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A partir da segunda metade do século XVIII, o abandono dos índios aos povoados missioneiros orientais do rio Uruguai foi gradativo e constante. Problematizando a versão de uma massiva volta às selvas, bem como a ideia estanque da segmentação por grupos étnicos durante o período colonial, este artigo trata da presença indígena e da remanescência de práticas religiosas perpetradas nas missões jesuíticas em alguns espaços urbanos e rurais, evidenciando a presença missioneira na formação social híbrida da América Meridional.

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  • Pelos aldeamentos e rancheros: remanescncias da religiosidade dos

    ndios missioneiros. Jacqueline Ahlert

    1

    Resumo: A partir da segunda metade do sculo XVIII, o abandono dos ndios aos

    povoados missioneiros orientais do rio Uruguai foi gradativo e constante.

    Problematizando a verso de uma massiva volta s selvas, bem como a ideia estanque

    da segmentao por grupos tnicos durante o perodo colonial, este artigo trata da

    presena indgena e da remanescncia de prticas religiosas perpetradas nas misses

    jesuticas em alguns espaos urbanos e rurais, evidenciando a presena missioneira na

    formao social hbrida da Amrica Meridional.

    Palavras-chave: ndios missioneiros, aldeamentos, rancherios, prticas religiosas.

    Introduo

    Durante o perodo concernente a administrao jesutica, os povos localizados na

    Banda Oriental do rio Uruguai denominados posteriormente como Sete Povos das

    Misses contavam com uma populao prxima a trinta mil habitantes, quando as

    primeiras incurses blicas, ocasionadas pelo Tratado de Madri, insinuaram-se na

    regio.

    No entremeio das resistncias ao tratado, do comprimento de algumas ordens e

    das aes demarcatrias, grupos de missioneiros foram conduzidos pelos espanhis para

    a margem direita do rio Uruguai (Argentina e Paraguai). Desses, muitos empreenderam

    retorno aos Sete Povos, com a anulao do Tratado de Madri pelo Convnio de El

    Pardo, em 1761.2 Pela ao dos portugueses, de quatrocentas a setecentas famlias,

    3 sob

    o mando de Gomes Freire de Andrada (1756/57), foram encaminhadas para a

    constituio de povoamentos em Nossa Senhora da Conceio do Estreito (Estreito),

    So Nicolau do Rio Pardo (na atual periferia da cidade de Rio Pardo), Guarda Velha de

    Viamo (Viamo), Nossa Senhora dos Anjos (Gravata), So Nicolau do Jacu

    1 Doutora em Histria Ibero-Americana pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Professora da Universidade de Passo Fundo, coordenadora da especializao em Arte Visuais:

    fotografia, vdeo e outras tecnologias da Universidade de Passo Fundo; pesquisadora do Programa de

    Pesquisas Interdisciplinares da Regio Platina Oriental e pesquisadora-responsvel pelo inventrio do

    acervo de estaturia missioneira, do Ncleo de Documentao Histrica do Programa de Ps-Graduao

    (Doutorado e Mestrado) em Histria - PPGH-UPF. Email: [email protected] 2 Em doze de fevereiro de 1761, o Convnio de El Pardo anulou o Tratado de Madri, em funo da

    Guerra Guarantica e atritos entre as comisses demarcadoras portuguesas e espanholas. 3 Segundo a variao das estimativas presentes na documentao. Ver: GOLIN, Tau. A guerra

    guarantica: como os exrcitos de Portugal e Espanha destruram os Sete Povos dos jesutas e ndios

    guaranis no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EDIUPF; Porto Alegre: UFRGS, 1999.

  • (Cachoeira do Sul) e Fazenda Real (Mostardas, entre So Simo e Palmares), todos no

    Rio Grande do Sul .4

    A Guerra Guarantica enfraqueceu as bases da estrutura jesutica e

    consequentemente de toda conjuntura missioneira. Contudo, a ofensiva final foi a

    expulso da ordem da Amrica espanhola, em 1768/9.

    Gradativamente, a composio dos pueblos converteu-se num cenrio quase

    desabitado e fantasmagrico. Nas ltimas dcadas do sculo XVIII, grande nmero de

    ndios andavam fugitivos de seus povoados, dispersos na mesma provncia, e fora dela,

    nas jurisdies do Paraguai, Corrientes, Santa F, Buenos Aires, Montevidu, Arroyo de

    la China, Gualeguay e outras partes, temporariamente escondidos nas chcaras de seus

    parentes ou passando de um povoado a outros.5

    Medidas verticais e distantes da historicidade construda na experincia

    comunitria potencializaram os inconvenientes dos anos sucessivos sada dos

    inacianos. O general da Real Armada Espanhola, Diego de Alvear, comissrio da

    segunda partida demarcadora de limites do Tratado de Santo Ildefonso, entre 1783 e

    1801, relatou que a impercia dos novos administradores e curas e suas contnuas

    desavenas, puseram os povos beira da runa: Sustou-se totalmente a agricultura,

    descuidaram-se das chcaras e das estncias e, esvaindo-se o gado destas, cessou o

    trabalho da comunidade, se perderam os mveis e as alfaias das igrejas e, completando

    o quadro da decadncia, desatendidos os ndios e a educao dos jovens, ausentou-se a

    metade deles nos montes a buscar o que comer, adotando seu antigo modo de vida,

    deixando muitas doutrinas quase desertas.6

    Ao findar do Setecentos, as comunidades estavam

    repletas de dvidas, os ofcios em boa parte desaparecidos, os ndios

    famintos, nus e doentes. E para tornar o quadro ainda mais lamentvel,

    uma nuvem de funcionrios que faziam oportunistas protestos de amor

    ao rei, aos pobres naturais postos sob seu amparo, enquanto

    violavam as recomendaes de um e arruinavam aos outros.7

    4 Em 1757 Gomes Freire ordena a fragmentao do contingente indgena da aldeia de So Nicolau do Rio

    Pardo, formando os aldeamentos de So Nicolau do Jacu, e o da Aldeia dos Anjos. AHRGS -

    ARQUIVO HISTRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Os ndios DAldeia dos Anjos: Gravata sculo XVIII. Coordenao Rovlio Rosa e Nilo Salvagni. Porto Alegre: EST, 1990.

