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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO - MESTRADO EM COMUNICAÇÃO AUDREY DO NASCIMENTO SABBATINI MARTINS Além da moldura, a tessitura do texto/vinheta: Análise semiótica das vinhetas de abertura da minissérie Os Maias, da telenovela América e do Jornal Nacional. MARÍLIA – 2010

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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO - MESTRADO EM COMUNICAÇ ÃO

AUDREY DO NASCIMENTO SABBATINI MARTINS

Além da moldura, a tessitura do texto/vinheta: Análise semiótica das vinhetas de abertura da minissérie Os Maias, da

telenovela América e do Jornal Nacional.

MARÍLIA – 2010

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AUDREY DO NASCIMENTO SABBATINI MARTINS

Além da moldura, a tessitura do texto/vinheta: Análise semiótica das vinhetas de abertura da minissérie Os Maias, da

telenovela América e do Jornal Nacional.

Dissertação de mestrado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da Universidade de Marília, para obtenção do título de Mestre em Comunicação. Orientadora: Profª. Dra. Linda Bulik.

MARÍLIA - 2010

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Audrey do Nascimento Sabbatini Martins

Além da moldura, a tessitura do texto/vinheta: Análise semiótica das vinhetas de abertura da minissérie Os Maias, da

telenovela América e do Jornal Nacional.

BANCA EXAMINADORA Profª. Drª. Linda Bulik (Orientadora) Avaliação: _______________________ Assinatura: _____________________

Prof. Dr. Adenil Alfeu Domingos Avaliação: _______________________ Assinatura: _____________________ Profª. Drª. Heloisa Helou Doca Avaliação: _______________________ Assinatura: _____________________

MARÍLIA 09/12/2010

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Ao ANDRÉ, meu marido e melhor amigo, que aceitou viver comigo este momento, apesar de tudo... Obrigada pelo companheirismo, pela paciência, pelos finais de semana perdidos, pelas noites mal dormidas e pelo carinho nos meus momentos de crise... Você é meu presente de Deus!

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por tudo e para sempre;

Ao meu pai Paulo Francisco Sabbatini pelo incentivo, amor e doação;

À minha mãe Maria Inês do Nascimento Sabbatini – meu grande e precioso tesouro e apoio – sem

você seria impossível,

Aos amigos mais que especiais meu tio Mário Donizete do Nascimento, Wellington Figueiredo e

Cláudia Regina Franzão pelo apoio, pelos diálogos, pela amizade, pelo ombro amigo;

À minha querida orientadora professora Linda Bulik, que aceitou o desafio,

acreditou em meu trabalho, propiciando momentos de aprendizagem com carinho e com imensurável

dedicação;

Às professoras Doutoras Suely Fadul Vilibor Flory e Heloisa Helou Doca pela imensa contribuição

dada para a consolidação desse trabalho;

Às professoras Lúcia C. M. Miranda e Rosângela Marçolla pelos ensinamentos;

Ao professor Adenil Alfeu Domingos, da Faac - Unesp de Bauru, pelo incentivo e pela amizade,

À Andréa pelo atendimento sempre solícito;

A todos aqueles, próximos e distantes, a quem a VIDA me trouxe em forma de amigos que, de uma

forma ou de outra, rezaram, acompanharam meu esforço e participaram desse sonho.

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“ A dúvida é um estado de insatisfação e inquietude do qual lutamos para nos desvencilhar e passar para um estado de crença, ao passo que este é um estado calmo e satisfatório que não desejamos evitar ou transformar numa crença em outra coisa. [...]. Tanto a dúvida como a crença têm efeitos positivos sobre nós, ainda que bem distintos. A crença não nos faz agir prontamente, mas predispõe-nos a agir de uma certa maneira quando surge a ocasião. A dúvida é desprovida desse efeito activo, mas estimula-nos a investigar até que ela própria seja aniquilada. [...] A irritação da dúvida provoca uma luta para alcançar um estado de crença.”

Charles Sanders Peirce, in 'A Fixação da Crença'

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RESUMO

MARTINS, Audrey do Nascimento Sabbatini. Além da moldura, a tessitura do texto/vinheta: Análise semiótica das vinhetas de abertura da minissérie Os Maias, da telenovela América e

do Jornal Nacional. 2010. As vinhetas de aberturas televisivas são, atualmente, muito mais do que iluminuras ou molduras caracterizadoras do programa que a emissora vai apresentar. Mergulhar no mundo das vinhetas vai muito além de ouvir a “musiquinha” e acreditar que ela somente anuncia a nova novela, ou ainda a futura minissérie, ou emoldura qualquer ambiente jornalístico. Estudar as vinhetas é não deixar de apreciar aquilo que televisão brasileira tem de mais estonteante, é descobrir que há dentro de um produto comercial um arsenal artístico e mobilizador, recheado de simbologias que serão evocadas pelas narrativas audiovisuais. Atrelada à semiótica peirceana, observam-se as vinhetas como uma fase em que o leitor/telespectador é tomado pela percepção, em que os signos são notados e abduzem-no suscitando nesse leitor/telespectador o princípio da dúvida sobre o que será apresentado pela emissora. Este trabalho prima pela análise do diálogo intertextual estabelecido entre os signos como: o som, a cor, os movimentos, as imagens e os textos verbais e não-verbais correlacionados para a tessitura do texto-vinheta, levando em conta a visibilidade dos diferentes textos que precedem os diferentes programas. Serão evidenciadas as analises das vinhetas da minissérie global Os Maias, da telenovela América e do telejornal JN. Palavras-chave: vinheta. leitor/telespectador. narrativas audiovisuais. semiótica peirceana.

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ABSTRACT

MARTINS, Audrey do Nascimento Sabbatini. Além da moldura, a tessitura do texto/vinheta: Análise semiótica das vinhetas de abertura da minissérie Os Maias, da telenovela América e do Jornal Nacional. 2010. The television vignette openings are currently more than illuminated or frames that characterize a certain syllabus that will be presented by a TV station. Diving into the world of vignettes goes beyond listening to a "tune" and believing that they only announce either a new soap opera or a miniseries to come, or even that they just frame any journalistic environment. Studying the vignettes means not failing in appreciating what Brazilian TV has as one of the most stunning traits, it means discovering that there is a commercial product within an artistic mobilizing arsenal, filled with symbologies that will be evoked by audiovisual narratives. Linked to Peircean semiotics, vignettes are observed as a phase in which the reader/viewer is taken by the perception, when the signs shown are noticed and abduct him while they impose the reader/viewer the principle of doubt about what will be presented by a broadcaster. This research material excels for examining the intertextual dialogue established among an array of signs such as sound, color, movement, images and both texts verbal and nonverbal correlated to the weaving of the text-vignette, taking into account the visibility of various texts that precede different programs. The analysis of the vignettes broadcast by Globo Network for its miniseries Os Maias, America soap opera and Jornal Nacional (JN) television news will have their signs critically examined by us through Peircean semiotics. Keywords: vignettes. audiovisual narratives. reader/viewer. Peircean semiotics.

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SUMÁRIO

Pág. INTRODUÇÃO 11 1. Capítulo I: Leitura semiótica da vinheta de abertura da minissérie Os Maias 20 1.1. A origem das vinhetas – um breve apanhado 21 1.2. As vinhetas televisivas de abertura das minisséries 24 1.3. A vinheta da minissérie Os Maias, a semiose intertextual 32 1.4. Os elementos da vinheta da minissérie Os Maias e seus significados 33 1.4.1. As flores 33 1.4.2. As cores 38 1.4.3. Os objetos 42 1.4.4. Um livro que se fecha 45 1.4.5. A melodia da vinheta 46 1.4.6. Um discurso polifônico ou um sujeito coletivo 49 2. Capítulo II: Nas vinhetas de América, as tríades Peirceanas 55 2.1. As vinhetas da telenovela América 56 2.2. Análise da primeira vinheta de abertura 57 2.2.1. Elementos componentes da primeira vinheta 63 2.2.2. O signo sonoro da primeira vinheta 70 2.3. A segunda vinheta da telenovela América 74 2.3.1. O signo sonoro da segunda vinheta 81 2.4. A terceira vinheta da telenovela América 82 2.4.1. Introdução: comentário descritivo da terceira vinheta 82 2.4.2. Análise semiótica dos elementos que compõem a terceira vinheta 83 2.4.2.1. O plano de conjunto da vinheta 83 2.4.2.2. As cores predominantes da vinheta 85 2.4.2.3. O discurso do reflexo no Legissigno 89 2.4.2.4. Um eco das fábulas na terceira vinheta 90 2.4.2.5. O signo sonoro: a música de abertura da terceira vinheta de América 92 2.4.2.6. O logotipo da terceira vinheta 95 3. Capítulo III: Análise semiótica da vinheta do Jornal Nacional 99 3.1. Um traço do passado 100 3.2. A vinheta atual de abertura do Jornal Nacional: Um breve ensaio 101 3.2.1. A composição da vinheta atual 108 3.3. Os signos integrantes da vinheta 109 3.3.1. A presença do globo terrestre 109 3.3.2. A aparição do nome do programa 112 3.3.3. As cores da vinheta 113 3.3.4. Um mezanino ou uma cabine 118 3.4. O signo sonoro da vinheta do JN 120 3.5. O caráter do enunciador na vinheta do JN 121 CONSIDERAÇÕES FINAIS 129 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 137

