porém,pelajovemDebenham.Elapode
usarosegundonome,emlugardoprimeiro.Aliás,háumindíciocontraela.Asfrasesquesurpreendeu,meuamigo,erambastantecuriosas,comotambémofatodelarecusarexplicá-las.
– Quanto a mim, voto pela velha americana – disseConstantino. – Esse é um lenço caro, e, como todos sabem, osamericanosnãofazemquestãodepreço.
–Assim,excluemambosaalemã?–Perguntouodetective.–Sim.Comoelamesmadiz,esse lençopertenceapessoade
classeelevada.
–E,agora,asegundapergunta,olimpadordecachimbos.Foiperdidopelocoronelouporoutrapessoa?
– É ainda mais difícil. Os ingleses não apunhalam. Nisto osenhortemrazão.Estouinclinadoacrerquefoioutrapessoaqueperdeuolimpadordecachimbos,talvezparaincriminaroinglêspernilongo.
–Comojálheouvidizer,MonsieurPoirot–atalhouomédico–dois indícios de uma vez, são muita coisa. Concordo comMonsieur Bouc. O lenço é um verdadeiro indício, emboraninguém confesse tê-lo perdido. O limpador de cachimbos nãopassadeumlogro.Emapoioaestasuposição,osenhormesmodisse que o coronel não demonstrou o menor embaraço econfessoufumarcachimboeusaressaespéciedeutensílio.
–Raciocinabem–admitiuPoirot.– Terceira pergunta: quem vestia o roupão vermelho? –
Prosseguiu Bouc. Confesso que não tenho amenor ideia. Sabealgumacoisaaesserespeito,doutor?
–Não.– Então confessemo-nos derrotados nesse ponto. O quesito
seguinte é verosímil. Quem era o homem, ou mulher, que sedisfarçou em chefe do pessoal? Bem. Vejamos quem não podiaser:Hardman,ocoronel,AntónioFoscarelli,ocondeAndrenyieMacQueen sãomuito altos,Mrs.Hubbard,HildegardeSchmidt,GretaOhlsson,muitogordas.Restamocriado,MissDebenham,a princesa Dragomiroff e a condessa Andrenyi. Nenhum destesparece suspeito. Greta Ohlsson e António Foscarelli juraramrespectivamente queMaryDebenham e o criado não saíram docamarote. Hildegarde Schmidt afirmou que a princesa ficou nopróprio compartimento e o conde Andrenyi contou-nos que aesposa tomara um soporífero. Entretanto, é impossível que nãotenhasidoninguém...émesmoabsurdo!
–ComodiziaovelhoEuclides–comentouPoirot.–Deveserumdessesquatro–disseConstantino.–Salvosefoi
alguémqueentrounocomboioeencontrouumesconderijo,masjávimosqueistoéimpossível.
Boucpassouàperguntaseguinte.– Quinta pergunta, porque marcava o relógio uma hora e
quinzeminutos?Háduassoluções:oufoiobradocriminoso,como fim de ter um álibi e poder sair do camarote nummomento
oportuno,ouentão...tenhoumaideia...Osoutrosdoisesperaramrespeitosamente,enquantoBoucse
debatianumaverdadeiraagoniamental.–Éoseguinte–disseeleafinal.–Nãofoiosupostochefedo
pessoalquealterouorelógio.Foiosegundocriminoso,ocanhoto,ou seja a mulher do roupão vermelho. Chegou mais tarde ealterouosponteiros,parafabricarumálibi.
–Bravo!–Exclamouomédico.–Bemimaginado!–De fato –dissePoirot – elaapunhalouRatchettno escuro,
semsaberquejáestavamorto,porém,imaginandoqueeletivesseum relógio no bolso do pijama, tirou-o, alterou os ponteirosdando-lhesasvoltasnecessárias.
Boucolhou-ofriamente.– Não tem nenhuma ideia melhor do que a minha? –
Perguntouele.– Neste momento, não – admitiu Poirot. – Contudo –
prosseguiuele–parece-mequenenhumdossenhoresobservouopontomaisinteressante,nocasodorelógio.
–Acasoserelacionacomoquesitonúmero6?–perguntouomédico.–Àpergunta:“Foiocrimepraticadoaessahora,umaequinze”?Respondo:“Não”.
– Concordo – disse Bouc. – A pergunta seguinte é: “Maiscedo?”Digoquesim.
Concorda,doutor?Constantinoanuiu.– Sim, mas ao quesito “Mais tarde?” também se pode
responderafirmativamente.Concordocomasuateoria,MonsieurBouc,ecreioqueoMonsieurPoirotédomesmoparecer,emboranão deseje comprometer-se. O primeiro assassino chegou antesda uma hora e quinze, mas o segundo apareceu depois dessahora. Quanto à questão dos golpes desferidos com a mãoesquerda,nãonosdeveríamoscertificardequaldospassageirosécanhoto?
–Nãodesprezeitotalmenteesseponto–dissePoirot.–Deveternotadoqueosfiz,atodos,assinaremonomeeendereço.Masistonão tem grande importância, porquemuita gente assina com adireitaeoutroscomaesquerda.Muitosdosqueescrevemcomadireitajogamogolfecomaesquerda.Contudo,ésemprequalquercoisa.Todosospassageirospegaramnacanetacomamãodireita,
exceptoaprincesaDragomiroffqueserecusouaescrever.–AprincesaDragomiroff...éimpossível!–DisseBouc.– Duvido que ela tivesse força para desferir os golpes dados
comamãoesquerda–disseConstantino,hesitante.–Essegolperequermuitaforça.
–Maisforça,doquepodeterumamulher?– Não digo isso. Acho, porém, que requermais força do que
podeempregarumamulheridosa.Aliás,aconstituiçãofísicadaprincesaDragomiroffébastantefrágil.
–Podeserumaquestãodeinfluênciadocérebrosobreocorpo–objectouPoirot.–AprincesaDragomirofféumapersonalidadeenérgica,devontadepoderosa.Masdeixemosisto,porenquanto.
– Perguntas nove e dez: "Será exacto que Ratchett foiapunhalado pormais de umapessoa?” e “Que outra explicaçãohaverá para a natureza dos ferimentos?” Na minha opinião,profissionalmente falando, não há outra explicação. E absurdoimaginar que alguém ferisse a princípio ao de leve, depois comforça, dando uns golpes com a mão direita, outros com aesquerdae,aocabodeumintervalodetalvezumahoraemeia,tornasseaapunhalaroinimigo,jámorto.
–Não–dissePoirot.–Édefatoabsurdo.Achamaisaceitávelahipótesededoiscriminosos?
– Como o senhor mesmo disse, que outra explicação podehaver?
Poirotfitoudistraidamenteoolharadiantedesi.–Éoqueperguntoamimmesmo–disseele.–Eoquenão
cessodeperguntar.Depoisrecostou-senacadeira,e,batendonatesta, acrescentou: – De ora em diante tudo depende daqui.Reduzimos tudo à expressão mais simples. Os fatos aí estãodiante de nós, dispostos com ordem emétodo. Os passageiros,todos, prestaram depoimentos. Sabemos tudo o que é possívelsaber...defora.
EobelgasorriuafectuosamenteaBouc.– Até que tem sido uma boa brincadeira entre nós, esta de
sentar e imaginar a verdade. Pois bem, vou pôr essa teoria emprática.Façamomesmo.Fechemosolhosepensem.Ratchettfoiassassinadoporumouváriospassageiros.Qualouquaisdeles?
CapítuloIII
UMASÉRIEDEDETALHES
Passouumquartodehora,semqueninguémfalasse.BouceConstantino procuravam obedecer às instruções de Poirot.Tentavamchegaraumasoluçãoatravésdo labirintocomplicadodosfatos.
“Efectivamente é preciso pensar. Contudo, não tenho feitooutracoisa.Poirotdesconfiacomcertezaqueamoçainglesaestáimplicada nisto. Mas é impossível. Os ingleses sãomuito frios.Provavelmente porque não têm imaginação... Mas isto nãointeressa.Aoqueparece,nãofoioitaliano,épena!Suponhoqueocriadonãomentiu,afirmandonãootervistosairdocamarote.E se tivesse mentido? Não é fácil... os Ingleses são muitoreservados.Quedesgraça!Quandonoslivraremosdisto?Deveriahaver algum meio de apressar as coisas. São, porém, tãovagarosos nestes países!... Levam horas para fazer qualquertrabalho. E a polícia local enche-se de importância e de amor-próprio. Farão disto uma coisa do outromundo! Não émuitasvezesquetaiscasoslhessucedem.Ofatoserápublicadoemtodososjornais...”
EdaíasreflexõesdeBoucretomaremocaminhoquehaviamseguidocentenasdevezes.
Constantinopensava:“É engraçado esse homenzinho! Um génio? Um ladino?
Resolveráestecaso?Impossível!Nãovejoumasaída.Étudotãoconfuso.Todosmentiramtalvez.Masissonãoadiantanada.Quertenhammentido,querdigamaverdade,adificuldadeéamesma.Eosferimentos?Nãoentendo...Seriamaisfácildecompreenderseohomemtivessesidoassassinadoatiros...queterraestranhaaAmérica!Gostariadeirparalá.Eumpaísprogressista.Quandovoltaràminhacasa,precisofalaraDemetriusZagone...eleestevenaAmérica,temideiasmodernas.Gostariadesaberoqueestáafazernestemomento...Seaminhamulherdescobrisse...”
E as suas ideias concentraram-se inteiramente em assuntosparticulares.
Poirot permanecia imóvel. Parecia dormir. Depois, de súbito,ao fim de quinze minutos de imobilidade completa, começou a
mover as sobrancelhas, soltou uma espécie de gemido emurmurounumsopro:
–Porquê?Sefosseassim...sim,istoexplicariatudo.O belga arregalou os olhos, que se haviam tornado verdes
comoosdeumgato.Depoisperguntouemvozbaixa:–Então?Eujápensei.Eossenhores?Perdidos nas próprias reflexões, os outros dois tiveram um
violentosobressalto.–Eutambémpensei–disseBouc,umtantoenvergonhado.–
Porém,nãochegueianenhumaconclusão.Aliás,aelucidaçãodocrimecompeteaosenhorenãoamim.
– Eu também reflecti seriamente – afirmou o médico comdescaramento. – Pensei em diversas teorias, mas nenhuma mesatisfez.
Poirotanuiu,pareciadizer:“Muitobem!Eoquesedevedizer.É o que eu esperava.” Depois endireitou-se, cofiou o bigode edispôs-se a falar, como se fosse um orador experimentado,arengandonumcomíciopúblico.