    5 DOBLAS, Gonzalo de. Memoria histrica, geogrfica, poltica y econmica sobre la provincia de

    Misiones de indios guaranis. Buenos Aires: Imprenta del estado, [1785] 1836, p. 5 e 35. 6 ALVEAR, Diego de. Relacin geogrfica e histrica de la provincia de Misiones. Buenos Aires:

    Imprenta del Estado, [1791] 1836 (Coleo de Angelis).

    , p. 93. 7 Ibidem, p. 72.

  • A ininterrupta decadncia inaugurada em 1750, com gestes corruptas e roubos

    de terras e bens mveis missioneiros, teve continuidade aps a invaso luso-brasileira

    de 1801. As guerras resultaram em grandes migraes, uma vez que muitas famlias

    acompanhavam os ndios arregimentados pelos exrcitos hispano-platino e luso-

    brasileiro, realidade que prosseguiu posteriormente, nas conjunturas do Reino Unido e

    dos pases independentes, no contexto da guerra contra Artigas (1816-1820) e da Guerra

    da Cisplatina (1825-1828). Nesta, Fructuoso Rivera, na ocupao das Misses rio-

    grandenses, conseguiu arregimentao transcendental.8

    No contexto da construo dos Estados americanos, o rompimento da ordem

    colonial colocou a populao das antigas doutrinas no cerne do pandemnio. Sobre a

    regio, estenderam-se as disputas e alianas entre projetos de soberania diversos e

    conflitantes. A Guerra da Cisplatina, entre as provncias Unidas do Prata e o Imprio

    brasileiro, teve no territrio da populao missioneira, protagonistas de primeira linha e

    trouxe consequncias decisivas para o destino dos indgenas.

    Fosse por meio das aes portuguesas, espanholas, artiguistas ou promovidas

    por Rivera, entre outras, no decorrer de mais de um sculo de manipulaes arbitrrias,

    os indgenas missioneiros terminaram por ser abandonados, integrando-se

    subservientemente a sociedade dos pases que incorporaram seus territrios.

    Constituindo rancherios nos entornos das antigas Misses, empregando-se em estncias,

    incorporando-se, ou retomando o modo de vida como grupos tradicionais tnicos.

    Entre povoados e rancherios fronteirios

    Ranchero foi o termo que designou os inmeros conglomerados de indivduos

    remanescentes das doutrinas jesutas, moradores de choas de madeira ou torro e

    palha, to pequenas que abrigam cinco ou seis pessoas, cuja nica abertura era a porta

    8 Alm das intervenes blicas, prosseguia a administrao corrupta dos bens missioneiros. A partir de

    1816, cabildos e administradores luso-brasileiros concederam ou venderam a preos irrisrios, terras

    missioneiras e terrenos no designados, visando que militares, tropeiros e criadores, chegados de So

    Paulo, Curitiba, Lages e Laguna, organizassem fazendas criatrias nas antigas estncias guaranticas. O

    processo de privatizao das terras das estncias missioneiras poderia ser resumido assim: em primeiro

    lugar, os particulares arriavam o gado existente; depois, pediam permisso para se estabelecer nas terras

    devolutas das prprias estncias, povoando-as, provavelmente, com o gado missioneiro ou com o gado

    arriado na Banda Oriental; por ltimo, pediam as estncias por sesmaria, podendo mesmo negoci-las

    com outros proprietrios de gado. Cf. CESAR, Guilhermino. Histria do Rio Grande do Sul: perodo

    colonial. Porto Alegre: Globo, 1970 e MENZ, Maximiliano. A integrao do guarani missioneiro na

    sociedade sul-rio-grandense. Disponvel em:

    http://www1.capes.gov.br/teses/pt/2001_mest_unisinos_maximiliano_menz.PDF.

  • e o nico mobilirio um banquinho ou jirau. Na regio sudoeste do Rio Grande do

    Sul, a estncia que pertencia ao alferes Antnio Bernardino Silva, comandante da

    guarda de Santana, compunha-se de miserveis choupanas, habitadas por famlias

    indgenas recentemente chegadas da aldeia de Yapeju.9

    Estes indivduos, apesar da lembrana vaga que faziam dos loyolistas, no

    perderam todos os hbitos que lhes transmitiram os padres da Companhia de Jesus. Os

    pais continuam a ensinar os filhos a rezar, na lngua vulgar, e diariamente tm o cuidado

    de faz-los recitar as preces, notou Saint-Hilaire quando l esteve. Os jovens

    (destitudos de referncias tnicas e, em parte, histricas) j haviam perdido o interesse

    na agricultura e sabiam apenas montar a cavalo. Os mais velhos no estranham os

    trabalhos de cultivo, havendo alguns que tinham plantaes de trigo, centeio e

    milho.10

    Em toda a primeira metade do sculo XIX, a morte de muitos homens nas

    guerras, havia forado as mulheres e crianas a encontrar solues alternativas, como

    refugiar-se junto aos portugueses, sobretudo durante a guerra contra Artigas, instalarem-

    se em aldeamentos, empregarem-se sazonalmente, em servios domsticos, entre outros.

    Em 1820, nas imediaes de Entre-Rios, territrio margeado ao norte pelo rio Ibicu e,

    ao sul, pelo Quara, os ndios que ficaram em Belm (URY), alugam-se como pees na

    vizinhana; alguns meninos prestam servios aos oficiais; ou mesmo aos soldados do

    acampamento e as mulheres prostituem-se. Alm das habitaes pauprrimas,

    nenhum desses ndios possui coisa alguma. Contudo, os homens esto razoavelmente

    vestidos, as mulheres ainda melhores, mas as crianas, em geral, cobertas de trapos ou

    quase nuas.11

    Em 1828, deu-se outro grande deslocamento, desta vez promovido por

    Fructuoso Rivera, quando muitos grupos de missioneiros foram levados ao territrio

    uruguaio e instalados em Bella Unin, San Pedro de Durazno e Montevideo.

    Testemunha ocular, o general Pueyrredn escreveu: Cada reduo ou tribo

    marchava como em procisso, presidida dos ancios que levavam os santos principais.