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LISTA DE FIGURAS

Pág. Frame 01 a Frame 09 - Minissérie Os Maias 33 Frame 10 a Frame 12 - Minissérie Os Maias 34 Frame 13 a Frame 18 - Minissérie Os Maias 35 Frame 19 a Frame 21 - Minissérie Os Maias 36 Frame 22 - Heráldico do Ramalhete: Minissérie Os Maias 37 Frame 23 a Frame 25 - Minissérie Os Maias 41 Figura 01 - Minissérie Os Maias 42 Figura 02 - Minissérie Os Maias 45 Frame 26 - Heráldico do Ramalhete: Minissérie Os Maias 45 Frame 27 a Frame 29 - Primeira vinheta América 57 Frame 30 a Frame 32 - Primeira vinheta América 58 Frame 33 a Frame 38 - Primeira vinheta América 62 Frame 39 a Frame 41 - Primeira vinheta América 62 Frame 42 a Frame 44 - Primeira vinheta América 63 Frame 45 a Frame 50 - Primeira vinheta América 64 Frame 51 a Frame 56 - Primeira vinheta América 65 Frame 57 a Frame 58 - Primeira vinheta América 67 Frame 59 a Frame 60 - Primeira vinheta América 68 Frame 61 a Frame 66 - Primeira vinheta América 69 Frame 67 – Logotipo da primeira vinheta América 70 Frame 68 a Frame 70 - Segunda vinheta América 74 Frame 71 a Frame 73 - Segunda vinheta América 75 Frame 74 a Frame 79 - Segunda vinheta América 76 Frame 80 a Frame 85 - Segunda vinheta América 77 Frame 86 a Frame 88 - Segunda vinheta América 80 Frame 89 a Frame 91 - Terceira vinheta América 83 Frame 92 a Frame 94 - Terceira vinheta América 85 Frame 95 a Frame 97 - Terceira vinheta América 86 Frame 98 a Frame 100 - Terceira vinheta América 87 Frame 101 a Frame 102 - Terceira vinheta América 89 Frame 103 a Frame 104 - Terceira vinheta América 90 Frame 105 a Frame 106 - Terceira vinheta América 91 Frame 107 a Frame 108 - Terceira vinheta América 91 Frame 109 - Logotipo da terceira vinheta América 95 Figura 03 - Foto dos primeiros apresentadores do JN 100 Figura 04 - Aberturas do JN de 1969 a 2009 100 Figura 05 - Logotipos do JN 100 Frame 110 a Frame 115 - Abertura JN 110 Frame 116 a Frame 118 - Abertura JN 112 Frame 119 a Frame 121 - Abertura JN 113 Frame 122 a Frame 123 - Abertura JN 114 Frame 124 a Frame 125 - Abertura JN 118 Frame 126 a Frame 127 - Abertura JN 119

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INTRODUÇÃO

Fonte: Youtube

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iferentemente da televisão europeia, que buscou suas origens no teatro, na

literatura, ou como a televisão norte-americana que buscava valores

comerciais, a televisão brasileira teve sua origem num meio mais próximo: o

rádio. Vinculada à cultura popular, nossa televisão teve como base a música e cria, então, sua

própria linguagem a partir da década de setenta,

Quando os europeus conheceram uma bola incandescente que transmitia imagens em

movimentos acopladas ao som, foram chamar todos os seus para participar daquela nova

aventura da comunicação. Assim sendo, a tevê européia por muito tempo teve traços do

teatro, concerto, literatura, cabaré do que do novo meio de comunicação. [...] Nos Estados

Unidos, quando ela surgiu comercialmente, já existia em Hollywood uma poderosa

máquina de produção de entretenimento de massa baseada na industrialização do som e da

imagem [...] No Brasil foi diferente. [...] a tevê brasileira nasceu de um meio igualmente

eletrônico e mais recente que havia: o rádio. [...]

(MEDAGLIA apud RIGHINI, 2004, p.9)

Sendo a sonoridade um quesito constante na linguagem televisiva, essa não poderia

deixar de ter sua função. A televisão brasileira, a nossa telinha, produz em seu perfil sonoro,

muito mais do que imagens, produz emoções, sonhos, produz a vida como bem afirmava o

slogan global de final de ano “ A gente se vê na Globo...”.

Mergulhados nesse meio de comunicação, surgem seus programas, narrativas

audiovisuais que navegam desde o ambiente descrito como não-ficção e ultrapassam o limiar

ficcional. Atendo-se às narrativas ficcionais, essa pesquisa busca uma ampliação na visão das

vinhetas de abertura das narrativas audiovisuais. Para tanto, faz – se necessário vincular a esse

estudo, que as narrativas surgem da necessidade de comunicação humana, essa nasce após um

longo aprendizado – amparado pelas experiências e vivências adquiridas – criando-se um sistema

simbólico – a linguagem – o qual nos garante o poder de comunicação para perpetuação da

espécie humana, de sua cultura e seus costumes.

Segundo Cristina Costa (2005,p.13), “ O homo sapiens é capaz de comunicar sua

experiência vivida por meio de um discurso significativo” através da qual brotam, então, as

D

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narrativas e, com a evolução da espécie humana, as invenções que nascem a partir de Gutenberg

e, alcançam atualmente a Internet.

Sabendo que, nesse processo de comunicação, que alenta o ato de narrar, coube espaço

para o imaginário, ou seja, ao transmitir uma experiência vivenciada, o homem apoderou-se de

um discurso e esse novo velho discurso, apesar de nascido de um fato, tem em si uma nova

versão, novos detalhes, novas maneiras de ser contado e um novo ponto de vista. Não há como se

abster da idéia de que, nesse novo narrar, não houve um imaginar recheado de vivências e

experiências que constituíram uma nova narrativa. Há, portanto, em cada narrativa, uma

distorção, pois a mesma se delineia a partir de lembranças, de algo passado, de uma história

também recheada de vivências e experiências oriundas, brotadas de outras vivências e

experiências.

O imaginário, como afirma Miranda (2005,p.19), citando Jurandir Machado e Silva “ é

um reservatório de imagens, sentimentos, experiências, visões do real e lembranças que

sedimentam um modo de pensar, de agir e de estar no mundo. O imaginário é uma distorção

involuntária do vivido que se cristaliza como marca individual ou grupal.”

Sendo as narrativas audiovisuais ficcionais um produto do imaginário, ou ainda um

discurso marcado pelas vivências e experiências, transformado pelo imaginário, elas traduzem e

depreendem significações, criam um mundo que é ouvido e vivido pelo leitor/telespectador. Esse

mundo, já enunciado pelas vinhetas de abertura, dá ao leitor/telespectador o primeiro contato, o

primeiro acorde de que o que narrará é muito rico em significado e simbologia.

As vinhetas originárias das iluminuras estão presentes na cultura comunicativa humana

desde a antiguidade. Inicialmente, sendo visualizadas como molduras, elas se transformam em

representações imagéticas dos textos, ligam-se ao texto que emolduram, passando, assim, a fazer

parte do discurso enunciado pelo texto.

Para analisar o discurso das vinhetas de aberturas, observa-se a origem da palavra

vinheta,

[...] no estudo da genealogia do termo vinheta. Para chegar a essa genealogia fez-se uma

pesquisa que abrangeu diversas áreas culturais onde aparece a vinheta. O estudo inicia-se

com a simbologia da uva nos textos sagrados da Idade Antiga, onde a vinheta é

considerada sagrada.

(AZNAR, 1997, p.15)

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O estudo de Aznar permite, então, visualizar e elencar as vinhetas a partir de uma

relação com as vinhas e, pela apropriação das vinhas, parreiras de uva, encontram-se frutas que

originam o vinho. O vinho, por sua vez, assume simbologias distintas. Para a celebração cristã é a

representação do sangue de Cristo, o sagrado que conduz à vida eterna; na teoria pagã, a presença

do vinho remete ao deus Baco ou Dionísio que se perfaz pela delação do profano, do prazer, das

orgias. Numa mistura de prazeres tanto preceituados pelo paganismo mítico, como pela visão

sacra cristã, sob a ótica da vida eterna, cabe analisar que a vinheta assume cordialmente tanto o

preceito pagão como o cristão, que seguem pelo poder da sedução inebriante, ou seja, a vinheta

assume o preceito contextual de origem vocabular, que tem em si o poder de inebriar o

leitor/telespectador, levando ao consumo da narrativa audiovisual projetada pela mídia, no caso, a

televisão.

O poder inebriante das vinhetas de abertura fagocita1 o leitor/telespectador através de

sua linguagem sincrética recheada de índices e simbologias, associadas à sonoridade eloquente e

contagiante.

Mergulhar no mundo das vinhetas de abertura é muito mais do que ouvir a

“musiquinha”2 e acreditar que ela somente anuncia a nova novela, ou ainda a futura minissérie,

ou emoldura qualquer ambiente jornalístico. Aprofundar-se nas vinhetas é não descartar aquilo

que a televisão brasileira tem de mais estonteante, é descobrir que há, dentro de um produto

comercial, um arsenal artístico e mobilizador, recheado de simbologias que serão evocadas pela

narrativa audiovisual que será acompanhada em capítulos e capítulos diários.

A grosso modo, compararia as vinhetas ao que o semioticista americano Charles

Sanders Peirce, em sua teoria semiótica, chamou de primeiridade sígnica, ou seja, diria que a

vinheta é a primeiridade do programa que ela anuncia, ou ainda que a vinheta é a principal

válvula da programação, pois, em uma metáfora bem ao gosto da semiose peirceana, é a fase da

percepção, a fase em que o signo é notado, é percebido, logo a mais importante fase, visto que

desse processo de percepção origina-se todo um raciocínio para uma visão de secundidade do

programa e, possivelmente, uma menção futura à terceridade, a luz da razão avaliativa sobre o

programa, de forma analítica e crítica.

Esse estudo sobre as vinhetas objetiva uma releitura analítica sobre as estratégias usadas

para a construção das vinhetas de abertura, a intertextualidade nas mesmas, e alguns preceitos

1. Termo usado com base no estudo biológico do processo de ingestão e destruição de partículas sólidas, como bactérias ou pedaços de tecido necrosados, por células amebóides chamadas fagócitos. No caso do texto em questão fagocitar o telespectador seria ingeri-lo, trazê-lo para dentro do programa de TV, inebriá-lo, deixá-lo fascinado, destruir suas possíveis resistências em relação ao programa. 2. O termo foi usado no diminutivo para evidenciar que as vinhetas não retêm seu significado somente no signo sonoro, elas ampliam seu discurso em um sincretismo linguístico.