–Meusamigos!Passeimentalmenteemrevistatodososfatosemeditei sobre todos os depoimentos. Cheguei à seguinteconclusão:vejo,aindaquemuitoindecisa,umasoluçãoparaestecaso.Émuitocuriosaeeuaindanãotenhoacertezadequesejaverdadeira.Antesdemepronunciardefinitivamente,precisofazeralgumas experiências. Desejomencionar alguns pontos quemeparecem sugestivos. Comecemos comuma observação feita pelomeu amigo Bouc, neste salão, durante o primeiro almoço dospassageiros.Elecomentouentãoofatodeestarmoscercadosporgente de todas as classes, idades e nacionalidades, caso raronestaépocadoano.OsvagõesAtenas-PariseBucareste-Paris,porexemplo, estão quase vazios. Lembremo-nos, também, de umpassageiro que à última hora não veio. Isto é, a meu ver,significativo. Além disto, há ainda outros pontos de menorimportância, que me impressionam: a posição do saco deesponjas de Mrs. Hubbard, o nome da mãe da senhoraArmstrong,osprocessospoliciaisdeMr.Hardman,asugestãodeMacQueendequeRatchettdestruiuopapelqueencontramos,onome de baptismo da princesa Dragomiroff e a mancha degorduranopassaportehúngaro.
BouceConstantinofitaramodetective.
–Estasobservaçõesnãolhessugeremnada?–Francamentenão–confessouBouc.–Eaodoutor?–Nãoentendiamaiorpartedasobservaçõesquefez.Entretanto,Bouc,impressionadopelaúnicacoisapalpávelque
o amigo acabavade dizer,mexianos passaportes; apanhouumcomumsuspiro,odoscondesAndrenyieabriu-o.
–Aquesereferia?Aestamancha?–Sim.Essamanchaérecente.Vêondecaiu?– No princípio da descrição da condessa... no seu nome de
baptismo, para ser exacto. Porém, confesso que ainda nãopercebo.
–Voumostrar-lheistosobreoutropontodevista.Voltemosaolenço,encontradonolocaldocrime.Comodissemoshápouco,ainicial H serve a três pessoas: Mrs. Hubbard, Mary HermioneDebenham e Hildegarde Schmidt. Examinemos este lenço soboutroaspecto.Éumlençomuitocaro,umobjectodeluxofeitoàmão, bordado em Paris. A qual das passageiras, excluindo ainicial, é mais provável que pertença? Não, decerto, à Mrs.Hubbard, mulher sensata, sem pretensões a elegâncias caras,nemaMaryDebenham,essaclassede inglesasusaumsimpleslençodelinhoenãoessevaliosoretalhodecambraia,quetalvezcuste uns duzentos francos. Muito menos a criada. Há nestecomboio apenas duas damas, a quem o lenço pode pertencer:vejamosseépossívelassociá-lasàletraH.AsmulheresàsquaismerefirosãoaprincesaDragomiroff…
–CujonomeéNatália–atalhouBouc,comironia.– Exactamente. Esse nome, aliás, é um dos fatos sugestivos
que apontei. A outra é a condessa Andrenyi. Alguma coisa nosdiz...
–Avocê!– A mim, então. O nome de baptismo dessa senhora está
alterado no passaporte, pela mancha de gordura. Um simplesdescuido, dirão todos. Mas consideremos esse nome: Elena.SuponhamosqueemlugardeElenaeraHelena.AmaiúsculaHtransforma-se em E, corre-se a pena sobre o “e” minúsculovizinho...eamanchadegorduradisfarçaaalteração.
–Helena!–ExclamouBouc.–Éumaideia!–Certamente!Procureiumaconfirmação,pormenorquefosse,
paraprovarestahipóteseeconseguiencontrá-la.Encontrei-anamaladacondessa,numrótulodebagagemligeiramentehúmido.O que trazia o nome dela, na tampa damala, fora arrancado esubstituídoporoutrocoladopoucoantes.
–Começaaconvencer-me,caroamigo–disseBouc. –MasacondessaAndrenyi...certamente.
–Ah!monvieux!Acabadedarumavoltaencarandoocasodemododiverso.Comodevia esse crimeapareceraosobservadoresestranhos?Lembre-sedequeanevetranstornoutodososplanosdo criminoso. Suponhamos que não havia neve e o comboiocontinuavaasuamarchanormalmente.Quesucederia?Segundotodas as probabilidades, o crime seria descoberto esta manhãperto da fronteira da Itália. Os depoimentos, na sua maioria,seriamprestadosperanteapolíciaitaliana.MacQueenmostrariaas cartasameaçadoras eHardmancontariaa suahistória,Mrs.Hubbard declararia que vira um homem no seu camarote, seencontraria o botão. Só duas coisas seriam diferentes: ocriminoso teria fugido por um dos banheiros deixando ali ouniformedechefedepessoaldocomboio?
–Quequerdizer?–Queocrimedeveriaparecerobradeumestranho.Julgar-se-
ia que o assassino desembarcara em Brod, onde o comboioprovavelmente chegariaàmeia-noite e cinquentaeoito.Alguémesbarraria com um chefe de pessoal desconhecido. O uniformeseriadeixadonumlugaradequadoparamostrarcomosederaologro.Nãosepoderiasuspeitardenenhumpassageiro.Sobesteaspecto,meuamigo, é que o crimedevia aparecer!Aparadadocomboioalterouasituação.Eis,semdúvida,omotivoporqueocriminosoficoutantotempojuntodavítima.Eleesperavaqueocomboio retomasse a marcha. Afinal, compreendendo queestávamos parados definitivamente, arquitectou diversos planos.Nãolheconvinhafazercreraosoutrosqueestavanocomboio.
– Sim, sim – atalhouBouc, impaciente. – Compreendo.Masquerelaçãotemtudoissocomolenço?
–Lávoltareiporumcaminhocircular.Devecompreenderqueascartasameaçadoraseramumardil.Podemtersidoextraídasdealgumanovelapolicial americana.Não são reais.Destinavam-seapenas à polícia. Precisamos perguntar a nós mesmos:“Enganaram Ratchett?” À vista do que sabemos a resposta é:
“Não”.AsinstruçõesdoamericanoaHardmanparecemreferir-seauminimigoparticular,bemconhecido.Isto,seacreditarmosnodepoimento de Hardman. Porém, Ratchett recebeu com certezaumaverdadeiracartaameaçadora,referenteàpequenaArmstronge foi um pedaço desta que encontramos no camarote. Se nãocompreendera antes, Ratchett entendeu, afinal, a causa dasameaças à sua vida. Essa carta, a queme referi, não devia serencontrada.Oprimeirocuidadodocriminosofoidestruí-la.Nesseponto,viu-senovamentecontrariadonosseusplanos,antes,foraa neve, desta vez, a reconstrução de um fragmento da carta. Adestruiçãotãoescrupulosadesseescritodeveobedeceraomotivoseguinte: há, sem dúvida, neste comboio uma pessoa tãointimamente ligada à família Armstrong, que essa carta, sendoencontrada,aacusariaimediatamente.
Passemosagoraaosoutrosdois indícios.Deixemosde ladoolimpador de cachimbos. Já falamos bastante a este respeito.Deixemos o lenço. Reduzindo-os à significação mais simples, éumindício,queincriminaumapessoa,cujonomecomeçaporH,efoiperdido,semosentir,poressapessoa.
–Exactamente–disseConstantino.–Quandoessapessoadeupelafaltadolenço,tratoulogodealteraroseunome.
–Comovailonge!Chegaàconclusãomaisdepressadoqueeutencionavapermitiramimmesmo!
–Háoutraalternativa?– Naturalmente! Suponha, por exemplo, que cometeu um
crimeequerlançarasuspeitasobreoutrapessoa.Bem,hánestecomboio uma pessoa intimamente relacionada com a famíliaArmstrong, é umamulher. Seria interrogada, o seu parentescocoma famíliaArmstrongviriaà luz, eeisummotivosérioparaacusá-la.
– Mas, em tal caso – objectou o médico – se a pessoa emquestãoestivesseinocente,nãoesconderiaaprópriaidentidade.
–Realmente?Éoquepensa?Essaseriatambémaopiniãodapolícia. Eu, porém, conheço a natureza humana e asseguro-lhequequalquerpessoa,pormais inocentequeseja,naperspectivade ser acusada de um crime, perderia a cabeça e praticaria osmaiores absurdos. Não, não, a mancha de gordura e o rótulodeslocado não provam nenhum crime, mostram apenas que acondessa Andrenyi, por ummotivo qualquer, deseja esconder a
própriaidentidade.– Que pensa da relação que essa senhora pode ter com a
família Armstrong? Não nos disse ela que nunca esteve naAmérica?
–Exactamente,elafalamalinglêseexageraemsuaaparênciade estrangeira. Porém, não é difícil imaginar quem ela é.Mencionei há pouco o nome da mãe de Mrs. Armstrong. EraLindaArden, célebreactriz...notável intérpretedeShakespeare.Lembre-se, se quiser, da Floresta de Arden e Rosalinda.ReferênciaàpeçadeShakespeareComo lheAproveu. (N.doE).Foidaíqueelatirouoseunomedeteatro.LindaArden,onomecomquesecelebrizouemtodoomundo,nãoeraodela.PodiaserGoldenberg... ela era evidentemente de família originária daEuropa Central... talvez israelita. Há muitas nacionalidades naAmérica.Opino,meusamigos,queairmãmaisnovadasenhoraArmstrong, quase criança na época da tragédia, era HelenaGoldenberg, a filha mais nova de Linda Arden, e casou com oconde Andrenyi, quando este era adido à embaixada emWashington.
– A princesa Dragomiroff diz que a jovem casou com uminglês...
–Decujonomenãoserecorda!Seráverdade,meusamigos?Aprincesa Dragomiroff estimava Linda Arden como uma grandedama estima uma grande artista. Era madrinha de uma dasfilhas da actriz. Como poderia esquecer tão facilmente o nomeactual da jovem?Não é lógico! Não, creio que podemos afirmarqueaprincesamentiu.SabiaqueHelenaestavanocomboio,viu-a.Quandosoubeaverdadeira identidadedeRatchett, imaginouquesuspeitaríamosdamoçaerespondeuànossaperguntadeummodovago,imaginandoumamentirabemafastadadarealidade.
Um dos criados do restaurante assomou à porta do vagão eaproximou-se.Depoisdirigiu-seaBouc:
–Possoservir?Jáestánahora.BoucolhouPoirot,esteassentiu.–Sejacomofor,éprecisoserviroalmoço.O criado saiu. Ouviu-se tocar a sineta e a voz do homem
anunciaroalmoçoemfrancêseinglês.