    9 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. Braslia: Senado Federal,

    Conselho Editorial, 2002, p. 305. 10

    Ibidem, 306. 11

    Ibidem, p 276.

  • Alm disso, o povo conduzia multides de santitos. Na dianteira dos grupos iam os

    msicos, cada tribo tinha o seu conjunto de violinistas.12

    A descrio confirma o que j haviam observado o padre Jos Cardiel e o

    viajante Saint-Hilaire: a msica e as imagens eram os elementos de identificao e

    diferenciao do thos missioneiro.13

    Mais do que recitar em voz alta oraes em guarani e entoar cnticos,

    igualmente, em lngua vulgar,14 entre aqueles indgenas havia remanescido o culto s

    imagens. O acervo do Museo Sin Fronteras, situado em Rivera, cidade nos limites entre

    o Brasil e o Uruguai, alusivo ao processo histrico desdobrado naquelas paragens. A

    localizao do museu remissiva ao sentido que possui, pois fortalece a historicidade

    do lugar, potencializa os atributos e caractersticas presentes nas imagens, que servem

    como referncia aos indivduos que por ali transitaram e acabaram por se miscigenar

    cultural e biologicamente, compondo a identidade social daquelas extenses

    fronteirias.

    O proprietrio do acervo, Antonio Maria Boero, coletou inmeras imagens entre

    as famlias residentes naquele limite que, embora preciso geograficamente, como todas

    as fronteiras, humanamente flexvel.

    12

    PUEYRREDN em FAVRE, Oscar Padrn. Participacin de la poblacin de Santo ngel en el xodo

    misionero al Estado Oriental. In 300 anos da Reduo Jesutica de Santo ngelo Custdio /

    Organizao de Gladis Maria Pippi e Nelci Mller. Santo ngelo: EDIURI, 2007, p. 142. 13

    Sobre a remanescncia de prticas religiosas e culto s imagens em So Borja de Yi, localidade extinta,

    nas proximidades da cidade de Durazno/URY, ver: AHLERT, Jacqueline. A estaturia missioneira:

    entre o valor religioso e o patrimonial. In: ZANOTTO, Gizele; MACHADO, Ironita (orgs.). Momento

    Patrimnio. Vol. II. Passo Fundo: Aldeia Sul, 2013 e FAVRE, Oscar Padrn. Ocaso de un pueblo indio:

    historia del xodo guaran-missioneiro al Uruguay. Durazno: Tierra a Dentro, 2009. 14

    SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821, op. cit., p. 277.

    Fig.1: Fragmento do acervo de estaturia missioneira do Museo Sin Fronteras, de propriedade de Antonio

    Boero, localizado na cidade de Rivera, no Uruguai.

    Fig.2: Imagem pertencente ao acervo. Nossa Senhora da Conceio, 21,8 cm x 11, 8 cm.

    Fotografias: Jacqueline Ahlert

  • Quando, em 1903, o jornalista Jos Virginio Diaz percorreu o interior do

    Uruguai, denunciou que o comrcio (lcito e ilcito) era to acentuado na fronteira, que

    pode afirmar-se, com toda veracidade, que o Brasil entra no Uruguai, ao largo de toda

    a fronteira uns 70 a 80 quilmetros.15

    Alm dos contrabandos, Diaz registrou a vivncia nos rancherios compostos,

    principalmente, de mestios, indgenas e afrodescendentes. No Passo de Polanco,

    prximo a Sarandi del Y (departamento de Durazno/URY), visitou o rancherio de Las

    Ratas, nada mais que um amontoamento da desolao, na impresso do jornalista.

    No era a primeira vez que adentrava aqueles domnios. Com a anci a Carancho,

    transparece certa intimidade no trato. Ao chegar porta do seu rancho, saudou a senhora

    dizendo: Buenos das, abuelita!. Ao que ela, prontamente, respondeu: que Dios lo

    haga un santito!16 A expresso, certo, tinha sentido de proteo, compleio, amparo,

    algo similar a que Deus te abenoe.

    Contemplando o interior do dito rancho, o visitante viu na cabeceira da cama

    uma espcie de altarzinho. No seu centro aparecia um Corao de Jesus, rodeado de

    vrias outras estampas religiosas, cuja volta estava adornada com flores de papel e, ao

    p, alguns ramalhetes de flores naturais, recolhidas nas suas andanas pelos montes;

    dois candelabros com velas completavam o conjunto. As milagrosas estampitas

    haviam sido distribudas pelo padre Monfiu. Em todos os ranchos, covas e taperas

    que visitou, encontrou colocado num lugar preferencial, a estampa do Corao de

    Jesus.17

    O rancherio era formado por um conjunto de habitaes rsticas de barro e

    totora junco , que se levantavam com folga, pois cada um possua uma propriedade,

    como para ter um cavalo, uma pequena horta ou jardim, separadas por cercas de cina-

    cina. Diaz acentuou a existncia de magos crioulos, que com suas ervas daninhas

    milagrosas constituam uma farmcia aberta ao ar livre e gratuita, que arruinavam a

    atuao do boticrio do pueblo.18

    15

    DIAZ, Jos Virginio. Viaje por la campaa oriental (1903). Situacin del pas antes de la revolucin.

    Recopilacin de textos e introduccin: Oscar Padrn Favre. Montevideo: El Galen Tierradentro, 2005, p. 153.

    16 DIAZ, Jos Virginio. Viaje por la campaa oriental, op. cit., p. 59.

    17 Ibidem, p. 64.

    18 Ibidem.

  • Grande parte dos tipos humanos que formariam os rancherios j havia passado

    pelas prticas ilegtimas perpetradas nos campos neutrais.19

    Estes imensos espaos eram

    os territrios dos gaudrios. Metaforicamente, aqueles que no pertenciam a nenhuma

    das coroas ibricas, e que, por isso, transitavam entre elas, no entre-lugar dos domnios

    coloniais, incorporando a condio de tpicos fronteirios, seres antinmicos quanto

    naturalidade e o pertencimento. Sociologicamente, est entre os primeiros fenmenos

    significativos de ocupao da terra por marginais, nominados integrantes de um grupo

    social, procurados ou no por crimes. A sua concentrao na faixa fronteiria tambm

    facilitou a represso e extermnio pelo policiamento ibrico. Os missioneiros que

    haviam se unido ao esquema foram fragmentados em grupos que integraram (alguns

    novamente) os exrcitos espanhol e luso-brasileiro e outros que, por constiturem

    famlias, empregaram-se no servio domstico de casas particulares nas cidades

    prximas a estas zonas, mesclando-se paulatinamente ao restante da populao.