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artísticos nelas inseridos e seu poder sedutor / enunciador na vendagem do produto midiático que

elas anunciam, no caso, as narrativas audiovisuais conhecidas como telenovelas e minisséries.

A essa pesquisa se vinculará, no âmbito da desconstrução e do diálogo intertextual, os

signos expressos através da linguagem televisiva que prisma pelo sincretismo. O diálogo

intertextual entre as imagens, a sonoridade e a valorização da linguagem verbal e não-verbal será

analisado tendo em mente as tricotomias de Charles Sanders Peirce, a fim de se estabelecer o

fundamento que fagocita o leitor/telespectador. Busca-se, ainda, estabelecer a correlação entre a

macro-narrativa – minissérie ou novela – e a micro-narrativa – vinheta de abertura.

De forma mais específica, busca-se analisar a relação intertextual na linguagem sonora e

linguagem imagética que emoldura as vinhetas de abertura, bem como os diálogos com

simbologias oriundas de visões sócio-religiosas e artísticas. Caberá, ainda, nesse estudo,

apresentar-se a diferença entre as vinhetas de aberturas de minisséries, telenovelas e telejornais.

No primeiro capítulo, serão abordadas brevemente a origem das vinhetas e sua história.

Cabe para indumentação desse estudo, registrar a diferença entre minissérie e telenovela, pois

sendo a vinheta parte integrante desses produtos televisivos, ela terá sua função arraigada às

características de cada produto.

Aparentemente iguais, ou muito parecidas, as minisséries e telenovelas, ou as novelas

como são popularmente conhecidas, apesar de apresentarem estrutura semelhante e terem em

comum a característica de serem narrativas audiovisuais, elas diferem porque as minisséries são

formadas por uma história fechada, ou seja, a equipe de produção (autor, diretor e atores) já, de

antemão, sabe como ocorrerão os fatos, como se dará a continuidade da trama, ficando mais fácil

montar os personagens. As minisséries têm uma duração de horas limitada e um número de

capítulos já pré-estabelecidos, sendo uma história completa, que se aproxima do romance. Trata-

se de uma mini novela, uma história curta, sequencial cujo conhecimento total é necessário para a

visualização do conjunto e normalmente seus capítulos são precedidos de resumos dos capítulos

anteriores. Como se refere Righini,

A minissérie é, na verdade, uma mini novela – história curta mostrada em episódios, em

sequência, cujo conhecimento total é necessário à apreensão do conjunto, de tal forma que

muitas vezes, como em “Twin Peaks”, os capítulos são precedidos de resumos dos

acontecimentos anteriores. A minissérie é uma ficção televisiva que se fecha, clausurando

totalmente a história.

(PALLOTTINI apud RIGHINI, 2004, p.86)

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Ou, ainda, como bem define Daniel Filho sobre as minisséries:

As minisséries, no mundo todo, são espetáculos que têm de seis a doze horas de duração,

em geral exibidos num certo número de capítulos. Contam uma história completa com

começo meio e fim.

[...]

Quando começamos a produzir as minisséries, queríamos um aprimoramento do que

conseguíamos nas novelas. De certa forma, até hoje, as minisséries provocam uma

realimentação, uma releitura da novela, porque somos obrigados a usar quase a mesma

estrutura dramática, mas com um ritmo das cenas e da própria filmagem. Há uma melhora

da qualidade, as minisséries tendo um ritmo parecido com os primeiros capítulos de uma

novela, com acabamento melhor. Os atores, o diretor e a equipe saem do frenesi de gravar

seis capítulos semanais. Sem esquecer dos autores que trabalham numa obra fechada, mas

próxima de um romance, o que também facilita para eles. Não adianta simplesmente pegar

uma história já feita e tentar usar como modelo de outra. Deve - se analisar quais eram as

condições do período em que foi encenada ou escrita.

(DANIEL FILHO, 2001, p. 62)

As telenovelas brasileiras são narrativas audiovisuais que possuem quatro importantes

fases, sendo a primeira marcada por treze anos após a implantação da televisão no País, em que a

telenovela inaugura o ato de contar suas histórias em capítulos diários; a segunda fase de nossa

telenovela é marcada pela novela mexicana “O Direito de Nascer” e a programação, então

televisiva, passou a contar com esse gênero televisivo milionário. No final da década de sessenta,

já consolidado o gênero, era o momento de mudar, ou seja, transformar o gênero numa arte

tipicamente brasileira. Então, propôs-se a criação de dramalhões que deixados de lado pelo gosto

popular, foram sendo substituídos pela realidade, pelo cotidiano. Surgia, então, a quarta fase das

telenovelas: encerra-se a chamada “Era Madagan” e a Rede Globo de Televisão então insere a

telenovela no rol das grandes produções artísticas do Brasil.

A telenovela brasileira é uma história contada por imagens televisivas que possuem uma

trama principal, marcada por apresentar mais de cem e menos de duzentos capítulos em geral.

Com duração de aproximadamente sessenta minutos diários, em que se mesclados a história

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propriamente dita e publicidade. Cada telenovela pode possuir entre trinta e quarenta personagens

dos quais seis a dez seriam, em tese, protagonistas. Os capítulos são sedimentados em segmentos

que são intercalados por pausas comerciais, que se abrem com repetição do final do capítulo

anterior, seguido de sua vinheta característica.

Portanto, para resumir, definir-se - ia telenovela, de acordo com Righini,

A telenovela é uma história contada por meio de imagens televisivas, com diálogo e ação,

criando conflitos provisórios e definitivos. Os conflitos provisórios vão sendo

solucionados e até substituídos no decurso da ação; os definitivos – os principais – só são

resolvidos no final. A telenovela baseia-se em diversos grupos de personagens e de

lugares de ação; tais grupos se relacionam interna e externamente, ou seja, dentro do

grupo e com os demais grupos; supõe a criação de protagonistas, cujos problemas

assumem primazia na condução da história. Na atualidade, possui uma duração média de

160 capítulos, cada um com aproximadamente 45 minutos de ficção.

Faz parte do esquema de telenovela brasileira o fato de ter os seus trabalhos de produção e

de gravação iniciados antes de estar totalmente escrita. [...] Dessa forma, sujeita-se ao

julgamento do público e da crítica, e modifica-se se for necessário, pelo menos nos

detalhes mais ou menos importantes[...]

[...] No entanto, não é verdade que a audiência determina a telenovela.

(RIGHINI, 2004, p. 80)

Esse texto deixa evidente que a minissérie é européia enquanto a telenovela é latino-

americana, pois, na trama, a civilidade daquela em relação ao teor temperamental desta.

Sabe-se, portanto, que, enquanto a minissérie é fechada, a telenovela é aberta; enquanto

na minissérie o leitor/telespectador não precisa mobilizar-se em frente à televisão por meses a fio,

na telenovela isso acontece devido aos seus mais de cem capítulos. Logo, a minissérie é

inteiramente escrita antes de iniciar as gravações, enquanto a telenovela tem, comumente, escrita

e gravação paralelas.

As vinhetas, sendo partes integrantes das minisséries e das telenovelas, são distintas em

seu acabamento e em sua simbologia seja para qual for o programa estabelecido; nesse ínterim,

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surge o valor do signo usado em cada vinheta, dos valores apropriados por esse objeto – vinheta –

para estabelecer um elo com leitor/telespectador e o enredo do programa que será transmitido.

Faz-se importante salientar que a vinheta tem um certo aspecto de primeridade em

relação ao programa que ela anuncia, ou introduz, logo esta possui uma importância inigualável

para tudo o que se irá apresentar.

Se para Peirce a primeridade é a fase mais importante, pois é nesse estágio que se acomete o feeling, o in site, a descoberta e essa é abdutiva, ou seja, é recheada de hipóteses/dúvidas, logo a ideia de um discurso está sendo gerada.

Vale emoldurar o que Peirce designa primeridade, “Primeira – sentimento, a consciência

que pode ser apreendida como um instante de tempo, consciência passiva da qualidade, sem

reconhecimento ou análise”. (PEIRCE,1977, p.14).

Assim, as vinhetas televisivas são esse primeiro estágio para o leitor/telespectador, pois

elas são o primeiro contato visual/auditivo que se tem com o programa que será exibido. Veja,

então, que se criam, aqui, idéias nesse leitor/telespectador de como será o programa, quais

valores, quais metas, se será bom ou ruim, enfim, surge a instância da primeridade, da dúvida

estabelecida da possível idéia, do possível gostar. Tem-se na vinheta um hipoícone. Como define

Peirce,

Os hipoicones, grosso modo, podem ser divididos de acordo com o modo de Primeridade

de que participem. Os que participam das qualidades simples, ou da Primeira Primeridade,

são imagens; os que representam as relações, principalmente as diáticas, ou as que são

assim consideradas, das partes de uma coisa ou através das relações análogas em suas

próprias partes, são diagramas; os que representam um caráter representativo de um

representâmen através da representação de um paralelismo com alguma coisa, são

metáforas.

(PEIRCE, 2008, p. 64)

Vê-se nas vinhetas um hipoícone, porque elas são compostas de imagens e essas

imagens são partes de uma minissérie ou telenovela, formam logo um diagrama desses produtos

televisivos e criam um paralelismo entre o que será narrado nas telenovelas e nas minisséries.

Tem-se então um representâmen.

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Analisar os signos que se coadunam para formar esse hipoícone, bem como sua

simbologia e suas interrelações e suas intertextualidades, tendo em vista as modalidades

discursivas diferenciadas na linguagem televisiva, marcadas pelo sincretismo lingüístico e pelo

diálogo entre os vários signos. Nesse trabalho, analisar-se-á a vinheta de abertura da minissérie

global Os Maias, para verificação e análise, a partir da relação sígnica e do diálogo intertextual

que tornam a vinheta emblemática da minissérie Os Maias e sua relação com o texto queiroseano

de nome homônimo.

Tem-se como foco, no primeiro capítulo desse trabalho, a vinheta. Não há pretensão, em

momento algum, de comparar as linguagens literária e televisiva, valorizando uma em detrimento

da outra e vice-versa.