CapítuloIV
AMANCHADEGORDURANUMPASSAPORTEHÚNGARO
PoirottomoulugaraumamesacomBouceConstantino.Ospassageiros ali reunidos mostravam certo abatimento. Poucofalavam.AprópriaMrs.Hubbard,deordináriotãoloquaz,estavainsolitamentesilenciosa.Sentou-se,dizendo:
–Nemseicomotenhocoragemdecomer.Entretanto fez honra ao almoço, animada pela sueca, que
pareciacuidarespecialmentedela.Antesquea refeição fosse servida,Poirotagarrarao chefede
salão pela manga e dissera-lhe qualquer coisa. Constantinoadivinhou o que eram essas instruções, vendo que os condesAndrenyieramsempreservidosemúltimo lugar,e, terminadooalmoço,tiveramdeesperarmuitotempo.Tantoassimqueficaramsozinhos no salão. Quando ambos se levantaram e se dirigiamparaaporta,Poirotimitou-os.
–Desculpe,Madame,perdeuoseulenço.EPoirotestendeuoquadradinhobordado.Amoçaapanhou-o
mas,depoisdeexaminá-lo,devolveu-o.–Enganou-se.Nãoémeu.–Não?Temacerteza?–Todaacerteza.–Entretanto,Madame,éasuainicial,H.O conde sobressaltou-se. Poirot fingiu não ver. O detective
tinha os olhos fitos no rosto da condessa. Encarando-ofirmemente,elareplicou:
–Nãocompreendo,Monsieur.AsminhasiniciaissãoEeA.– Parece-me que não. O seu nome é Helena e não Elena.
HelenaGoldenberg,afilhamaisjovemdeLindaArden...HelenaGoldenberg,airmãdeMrs.Armstrong.
Houveum silênciomortal, durante doisminutos.Os condesAndrenyi haviam empalidecido horrivelmente. O detectivecontinuougentilmente:
–Dequeservenegar?Éaverdade,nãoé?Ocondeirrompeu,furioso:– Pergunto com que direito... Mas a esposa interrompeu-o,
tapando-lheabocacomamão.
–Não,Rodolfo.Deixe-me falar.É inútil negar o quediz estecavalheiro.Melhorseráquenosexpliquemos.
A voz da moça mudara. Embora conservando a riqueza detimbre meridional, tornara-se mais clara e incisiva. Era pelaprimeira vez uma voz bem americana. O conde calara-se.ObedeceuàesposaeambossesentaramdiantedePoirot.
–Osenhortemrazão–disseela.–SouHelenaGoldenberg,airmãmaisnovadeMrs.Armstrong.
–Nãoodisseestamanhã,senhoracondessa.–Não.–De fato, tudoquantoa senhora e seumaridomedisseram
eramentira.–Senhor!–Exclamouoconde,indignado.–Nãosezangue,Rodolfo.MonsieurPoirotfoiumtantobrutal,
masdisseaverdade.–Alegro-medequeoreconheçacomtantafranqueza,Madame.
Querexplicar-meagora,porqueprocedeuassimeporquealterouoseunomenopassaporte?
– Isso foi obraminha – atalhou o conde. Helena prosseguiucomamesmacalma:
–Naturalmente,MonsieurPoirot,devecompreenderomotivo,o nosso motivo. Esse homem que mataram assassinou minhasobrinha, causou a morte daminha irmã, partiu o coração domeu cunhado, as três criaturas a que mais queria e queconstituíamomeular,omeumundo!
A voz damoça soava com vibração apaixonada.Ela era bemfilha da mulher cujo poder de emoção levara às lágrimasauditóriosinteiros.
–Detodosospassageiros–prosseguiuelamaiscalma–sóeuteriaprovavelmentemotivoparamatá-lo.
–Enãoofez,Madame?– Juro-lhe, Monsieur Poirot, e meu marido sabe e também
poderájurarque,pormaiorquefosseatentação,nuncalevanteiumdedocontraessehomem.
– Confirmo,meus senhores – disse o conde. – Sob aminhapalavra de honra, na última noite Helena não deixou o seucamarote.Tomouumsoporífero,comojádisse.Asuainocênciaétotaleabsoluta.
Poirotcorreuoolhardeumparaooutrodosdoisesposos.
–Dou-lheaminhapalavra– repetiuoconde.Poirotmeneoulevementeacabeça.
– E também se responsabiliza pela alteração do nome nopassaporte?
– Monsieur Poirot – disse o conde apaixonadamente –considereaminhaposição.Imaginaqueeupossasuportaraideiadeveraminhaesposaenvolvidanumcasopolicial?Seiqueelaestá inocente, mas, como acaba de dizer, averiguado o seuparentesco com a família Armstrong, logo se tornaria suspeita.Seriainterrogada,presatalvez.Desdequeamásortenoslevouatomar o mesmo comboio que Ratchett, tinha a certeza de queaconteceriaqualquercoisa.Admitoquementiestamanhã,salvonumparticular.Aminhaesposanãodeixouo seucamarotenanoitepassada.
E o conde falava com uma seriedade que tornava difícilduvidardassuaspalavras.
– Não digo que não o acredite – replicou o detectivelentamente.–Asuafamíliaé,segundocreio,antigaenobre.Seriatriste para o senhor ver o nome de sua esposa envolvido numdesagradável caso policial. Compreendo tudo isso. Mas comoexplicaentãoapresençadolençodasuaesposanocamarotedomorto?
–Esselençonãoémeu,Monsieur–afirmouacondessa.–ApesardainicialH?–Apesarda inicial. Tenho lençosparecidos comesse, porém
nãoexactamenteiguais.Seinaturalmentequenãovaiacreditar,masasseguro-lhequeéassim.Esselençonãoémeu!
–Quemsabesealguémodeixoualiparaacusá-la?Acondessasorriu.– Tenta levar-me a admitir que o lençome pertence? Porém
nãoémeu,MonsieurPoirot–disseelagravemente.–Entãoporque,seolençonãolhepertence,alterouonomeno
passaporte?–Porque–replicouoconde–soubemosque foraencontrado
um lenço com a inicial H. Discutimos acerca disso, antes desermosinterrogados.MostreiaHelenaque,sevissemqueonomedela começava por H, a submeteriam a um interrogatóriorigoroso.EeratãosimplestrocarHelenaporElena.Foiobradeuminstante.
– O senhor conde tem todos os requisitos de um perfeitocriminoso!–DissePoirotsecamente.Grandeingenuidadeeumaevidentefaltadeescrúpulosemenganarajustiça.
–Oh!Não,não–interrompeuacondessa.–MonsieurPoirot,omeu marido explicou-lhe o que houve. Eu estava assustada –prosseguiu ela, passando subitamente a falar inglês – mais doque isso, aterrorizada, compreende? Fora tão horrível noutrotempo,eagoraoutravez,e tornar-mesuspeita,serpresatalvez.Estavadesesperada,compreende,senhorPoirot?
Avozdajovemtornara-seprofunda,rica,insinuante,eraavozda filha de Linda Arden, a grande actriz. Poirot fitou-agravemente.
–Se estiver inclinado a crerno quediz, e nãodigo quenãocreia,entãoasenhoradeveajudar-me.
–Ajudá-lo!– Sim. O motivo deste crime provém do passado... dessa
tragédia que a privou do lar e lhe amargurou a mocidade.Voltemos ao passado e ali talvez encontremos a explicação detudoisto.
– Que lhe posso dizer? Eles estão todosmortos – e a joveminsistiutristemente:–Todosmortos,todos...Roberto,Sónia...eaquerida,aadoradaDaisy!Tãoboazinha!...Tãofeliz!...Tãolinda!Éramosloucosporela!
–Houveoutravítima,Madame.Umavítimaindirecta,digamos.–ApobreSusanne?Éverdade,eutinha-aesquecido.Apolícia
interrogou-a. Estavam convencidos de que ela era cúmplice.Talvez fosse, mas involuntariamente. Tagarelandodesprevenidamente comumdesconhecido, informara-o dos diasem que a pequena Daisy saía. A pobre criatura ficou depoisdesesperada, julgandoquea tornassemresponsável.Eatirou-sedajanela.Oh!Foihorrível!–concluiuacondessa,estremecendoeescondendoorostoentreasmãos.
–Dequenacionalidadeeraessamoça,Madame?–Francesa.–Qualeraosobrenome?– Parece incrível, não me lembro. Só a conhecíamos por
Susanne.UmamoçaalegreededicadaàDaisy!–Eraama-seca?–Sim.
–Quemmaiscuidavadamenina?– Uma enfermeira formada num hospital. Chamava-se
Stengelberg. Era também muito afeiçoada à Daisy e à minhairmã.
–Agora,Madame,peço-lhequepensebemantesderespondera esta pergunta. Não encontrou neste comboio nenhumconhecido?
Ajovemencarouodetective.–Eu?Não,absolutamente.–EaprincesaDragomiroff?–Ela?Conheço-a, nãohá dúvida. Julguei que se referisse a
alguémdaqueletempo.–Exactamente,Madame.Pensebem.Passarammuitosanos.
Essapessoapodetermudado.Depoisdereflectir,Helenareplicou.–Não...tenhoacerteza...nãoháninguém.– A senhora mesma, naquela época era uma menina, não
tinhaquemlhevigiasseosestudos?–Oh,sim!Umaespéciededragão,umagovernantaqueeraao
mesmo tempo secretária de Sónia, inglesa ou escocesa, umamulheronagrandeeruiva.
–Comosechamava?–MissFreebody.–Velhaounova?– Parecia-meuma avó.Mas suponho quenão tinhamais de
quarentaanos.Susanneencarregava-sedaminharoupaeservia-medecriadadequarto.
–Enãohaviaoutraspessoasemcasa?–Sócriados.–Etemacerteza,Madame,dequenãoreconheceuninguém
nestecomboio?–Nãosenhor.Ninguém.–replicouelagravemente.
CapítuloV
ONOMEDEBAPTISMODAPRINCESADRAGOMIROFF
Logo que os condes Andrenyi saíram, Poirot relanceou umolharpeloscompanheiros.
–Comovêem–disseele–fazemosprogressos.-Óptimo trabalho! – Disse Bouc cordialmente. – Por minha
parte, nunca suspeitaria dos condes Andrenyi. Sempre osconsiderei"foradecombate”.Elafoiacriminosa,semdúvida,nãoéverdade?Quetristeza!Emtodoocaso,nãoseráguilhotinada.Há circunstâncias atenuantes. Alguns anos de prisão e maisnada.
– O senhor tem realmente a plena certeza de que ela éculpada?
–Meucaroamigo,podeduvidardisso?Suponhoqueosseusmodos tranquilizadores tiveram apenas o fim de atenuar ascoisas,atéquenospossamos livrardanevee entregaro casoàpolícia.
–Nãocrênaasserçãodoconde,napalavradehonra,quantoàinocênciadaesposa?
–Meucaro,naturalmente.Quemaishaviaelededizer?Adoraa esposa. Procura salvá-la. Ele mentiu muito bem, como umverdadeirofidalgo,porémnãodeixoudementir.
–Poisbem,saibaqueeutenhoaprecauçãodecrerquepodeserverdade.
–Não,não!Lembre-sedolenço.Olençoconfirmaasuspeita.–Oh!Nãotenhotantacertezaarespeitodo lenço.Lembre-se
de que já apontei a possibilidade do lenço pertencer a outraspessoas.