    Pouqussimos foram os que voltaram aos seus povoados de origem.

    O olhar de Alejo Peyret: aspectos do processo de desintegrao na Banda

    Ocidental

    A poro ocidental dos remanescentes missioneiros no esteve de fora de tal

    dinmica. Inserido nestas esferas, na cidade de Concepcion del Uruguay, pertencente

    Provncia de Entre-Ros (ARG), havia um bairro que se chamava Convoy [comboio];

    eram uns ranchos povoados com pessoas apreendidas do exrcito de Rivera, o qual

    como sabido levava sempre um nmero considervel de mulheres.20

    Depreende-se, a partir dos registros do historiador argentino Alejo Peyret, que a

    formao de rancherios foi o destino de grande parcela dos descendentes de antigos

    19

    Conforme Tau Golin: Em princpio, no fenmeno desencadeado pelo Tratado de Santo Ildefonso, os territrios banhados pelo Jacu pertenciam a Portugal; os pelo Uruguai, Espanha. A diplomacia

    europeia concebera aquele curioso tratado de limites, interpondo os campos neutrais para a suposta

    intocabilidade de seus sditos. Um artifcio condenado ao fracasso, pois pretendia retirar

    burocraticamente da fronteira a sua condio de encontro e frico. No futuro, as comisses

    demarcatrias no se acertariam sobre a definio de diversos pontos da faixa neutral. Concretamente,

    precisavam estabelecer duas linhas paralelas. As suas imprecises carregavam as causas de outra guerra

    no futuro. Os campos neutrais se transformaram na plataforma para Portugal estender seus domnios

    para o sul e para o oeste; expandindo-se para o ocidente, conquistou as Misses em 1801. Pelas armas,

    ao sul e ao oeste, estabeleceu a linha fronteiria pelos arroios Chu e San Miguel, lagoa Mirim, rios

    Jaguaro, Santa Maria, Ibicu e Uruguai. GOLIN, Tau. 1776: Histria da brava gente e miserveis tropas de mar e terra que conquistaram o Brasil meridional. No prelo, 2014.

    20 Fato contado para o historiador argentino Alejo Peyret por Miguel Guarumba, ndio missioneiro e ex-

    comandante militar da Federao. In: PEYRET, Alejo. Cartas sobre Misiones. Buenos Aires: Imprensa

    de la Tribuna Nacional, 1881, p. 39.

  • povoadores dos pueblos missioneiros. Passando pela regio de Posadas/ARG, escreveu

    que ali, na barranca do rio Paran, em meio umidade e s nevoas, formava-se um

    destes ncleos de populao pobre, que construiu ranchos miserveis de taquara e de

    madeira.21

    Tanto na parte da Argentina, como na do Paraguai, as mulheres continuavam a

    se vestir com os tipoy, uma espcie de camisola em que se envolvem artisticamente e

    que lhes d uma aparncia de esttuas gregas.22

    Dos homens, muitos estavam empregados na extrao da erva. Porm, os

    proprietrios dos ervais vinham de longe para explorar tal filo a custa de mo de obra

    de baixo custo. Alguns eram franceses, como observou Peyret; outros, brasileiros. E o

    comissionrio geral dos ervais, na provncia argentina de Misiones, em 1881, era um

    italiano, de nome Crlos Bossetti.

    Em Corpus, Santa Ana e todo alto Paran, ouvia-se falar portugus tanto quanto

    castelhano. Segundo o francs, havia muitos brasileiros naquelas paragens.

    importante notar que eram brasileiros que falavam o dialeto de Cames, portanto, no

    se tratavam de indgenas das Misses Orientais, mas possivelmente, de paulistas vindos

    do centro do pas e do atual estado do Paran.

    Como no caso de todos os outros viajantes e visitadores anteriores a ele, no

    poderia faltar ao itinerrio a inspeo das runas das antigas doutrinas jesuticas. Sobre

    San Ignacio Mini, Peyret destacou os montes de escombros, de pedras cbicas, de

    grandes paraleleppedos derrubados uns sobre os outros que haviam restado das antigas

    estruturas.23

    Ao entrar nas runas da igreja, observou que em vrias partes das paredes

    aparecem cabeas de anjos com suas asas. No solo, uma grande lpide com mais de trs

    varas de altura e duas e meia de largura, que caiu da fachada, com o monogramo de

    Jesus, manifesta a laboriosidade dos ndios, adestrados pelos padres da Companhia.

    Nas runas de San Tom, alguns restos de escultura cadas no solo manifestam uma

    arte bastante avanada. Nota-se especialmente uma cabea de anjo esculpida em um

    aspero finssimo, e que realmente um bom trabalho.24

    Os amlgamas da sociedade platina incluam tipos cada vez mais originais. Em

    Corpus, havia um ex-colono, convertido em cozinheiro. Era um suo, preparando

    21

    Ibidem, p. 75. 22

    PEYRET, Alejo. Cartas sobre Misiones, op. cit., p. 95. 23

    Ibidem, p 120-123. 24

    Ibidem, p. 257.

  • charque ao modo indgena, com o fogo no cho, no centro da cozinha. Entre estes

    indivduos da ex-colnia Mrcos Avellaneda, alguns seguiram a manufatura em

    madeira, posto que haviam se organizado, sob as ordens de tal senhor Cot, numa

    oficina de carpintaria, nas imediaes de Posadas, na Argentina.25

    As runas de Corpus estavam como as de San Igncio Mini, ocultas em uma

    selva quase impenetrvel. Sua conservao estava pior, mas ainda melhor que a

    reduo de Loreto. Naquela regio, igualmente, a maior parte dos povoadores era de

    brasileiros, que falavam o idioma de Cames.26

    Os indgenas que habitavam tais paragens consideravam-se os donos da terra.