A análise semiótica da vinheta da minissérie global Os Maias servirá de base para

averiguação do diálogo intertextual indiciado pelos signos que compõem a vinheta, que é parte

integrante da minissérie, levando-se em conta que a delimitação diferencial entre minissérie e

telenovela dissertada anteriormente.

No segundo capítulo, será elencado, a partir da comparação entre vinhetas de abertura de

telenovelas e suas releituras, através da análise semiótica, o processo de composição de tais

vinhetas e suas correlações com o enredo, ou melhor, com o universo circundante da telenovela.

A base para essa análise serão as três vinhetas de abertura da telenovela América,

exibida pela Rede Globo de Televisão em 2008 a qual apresentou três vinhetas distintas que

dialogavam entre si, com tons diferenciados.

Há de se verificar, de forma analítica, essas vinhetas, desde a composição até o signo

musical que as sedimentam e, em tais análises, terão destaque os signos que integram e interagem

dentro dessas micronarrativas, bem como o diálogo entre tais signos e o enredo da novela,

visualizando a caracterização cultural nelas estabelecida e os valores enunciados pelos

personagens.

Serão considerados signos a cor, os objetos e a música que dialogam na vinheta de

abertura da telenovela. A análise partirá de um primeiro plano, uma impressão e tornar-se-á mais

densa à medida que houver evolução e diálogo entre cores, som e movimentos.

A mudança na editoração da vinheta América bem como o diálogo construído pelo

enunciador serão abordados de forma a expressar o caráter circunstancial-histórico que o

enunciador do discurso tece.

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Há, nessa análise, momento singular a ser registrado, ou seja, tendo como aparato a

diferença entre telenovela e minissérie, analisar-se-á até que ponto a distinção entre esses pares

de narrativas audiovisuais é esboçada nas vinhetas de abertura, tendo em vista a mutação dessas

vinhetas.

No terceiro capítulo, será enfocada a análise da vinheta de abertura e de encerramento do

Jornal Nacional, exibido diariamente no horário nobre pela Rede Globo de Televisão.

Nesse âmbito de análise, verificar-se-ão os formatos da montagem de chamada, o ritmo

musical que acompanha essa abertura, a coloração e a composição do cenário, bem como a

atuação dos apresentadores.

Mencionar-se-á a correlação entre a ideologia que caracteriza esse ambiente jornalístico

e sua exteriotipação dentro de sua vinheta de abertura.

Caberá a esse capítulo salientar a diferença na enunciação entre a vinheta de narrativas

audiovisuais jornalísticas e narrativas audiovisuais ficcionais.

Um quarto capítulo tratará das considerações e comentários finais sobre as vinhetas

analisadas, focalizando a postura do enunciador e a co-relação dessas vinhetas com as narrativas

audiovisuais que as mesmas emolduram.

Pretende-se, com esse trabalho, apresentar de forma detalhada que as vinhetas de

abertura trazem, em suma, a sinopse e a ideologia do programa que anunciam, ou seja, que as

vinhetas são, na verdade, um resumo, um pequeno presságio, uma propaganda do programa, diria

ainda, um antepasto daquilo que o leitor/telespectador opta ou não por devorar. E, ainda, analisar

a postura do narrador que se apresenta peculiarmente tomado de uma linguagem sincrética e a usa

para a formação de um discurso uníssono, abandonando a idéia de um discurso polifônico

ocasionado pelas inúmeras linguagens que compõem o discurso das vinhetas de abertura.

Cabe a este trabalho também, visualizar as principais diferenças entre as vinhetas de

abertura das minisséries, das telenovelas e dos programas jornalísticos, enfocando nelas a

tradução daquilo que o discurso de seu enunciador quer focar, bem como o sintagma de poder

exercido e proferido pelos enunciadores dos discursos das vinhetas e de como estes através de um

sujeito coletivo, midiador, usam as linguagens preexistentes, de forma a relacionar as mesmas

através de um sincretismo entre a peculiaridade do signo sonoro e a inserção e ou fagocitação do

leitor/telespectador em seu discurso.

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CAPÍTULO I

Leitura Semiótica da Vinheta de abertura

da minissérie Os Maias

Fonte: Youtube

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1.1 – A origem das vinhetas - um breve apanhado

Sob a ótica da genealogia do termo, a palavra vinheta seria advinda do termo vinha. As

vinhas são plantações de uva, formadas por videiras. A uva, fruta que dá origem ao vinho, à

bebida dos deuses, segundo a mitologia, traz, em suma, a idéia simbólica de algo prazeroso, com

fundamentação de poder, de delícia.

O termo vinheta vindo então de vinhas, formadas por videiras, também aduz à pesquisa

sobre o sagrado. Tendo como base o Antigo Testamento e o Novo Testamento, observa-se na

linguagem metafórica que a videira era a propriedade, a garantia de vida, logo no livro do

Gênesis, tem-se no capítulo XL, versículo 9, que a videira na Terra é a propriedade de Deus;

assim, a sacralidade de que a videira simbolizava para os primeiros patriarcas. A partir da visão

de sacralidade, a vinheta, na Idade Média, é adotada como expressões gráficas no texto,

constituindo iluminuras que auxiliavam a leitura do Antigo e Novo Testamento. A Igreja adota

as iluminuras como arte sacra no século IV, para fazer entender o texto das escrituras.

A Igreja Católica começou a utilizar a arte da iluminura no século IV, primeiramente em

evangelhos, saltérios, livros de horas e Bíblias, como o fim de “adornar, ilustrar”. A

iluminura(ilustração) tem um fim didascálico. Aquilo que os simples não pudessem

entender através da escritura, deveria ser aprendido através das figuras: [...]

(AZNAR, 1997, p.23)

Em 1450, com o advento da imprensa, o termo vinheta passa a ser utilizado amplamente,

ou seja, passa a ser empregado como moldura decorativa de textos, mostra então os reflexos dos

textos, caracterizando sua origem. Ou seja, as vinhetas em forma de molduras, representavam o

brasão de cada linhagem, evidenciando desse modo a origem de cada vinheta.

Percebe-se até esse ponto que a vinheta acumula, em sua origem, a idéia de sacralidade,

poder, moldura e origem familiar. Essas características não foram, em momento algum, deixadas

de lado pelas vinhetas da nossa atual televisão. A televisão somente parece ter colocado, nas

vinhetas de abertura mais arte e movimento. É como se as vinhetas somassem as molduras das

iluminuras, ampliando-se, assim, suas funções com o passar do tempo.

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Desse modo, no rádio brasileiro, a vinheta ganha papel de identificadora do programa,

principalmente depois que houve o aparecimento das FM´s, pois as mesmas, em meados da

década de sessenta, tentavam atingir os ouvintes de qualquer maneira e, nesse intuito, as vinhetas

fizeram-se necessárias para que o ouvinte pudesse identificar o programa a ser ouvido. Essa

identificação da vinheta para o rádio brasileiro não foi uma idéia criativa de auxiliar o ouvinte,

mas parte de uma imposição feita pelo governo em 22/01/1983, e nesse decreto não há a

imposição de que a nomenclatura usada como chamada passasse a ser vinheta, conforme aduz

Aznar:

A identidade da vinheta no rádio foi imposta pelo governo. O Serviço de Radiodifusão

através do decreto no. 88.067 de 22/01/83, estabelece, na alínea “j” do item 12, que as

emissoras passarão a “irradiar o indicativo de chamada, a denominação autorizada de

conformidade com as normas baixadas pelo Ministério das Comunicações.” [...] em sua

portaria 134, de 15/06/84, que toda de serviço de radiodifusão é obrigada a irradiar seu

indicativo de chamada e a denominação autorizada, bem como o rádio e a cidade onde se

acham instalada, de sessenta em sessenta minutos”. A vinheta foi o meio encontrado pelos

dirigentes das emissoras para que se cumprisse essa determinação de forma mais

agradável e estética.

[...]

O próprio Ministério das Comunicações desconhece o termo vinheta. Tudo ficaria mais

claro para os radialistas se, no texto da portaria, o termo “CHAMADA” fosse substituído

por “VINHETA”. [...] a chamada é puramente mercadológica; em nenhum momento da

ação radiofônica demonstra características decorativas

(AZNAR, 1997, p.44)

O cinema também tem sua vinheta, porém, nos filmes, sua linguagem difere da

linguagem da vinheta da televisão.

No caso do cinema, a especificidade da vinheta é a apresentação de créditos, não tem

caráter mercadológico e não liga com a história do filme. A própria sonoridade da vinheta do

cinema não tem relação nenhuma com a música de abertura dos filmes, são coisas totalmente

distintas.

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Enfim, chega-se à vinheta da televisão que, preocupada com o fator espetáculo, investiu

na criação simbólica e lúdica para suprir a necessidade humana de ornamentar tudo o que está a

sua volta.

As primeiras vinhetas televisivas, criadas por Mário Fanucchi, serviam de abertura de

programas e anúncio para a próxima atração. Essas vinhetas ficavam no ar por um intervalo de

tempo que era usado pelos operadores para tomar um lanche. Apareceram, então, os slides,

depois o VT que traz grande melhoria às vinhetas da televisão brasileira. Em 1975, a Rede Globo

de Televisão contrata o austríaco Hans Donner que institui o uso do vídeotape para a produção

das vinhetas e este passa a ser a ferramenta de trabalho dos vinhetistas.

Atualmente, o Brasil conta com um dos equipamentos mais sofisticados do mundo para

a produção das vinhetas - o COMPUTER GRAPHIC – que, aliado ao CUBICOMP e um VT

AMPEX VPR-3, produz um software específico que grava, em um micro computador, cada

FRAME.

Apesar de os programas de computadores para montagem das vinhetas serem

idealizados pela frieza de matemáticos, eles se mesclam ao trabalho do designer gráfico¸ que

talha, de maneira criativa, o programa, inserindo a fantasia humana visual.