–Contudo...EBoucinterrompeu-se.Aportaabrira-se,dandopassagemà
princesaDragomiroff.Ostrêshomenslevantaram-se,enquantoavelha dama se aproximava deles. Ignorando os outros dois, eladirigiu-seaPoirot.
–Creio–disseela–queosenhor temum lençomeu.Poirotdeitouumolhardetriunfoaoscompanheiros.
–Éeste,Madame?Eestendeuopequenoretalhodecambraia.
–Exactamente.Temaminhainicialnumdoscantos.–Mas, princesa, é a letraH – disseBouc. –O seunome de
baptismo,éNatália.Arussalançou-lheumarglacial.– Decerto, senhor. Mas os meus lenços são todos marcados
comcaracteresrussos.HéNnoalfabetorusso.Bouc calou-se, vencido. Alguma coisa nessa velha fidalga
indomávelohumilhavaeconstrangia.–Nãonosdisse,noinquéritodessamanhã,queestelençolhe
pertencia.–Ninguémmeperguntou–replicouaprincesasecamente.–Queirasentar-se,Madame–dissePoirot.– Suponho que terei de sentar-me – suspirou ela, tomando
lugar numa cadeira. – Não são precisos muitos preâmbulos –continuoudepois.–Perguntarãodecertocomosepôdeencontrarumlençomeujuntodocadáver.Afirmo-lhesquenãotenhoideia.
–Realmente?–Nemamenorideia.– Desculpe, minha senhora, mas como poderemos crer na
veracidadedassuaspalavras?Poirot falava com brandura. A princesa replicou
desdenhosamente:– Desconfio que diz isso, porque não lhe disse que Helena
AndrenyierairmãdasenhoraArmstrong.–Defato,mentiudeliberadamentenesseponto.–Éclaro!E tornariaa fazeromesmo.Amãedela foiminha
amiga.Eeucreionalealdadetratando-sedeamigos,dafamíliaedaprópriacasta.
–Nãolheparecequedeveriaprocederassimcomajustiça?–Nestecasoconsideroquesefezjustiça.Justiçarigorosa.Poirotcurvou-se.– Considere a dificuldade em que me acho, Madame. Posso
crernoquedizacercadolenço?Nãoestaráprotegendoafilhadasuaamiga?
–Oh, compreendo o que quer dizer! – Tornou ela, comumacareta. – Mas, meus senhores, a minha afirmação pode serfacilmente provada. Dar-lhes-ei o endereço das casas de Paris,ondeencomendoosmeuslenços.Bastarámostrar-lheseste,paraque lhes digam que foi feito porminha ordem há cerca de um
ano.Olençoémeu.Eaprincesalevantou-se.–Desejammaisalgumacoisa?– A sua criada não reconheceu este lenço, quando lho
mostramos,estamanhã?!–Deveriatê-lo feito.Viu-oenãodissenada?Ah! Issomostra
queelatambémsabeserleal!E, com um leve aceno, a velha dama saiu do vagão-
restaurante.–Entãoeraisso–murmurouodetectivebrandamente.–Bem,
noteiumalevehesitaçãodacriada,quandolhepergunteisesabiaquem era a dona do lenço! Ela não se atreveu a confessar quepertencia à princesa. Mas como se pode conciliar isto com aminhaideia?Sim,podeser.
–Ah! –DisseBouc, comumgesto característico – que velhaterrível!
–PoderáelaterassassinadoRatchett?–Perguntouodetectiveaomédico.Constantinomeneouacabeça.
– Aqueles golpes... os que foram vibrados com muita força,penetrando nos músculos... não poderiam ser desferidos porpessoatãofranzina.
–Eosmaisfracos?–Ah!Esses,sim!– Pensava no incidente desta manhã – prosseguiu Poirot –
quandodisseàprincesaqueaforçadelaestavamaisnavontadedo que nos braços. Esta observação foi uma cilada que eu lhearmei. Queria ver se ela olhava para a mão direita ou para aesquerda. E ela considerou os dois braços. Mas deu-me umarespostaestranha,dizendo:“Defato,nãotenhoforçasneles.Nãoseisefelizouinfelizmente.”Quecuriosaobservação!Istoconfirmaaminhasuspeita.
–Nãoesclarece,porém,ahipótesedoassassinocanhoto.–Não.Apropósito:notouqueocondeAndrenyi trazo lenço
nobolsodireito?Boucmeneouacabeça.Pensavanasrevelaçõesextraordinárias
daúltimameiahora.–Mentiras...emaismentiras!–Murmurouele.Assusta-meo
cúmulodefalsidadesquenosdisseramestamanhã!–Emaishaveráparadescobrir–dissePoirotalegremente.
–Parece-lhe?–Ficariamuitosurpreendidoseassimnãofosse.– Semelhante duplicidade é horrível! – Continuou Bouc. –
Entretanto,pareceagradar-lhe–acrescentou,comardecensura.– Tem esta vantagem: – replicou Poirot – pondo omentiroso
diante da verdade, ele logo admite que mentiu. Basta saberdesferirogolpe.Éoúnicomeioderesolverestecaso.Passoemrevista todos os passaportes, considero-lhes os depoimentos edigoamimmesmo:“Seelesmentem,emqueconsisteamentiraeporquementem?”Erespondo:“Sementem(note:digose)deveserpor qualquer motivo e num determinado ponto.” Procedendoassim,tivemosumêxitosurpreendentecomacondessaAndrenyi.Experimentemosomesmoprocessocomoutraspessoas.
–Eseasuadesconfiançafosseinfundada?– Então, ao menos, essa pessoa estaria isenta de toda a
suspeita.–Ah!Umprocessodeeliminação.–Exactamente.–Quemviráagora?–Ataquemosopukkasahib,oCoronelArbuthnot.
CapítuloVI
UMASEGUNDAENTREVISTACOMARBUTHNOT
O coronel apresentou-se para essa segunda entrevista,visivelmenteaborrecido.Asuafisionomiadenunciavaamaiormávontade,quandoelesesentoudiantedePoirot.
–Então?–Perguntouooficial.–Desculpe-meimportuná-looutravez–começouodetective.–
Trata-se,porém,deumainformaçãoqueosenhornospodedar.–Defato?Custa-meacrer.–Paracomeçar,vêestelimpadordecachimbos?–Sim.–Éumdosseus?–Nãosei.Nãopusmarcaespecialneles.– Sabe, coronel, que o senhor é o único homem que fuma
cachimbonovagãoIstambul-Calais?–Nessecaso,éprovavelmenteumdosmeus.–Esabeondeencontramosesteobjecto?–Nãotenhoamenorideia.– Junto do cadáver da vítima. O coronel franziu as
sobrancelhas.–Podeexplicar-noscomoistofoiláparar?–Sepensaqueoperdi,engana-se.–EntroualgumaveznocamarotedeRatchett?–Nuncafaleicomessehomem.– Nunca lhe falou nem o assassinou? As sobrancelhas do
oficialfranziram-secomumaexpressãodeescárnio.–Seassimfosse,creioquenãolhodiriatãofacilmente.Mas,
porfalardoassunto,afirmo-lhequenãomateiesseindivíduo.–Ah,bem!–Murmurouobelga.–Nemserialógico.–Como?–Eudissequenemserialógico.–Oh!–Tornouocoronel,visivelmenteabatidoedeitandoao
detectiveumolharrancoroso.-Sabe... – prosseguiu Poirot – o limpador de cachimbos não
temimportância.Háparaeleonzeoutrasexplicaçõesexcelentes.Arbuthnotencarouoseuinterlocutor.– O que lhe queria dizer era coisa bem diversa – continuou
Poirot. – Talvez Miss Debenham lhe tenha contado quesurpreendi algumas palavras, que ela lhe disse na estação deKonya.
Ocoronelnãoreplicou.Poirotinsistiu:– “Agora não.Quando tudo tiver passado.Quando tudo isto
ficarparatrás”,foioqueeladisse.Sabeaquesereferiamessasfrases?
– Lamento, Monsieur Poirot, mas recuso responder a essapergunta.
–Porquê?–PeçaàMissDebenhamosentidodessaspalavras–sugeriu
secamenteooficial.–Jáofiz.–Eelarecusouresponder?–Sim.– Então, creio que deveria compreender que tenho os lábios
selados.–NãoquerdenunciarosegredodeumaLady?–Éisso,seprefere.–MissDebenhamdisse-mequeassuaspalavrassereferiama
umassuntoparticular.–Entãoporquenãosecontentoucomessaexplicação?–Porque,CoronelArbuthnot,MissDebenhaméoquesepode
chamarumcaráctermuitosuspeito.–Éabsurdo!–Disseocoronel,comcalor.–Nãoéabsurdo–replicouPoirot.–Nãotemprovascontraela!–NemofatodetersidogovernantanafamíliaArmstrong,na
épocaemqueraptaramapequenaDaisy?Seguiu-se um silênciomortal. Poirot curvou discretamente a
cabeçaecontinuou:–Comovê, sabemosmaisdoquepensa.SeMissDebenham
está inocente, porque ocultou esse fato? Porque afirmou nuncaterestadonaAmérica?
Ocoronelpigarreouedisse:–Quemsabesenãoseengana?–Nãomeengano.PorqueMissDebenhammentiu?Ocoronelencolheuosombros.–Seriamelhorqueoperguntasseaelamesma.Aliás,creioque
seengana.Levantando a voz, Poirot chamou um dos empregados,
colocadosnaextremidadedosalão.– Vá dizer à senhorita inglesa do número 11 se quer ter a
bondadedeviratéaqui.–Sim,senhor.O criado afastou-se. Os quatro homens ficaram em silêncio.
Rígido e impassível, o rosto do coronel parecia talhado emmadeira.Ocriadovoltou,anunciando:
–Asenhoritajávem.– Obrigado. Um ou dois minutos depois, Mary Debenham
entrounosalão.
CapítuloVII
AIDENTIDADEDEMARYDEBENHAM
A jovem estava sem chapéu. Tinha a cabeça erguida, numaatitudededesconfiança.Oscabeloscaíamparatrás,eacurvadasnarinas lembravam a proa de um navio mergulhadogalhardamente num mar agitado. Nesse momento, a joveminglesa era linda deveras. Os seus olhos encontraram os docoronelporespaçodeumsegundo,apenas.
–Desejavafalar-me?–PerguntouelaaPoirot.–Desejoperguntar-lheporquenosmentiuestamanhã.–Mentir-lhes?...Nãocompreendooquequerdizer!–Ocultou-nosqueviviajuntodafamíliaArmstrong,naépoca
da tragédia. Disse-nos, pelo contrário, que nunca estivera naAmérica.
Poirotviuajovemfraquejaruminstante,pararecobrarlogooânimo.