    Para eles, os outros eram intrusos e usurpadores. Certo colonizador, Juan Goicochea,

    havia comprado dos guayans o terreno que estava ocupando.

    O grupo ao qual se refere o

    historiador mantinha prticas crists.

    De acordo com o relato, fazem algum

    cultivo, plantam tabaco, milho,

    mandioca; e do outro lado do Iroy-

    Guaz, tm um roado que cobre a

    barranca. Alm disso, estes guayans

    tm conservado as tradies religiosas

    e ainda lembram-se dos jesutas. Tm

    um cemitrio numa barranca; todas as

    noites vo acender velas nas tumbas de

    seus antepassados.27 Por outra parte,

    havia um cacique de nome Bonifcio

    Maydana, natural do pueblo de Santo

    Tom, que junto sua parcialidade,

    dedicava-se ao cultivo e extrao da

    erva-mate, que seria beneficiada por

    outros.

    25

    Ibidem, p. 133. 26

    Ibidem, p 151 e p. 134-135. 27

    Ibidem, p. 179-180, 183.

    Fig. 3: Runas da igreja de San Igncio Mini.

    Entrada secundria da igreja.

    Fotografia: Jaqueline Ahlert

  • Fig. 4: Detalhe das runas de San Igncio Mini, com as cabeas de anjos, citadas por Alejo Peyret.

    Em La Cruz, os sacramentos e liturgias catlicas haviam sido apropriados e

    estavam sendo realizados pelos prprios ndios. Aos domingos, um jovem sacristo

    guarani celebrava o ofcio vespertino; uma ndia anci conduzia o canto sendo

    acompanhada por dois violes, uma flauta e dois violinos. A atitude dos poucos ndios

    e mestios que chegavam desolada igreja espantou Peyret, pois indicava a devoo e

    as lembranas. O cemitrio ao lado da igreja estava muito bem cuidado e muitas

    tumbas antigas tm a lpide com seu epitfio em guarani.28 Ao pensar nas

    prosperidades que possua La Cruz e sua atual misria, na f e resignao dessa pobre

    gente, o cronista disse que as lgrimas lhe caram dos olhos.

    Ncleos missioneiros nas paragens sul-rio-grandenses.

    Na mesma poca (1882), viravam-se com o que dispunham os ndios

    cristianizados instalados a lguas de La Cruz, em Santo Antnio da Palmeira, atual

    municpio de Palmeira das Misses. Eles estavam ali desde 1847, conforme o

    Relatrio do presidente da Provncia de S. Pedro do Rio Grande do Sul, redigido pelo

    senador conselheiro Manoel Antonio Galvo,

    Ocorreu neste ano [1847], no distrito de Palmeira, onde tinha o

    tenente Jos Joaquim de Oliveira um campo: nos fundos dele

    apareceram em maio 200 ndios de ambos os sexos: s expensas suas e

    com o que pode obter dos moradores da Cruz Alta, as solicitaes do

    juiz municipal a quem escrevera, acudiu as primeiras necessidades dos

    novos hospedes.29

    28

    Ibidem, p. 255 29

    Relatrio do presidente da Provncia de S. Pedro do Rio Grande do Sul, o senador conselheiro Manoel

    Antonio Galvo, na abertura da Assembla Legislativa Provincial em 5 de outubro de 1847,

  • Nos perodos de crise, as estratgias missionais pareciam emergir na urgncia

    de solues que envolviam a sobrevivncia. Nas estiagens eram usados vrios meios

    para pedir misericrdia e clemncia divinas, suplicando por chuvas. Entre eles, eram

    organizadas procisses e feitas oraes especiais.30

    Das imagens processionais levadas para l, algumas se encontram no Museu

    Vicente Pallotti, de Santa Maria, outras, em casas particulares de Cruz Alta.

    A concluso da igreja de Palmeira das Misses aconteceu somente em 1879.

    Durante esses anos, a maioria dos sacramentos era realizada autonomamente, mesclando

    o que havia de memria e o que sentiam fazer-se necessrio nas liturgias do calendrio

    cristo que sobrevinham.

    Perto dali, no Rinco da Guarita, em 1724, os selvagens tinham erguido um

    andaime, na ltima coxilha mais alta [...], de onde observavam os desconhecidos

    invasores que queriam se apropriar de suas terras, tambm existia um rancherio. Nos

    anos 1840, uma parte dos ndios preferiu a liberdade31 e atravessou o Uruguai,

    enquanto outros se agruparam ao logo da floresta no Rinco da Guarita. Em fins do

    sculo XIX, haviam restado cerca de cem pessoas no povoado, que se ocupam em

    produzir erva-mate, plantando o suficiente para o sustento.32

    Destes mangrulhos estava pontuada a regio de Santa Maria da Boca do Monte.

    Territrio de uma antiga estncia missioneira, o local habitada milenarmente por

    famlias de guaranis, como evidenciam as centenas de igaabas e outros remanescentes

    de cultura material encontrados na regio.

    Durante a vigncia do Tratado de Santo Ildefonso, de 1777, foi estabelecido ali

    um acampamento de tropas luso-brasileiras que trabalhavam na demarcao dos limites

    entre Espanha e Portugal.33

    Em terreno da estncia do padre Eusbio de Magalhes

    Rangel e Silva, sacerdote que exerceu o primeiro ministrio na localidade, foi

    construdo um oratrio para o pessoal da Partida da Segunda Diviso. Mesmo o

    acompanhado do oramento da receita e despesa para o anno de 1847 a 1848. Porto Alegre, Typ. de

    Argos, 1847, p. 14 30

    BESCHOREN, Maximiliano. Impresses de viagem na Provncia do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:

    Martins Livreiro, 1989, p. 79. Na mesma pgina o autor acrescenta: Em 1878 o municpio contava com 56 casas. Atualmente [1882] o nmero cresceu para 70.