Sendo produzida artificialmente, a vinheta é uma arte comercial da televisão. Logo com

o padrão de arte, ela não se encerra somente no que chamamos de artificial. É necessário o

moldar humano, o vivenciar humano. Segundo Aznar,

O homem desdobra o seu ser social em formas culturais. O estilo, por exemplo, não se

refere a uma determinada terminologia. Abrange a maneira de pensar, de imaginar, de

sonhar, de sentir, de se comover, abrange a maneira de agir e reagir, a própria maneira de

o homem vivenciar o consciente e as incursões ao inconsciente. O estilo é forma de

cultura. Seria de todo impossível preordenar as formas estilísticas, inventariá-las, tão

impossível quanto seria inventar formas de cultura ou modos de vida.

(AZNAR, 1997, p.62)

Faz- se necessário à criação tecnológica a pitada de humanidade para que haja

encontro com olhar humano e seja aceita por ele, conferindo-lhe um prazer visual. Como aduz

Aznar,

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Atualmente, a criação está aliada à tecnologia, e desta associação resulta o prazer visual

que as emissoras nos oferecem. Segundo Hans Donner, “os programas de um computador

são elaborados por “frios” matemáticos, e é aí que entra o trabalho do “designer”,

acrescentando luz, forma e criatividade ao programa.”

(AZNAR, 1997, p.59)

1.2 – As vinhetas televisivas de abertura das minisséries

A televisão abarca uma peculiaridade em relação às vinhetas, trazendo para cada

programa uma vinheta que parte como fragmento de seu texto, porém, ainda que seja uma

comparação grotesca, diria que a vinheta seria metaforicamente comparada a uma catedral. Cada

fragmento, que compõe essa catedral, segmentando na catedral um quebra-cabeça mesclado

como um mosaico de cores, sons e imagens – ou seja – um apanhado de experiências vindas de

outras vivências culturais, que formam, a partir de seus fragmentos, mosaicos dando vida a um

diálogo rico e intertextual à catedral-vinheta.

Interessante é poder visualizar a primeridade sígnica expressa pela teoria peirceana na

composição da vinheta de abertura, pois há, no primeiro momento da vinheta, um frescor, ou

ainda pegadas de signos para serem decodificados pelo leitor/telespectador que capta um suave

sopro de algo, um prenúncio, um sentimento ainda não analisado. Há, na percepção do

leitor/telespectador em relação à vinheta, uma pureza, uma originalidade, a primeridade, pois o

leitor/telespectador sente algo, enxerga, mas não lê. Apresenta dúvidas, não concebe ainda uma

análise sobre o que a vinheta anuncia, não identifica o porquê daquelas imagens, daquela música,

nem pode ainda analisar se será algo bom ou ruim, simplesmente a sente. Há a percepção de algo

indefinido, só sentido. Como aduz Peirce,

Poderia haver uma espécie de consciência ou ato de sentir, sem nenhum “eu”; e este sentir

poderia ter seu tom próprio. [...] O mundo seria reduzido a qualidade de sentimento não

analisado. Haveria aqui uma total ausência de binariedade. Não posso chamá-la de

unidade, pois mesmo a unidade supõe pluralidade. Posso denominar sua forma de

primeiridade, Oriência ou Originalidade. Seria algo que é aquilo que é sem referência a

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qualquer outra coisa, dentro dele, ou fora dele, independente de toda sua força e de toda

sua razão.

(PEIRCE, 2008, p.24)

Esse sentimento indefinido aflorado pela vinheta no leitor/telespectador, acarreta-lhe

suaves sensações, deixando rastros para ação. Esse fenômeno da apreensão, fundamenta uma das

categorias peirceanas. Segundo Guirado ,

Ao deparar-se com um fenômeno, o observador não possui, de imediato, capacidade para

julgá-lo. A consciência é impregnada apenas de suaves sensações; mas ao tentar tocar o

fenômeno ele se dissipa, cria signos e deixa rastros para a ação. [...] tem-se, de imediato,

apenas o frescor da idéia. Essa conjectura quanto à apreensão do fenômeno está

fundamentado nas categorias peirceanas. A saber (primeiridade, secundidade, terceridade)

(GUIRADO, 2004, p.32)

A qualidade pura do sentir está demarcada no primeiro contato do leitor/telespectador

com a vinheta. E essencial que se saiba que, ainda que ele tenha visto a propaganda da telenovela,

da minissérie ou do que o jornal irá anunciar, a vinheta é uma nova marca. É um chamado

inconsciente não analisado, um sentimento sobre algo não definido. Ora, senta-se o

leitor/telespectador frente ao aparelho de televisão e enxerga a vinheta, sente que algo começará,

mas não delineia o quê. Esse fenômeno da apreensão da idéia do que se projetará na tela, ou do

que essa vinheta anuncia, um misto de ansiedade e curiosidade é presente, sentido e não

analisado, um sentimento como qualidade, conforme indicia Santaella,

Trata-se, pois, de uma consciência imediata tal qual é. Nenhuma outra coisa senão pura

qualidade de ser e de sentir. A qualidade da consciência imediata é uma

impressão(sentimento) in totum, indivisível, não analisável, inocente e frágil.

Tudo o que está imediatamente presente à consciência de alguém é tudo aquilo que está na

sua mente no instante presente.

[...]

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O sentimento como qualidade é, portanto, aquilo que se dá sabor, tom, matiz à nossa

consciência imediata, mas também é paradoxalmente justo aquilo que se oculta ao nosso

pensamento... [...] A qualidade da consciência, na sua imediaticidade, é tão tenra que não

podemos sequer tocá-la sem estragá-la.

(SANTAELLA, 2004, p. 43)

Essa percepção é uma consciência passiva ainda, criando-se, na mente do

leitor/telespectador hipóteses sobre o que essa vinheta alimenta em relação à programação. O

processo de abdução se emancipa do pensar do leitor/telespectador, nesse momento já fagocitado

pelo discurso televisivo. A imaginação leitora fica sedenta de realizações inferidas pelo

percepto3, ou seja, a imaginação seria a mola propulsora num futuro e possível entendimento.

Como se pode apreender do texto abaixo,

[...] a imaginação desdobra ou projeta os objetos e sem ela não haveria nem percepção

nem juízo; desdobra-se e apresenta os objetos à sensibilidade e ao entendimento. Sem esta

operação – na qual consiste propriamente o que chamamos de imaginar – seria impossível

à percepção.

(PAZ apud GUIRADO, 2004, p.33)

A imaginação fertiliza os sentidos com as dúvidas como afere Guirado, (2004, p.33), “ A

imaginação excita os sentidos e possibilita o surgimento das dúvidas. Nesse conflito interno,

chega-se até a adotar novas idéias, mesmo que depois se faça necessário refutá-las.”

O fato inicial acima descrito seria, na verdade, o primeiro contato do leitor/telespectador

com a vinheta. Cabe postergar que as vinhetas de aberturas são diárias e parcialmente imutáveis

durante o tempo em que se exibe a minissérie ou telenovela. Então, esse ambiente de primeridade

descrito, perdura durante algum tempo, pois o leitor/telespectador será acometido

inevitavelmente pelas demais tríades pierceanas, a saber a secundidade e a terceridade.

Na primeridade, ao perceber a vinheta, ouvi-la e vê-la pela primeira vez, o

leitor/telespectador sepulta em sua mente a fertilização da imaginação. Toma-se de dúvidas e

hipóteses, deixa que o poder da imaginação vá gerando a idéia; nesse mesmo momento de

3. Termo usado para enfatizar o estímulo exterior que atua sobre a mente e que traduz o conteúdo de uma percepção, ou seja, que se conhece por meio dos sentidos

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descoberta, perdura, na mente do leitor/telespectador, a dúvida do primeiro contato com o texto-

vinheta que induz o leitor/telespectador ao teste, ou seja, nasce, então, o raciocínio indutivo, um

choque entre o que imaginou ter visto e aquilo que verdadeiramente viu, suscitando-se a

secundidade.

A secundidade é presente quando o leitor/telespectador, em contato com a vinheta de

abertura, enxerga a resistência da mesma em sua sequência diária. Há nesse ínterim, uma

interrupção no diálogo imaginativo-abdutivo e, a partir desse teste, surge inevitavelmente a

terceridade que deduz algo em relação à vinheta, como, por exemplo, sua característica rotineira,

mecânica e imutável ou então sua relação com o texto-enredo do programa que ela introduz.

Brota, então, a percepção e a reflexão em torno do discurso ecoado pela vinheta e o discurso do

programa a que a mesma aludiu.

Parece existir nesse contato com as vinhetas algo que Peirce chamou de ação mental. Os

elos entre a imaginação e a cognição são fios finos que se estendem em uma linha de condução.

Ora, não se podem descartar as hipóteses sugeridas pela mente, por aquilo que brota dentro de

nós, pois elas – as hipóteses – são as pedras angulares que fazem com que expliquemos o mundo

externo, como sedimenta o citado autor,

Aceitando a primeira proposição, precisamos deixar de lado todos os preconceitos que

derivam de uma filosofia que baseia nosso conhecimento do mundo externo na

autoconsciência. Não podemos admitir colocação alguma concernente àquilo que se passa

dentro nós, a não ser como hipótese necessária para explicar o que acontece naquilo que

habitualmente chamamos de mundo externo. Além do mais, quando aceitamos sobre tais

bases uma faculdade ou um modo de ação da mente não podemos, naturalmente, adotar

qualquer outra hipótese com o propósito de explicar qualquer fato que possa ser explicado

através de nossa primeira proposição, mas devemos levar esta última tão longe quanto

possível.

(PEIRCE, 2008, p.261)

A apreensão ao discurso enunciado pelas vinhetas fundamenta-se, de forma coesa e

apropriada, nas leis da fanesroscopia, os fenômenos enunciados pelos princípios da primeridade,

secundidade e terceridade:

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Primeira – sentimento, a consciência que pode ser apreendida como um instante no tempo,

consciência passiva da qualidade, sem reconhecimento ou análise; Segunda – consciência

de uma interrupção no campo da consciência, sentido de resistência de um fato externo ou

outra coisa; Terceira – consciência sintética, reunindo tempo, sentido de aprendizado e

pensamento.