–Sim–disseela.–Éverdade.–Não,Mademoiselle,eramentira.–Nãoentendeu.Quisdizerqueéverdadequelhementi.–Ah,confessa?Oslábiosdajovemcontraíram-senumsorriso.–Certamente.Desdequeodescobriu...–Afinalfoifranca.–Nãoháoutromeio.– Bem, é verdade. E agora, posso perguntar-lhe o motivo
dessasmentiras?–Achoquesaltaaosolhos.–Aosmeusnão,Mademoiselle.–Precisoganharaminhavida–disseela,comumavozcalma
eresoluta.–Quequerdizer?Ajovemlevantouosolhoseencaroufirmementeodetective.–Devecompreender,MonsieurPoirot,oquecustaencontrare
conservar um emprego aceitável. Acha que umamoça, ligada aumcasopolicialecujonomeetalvezoretratosejampublicadosnosjornaisingleses,possaencontrarumamãedefamíliaquelheconfieaguardadasfilhas?
–Nãovejoporquenãoofaria,senadamanchaonomedessamoça!...
– Oh, não se trata de mancha!... É publicidade! Até hoje,MonsieurPoirot, tive sorte. Fui bempaga e obtive semprebonslugares.Nãoqueriaarriscarinutilmenteaminhaposição.
– Atrevo-me a dizer que, nesse caso, eu teria sido o melhorjuiz.
Amoçaencolheuosombros.– Por exemplo, a senhorita podia ajudar-me em questões de
identidade.–Quequerdizercomisso?–EpossívelquenãotenhareconhecidonacondessaAndrenyi
airmãmaisnovadeMrs.Armstrong,ameninaquefoisuaalunaemNovaIorque?
– Condessa Andrenyi? Não! – E Mary Debenham sacudiu acabeça.–Emboralhepareçaincrível,nãoareconheci.Elaaindaeraumamenina,quandoaconheci,hátrêsanos.Éverdadequeacondessame lembravaalguém...E isso intrigava-mebastante.Mas parecia uma estrangeira... nunca teria reconhecido nela amenina de outros tempos. Demais, só a observei casualmenteaquinosalão.Examinei-lhemaisovestuáriodoqueorosto.–Amoça sorriu levemente. – Um hábito bem feminino. Aliás, euestavapreocupadacomoutrascoisas...
–Nãomecontaráoseusegredo,Mademoiselle?–DissePoirot,emtombrandoepersuasivo.
–Nãoposso...Nãoposso...–respondeuela,emvozbaixa.E,desúbito,deixandocairorostonosbraçosestendidos,pôs-
seachorarconvulsivamente.Arbuthnotlevantou-seeaproximou-sedela.
–Eu...Escute...Depois, interrompeu-se, encolerizado, e, voltando-se para
Poirot,bradou:–Quebro-lheosossosdessecorpomaldito,imundosabujo!– Senhor!... – Protestou Bouc. Mas Arbuthnot voltara para
juntodamoça.–Mary!...PoramordeDeus!...Elalevantou-se.–Nãoénada.Jánãoprecisamaisdemim,MonsieurPoirot?
Seprecisar,podeprocurar-me.Oh!Fuitola!Bemtola!Edeixouocompartimento.Antesdesair,Arbuthnotvoltou-se
maisumavezparaPoirot.–MissDebenhamnadatemquevercomestecaso,ouviu?Se
tornaraaborrecê-la,terádeseentendercomigo!Eocoronelretirou-se.– Gosto de ver um inglês furioso – disse Poirot. – São
divertidos! Quanto maior é a emoção, tanto mais facilmenteperdemodomíniodalíngua.
Entretanto,aBoucpoucoimportavamasreacçõesemotivasdeuminglês.Odirectorestavapasmadodeadmiraçãopeloamigo.
–Meucaro,éextraordinário!–Exclamouele.–Outrocálculomilagroso!...Formidável!
– Parece incrível que imagine essas coisas – acrescentouConstantinocomadmiração.
–Oh!Destavez,oméritonãoémeu.FoiacondessaAndrenyiquemmeinformoupraticamente.
–Como?Nãoépossível!– Lembra-se de que eu a interroguei acerca da governanta?
Semprecalculeique,seMaryDebenhamestava implicadanestecaso, devia ter desempenhado esse papel junto da famíliaArmstrong.
– Sim, mas a condessa descreveu um tipo de mulher tãodiverso!
– Justamente. Uma mulherona, ruiva, de meia-idade,exactamente ao contrário do aspecto de Mary Debenham. Masdepois teve de inventar de improviso um nome. Foi então queumainconscienteassociaçãodeideiasatraiu.ElafaloudeumatalFreebody,lembra-se?
–Então?– Pois bem, é provável que não saiba da existência de uma
firma comercial de Londres, que até há bempouco se chamavaDebenhameFreebody.Tendonopensamentooprimeirodessesnomes,asenhoraAndrenyiprocurouàpressaoutroqualquereaproveitou o primeiro que lhe ocorreu: Freebody. Compreendilogo.
–Outramentira!Masporquementeelaassim?– Possivelmente para ser leal. É isto o que temdificultado o
caso.–PorDeus!–ExclamouBouc,comviolência.–Épossívelque
todosmintam,nestecomboio?
–Isso–replicouodetective–éoquevamosapurarembreve.
CapítuloVIII
MAISREVELAÇÕESSURPREENDENTES
–Nadamesurpreenderiaagora–disseBouc.–Nada!Emboratodos os passageiros do comboio provem que fazem parte dafamíliaArmstrong,eunãomostrareiamenorsurpresa.
–Eisumaobservaçãoprofunda!–DissePoirot.–Nãogostariadesaberoqueoseususpeitofavorito,oitaliano,temadizer?
–Vaifazeroutrocálculosensacional?–Exactamente.–É,defato,ocasomaisextraordinário!–DisseConstantino.–Não,omaisnatural.Bouclevantouosbraços,numgestode
cómicodesespero.–Seaissochamanatural,meuamigo!..Ecalou-se,àfaltade
palavras apropriadas. Entretanto, Poirot mandara chamarAntónioFoscarelli.Oitalianoentroucomardesconfiado,olhandoparatodososlados,comoumanimalpresonaarmadilha.
–Quedesejam?–Perguntouele.–Nadatenhoadizer,nada!Ouviram?...–eorapazbateucomopunhonamesa.
–Sim,osenhoraindatemqualquercoisaadizer–tornou-lheodetective,comfirmeza.–Averdade!
–Averdade?E o italiano lançou um olhar desconfiado a Poirot. Perdera
todaajovialidadeesegurança.–Sim.Éprovávelqueeujáaconheça.Todavia,seosenhora
confessarespontaneamente,teráumpontoaseufavor.– Fala como a polícia americana. “Passe as coisas a limpo”,
dizemeles,“Passeascoisasalimpo”.–Ah!EntãotempráticadapolíciadeNovaIorque?–Não, não, nunca!Eles nada podemdizer contramim.Não
lhesfaltou,porém,vontade!–NocasoArmstrong,nãoé?–DissePoirotcalmamente.–O
senhoreraomotorista?E os olhos do investigador cravaram-se no italiano.O pobre
rapazperderatodaaprosápia.Lembravaumbalãovazio.–Desdequesabe,porquepergunta?–Porquementiuestamanhã?– Por motivo de negócio. Aliás, eu não confio na polícia
Jugoslava.Elesodeiamositalianos.Nãomefariamjustiça.–Talvezlhefizessem,defato,justiça.– Não, não, eu nada tenho com este caso! Não saí do meu
camarote.O inglêsdecarachupadapodeconfirmar.Não fui euquem matou esse animal, esse Ratchett. O senhor nada podeprovarcontramim.
Poirot, que tomava apontamentos numa folha de papel,levantouosolhosedisse:
– Muito bem. Pode ir-se embora. Foscarelli pareciaconstrangido.
–Compreendequeeunadatenhocomestecrime?–Jálhedissequepodeir-seembora.– Isto éuma conjuração!Queremacusar-me?Tudoporuma
espécie de homem que merecia a cadeira eléctrica! Foi umainfâmia que ele não acabasse assim! Se fosse eu, se eu fossepreso...
–Sim,mascomonãofoiosenhor.Osenhornadatinhaquevercomoraptodacriança.
–Quediz?Apequeninaeraoencantodacasa!Chamava-meTónio.Equeriasentar-senocarroeguiar.Todososempregadosaadoravam. A própria polícia o reconheceu. Ah, que lindacriaturinha!
A voz do rapaz tremeu e os olhos encheram-se de lágrimas.Depois,girandosubitamentenoscalcanhares,saiu.
–Michel–chamouodetective.Oempregadoacudiu,correndo.–Onúmero10...asenhorasueca.–Sim,senhor.–Outro?–BradouBouc.–Oh!não!...Éimpossível!Garanto!– Meu caro, temos de saber. Embora todos provassem ter
motivoparamatarRatchett,precisaríamoscontinuaroinquérito.Afinal veremos.Quandosoubermos,apuraremosaquemcabeaculpa.
–Acabeçaestágirando!–GemeuBouc.Introduzidapelocriadocompassivo,GretaOhlssonsentou-se,
soluçando, diante de Poirot, e escondeu o rosto num lençoenorme.
– Não se aflija, Mademoiselle, não se aflija – disse Poirot,pousando-lhe a mão no ombro. – Diga apenas a verdade. EraenfermeiradapequenaDaisyArmstrong,nãoéverdade?
–Éverdade...éverdade–soluçouapobremulher.–Ah!Elaeraumanjo...umanjinhobom.Nãoconheciasenãoabondadeeaternura...efoiraptadaporessehomemperverso...maltratada...eapobremãe...eaoutracriancinhaquenãochegouaviver...Osenhornãopode compreender... nãopode!Se estivessenomeulugar...se tivesseassistidoaessa tragédia...Devia ter-lheditoaverdade, esta manhã. Mas tive medo. Estava tão contente porsaber que essemonstromorrera!... Que já não podiamatar oumaltratar as criancinhas! Ah! Não posso falar... não tenhopalavras...
E a sueca desatou a chorar com mais veemência. Poirotcontinuavaabater-lhebrandamentenoombro.
–Sim...sim...compreendo...compreendotudo...tudo...creia.Não lhe perguntarei mais nada. Basta que a senhora tenhaconfirmadoaminhasuposição.Compreendotudo.
Sacudida pelos soluços, Greta Ohlsson dirigiu-se,cambaleando,paraaporta,ondeesbarroucomumhomemqueentravanosalão.EraMasterman,ocriadodeRatchett.Oinglês,em passo compassado, aproximou-se de Poirot e disse-lhe comvozcalmaefria:
– Espero não ser importuno, senhor. Julguei melhor vircontar-lhe, de uma vez, a verdade. Fui ordenança do CoronelArbuthnotduranteaguerraedepoiscriadodeleemNovaIorque.Lamentonãooterditoestamanhã.Foimalfeito,senhor,eagoraquero confessar a verdade. Mas espero que não desconfie deTónio.O velhoTónionão fariamal aumamosca!Juro-lhequenão saiudo camarote, estanoite.Elenão cometeria este crime.Apesardeestrangeiro,Tónioéumacriaturaboa,nãoumdessesitalianosferozesdequeseouvefalar...