    31 A liberdade, possivelmente est relacionada arregimentao durante a guerra civil farroupilha.

    32 BESCHOREN, Maximiliano. Impresses de viagem na Provncia do Rio Grande do Sul..., op.cit., p.

    87. Por volta de 1866 a 1868, surge mais um ncleo: o do Faxinal da Guarita, primeira denominao da

    atual sede do hoje municpio de Coronel Bicaco. 33

    Em 1787, o demarcador Jos de Saldanha encerrou ali a primeira parte de seu dirio, com importantes

    anotaes sobre a regio e o modo de vida indgena.

  • religioso tendo se retirado em 1801, permaneceu o oratrio onde exerciam o ministrio

    esporadicamente os coadjutores de Cachoeira, em visita a pequena povoao, que ia

    sempre aumentando.34

    Como havia referido Saint-Hilaire, havia inmeros missioneiros naquelas

    paragens. Mas foi aps os portugueses terem se apossado da regio missioneira que

    houve um aumento populacional significativo no povoado. Em 1803, cinquenta famlias

    de indgenas assentaram-se no ncleo populacional. Simultaneamente, incrementaram a

    demografia os brasileiros vindos de So Paulo. Devido a isso, em 1812, Santa Maria

    foi elevada categoria de Capela Curada, tendo iniciado suas atividades no ano de

    1814.35

    Entre 1814 e 1822, foram registradas 1.234 cerimnias de batismo na capela.

    Desses, 525 eram pertencentes a crianas luso-brasileiras; 393 classificados como

    ndios, compondo um universo de 918 batizados livres. O restante era formado por 278

    registros de batismos de escravos. Praticamente todas as mes das crianas apontadas

    como ndias foram classificadas pelo vigrio como sendo de nao guarani. Mais de

    80% dos casamentos entre os ndios deu-se entre indivduos da mesma doutrina, sendo a

    grande maioria dos missioneiros provinda de So Luiz.36

    No foram identificadas as

    razes da especificidade desta procedncia. Entretanto, os luisistas tinham estncias

    banhadas pelo Vacaca no perodo missioneiro, onde existiam as suas capelas.

    Bem como a coleo de imagens conservada em Rivera, o acervo escultrico

    remanescente em Santa Maria, no Museu Vicente Pallotti, especialmente significativo

    e indicativo dos movimentos de bricolagem e mestiagem que dinamizaram as relaes

    daquele quadro sociocultural. A presena da estaturia paulista altera gradativamente

    aspectos estticos da produo escultrica local.

    34

    RUBERT, Arlindo. Histria da igreja no Rio Grande do Sul: poca colonial (1626-1822). Porto

    Alegre: EDIPUCRS, 1994, p. 123. Sobre o tema, ver: SANTOS, Jlio R. Quevedo. As origens

    missioneiras de Santa Maria. In: Beatriz Teixeira Weber e Jos Iran Ribeiro. (Org.). Nova Histria de

    Santa Maria: contribuies recentes. Santa Maria: Cmara de Vereadores de Santa Maria, 2010, p. 107-

    142. 35

    FARINATTI, Lus Augusto; RIBEIRO, Max Roberto Pereira. Guaranis nas capelas da fronteira:

    migraes e presena missioneira no Rio Grande de So Pedro (Alegrete e Santa Maria, 1812-1827).

    Disponvel em: http://www.ifch.unicamp.br/ihb/SNH2011/TextoMaxRPR.pdf 36

    Idem. Sobre estes dados ver tambm: BELEM, Joo. Histria do Municpio de Santa Maria 1797-

    1933. 3 ed. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2000.

  • Nesse sentido, a preciosa coleo aos cuidados do museu expe, como a cultura

    material segmento do universo emprico social e culturalmente apropriado ,

    associada s fontes escritas, aos registros de batismos e jurdicos, entre outros,

    corrobora na construo da historiografia do local e dos indivduos envolvidos. A

    esttua de Santo Antnio (fig. 6) classificada no acervo como colonial, ou seja, sem

    procedncia e autoria precisas, apenas inserida nesta limitao cronolgica evidencia

    transformaes estticas, a exemplo da fisionomia do santo e do menino, da postura e

    modo como segura o livro, mas mantm referenciais prprios da estaturia missioneira,

    como a peanha arredondada, estaticidade, rigidez e qualidades policrmicas.

    Hibridismos que, certamente, tiveram referentes em nvel social.37

    O aldeamento de So Nicolau do Rio Pardo no fugia dessa configurao

    mestia. No ano de 2000, durante a demolio de um dos casares oitocentistas da

    cidade, foi encontrado um tijolo gravado com escritos em lngua guarani, com data de

    1823.

    37

    Certa guaranizao deu-se, cultural ou biologicamente, em toda a Amrica platina. Ao sair das Misses

    pelo Toropi-Chico, Saint-Hilaire discutiu o assunto com um estancieiro curitibano. Muitos homens que

    se estabeleciam com a esperana de fazer fortuna, sem a inteno de ficar aqui, se apaixonam pelas ndias e no querem mais separar-se delas. Ao tratarem sobre o amor que as ndias inspiram aos brancos, seu hospedeiro considerou como uma espcie de encantamento. In: SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821, op. cit., p. 391, 393. Ficara famoso o caso do

    batalho de Santa Catarina transferido para as Misses, cujo contingente de mais de cem homens no

    conseguiu se separar de suas mulheres ndias, quando tiveram que retornar para a sua Provncia de origem, e constituram famlias com elas.

    Fig. 5: Parte do acervo do Museu Vicente Pallotti.

    Fotografia: Sistema de museus de Santa Maria. Fig. 6: Imagem de Santo Antnio,

    30 cm (aprox.), componente do

    acervo do Museu Vicente Pallotti.

    Santa Maria/RS.

    Fotografia: Jacqueline Ahlert.

  • Fig.7: Tijolo de adobe.

    Acervo: Museu Histrico Baro de Santo ngelo. Rio Pardo/RS.