(PIERCE, 1977, p.14)

Nascem, a partir do pensamento, diálogos possíveis entre a vinheta e o programa e entre

os elementos que compõem a vinheta e esses diálogos são denominados signos. Como prediz

Peirce, quando enuncia os signos-pensamento:

O terceiro princípio cujas conseqüências nos cumpre deduzir é que, sempre que

pensamos, temos presente na consciência algum sentimento, imagem, concepção ou outra

representação que nos serve de signo. Mas segue-se de nossa própria existência (o que

está provado pela ocorrência da ignorância e do erro) que tudo o que está presente a nós é

uma manifestação fenomenal de nós mesmos.

(PEIRCE, 2008, p.269)

Parte-se então do feeling e chega-se ao intelectivo. Tem-se nesse ato que a primeiridade

é mais forte que a terceridade. Analisa-se que sem a dúvida acometida pelo in site não se chegaria

ao intelectivo que explica, interpreta e se traduz a posteriori ao hábito, à crença.

No caso das vinhetas, enxergam-se as mesmas como simplesmente anunciadoras do

programa, um enfeite; quando, na verdade, elas possuem um discurso próprio, elencado, claro, ao

programa, mas com intenção diferente do mesmo. A intencionalidade do discurso da vinheta, não

é somente anunciar o programa, indicar seu início e seu término, pois ela está além dessa crença

criada pelo leitor/telespectador. Ela indica, de forma clara, a ideologia do programa que irá ao ar

e que será acompanhado no decorrer dos seus capítulos. Desse modo, o hábito, a crença são

projeções emburrecidas do imaginário, ou seja, quando se assiste a uma vinheta de forma

habitual, sem pensar nela, ou sem que ela cause aos olhos do leitor/telespectador uma impressão,

sem que açoite nele uma dúvida pode-se perceber que esse olhar está velado. Talvez resida nisso

o grande pecado da ação televisiva, visto que ela, a partir de sua rotineira programação, vicia os

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olhos do leitor/telespectador induzindo-o ao hábito que não o desafia à primeridade, à percepção,

ao suscitar dúvidas que perfazem o caminho ao interpretar, ao raciocinar.

Sendo vistas como meras anunciadoras, as vinhetas tornam-se falácias, pois não são

partes de um texto – o programa anunciado, no caso a minissérie –, não têm correlação com seu

objeto-texto, mas somente os anunciam, indicando seu início e término. Logo, todas as vinhetas

que são exibidas no início e no fim dos programas são somente “sinetas” que assumem o valor de

relógio da programação. Não se enxerga nesse ambiente que as vinhetas são extensão dos textos-

programa. Não se verifica que as vinhetas de abertura são micro-narrativas que versam e mostram

algo pertinente às narrativas audiovisuais que serão apresentadas. Dispensa-se a idéia de que há,

já, nas vinhetas de abertura, um discurso. Nisso consiste o que Eco chamou de falácia

extensional, que prediz sobre a extensão dos enunciados.

Ao contrário, estariam interessados na EXTENSÃO DOS ENUNCIADOS ou da

PROPOSIÇÃO correspondente. Portanto as proposições correspondentes a enunciados

como / todos os cães são animais/ e /todos os cães têm quatro patas/ podem ser

consideradas como Verdadeiras se – e só se – os cães forem realmente animais e tiverem

quatro patas. [...] Já que uma teoria dos códigos não reconhece a extensão como uma de

suas categorias, ela pode considerar as proposições eternas sem considerar seu valor

extensional. Não renunciando a considerar esse fator, a teoria dos códigos cai numa

FALÁCIA EXTENSIONAL.

(ECO, 2002, p.52/53)

As vinhetas são objetos carregados de signos predispostos a serem decifrados que

mantêm constante diálogo com o programa que anunciam. Ousar-se-ia dizer que as vinhetas são

prelúdios dos programas – espetáculos que serão exibidos. Há, logo, como visto na teoria de

Eco, uma semiose existente na vinheta porque a mesma assume o valor de algo, isto é, conota

algo. Trata-se de um valor de troca em que se tem um processo de simbolização, ou seja, o

diálogo intertextual exposto pela vinheta assume o valor de prelúdio, de anunciação, de condição

para o horário. O valor de troca ou valor de uso estabelece - se da seguinte maneira;

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[...]certo é que todo processo comunicativo implica troca de sinais, mas existem trocas (como as de

bens e presentes) onde não se trocam sinais propriamente ditos, mas bens de consumo. Sem dúvida

é possível considerar a troca de bens como processo semiótico(Rossi Landi, 1968), mas porque

essa troca implique troca física, mas porque na troca o VALOR DE USO dos bens é transformado

em VALOR DE TROCA. Tem-se um processo de simbolização definitivamente aperfeiçoado

quando surge o dinheiro, que está justamente em lugar de outra coisa.

(ECO, 2007, p.19)

Há, portanto, uma troca; troca-se o horário pela telenovela, vinheta pelo despertar para o

programa, então havendo valor de troca dentro de um segmento social; daí as vinhetas das

narrativas audiovisuais diferenciarem entre si, qualificando e caracterizando seu público, seu

leitor/telespectador.

Nota-se que a vinheta da minissérie retrata sua condição de narrativa audiovisual

fechada, pois se vê um caráter discursivo distinto, clássico, notoriamente artístico, pois o horário

de exibição e o período são condicionados a um público. Já as telenovelas mostram um

diferencial em relação às suas vinhetas nos horários; nota-se que a vinheta das telenovelas

exibidas no horário das dezoito horas, como a própria narrativa audiovisual, caracteriza-se pelo

enredo leve, com trama marcada pela relação simples com temas época, ou então interioranos, ou

ainda fundamentados em perspectivas filosófico-religiosas. Já as narrativas audiovisuais das

dezenove horas apresentam-se mais humoradas, mais recheadas de comédias, com texto mais

descontraído, como mostram suas vinhetas sempre com temas musicais mais modernos, mais

eloquentes e vibrantes. As narrativas audiovisuais das oito, assim instituídas popularmente,

apresentam tramas mais apuradas, personagens mais sagazes e as vinhetas são quase uma obra de

arte, aliás as vinhetas dessas telenovelas dialogam com as obras de arte e o próprio enredo dessas

narrativas abrem-se ao diálogo com a arte numa relação intertextual. É impossível esquecer-se da

trama da novela Páginas da Vida em que o personagem Luciano, um adolescente pianista,

amante da música clássica se apaixona pela linda Giselle, uma jovem bailarina. Impossível negar

um diálogo entre o mito de Orfeu e Eurídice e a trajetória do casal Luciano e Giselle. Aliás, a

caracterização física de Luciano apresentava já indícios do grego Orfeu, sem contar que o tema

musical do casal era a música incidental instrumental Orfeu e Eurídice do compositor Christoph

W. Gluck4, interpretada por Nelson Freire. No caso da vinheta televisiva, essa conotação se dá

pelo valor que ela aí assume. 4. A informação sobre o compositor Christoph W. Gluck foi extraída do encarte do CD da trilha sonora nacional da novela Páginas da Vida.

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Tendo como ponto o valor de troca e observando claramente sua simbologia, verifica-se

o discurso rico, simbólico e persuasivo das vinhetas.

Seria lugar comum dizer que o discurso da vinheta está carregado de ideologia, porém

faz-se necessária essa afirmação, pois cabe a este trabalho analisar a construção semiótica dentro

do discurso constituído pelas vinhetas televisivas.

Em face do exposto, a minissérie é uma obra fechada, ou seja, apresenta número de

capítulos fixos, tem horário diferenciado e é apresentada em datas diferenciadas. Seria, na

programação televisiva, um passeio de domingo, diferente de suas irmãs, as telenovelas, que

desfilam diariamente na programação, ocupando-se de número de capítulos versáteis, diria com

fixação variável, sujeita à apreciação do leitor/telespectador.

As vinhetas das minisséries embuídas dessa cultura televisiva e fecundadas para um

ambiente de férias, de passeio dominical, também têm em seu discurso um valor mais cultural,

com sabor mais requintado. Como não observar o requinte estabelecido por essas aberturas das

minisséries globais? Elas ressoam um padrão cultural muito peculiar a começar pelo seu signo

sonoro. Amazônia, exibida em 2007, trazia como tema musical a voz de Maria Rita entoando um

ritmo bem característico do povo amazonense. Cabe lembrar “me leva meu pai me leva...caminho

marcado de água...”. Esse signo sonoro estabelecia um diálogo entre seus elementos (ritmo e

letra), sucumbia então à composição que reataria um diálogo com as imagens e, por sua vez,

estabeleceria um outro diálogo com o conteúdo, com o enredo da minissérie. É possível

visualizar, nessas interações dialógicas, a infinita semiose proposta por Peirce: a recorrência de

um signo que se engaja ao outro num processo infindo de correlações, que traduzem os mais

peculiares significados oriundos da mais vasta cultura literária e popular, que o

leitor/telespectador pode visualizar, decodificar e até ressignificar.

No caso da minissérie Maysa, esta trazia a voz da própria cantora entoando, logo no

início, uma de suas célebres canções “todos acham que eu falo demais...” e, em seu enredo, a

minissérie mostrou uma Maysa forte que falava e agia de acordo com suas idéias e seus

princípios, mais uma prova do diálogo entre enredo e vinheta. Há de se mencionar ainda que os

objetos apresentados, nessa vinheta eram moldados pelo requintado padrão social da época em se

passa a história, que nada mais é do que uma referência à classe social que acolheu e criticou

Maysa.

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Impossível não mencionar Hilda Furacão, Anos Dourados, Anos Rebeldes, Um só

coração, entre outras estupendas produções globais que desmitificam a idéia e o discurso de que

só há banalidades na televisão brasileira.