Oinglêscalou-seePoirotolhou-ocomfirmeza.–Étudooquetemadizer?–Sim,senhor.O criado tornou a calar-se. Como Poirot não falasse,
desculpou-se com um aceno e, depois de um momento dehesitação, deixou o salão, com o mesmo modo sossegado emodesto.
– Esta – disse Constantino – é a mais incrível das novelaspoliciaisquejáli!
–Concordo–disseBouc. –Dedozepassageirosdocomboio,
noveprovaramquetêmrelaçãocomocasoArmstrong.Queviráagora?Oumelhor:quemvirá?
–Possoquaseresponderàsuapergunta,meuamigo.Aívemonossoamericano,Hardman–replicouPoirot.
–Tambémconfessará?Antesqueodetectivepudesseresponder,oamericanochegara
àmesa.Deitandoumolharpenetranteaostrêshomens,sentou-se:
– Que há? Este comboio parece uma casa de loucos! Poirotpiscou-lheumolho.
–Tema certeza,Mr.Hardman,dequenão era jardineirodafamíliaArmstrong?
–Elesnãotinhamjardim–replicoufrancamenteooutro.–Mordomo,então?– Não tenho habilidade para esse emprego. Não, nunca tive
nenhumaligaçãocomacasaArmstrong,mascomeçoacrerquesouoúnico,aqui.Comopôdedescobrir?Eisoquepergunto.
–É,defato,umtantosurpreendente–dissePoirotcomcalma.–Éextraordinário!–BradouBouc.– Formou alguma opinião acerca do crime,Mr. Hardman? –
Perguntouodetective.–Não.Istoderrota-me.Nãoseioqueheidedizer.Nãopodem
sertodoscúmplices,masqueumdelessejaocriminosoéoquenãochegoacrer.Comoconseguiudescobrirtudoisto?Eisoqueeugostariadesaber.
–Calculeiapenas.–Entãoéumcalculadorextraordinário.Sim,direiatodosque
osenhorésimplesmenteassombroso!E Hardman recostou-se na cadeira, olhando o belga com
admiração.–Desculpeafranqueza–prosseguiuele–vendo-o,ninguémo
diria.Tiroochapéudiantedosenhor.–Émuitabondade,Mr.Hardman.–Deixe-sedisso!Éextraordinário!– Contudo – disse Poirot – o problema ainda não está
resolvido. Podemos afirmar com certeza que conhecemos oassassinodeRatchett?
–Exclua-me–disseHardman.–Nãodissenada.Estouapenascheiodeadmiração.E,acercadasenhoraamericanaedacriada
alemã, não adivinhou qualquer coisa? Suponho que podemosconsiderá-lasasúnicasinocentesdacomitiva.
–Anãoser–dissePoirot,sorrindo–queaspossamosincluirnanossapequenacolecçãocomo,vejamos,caseiraecozinheiradacasaArmstrong.
–Bem,nadamesurpreenderiaagora–tornouHardman,comcalmaresignação.Casadeloucos,éoqueistoé,casadeloucos!
– Ah! Meu caro, seria levar as coincidências muito longe –atalhouBouc.–Nãoépossívelquetodossejamcúmplices!
Poirotencarouoamigo.– Não compreende – disse ele. – Não compreende
absolutamente. Diga-me – prosseguiu – sabe quem matouRatchett?
–Eosenhor?Sabe?–Tornou-lheBouc.Poirotanuiu.– Sim – disse ele. – Já há algum tempo. É tão claro, que
admiraquenãootenhanotado.Voltando-separaHardman,obelgaperguntou:–Eosenhor?Odetectiveamericanomeneouacabeçae,fitandoobelgacom
curiosidade,replicou:– Não sei. Não sei nada. Qual deles? Poirot calou-se um
minuto;depoisdisse:– Senhor Hardman, quer ter a bondade de reunir todos os
passageirosaqui?Háduassoluçõesparaocaso:queroexpô-lasdiantedetodos.
CapítuloIX
POIROTPROPÕEDUASSOLUÇÕES
Os passageiros reuniram-se no vagão-restaurante e tomaramlugar em torno das mesas. Tinham todos mais ou menos amesma expressão de expectativa e de apreensão. A sueca aindasoluçavaeMrs.Hubbardtentavaconfortá-la.
–Nãoseaflija.Tudoficarábem.Nãopercaoânimo.Sealgumde nós é um criminoso, sabemos que não é decerto a senhora.Sim,nemébompensarnisso.Sente-seaqui,ficareiaoseulado.Nãotenhamedo.
Aamericana calou-se vendoquePoirot se levantava.O chefedopessoalassomouàporta.
–Permitequeeutambémentre,senhor?–Solicitouele.–Certamente,Michel.Poirotpigarreouecomeçouoseudiscurso.–SenhoreseSenhoras,falareieminglês,poisseiquetodosos
presentes compreendem este idioma. Estamos aqui parainvestigaramortedeSamuelEdwardRatchett,aliásCassetti.Háduassoluçõespossíveisparaocrime.Pretendoexpô-lasperanteos senhores, o senhor Bouc e o doutor Constantino julgarãodepoisqualdasduasémaisacertada.
Fezumapausaecontinuou:– Todos conhecem os fatos ocorridos. O senhor Ratchett foi
encontradomorto,apunhalado,estamanhã.Deuoúltimosinalde vida na noite passada, à meia-noite e trinta e sete, quandofaloucomochefedopessoal.Encontrou-seumrelógio,nobolsodo seu pijama, quebrado e parado à uma e quinze. O doutorConstantino, que examinou o cadáver, calcula a hora em queocorreu a morte entre a meia-noite e as duas horas damadrugada. Às vinte e três e trinta o comboio parou, como énotório,bloqueadopelaneve.Depoisdessahora,éimpossívelquealguémdeixasseocomboio.OdepoimentodosenhorHardman,funcionário de uma agência policial de Nova Iorque (váriascabeças voltaram-se para examinar Hardman) mostra queninguém podia passar diante do camarote ocupado por ele,número 16, na extremidade do vagão, sem ser visto. Somosobrigados a admitir que o criminoso deve estar entre os
passageirosdeumdosvagões...avagãoIstambul-Calais.Estaé,direi,anossateoria.
–Como?!–ArticulouBouc,estupefato.–Há,porém,umaalternativa.Émuitosimples.Mr.Ratchett
tinha um inimigo que temia. Descreveu-o ao Mr. Hardman edisse-lhequeoatentado,casoessehomemcumprisseaameaça,dar-se-ia mais provavelmente na segunda noite, depois dedeixarmos Istambul. Agora, observo-lhes, senhores e senhoras,queRatchettsabiamuitomaisdoquedisse.Oinimigo,comoelecalculava, embarcou em Belgrado, possivelmente em Vincovci,pelaportaqueoCoronelArbuthnoteMacQueendeixaramaberta,ao desembarcar na plataforma. O criminoso munira-se de umuniformedechefedopessoal edeumachave,que lhepermitiuentrarnocamarotefechadodosenhorRatchett.Esteestavasobaacçãodeumnarcótico.Oassassinoapunhalou-ocomverdadeiraferocidadeesaiudocamarote,pelaportadecomunicaçãocomodeMrs.Hubbard...
–Éisso–confirmouavelhaamericana,inclinandoacabeça.– Passando, enfiou o punhal na maleta de Mrs. Hubbard e
perdeu, sem sentir, um botão da jaqueta. Depois, fugiu para ocorredor.Escondeuàpressaouniformenumadasmalasdeumcamarote vazio e, muito depois, à paisana, deixou o comboio,poucoantesdesteterparado,pelaportaporondeentrara:asaídapróximadovagão-restaurante.
Todossoltaramumsuspirodealívio.–Eorelógio?–PerguntouHardman.–Aíosenhorencontraráaexplicaçãodetudooqueaconteceu.
Ratchett esquecera-se de atrasá-lo uma hora, como era preciso,em Tzaribrod. O relógio marcava a hora do Oriente, estandoassim adiantado uma hora, em relação aos da Europa Central.Mr.Ratchett foiapunhaladoàmeia-noiteequinzeenãoàumahoraequinze.
–Éabsurdo!–BradouBouc.–Eavozquefaloudocamarotedavítima,àsvinteetrêsparauma?EraadeRatchettouadoseuassassino?
–Talveznão.Podiaseradeumterceiro.AlguémquefoifalaraRatchetteoencontroumorto.Chamouentãoochefedopessoal,masderepente,receandoseracusadodocrime,respondeucomosefosseoverdadeiroRatchett.
–Épossível–admitiuBouc,relutante.PoirotdeitouumolharàMrs.Hubbard.
–Sim,minhasenhora,dizia?...–Ora,nãoseiaocertooqueiadizer.Achaqueeutambémme
esquecideatrasarorelógio?– Não, Madame. Creio que ouviu inconscientemente o
criminosoatravessaro camarote,mais tarde, viunumpesadelo,um homem no seu compartimento. Acordou então e chamou ochefedopessoal.
– Sim, é admissível – concordou a americana. A princesaDragomiroffencaroufixamenteobelga.
–Comoexplicaodepoimentodaminhadamadecompanhia?– Muito simplesmente. Ela reconheceu o lenço, senhora
princesa, quando eu lhe mostrei. Tentou então defendê-la.Encontrara,defato,ocriminoso...porém,maiscedo...Quandoocomboio estavana estaçãodeVincovci.Disse, entretanto, queoviramaistarde,comaideiaconfusadelhearranjarumálibi.
Avelhadamaanuiu.–Pensouemtudo,senhor.Admiro-o...Seguiu-seumsilêncio.
E todos estremeceram, quando Constantino, batendosubitamenteopunhonamesa,exclamou:
–Não!Não,não,maisumaveznão!Éumaexplicaçãoquenãosesustenta, édeficientepelomenosnumadezenadepontos!Ocrimenãofoicometidoassim...osenhorPoirotsabemuitobem.
Odetectivefitou-o,comumolharmalicioso.–Vejo–disseele–queprecisoformularaoutrasolução.Não
despreze, porém, esta assim tão depressa. Talvez a aceite maistarde.