    Fotografia: Jacqueline Ahlert

    O tijolo est em exposio no Museu Histrico Baro de Santo ngelo. Nele l-

    se: Ao de 1823 roy pipe chaci febrero pe oman curumi Jo(o) Pasqual Arazuc he a

    pipe jojexub Tup (t)a der av Maria. As palavras, traduzidas livremente,

    encontram-se em placa explicativa ao lado do mesmo: Ano de 1823 ocorreu o

    passamento por doena do curumi (menino) Joo Pascual Arazuc. Repouse em Tup

    (Deus) Nosso Senhor! Ave Maria!. A palavra roy significa ano em guarani, chaci

    (jacy/jaxy) significa lua e ambas foram usadas para contar e marcar o tempo; oman

    significa morrer e der significa Deus.38

    Representativamente, o tijolo carrega informaes valiosas sobre os percursos

    transcorridos ao longo de mais de sessenta anos da fundao daquele povoado. A

    vivncia missioneira havia sido, de fato, marcante para os indgenas. No s haviam

    conservado a escrita em guarani, como crenas arraigadas em noes que sofreram

    profundas mudanas cosmolgicas no ambiente missional, como o post-mortem.

    Como definiu Neumann, a instruo alfabtica promovida nas redues,

    inicialmente voltada aos caciques, proporcionava as condies para que os guaranis

    elaborassem novas formas de expresso grfica.39

    38

    MELO, Karina M. R. S. e. O aldeamento de So Nicolau do Rio Pardo: mobilidades guaranis em

    tempos provinciais. In: Anais do Simpsio Temtico Os ndios e o Atlntico, XXVI Simpsio Nacional de Histria da ANPUH, So Paulo, 2011. Disponvel em:

    http://www.ifch.unicamp.br/ihb/SNH2011/TextoKarinaM.pdf 39

    NEUMANN, Eduardo. A escrita dos guaranis nas redues: usos e funes das formas textuais

    indgenas sculo XVIII. Topoi, v. 8, n. 15, jul.-dez. 2007, p. 49-79. Disponvel em: http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi15/topoi%2015%20-%20artigo3.pdf, p. 50

  • H inmeras provas de quanto os guaranis alfabetizados sentiram-se

    atrados pela ideia de produzir relatos ou deixar mensagens. Ao que

    parece, nem sempre encontravam os meios necessrios escrita, como

    papel e tinta, motivo pelo qual, em determinadas ocasies, deixaram

    inscries afixadas em pedaos de couro ou tbuas.40

    Como ocorreu na estaturia, entre os usos da escrita, esteve a funo de

    reproduo do cnone religioso. No entanto, depois de dominado aquele saber, sua

    aplicabilidade pde expressar a autonomia, tanto de prticas, como de conceitos.

    O aldeamento de So Nicolau do Rio Pardo foi estabelecido mediante acordo

    entre autoridades coloniais e lideranas indgenas, em 1757. Sendo o primeiro

    constitudo em territrio lusitano, nos moldes que remetiam poltica assimilacionista

    do marqus de Pombal.

    Apesar das arregimentaes ocorridas durante os sculos XVIII e XIX, h

    registros de que os indivduos que permaneceram no aldeamento, alm de serem

    empregados nas lavouras, na conduo de tropas e carretas e, at mesmo, em algumas

    charqueadas prximas, continuaram a desenvolver atividades artsticas: vrios menores

    nesta cidade [esto] aprendendo a msica e pintura, e os ofcios de ferreiro, carpinteiro e

    sapateiro,41 escreveu o general Jos Joaquim de Andrade Neves sobre os residentes no

    aldeamento de So Nicolau.42

    Parte dos remanescentes escultricos desse grupo de missioneiros pertence ao

    acervo do Museu de Arte Sacra da cidade de Rio Pardo, no Rio Grande do Sul; outras

    esto na igreja de So Nicolau, retiradas do permetro urbano do municpio. Algumas

    imagens permanecem em casas particulares.

    Para a aldeia de So Nicolau do Rio Pardo, os missioneiros levaram imagens, o

    culto a elas prestado e as festividades mais significativas realizadas nas redues.

    Atualmente, ainda referenciada a festa do padroeiro e a celebrao da Paixo de

    Cristo, ritualizada naquela localidade.

    40

    Ibidem, p. 59. 41

    AHRS. Fundo indgenas. Diretoria Geral dos ndios. Correspondncia ativa: Jos Joaquim de Andrade

    Neves, 1 de janeiro de 1849. 42

    No ano de 1849, So Nicolau do Rio Pardo contava com quase quatrocentos guaranis. A maioria dos

    habitantes era de idosos e crianas. Segundo o diretor do aldeamento, o motivo da pouca prosperidade

    era porque com a passada revoluo que tudo assolou, dela [a aldeia, como era chamada na poca] foram tirados muitos braos, que, conservados, certamente a teriam feito florescer. AHRS. Fundo

    indgenas. Diretoria geral dos ndios. Correspondncia ativa Jos Joaquim de Andrade Neves, 1 de

    janeiro de 1849.

  • Esse aldeamento, cuja longevidade foi diferencial, era um espao privilegiado,

    um epicentro, para muitos encontros e experincias indgenas, tanto no perodo colonial

    como aps a independncia do Brasil.43 A diversidade das crianas que frequentavam a

    escola sinaliza a tranculturalidade do espao.

    Em 1848, dezoito crianas guaranis frequentaram a escola, mas

    apenas sete delas eram naturais de So Nicolau. As demais eram

    nascidas ou provenientes de outras localidades da Provncia como o

    distrito do Couto, das Misses, do Estado Oriental, e de So Jos

    do Patrocnio. O que chama ateno que mais da metade dos alunos

    que frequentavam a escola era proveniente do Estado Oriental, [...]

    precisamente do Uruguai. Isso indica que, ao menos em alguns

    momentos do sculo XIX, So Nicolau se apresentou como um

    destino possvel no somente para os ndios guaranis da regio de

    Misses e de outras partes da provncia, mas tambm para guaranis

    de outra nacionalidade.44

    No mesmo ano, o relatrio do vice-presidente da Provncia, Joo Capistrano de

    Miranda Castro, denunciava que estava em completo abandono, na Provncia, a

    catequese e civilizao dos ndios. Para o aldeamento de So Nicolau do Rio Pardo,

    havia sido promovido um capelo. Entre as compras realizadas para aqueles ndios,

    43

    NEUMANN, Eduardo. Presena indgena na Guerra dos Farrapos: primeiras observaes (c.a 1831-

    1851). Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011. Disponvel em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300410373_ARQUIVO_ANPUH2011.pdf.