1.3 – A vinheta da minissérie Os Maias, a semiose intertextual

Para que não se estenda na vastidão de inúmeras análises e se perca o foco desse estudo,

analisar-se-á como padrão de vinheta de minissérie a abertura de Os Maias, exibida em 2002.

A minissérie escrita por Maria Adelaide Amaral baseia-se no romance realista de Eça de

Queirós de nome homônimo. Cabe, para fins de entendimento dessa análise, elencar que o

romance trata da família Maia, de classe abastada, pertencente à sociedade lisboeta do século

XIX, que tinha como patriarca Afonso da Maia – homem racional, arraigado às tradições e com

personalidade forte. A tragédia dessa família é narrada a partir da descrição minuciosa do casarão

onde residia a família Maia que abriga uma sucessão de mortes: a morte da esposa de Afonso,

seguida do suicídio do filho Pedro da Maia, que fora abandonado pela mulher Maria Monforte,

após essa não ser aceita pelo pai Afonso da Maia, por pertencer à classe social inferior e ser filha

de comerciante de escravos. Maria Monforte foge com um francês e leva consigo a filha Maria

Eduarda, deixando seu filho Carlos Eduardo aos cuidados do pai Pedro da Maia e do avô Afonso

da Maia.

Carlos Eduardo forma-se em medicina e retorna ao antigo e abandonado casarão, em que

acontece a catarse, ou seja, as lembranças lhe afloram a memória e a história da família Maia

começa a ser narrada.

É fato que o casarão era conhecido como Ramalhete, ou ainda, a casa dos girassóis

amarelos.

A vinheta de abertura em suas imagens, faz total alusão ao ramalhete. Tem-se, então,

embasado numa tríade peirceana, a vinheta como objeto, o interpretante os olhos do

leitor/telespectador e o signo o ramalhete, tendo como referência a informação, como aduz Eco

de que o signo está para, no lugar de algo.

O indício do processo de semiose já se faz evidente, observando-se que há um modo

metonímico para a correlação sígnica em que a vinheta está para o ramalhete, o ramalhete está

para a família Maia e a família está para o ramalhete na representação das flores. Esse valor de

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troca produz o efeito de semiose e permite ao leitor/telespectador visualizar a conotação dada ao

ramalhete e interpretar a vinheta de forma a ver dentro dessa micronarrativa o fragmento

formador da catedral vinheta e enredo.

Essa relação de semiose permite o diálogo entre a obra queiroseana, a vinheta e o enredo

da minissérie.

1.4 – Os elementos da vinheta da minissérie Os Maias e seus significados

1.4.1 – As flores

A vinheta da minissérie global Os Maias é talhada basicamente pelo floral. São flores

que desabrocham e vão enlaçando-se, transformando história em papel.

Frame 01 Frame 02 Frame 03

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As flores de diversas espécies parecem percorrer um ciclo vital, iniciam-se fechadas, em

seguida se abrem e parecem transformar o que era vivo em imagem, em papel, ou seja, em

lembrança, em morte, em fecho de existência. A cada flor, esse ciclo de vida iniciada que se

transforma em lembrança em morte, em papel.

A representação floral pode, segundo a arte japonesa – o Ikebana - exprimir uma ordem

cósmica, ou seja, traduzir, a partir de sua montagem, sua posição: a ascensão ou descendência da

família. Já para a lenda celta, a flor representa uma instabilidade voltada para a eterna evolução.

Entre os maias, a flor é o símbolo da fornicação, para os astecas os jardins são fontes de

inspiração assim como para os poetas e artistas, como esclarecem Chevalier e Gheerbrant:

Tal é o estilo verdadeiro do Ikebana, desde o séc. XIV; mas existe também um estilo

complexo ou fluido, com as hastes colocadas em posição descrescente. Esse arranjo de

flores tende a exprimir a vertente declinante da vida, o escoamento de tudo para o abismo.

[...] O Ikebana pode exprimir tanto uma ordem cósmica, quanto as tradições dos

ancestrais, ou sentimentos de alegria ou de tristeza. [...] No caso das lendas celtas, a flor

parece ser um símbolo de instabilidade, não de uma versatilidade que seria própria da

mulher, mas da instabilidade essencial da criatura [...] [...] Entre os maias, a frangipana

(flor) é um símbolo de fornicação. Ela pode representar o Sol, em função da crença na

hireogamia fundamental SOL-LUA. [...] Na civilização asteca, as flores dos jardins eram

não apenas um ornamento para o prazer dos deuses e dos homens e uma fonte de

inspiração para os poetas e artistas, como também caracterizam numerosos hieróglifos e

fases da história cosmogônica.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.437/438)

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Todas as flores remetem a uma trajetória, um ciclo. Tendo por percepção, ou usando a

troca de valores, mencionada por Eco, em que as flores fidelizam cada elemento da família Maia,

o ramalhete passa a ser a árvore genealógica dessa família que, segundo narra a minissérie, cai

em decadência a partir das mortes, dos abandonos e do incesto.

Na vinheta, é possível visualizar esse processo de troca de valores, a partir dos nomes

dos atores. A cada flor, elenca-se o nome de um ator que representará um ente da família Maia, e

então se desfia o elenco com o desabrochar das flores.

Frame 13 Frame 14 Frame 15

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A composição do ramalhete é uma clara alusão ao nome dado à residência da família

Maia “Ramalhete” e uma metáfora à própria genealogia dessa família, como bem diz Eco é o

valor de troca, havendo portanto um signo nesse ínterim, pois a família remete ao ramalhete e o

ramalhete à família, tendo como base conotativa a referência dada pelo enredo a partir do espaço

na narrativa.

Consideremos agora os fenômenos de troca econômica e eliminemos antes de tudo a

suspeita sinonímia que existe entre /troca/ e /comunicação/: certo é que todo processo de

comunicação implica troca de sinais, mas existem trocas (como as de bens ou presentes)

onde não se trocam sinais propriamente ditos, mas bens de consumo. Sem dúvida é

possível considerar a troca de bens como processo semiótico (Rossi-Landi, 1968), mas

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não porque essa troca implique troca física, mas porque na troca o VALOR DE USO dos

bens é transformado em VALOR DE TROCA. Tem-se um processo de simbolização

definitivamente aperfeiçoado, quando surge o dinheiro, que está justamente em lugar de

outra coisa.

(ECO, 2002, p.18-19)

Peirce, ao definir Índice, diz que se trata de um signo que se refere a um Objeto sendo

afetado por ele.

Um Índice é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de ser realmente

afetado por esse Objeto. Portanto, não pode ser um Qualissigno, uma vez que as

qualidades são o que são independente de qualquer outra coisa. Na medida em que o

Índice é afetado pelo Objeto tem ele necessariamente alguma qualidade em comum com o

Objeto, e é com respeito a essas qualidades que ele se refere ao Objeto.

(PEIRCE, 2008, p.52)

Fundamentando-se na teoria peirceana, tem-se nas flores que convergem na vinheta, um

Índice, pois são afetadas pelo Objeto família, tendo em mente que a casa em que residia a família

Maia era conhecida como Ramalhete e se acrescenta a essa idéia a formação genealógica, pois,

quando Carlos Eduardo acompanhado de João da Ega, retorna ao casarão, a história da família

Maia é recontada, como se um livro, em forma de memórias, se abrisse na mente de Carlos

Eduardo. As flores, na vinheta, enredam um ciclo vital, transformam-se em lembranças e em

papéis nisso reside o Objeto família afetando o Índice flor.

Frame 19 Frame 20 Frame 21

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Reconhecendo as flores como Índices dos personagens que compõem o enredo, há um

dado apresentado muito importante e peculiar: as únicas flores que não se imortalizam no papel

são as primeiras, que representariam Carlos Eduardo e Maria Eduarda; de forma curiosa, o

primeiro nome do elenco é o de Ana Paula Arósio – atriz que, na trama, viverá Maria Eduarda, e

vem seguido do nome Fábio Assunção – ator que viverá, na trama, Carlos Eduardo da Maia.

Percebe-se na formação inicial da vinheta que, na transposição da apresentação de um

nome para o nome de outro ator, na figura intermediária, há uma sombra, ou seja, o nome anterior

ainda não se apagou por completo. Essa importante observação evidencia claramente as flores

como Índices da família Maia na vinheta. O fato de saber, tendo em mente o enredo, que se trata

de um caso de incesto entre os irmãos – Carlos Eduardo e Maria Eduarda -, que se apaixonam por

desconhecerem o fato de serem irmãos, é traduzido na flor, ora, a flor em que o nome do atores

aparece é da mesma espécie, logo há ligação consangüínea. Outro dado interessante é que, na

minissérie, Maria Eduarda e Carlos Eduardo são descritos como belezas físicas ímpares, ou os

mais belos, uma semelhança pela beleza e a flor que leva o nome dos dois é a mesma e ainda é a

mesma que apresenta Walmor Chagas que viverá Afonso da Maia, avô paterno dos protagonistas.

A flor da mesma espécie é um Índice da família Maia, pois apresenta fisionomia afim,

diria de forma metafórica, apresenta uma relação consangüínea.

Nesse aspecto, pode-se acusar o ramalhete desenhado nos azulejos que fecha a vinheta,

de ser a representação genealógica da família Maia, e, azulejo retirado, ler-se-ia a não aceitação

de Maria Monforte por parte de Afonso da Maia, por ser filha de um escravagista. Maria

Monforte, mãe de Carlos Eduardo e Maria Eduarda, foge então com um francês, levando a filha

e deixando o filho aos cuidados do pai Pedro da Maia que se suicida em seguida, não suportando

a dor do abandono.

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Tem – se, a partir da simbologia do ramalhete e das flores e do valor de troca, um

diálogo soante entre a vinheta e a minissérie. Registra-se, logo, a nova característica da vinheta

que surge não mais que como sineta ou prelúdio do programa que irá ao ar, mas como uma parte

da narrativa audiovisual que se esboça em signos que costuram um diálogo com o perceptum do

leitor/telespectador gerando, através da abdução peirceana, um aparato em que o leitor/

telespectador terá sobre o programa, gerador de dúvidas cruciais e instigantes. Como será a

história? Será que o clima de suspense será intenso? Haverá happy end? Tais indagações são, na

verdade, o processo de fagocitação incorporado, ou melhor, exatamente a essência do locus

midiático – instigar o leitor/telespectador a saborear o que esse locus lhe oferece.