Eodetectivetornouavoltar-separaoauditório.–Háoutrasoluçãopossível–começouele.–Eiscomocheguei
a imaginá-la:Depoisdeouvir todososdepoimentos,recostei-mena cadeira, fechei os olhos e pensei. Alguns pormenorespareciam-me dignos de atenção. Enumerei-os aos meuscompanheiros. Uns já estavam esclarecidos, como amancha degordura num passaporte, etc. Concentrei a minha atenção nosdemaispontos.Oprimeiro e omais importante consistianumaobservação, que me fora feita pelo Monsieur Bouc, no vagão-restaurante, à hora do almoço, no dia imediato à partida deIstambul... acerca dos passageiros aqui reunidos. Era
interessante,diziaele,estacomitivaformadadetodasasclassesenacionalidades.Concordeiequandoestaobservaçãomevoltouàmemória, perguntei a mim mesmo onde seria possível reunir,noutra ocasião, um grupo tão variado. Na América, foi a únicaresposta que me ocorreu. Só na América poderia haver, numacasa, nacionalidades tão diversas... ummotorista italiano, umagovernantainglesa,umaenfermeirasueca,umacriadadequartofrancesa, etc. Isto levou-mea imaginar opapel de cadaumdospresentes no caso Armstrong. Obtive assim um resultadointeressanteesatisfatório.Examineitambémseparadamentecadadepoimentoechegueiaconclusõescuriosas.ComecemospelodeMacQueen. A minha primeira entrevista com ele satisfez-meplenamente. Entretanto, na segunda, ele fez uma observaçãoestranha. Acabava de lhe comunicar o achado de uma notareferenteaocasoArmstrong.Elereplicou: "Mascertamente"...e,depoisdeumapausa,concluiu"foiumdescuidodovelho".Agoracompreendoquenãoqueriadizeristo.Suponhamosqueestivessepara responder: "Mas certamente foi queimada." Nesse caso,MacQueen conhecia a existência e a destruição do bilhete...noutras palavras, era o criminoso ou um dos cúmplices.Muitobem.PassemosaocriadodeRatchett.Eleafirmouqueopatrãocostumavatomaremviagemumsoporífero.Éprovávelqueassimfosse. Mas tomá-lo-ia Ratchett, na noite passada? O revólverautomático, encontrado debaixo do travesseiro, desmente estasuposição.Onarcóticofoi-lheministrado,semqueeleosoubesse.Porquem?NaturalmenteporMacQueenoupelocriado.
Poirotpasseouoolharpelosassistenteseprosseguiu:–ChegamosagoraaodepoimentodeMr.Hardman.Acreditei
noque elemedisseda sua identidade,mas, quando relatouosseus métodos policiais para guardar Ratchett, a sua históriatornou-se simplesmente absurda. O único meio de proteger oameaçado era passar a noite no seu camarote ou num pontodonde fosse possível vigiar-lhe a porta. E esse depoimentomostravacomevidênciaumacoisa,istoé,queRatchettsópodiaserassassinadonocamarote,oquetraçavaumcírculoemvoltado vagão Istambul-Calais. Este detalhe pareceu-me curioso einexplicável e eu o coloquei de lado para meditar nele. Todosdevem estar informados das frases que surpreendi entre MissDebenhameoCoronelArbuthnot.Oquemaisestranhei,foique
o coronel a chamasse pelo nome, Mary, e a tratasse comintimidade, quando, aparentemente, a encontrara havia poucosdias... Conheço os homens do tipo do coronel. Emboraapaixonado pela jovem dama inglesa, ter-se-ia introduzidolentamentecomadiscriçãonecessária,emlugardeprecipitarascoisas. Daí, cheguei à conclusão de que o coronel e MissDebenhameram íntimos e quepor qualquermotivopretendiamparecerestranhos.OutrofatocuriosoeraoconhecimentodeMissDebenhamdotermopeculiardaschamadastelefónicasagrandedistância. Entretanto, ela afirmara-me nunca ter estado naAmérica.
Poirotfez,denovo,umabrevepausaantesdecontinuar:– Consideremos outro depoimento. Mrs. Hubbard disse-nos
que, estando deitada e não podendo ver se a porta decomunicaçãoforaounãotrancada,pediraaGretaOhlssonquesecertificasse disso. Ora, o seu depoimento seria perfeitamenteverosímil,seelaocupasseoscamarotes2,4,12ououtronúmeropar... nos quais o ferrolho fica logo abaixo do trinco, noscamarotes ímpares, porém, como o número 3, o ferrolho ficaacimadotrincoenãopodiaserescondidopelamaleta.Chegueiàconclusão de que Mrs. Hubbard inventara um incidente quenuncaocorrera.Eagoraumapalavraouduasacercadotempo.Naminhaopinião,opontomaisinteressantearespeitodorelógioquebrado é o lugar onde o encontramos... isto é, o bolso dopijama de Ratchett... lugar incómodo e pouco adequado paraguardarumrelógio,tantomaisque,nestescamarotes,existeumganchoparaopenduraràcabeceiradacama.Compreendiqueorelógio forapostodepropósitonobolsodopijama,depoisdesealterar ahora quemarcava.O crimenão foi praticado àuma equinze.Istoé,paraserexacto,seriaàsvinteetrêsparauma?Omeu amigo Bouc apresenta como confirmação desta hipótese ogritoquemeacordou.Porém,estandonarcotizado,Ratchettnãopoderia gritar. Se conseguisse gritar, também poderia lutar edefender-se. E não há sinais de luta. Lembrei-me de queMacQueen me chamara a atenção duas vezes (e a segunda demodo bem claro) para o fato de que Ratchett não sabia falarfrancês.Chegueiàconclusãodequetudooquesedeuàsvinteetrês para uma foi farsa para me impressionar. Qualquer umdescobriria através da história do relógio, um logro comum em
casospoliciais.Osconjuradosimaginaramqueeutambémhaviadeodescobrire,desdequeRatchettnãofalavafrancês,avozqueeuouviraàsvinteetrêsparaumanãopodiaseradovelho,talvezjámorto.Entretanto,estouconvencidoque,aessahora,Ratchettainda vivia. Mas o logro surtira êxito. Eu abrira a porta, paraespreitarnocorredor.Ouviraafraseemfrancês.Emboranãolhedesse importância, alguma coisa me despertara a atenção. Sefossenecessário,MacQueenseencarregariadisso."Desculpe-me,Monsieur Poirot, não pode ter sidoMonsieur Ratchett. Ele nãofala francês", eisoqueelemediria.Entãoqual foiaverdadeirahoradocrime?Equemopraticou?Naminhaopinião(éapenasuma opinião) Ratchett foi assassinado cerca das duas horas, aúltima das que o doutor Constantino nos apontou comopossíveis.Quantoaquemoassassinou...
O detective interrompeu-se e examinou o auditório. Não sepodia queixar da falta de atenção. Todos os olhos estavamcravadosnele.Reinavasilênciotãoprofundo,queseouviriacairumalfinete.Poirotprosseguiulentamente:
– Impressionou-me, particularmente, a dificuldade deapresentar provas contra qualquer dos passageiros e a curiosacoincidência de que, em cada depoimento, o álibi provinha deoutra pessoa, a que poderia qualificar de “improvável”. Assim,MacQueen e o Coronel Arbuthnot, que “provavelmente” não seconheciam,arranjaramumálibirecíproco,omesmosedeucomoitaliano e o criado de Ratchett e com a senhora sueca eMissaDebenham. “É extraordinário..., pensei, não podem ser todoscúmplices.” Depois, uma luz iluminou-me subitamente. Todoseram cúmplices! O fato de viajarem, por pura coincidência, nomesmo comboio, tantas pessoas relacionadas com o casoArmstrong não só era pouco provável como absolutamenteimpossível. Não se tratava de um caso e sim de um propósito.Lembrei-me de uma observação do coronel acerca de umjulgamentoporumjúri.Ojúriécompostodedozemembros...eospassageiroseramprecisamentedoze.Ratchettfoiapunhaladodoze vezes. E o fato que tanto me intrigara... o extraordinárionúmerodepassageirosdovagãoIstambul-Calais,nestaépocadoano,estavaassimexplicado.
Poirotcalou-sedoissegundosedepoisprosseguiucomamaiorcalma:
– Ratchett escapara à justiça na América. O seu crime eraincontestável. Imaginei essas doze pessoas constituindo-se emcorpo de jurados, condenando-o à morte, forçadas pelascircunstânciasaexecutaremaprópriasentença.Encaradodestemodo o caso esclarecia-se totalmente. Vi, como num mosaicoperfeito, cada pessoa desempenhando o próprio papel. Estavatudo disposto de tal modo que, se a suspeita recaísse sobrealguém,odepoimentodeumoumaispassageirosdemonstrariaainocência do indiciado, complicando ainda mais o mistério. OdepoimentodeHardmaneranecessárioparaocasodeseculparalgum estranho impossibilitado de apresentar um álibi. Ospassageiros do vagão Istambul-Calais não corriam perigo. Osmínimos pormenores de cada depoimento haviam sidocuidadosamente estudados. O caso todo era um enigmaadmiravelmenteurdido,demodoquecadanovoesclarecimentosóservia para complicar os fatos. Como ponderou o meu amigoBouc,ocasoparecefantástico,impossível,eestaeraexactamenteaimpressãoquedeviacausar.Poderáestasoluçãoexplicartudo?Parece-mequesim.Anaturezadosferimentos,feitospordiversaspessoas, as falsas cartas ameaçadoras, falsas, porque sedestinavam apenas ao inquérito. Naturalmente houve cartasreais,anunciandoaRatchettasortequeoesperava,mas foramdestruídasporMacQueenesubstituídaspelasqueconhecemos.AhistóriadequeHardmanforachamadoparaprotegerovelhonãopassa de uma invenção, assim como a descrição do lendário"homenzinho moreno com voz de mulher", invenção hábil queisentavadesuspeitasoschefesdopessoaletantosepodiaaplicara um homem como a umamulher. De princípio estranha-se aideiadeapunhalaravítima,entretanto,pensandobem,foimuitorazoável.Opunhaléumaarmaquetodos(fracosefortes)podemmanejarequenãofazruído.Talvezmeengane,masimaginoquecadaumdosconjuradosentrounocamarotedeRatchett,pelodeMrs.Hubbard, e desferiuumapunhalada.Eles próprios nuncapoderão saber quem deu o golpe mortal. A última carta, queRatchettencontrou,provavelmente,notravesseiro,foiqueimada.FaltandoareferênciaaocasoArmstrong,nãohaveriarazãoparasuspeitar dos passageiros. O crime pareceria praticado por umestranhoeumoumaisdospresentesteriamvistoo"homenzinhomoreno com voz de mulher" desembarcar em Brod. Não sei ao
certo o que aconteceu, quando os conjurados descobriram queessapartedoplanoforaanuladapeloincidentedaneve.Houve,ameuver,umarápidadeliberação.Asuspeitapoderiarecairsobretodosospassageiros,masessaeventualidadeforaprevistaeseriaremediada. Cumpria tornar o caso ainda mais complicado:Puseram-se dois indícios no camarote da vítima, um,incriminando o Coronel Arbuthnot (a pessoa que tinha o álibimaisirrefutávelecujarelaçãocomafamíliaArmstrongéamaisdifícildeprovar)eooutro,acusandoaprincesaDragomiroffque,emvirtudedasuaposiçãosocial,doseucorpofranzinoedoálibi,fornecido pela criada e pelo chefe do pessoal, estava isenta desuspeita. Depois, para complicar o caso, introduziu-se um"indíciovermelho"...amísticamulherdoroupãoescarlate.Eeudevia testemunhar a existência dessa mulher. Ouvi um baquesurdoàminhaporta.Levantei-me,abri... evislumbreio roupãoescarlate, desaparecendo no corredor; alguns passageiros,judiciosamenteescolhidos,tambémadeviamtervisto,ochefedopessoal, Miss Debenham e MacQueen. Creio que foi umespirituoso, o que pôs o quimono vermelho em cima daminhamala, enquanto eu procedia ao inquérito no vagão-restaurante.Donde veio esse trajo não sei dizer. Desconfio que pertence àcondessaAndrenyi,vistoquenasuamalaencontreiapenasumnégligédeseda,demasiadochiqueparaserumroupão.QuandoMacQueen soube, em primeiro lugar, que a carta zelosamentequeimada escapara, em parte, à destruição e que a palavraArmstrong viera à luz, comunicou naturalmente a notícia aosoutros. Nessa circunstância, a posição da condessa Andrenyitornou-se melindrosa e o conde tratou logo de alterar opassaporte.O segundo infortúnio! Cada um e todos resolveramnegarqueumparentescoqualquerosunisseàfamíliaArmstrong.Sabiam que eu não tinha meios para apurar imediatamente averdadeenãodesconfiavamqueeupudesseadivinhar,semqueas minhas suspeitas fossem despertadas por uma determinadapessoa.Agoraéprecisoconsideraroutroponto.Suponhoqueestahipótesesejaacertada(eeucreioquedeveser),ochefedopessoal,evidentemente, era um dos conjurados. Porém, neste caso,teríamos treze pessoas em lugar de doze. Em vez da fórmulausual:"Dentretantos,uméculpado"vi-mediantedoproblemadequedessastrezepessoasuma,esóuma,estavainocente.Qual?