    Acesso em 02/04/2012. 44

    MELO, Karina M. R. S. e. O aldeamento de So Nicolau do Rio Pardo..., op. cit., p. 8.

    Fig. 8: Exposio do acervo do Museu de Arte Sacra de Rio Pardo/RS.

    Fig. 9: Imagem de Santo Estevo, 50 cm (aprox.), componente do acervo do museu.

    Fotografias: Jacqueline Ahlert

  • estavam: ferramentas e gneros (13.720 ris) e livros (12.900 ris).45

    Os valores de

    auxlio para a materialidade da sobrevivncia equivaliam a pouco mais que o

    provimento para o conhecimento e a religio, expressos em livros.

    O servio militar, como bem observou Favre, constituiu o golpe final para os

    missioneiros, pois tinha um efeito nefasto sobre as novas geraes que, envolvidas

    ainda jovens, perdiam os hbitos de cultivar a terra e o conhecimento de distintos

    ofcios que os haviam diferenciado. Destrua-se, assim, toda possibilidade de recuperar

    a exitosa estrutura de produo de alimentos e objetos que os haviam diferenciado at

    ento. Quanto s chinas, que nos anos anteriores, pareciam ter preferido acompanhar

    seus homens na azarosa vida militar46

    cozinhando, fazendo curativos, lavando a roupa,

    costurando e remendando , durante a Guerra dos Farrapos e contra o Paraguai, ao

    menos na aldeia de So Nicolau, permaneceram com os filhos e ancios.

    Consequentemente, a populao do aldeamento decaiu muito nos anos de guerra,

    provocando seu esvaziamento.47

    Em 1857,

    acha-se este aldeamento bastante atrasado. Existem ali 260 ndios,

    sendo 112 do sexo masculino, e 132 do feminino, a maior parte velhos

    e aleijados das guerras nesta Provncia e no Estado Oriental, o diretor

    queixa-se de que os moos sejam todos recrutados pelo Exrcito, no

    que no lhe acho muita justia, porque eles so pouco afeioados ao

    trabalho.48

    Os guaranis continuavam sendo recrutados para formao e atuao em

    regimentos nas guerras, sobretudo, no corpo de lanceiros. A servio dos farroupilhas ou

    dos imperiais, atenderam s necessidades mais urgentes dos comandantes militares. Tais

    funes oferecem as melhores pistas sobre a presena e atuao indgena, porm sem

    estarem restritas s ocupaes de guerra. Sabe-se que os ndios atuaram nas atividades

    campeiras, como domadores de cavalos, alm de integrantes das milcias. A presena

    indgena na Guerra dos Farrapos, no esteve restrita s foras rebeldes. Alm de

    45

    Relatrio do vice-presidente da Provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, Joo Capistrano de

    Miranda Castro, na abertura da Assembleia Legislativa Provincial em 4 de maro de 1848,

    acompanhado do oramento para o ano financeiro de 1848-1849. Porto Alegre: Typ. do Porto

    Alegrense, 1848. . 20 46

    FAVRE, Oscar Padrn. Ocaso de un pueblo indio: historia del xodo guaran-missioneiro al Uruguay.

    Durazno: Tierra a Dentro, 2009, p. 28. 47

    MELO, Karina M. R. S. e. O aldeamento de So Nicolau do Rio Pardo..., op. cit. 48

    AHPA Arquivo Histrico de Porto Alegre. Relatrio do vice-presidente da Provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, Patrcio Correa da Cmara, na abertura da Assemblia Legislativa Provincial, 01

    de outubro de 1857.

  • engrossarem as fileiras das tropas farroupilhas, conforme exposto, os ndios tambm

    atuaram ao lado das foras imperiais, para o servio das armas.49

    Consideraes finais

    A ambivalncia da fronteira esteve com os missioneiros desde a introduo das

    primeiras redues religiosas. Seus territrios foram, via de regra, o cenrio onde

    Portugal e Espanha disputaram poderes e hegemonia durante sculos. Posteriormente,

    os Estados Nacionais concorreram por terras e pessoas. A esses embates, pode-se somar

    dilemas distintos, como as diferenas que os separavam dos cristos ocidentais; os

    processos onde hierarquizou-se a disparidade para afirmar a superioridade;50

    a

    imposio de dogmas e preceitos religiosos exgenos, transformaes culturais,

    graduais e constantes, que provocaram uma adequao histrica originada nas prprias

    condies que os contextos exigiram. O entre-lugar foi o ambiente dos missioneiros, o

    espao culturalmente hbrido na situao de fronteira humana.

    Foi nesse contexto de (in)adequao, entre a perda da referncia jesutica,

    estrutural missioneira e a falta de confiana e expectativa, que se firmaram alguns dos

    esteretipos que caem sobre os indgenas at os dias atuais: alcoolismo, promiscuidade,

    displicncia, bandidismo. Esses vcios foram justamente os argumentos encontrados

    pelos seus principais provocadores, os portugueses e espanhis, para justificar o porqu

    de uma suposta inutilidade e insignificncia daquela gente.51 Suas sadas seriam a

    mestiagem, a sujeio humilde ou o extermnio.

    49

    NEUMANN, Eduardo. Presena indgena na Guerra dos Farrapos: primeiras observaes (c.a 1831-

    1851). Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH. So Paulo, julho 2011. Disponvel em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300410373_ARQUIVO_ANPUH2011.pdf, p.

    7. 50

    Em seu livro A heresia dos ndios, Ronaldo Vainfas sugere que Michel de Certeau, originalmente, viu

    nas representaes europeias do Novo Mundo o esboar de um saber etnolgico, a investigao que

    reconheceu o Outro cultural: Certeau denominou essa proto-etnologia quinhentista de heterologia, limiar de um saber e de um olhar antropolgico na cultura europeia, ciente das dificuldades com que se

    depara o historiador contemporneo para extrair dos escritos europeus a informao histrico-

    etnogrfica desejada. In: VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos ndios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.24.

    51 CAMARGO, Fernando. O Maln de 1801: a Guerra das Laranjas e suas implicaes na Amrica

    meridional. Passo Fundo: Clio, 2001, p.187.

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