Cheguei assim a uma conclusão estranha. Compreendi que aúnicapessoaalheiaaocrimeera justamenteaquemaispareciasuspeita. Refiro-me à condessa Andrenyi. Impressionara-me aseriedade com que o conde afirmara, sob palavra, que a esposanão deixara o camarote durante a noite. Daí concluí que, porassimdizer,eletomaraolugardela.Logo,PierreMicheleraumdosdoze.Comoseexplicavaessacumplicidade?Eleéumhomemhonrado, serve hámuitos anos a Companhia e não se deixariasubornar,para favorecerumcrime.Portanto,ochefedopessoaldeviaestartambémenvolvidonocasoArmstrong.Parecia,porém,pouco provável. Lembrei-me então de que a ama-seca erafrancesa. Suponhamos que a infeliz moça fosse filha de PierreMichel. Isto explicaria tudo, inclusive o local escolhido para ocrime. Quem mais havia, cuja participação no caso parecesseobscura? Considerei o Coronel Arbuthnot, um amigo deArmstrong.Talvezfossemcamaradasduranteaguerra.QuantoaHildegarde Schmidt, não me foi difícil descobrir o lugar queocupavanessacasa.Éprovávelque lhespareçapresunção,masfarejoinstintivamenteaboacozinheira.Armeiumacilada...eelacaiu. Disse-lhe que devia ser boa cozinheira. "De fato; todas asminhaspatroasodisseram",respondeuela.Masaquemécriadadequarto,raramenteaspatroastêmocasiãodedescobrirtalentosculinários.RestavaHardman.Parecianãopertenceràcriadagemdos Armstrong. Pude apenas imaginar que fosse namorado daama-seca francesa. Falei-lhe do encanto das mulheresestrangeiras, e obtive a reacção que esperava. Os seus olhosencheram-se repentinamente de lágrimas e ele pretextou que aneve o deslumbrara. Falemos agora de Mrs. Hubbard. Esta(deixem-me dizê-lo) desempenhou no drama o papel principal.Ocupando o camarote contíguo ao de Ratchett, estavamais doque qualquer outra pessoa exposta a suspeitas. Não tinha umálibi apresentável. Para personificar a mãe americana frívola,perfeitamente natural e um tanto ridícula, cumpria ser umaartista. E há, de fato, uma artista ligada ao caso Armstrong, amãedeMrs.Armstrong,LindaArden,agrandeactriz...
Odetectivecalou-se.Então,comumavozrica,suaveesonhadora,bemdiferenteda
quefizeraouvirtodosessesdias,Mrs.Hubbarddisse:– Foi sempre o meu maior desejo desempenhar papéis em
comédias. A história da maleta de esponjas foi uma tolice –prosseguiuelanomesmotom.–Serviaparaocasodeosenhorreconstruir a cena. Ensaiamos, eu devia estar então numcamarotedenúmeropar.Nuncaimagineiqueoferrolhopudesseficarnumlugardiferente.
Endireitando-selevemente,aamericanaencarouodetective.– Adivinhou tudo, Monsieur Poirot. É um homem
extraordinário! Não pode, contudo, imaginar o que foi essatragédia,aquelediahorrívelemNovaIorque.Euenlouqueciadedor,comooscriados,oCoronelArbuthnottambémláestava.EraomelhoramigodeJohnArmstrong.
–Elesalvou-meavidaduranteaguerra–atalhouArbuthnot.–Decidimosentão...talvezestivéssemosloucos,nãosei...que
a sentença de morte a que Cassetti escapara deveria serexecutada. Éramos doze pessoas, ou melhor, onze... o pai deSusanneestavanaFrança.Aprincípio,pensamosemincumbirasorte de designar o executor da sentença. Depois, resolvemosproceder de outro modo. Foi António, o motorista, quem osugeriu. Mary combinou depois todos os pormenores comMacQueen.EleadoravaSónia,aminhafilha,efoielequemnosexplicou como Cassetti, mediante dinheiro, conseguira livrar-sedo castigo quemerecia. Gastamosmuito tempo a aperfeiçoar onosso plano. Primeiro cumpriu-nos descobrir o paradeiro deRatchett. Hardman encarregou-se disso. Depois, tentamosempregar Masterman e Heitor no lugar onde os encontrou, aomenos um deles. E conseguimos. Consultamos depois o pai deSusanne. O Coronel Arbuthnot insistia em que fôssemos doze.Julgavaqueassimtudocorreriamaisemordem.Emboranãolheagradasse o punhal, compreendeu que isso resolveria muitasdificuldades.OpaideSusanneaderiu.Elaforaasuaúnicafilha.Sabíamos,porHeitor,quecedooutardeRatchettregressariadoOriente, pelo expresso. Sendo Pierre Michel funcionário dessecomboio,nãonosconvinhaperderaocasião.Aliás, issoevitariaque se acusassem outras pessoas. Naturalmente, o meu genrodeviaserinformadoeinsistiuemacompanhar-noscomamulher.Heitor conseguiu queRatchett escolhesse, para a partida, o diaemqueMichelestavadeserviço.Tencionávamosocupartodososcamarotesdo vagão Istambul-Calais;mas infelizmenteumdelesestavareservadoparaodirectordaCompanhia.Mr.Harrisnunca
existiu. Seria, porém, um desastre se Heitor fosse obrigado apartilharocamarotecomumestranho.E,àúltimahora,chegouosenhor...
Aamericanainterrompeu-se,elogoprosseguiu:–Sabetudoagora,MonsieurPoirot.Quepretendefazer?Não
poderia acusar-me somente a mim? Eu teria apunhalado dozevezesessehomemcomamelhorvontade,enãosóporquecausouamorte deminha filha, deminha neta, e da outra criaturinhaque estaria agora viva e feliz. Há motivos mais graves. Outrascriançasforamsacrificadasantesdeminhaneta,outrasoseriamno futuro. A sociedade condenara Cassetti, nós executamosapenas a sentença. Porém,nãohánecessidade de incluir todosnessecaso,todasestasalmasboasededicadas,opobreMichel...MaryeocoronelArbuthnot...queseamam.
AvozdeLindaArdenecoavaadmiravelmentenosalão...essavoz profunda, emotiva, que ia directo ao coração e comovera asplateiasdeNovaIorque.
Poirotencarouoamigo.–ÉodirectordaCompanhia,MonsieurBouc.Quedizaisso?Boucpigarreouerespondeu:–Naminhaopinião,MonsieurPoirot,aprimeirahipóteseque
formulou é a mais acertada. Proponho que seja apresentada àpolíciaJugoslava.Concorda,doutor?
– Certamente – replicou Constantino. – Quanto ao relatóriomédico... desconfio... hum!... Sim, creio que fiz uma ou duasobservaçõessemfundamento.
–Então–concluiuPoirot–jáquelhesexpusaminhasolução,tenhoahonrademeretirardocaso...
SobreaAutora
AgathaChristieiniciousuabrilhantecarreiraliteráriacomo
livro “Omisterioso casodeStyles”em1921.Desdeseuprimeiro
romance, revelou uma habilidade fantástica para arquitetar um
mistério policial, engendrando uma série de pistas falsas. Ao
mesmo tempo, demonstrava um notável senso de observação
psicológica.
NascidaemTorquay,na Inglaterra,emsetembrode1891,
Agatha Mary Clarissa Miller era filha de mãe inglesa e pai
americano, que morreu quando ela ainda era bem criança. Na
infânciae juventude,dedicou-secomentusiasmoàleitura,e logo
descobriu seusautorespreferidos.Emvezdehistóriasdeamor,
seu interessevoltava-separaCharlesDickenseConanDoyle,o
criadordeSherlockHolmes.
Seusconhecimentosdequímica,poçõesevenenos,quetêm
papelrelevanteemquasetodasassuastramas,foramadquiridos
quando trabalhou como voluntária em um hospital da Cruz
Vermelha, durante a Primeira Guerra Mundial, ajudando
especialmenteosrefugiadosbelgas.
Dame Agatha sempre foi excelente cozinheira, gostava da
vidadomésticaeodiavaapublicidadeeasocasiõesemquetinha
de aparecer em público. Construía seus mistérios caminhando
pelos parques ou devorando maças em grande quantidade,
durante seus banhos de imersão. Lia muita poesia moderna e
detestava o revólver e o punhal: “Prefiro as mortes por
envenenamento”,costumavadeclarar.
“Aparticipaçãodo leitorêessencial.Eledevedesvendaro
mistério lentamente, como se estivesse sendo envenenado.” Tão
traduzida quanto Shakespeare, com quase quatrocentosmilhões
deexemplaresvendidos,a“damadocrime”éaresponsávelpela
quarta tiragemmundial de todos os tempos: à sua frente estão
apenasLênin,JúlioVerneeLievTolstói.
Ao falecer, em 1976, deixou uma obra que continua a
mereceraadmiraçãodeleitoresdomundointeiro.