1.4.2 – As cores

Mergulhando no signo ramalhete, ao desconstruir a vinheta, analisa-se a coloração das

flores e do papel, um amarelado toma o papel, quando as flores se fundem a ele, como se a flor

viva morresse na história da família, no registro da existência dessas pessoas. Esse tom amarelo

pastel remete ao antigo, ao envelhecido pelo tempo, ao deixado de lado imexível. O signo da cor

é que conota a idéia de que a vida se fixou no papel, registrando-se ali a existência. O objeto

papel amarelado dá ao interpretante leitor/telespectador a referência de tempos idos, de algo do

passado, traz, à luz de um interpretante de olhar mais aguçado, a relação com as fotografias

expostas em lápides e abre-se então um outro processo de semiose em que a flor passa a ser um

ente, um personagem da família Maia.

Não se pode desaperceber, nesse processo de troca de valor, que conotará a semiose, as

nuances da coloração estabelecidas pelo amarelo.

O amarelo, luz de ouro, tem valor cratôfanico, e o par de esmaltes Ouro-Blau se opõe ao

par Goles-Sinople, como se opõem o que provém do alto e o que vem de baixo. O campo

da sua confrontação é a pele da terra, nossa pele, que fica amarela – ela também – com a

aproximação da morte. [...] Ela é, então anunciadora do declínio, da velhice, da

aproximação da morte. Ao fim, o amarelo se torna substituto do negro.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.40/41)

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A presença do amarelo é algo penetrante dentro dessa vinheta, ela é toda mesclada

e marcada pela cor amarela. A simbologia do amarelo remete a dois princípios

antagônicos, pois ao mesmo tempo em que traz em si a eternidade, o poder, vem

acompanhada do declínio. Não existiria melhor cor para simbologia da personalidade da

família Maia, pois o amarelo remete, na cultura chinesa, é o refúgio de yang que leva ao

reino dos mortos.

Negra ou amarela é também para os chineses a direção do Norte dos abismos subterrâneos

onde se encontram as fontes amarelas que levam ao reino dos mortos. É que as almas

descem até as fontes amarelas, ou o yang que por lá se refugia durante o inverno, aspiram

a restauração cíclica da qual o solstício do inverno é a origem.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.41)

A evidência dessa cor diz muito e dialoga eficazmente com a trajetória narrada pela

minissérie. O retorno ao casarão de Carlos Eduardo, as imagens iniciais da minissérie em que

Carlos Eduardo e João da Ega adentram ao casarão é brevemente uma alusão ao retorno daquilo

que está morto, eternizado em lembranças.

A vinheta, por sua vez traz papéis amarelados que eternizam as flores, logo um retorno,

um mergulho no reino dos mortos. É incrível e sutil como o signo representado pela cor amarela

sedimenta a intertextualidade entre vinheta e enredo da minissérie na montagem das imagens.

Logo, o amarelo nesse contexto, traduz – se num ícone de ligação entre a morte e a vida, entre a

força eternizada em morte.

Juntamente com o amarelo¸ trabalha-se na vinheta com a cor preta, o negro. Segundo o

Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbramt, a cor preta, o negro, está associado ao

amarelo como seu oposto e complementar e seriam, na cultura chinesa, as cores do sangue do

dragão-demiurgo.

Se o amarelo é a cor dos deuses para os tibetanos, quando esse amarelo se descerra à

terra, ele recai, atinge e se enche de humanidade; logo, para a simbologia chinesa arrasta em si a

perversão das virtudes, ligando-se ao adultério, desfazendo os laços sagrados do matrimônio.

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O amarelo é a cor dos deuses: Zoroastro, segundo Anquetil, significa astro de ouro

brilhante, liberal, astro vivo. O Om verbo divino dos tibetanos, tem por qualificativo o

dourado. (...) Quando o amarelo se detém sobre esta terra, a meio caminho entre o muito

alto e o muito baixo, ele se arrasta na sua esteira mais que a perversão das virtudes de fé,

de inteligência, de vida eterna. Esquecido o amor divino, chega a enxofre luciferiano,

imagem da soberba e da presunção, da inteligência que só deseja alimentar a si mesma. O

amarelo está ligado ao adultério, que se desfazem os laços sagrados do casamento, à

imagem dos laços sagrados rompidos por Lúcifer, com a nuança de que a linguagem

comum acabou por inverter o símbolo, atribuindo a cor amarela ao enganado quando ela

cabe, originariamente ao enganador, como atestam outros costumes. A porta dos traidores

era pintada de amarelo a fim de atrair para ela a intenção dos transeuntes, nos sécs. XVI e

XVII.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 41)

Na cultura atual, o amarelo é um preceito de riqueza, de ganância que remete, de forma

linear, perfeitamente ao egoísmo. Uma riqueza egoísta, exatamente como se comportavam as

famílias burguesas, segundo narra a minissérie de Maria Adelaide Amaral.

A cor amarela tão vigente nos girassóis que se desenham na imagem final da vinheta

estabelece a partir das designações dessa cor acima citadas, o cerne da minissérie que essa

vinheta emblema. O tema central é o incesto, ainda que ingênuo, cometido por Carlos Eduardo e

Maria Eduarda, exatamente como se relatou acima na cultura chinesa.

Se a cor amarela representa o desenlace, o desengano, o girassol que se colore de

amarelo, apresenta na cultura chinesa a imortalidade.

O nome comum de heliotrópio indica bem o seu caráter solar, que resulta, aliás, não

somente de um tropismo bem conhecido, mas ainda da forma radiada da flor.Na China, o

girassol é um alimento da imortalidade. Foi notadamente empregado como tal por Kuel-

fu; sua cor em mutação poderia ter relação com os orientes e o caracterizaria então ele

mesmo como heliotrópio.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.470)

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No caso da vinheta, o heráldico que a fecha não se fixa a um ramalhete de flores

qualquer. O ramalhete do heráldico é constituído por girassóis, ler-se-ia, então, que a história da

família Maia é imortal, ou ainda será perpétua; haja vista que Carlos Eduardo e João da Ega, ao

entrarem no casarão, ou melhor, no Ramalhete, reavivam a história familiar de Carlos Eduardo.

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Frame 25

A imagem que encerra a vinheta é quando se grafa o nome da família Maia em letra de

mão, com tinta preta. A cor preta acomete um presságio de mau agouro, lembrando o luto, uma

perda definitiva, como se a vinheta registrasse ou antecipasse ao leitor/telespectador os lutos que

se seguirão no enredo da minissérie.

A vinheta, a partir da simbologia da cor preta, na letra, dá indícios de que o luto pairará

sobre a nobre família. Não só um luto por perdas de vidas humanas como o suicídio de Pedro da

Maia ao ser abandonado pela tão amada Maria Monforte, mas um luto moral tão apreciado pelo

patriarca da família Maia, Afonso que tem de degustar o incesto vivido por seus netos Carlos

Eduardo e Maria Eduarda.

A idéia transmitida pela imagem final da vinheta estabelece um outro valor importante,

o grafar o nome Os Maias parece marcar que ali,em folhas amareladas, encontrou-se a história

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genealogicamente marcada da família Maia. Esse ato tem um valor sígnico importante na vinheta,

pois o negro pode ser o luto e a seriedade da história da família que se registra no livro que a

vinheta apresenta, mas pode também ser uma inferência ao retorno de Carlos Eduardo e seu

amigo João da Ega ao casarão e ainda acomete simbolicamente nada mais do que o enlace com a

ficção, ou seja, um registro ficcional, uma história fechada. Isso nos lembra a característica

principal da minissérie que a diferencia da telenovela, um livro, uma obra fechada, no caso,

fechada e grafada com o nome de seu núcleo histórico – a família Maia.

1.4.3 – Os objetos

A vinheta se apropria de objetos que caracterizam, de forma linear, a família Maia.

Durante a apresentação da vinheta, ao final, encerram-se as flores formando um laço em um

ramalhete de girassóis que, em seguida, constituem o heráldico da família Maia no casarão.

Ao enlaçar a última flor no papel, uma caneta de talhe preto e dourado escreve, em tinta

preta e letras cursivas, o nome Os Maias.

Fig. 01

A caneta usada para nomear é extremamente fina e o dourado da mesma remete à

imortalidade, ao poder social que possuía a família de Afonso da Maia. A caneta também pode

ser entendida como símbolo cultural, porque, num ato de troca de valor ela assume o signo de

valia, de representatividade social, ou ainda de qualificação da família que a possui.

Sabendo-se que,

Legissigno Indicial Dicente (e.g. pregão de um mascate) é todo tipo ou lei geral, qualquer

que seja o modo pelo qual foi estabelecido, que requer que cada um dos seus casos seja

realmente afetado por seu Objeto de tal modo que forneça uma informação definida a

respeito desse Objeto. Deve envolver um Legissigno Icônico para significar a informação

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e um Legissigno Indicial Remático para denotar a matéria dessa informação. Cada uma de

suas Réplicas será um Sinssigno Dicente de um tipo especial.

(PEIRCE, 2008, p.56)

Logo, há na leitura simbólica desse objeto, a tricotomia peirceana quando se enxerga na

caneta um legissigno indicial dicente, ou seja, um legissigno por ser a representação de forma

legal do instrumento da escrita, aceita e corroborada pela sociedade do século XIX; após a pena

de metal, a caneta tinteiro patenteada por Lewis E. Waterman.

A caneta-tinteiro é um rema, pois amplia valores culturais e sociais e apóia-se na

idéia de uma possibilidade qualitativa da caneta em relação ao aspecto social da época em que

está inserido o enredo da narrativa audiovisual. Conforme define Peirce,

Um Rema é um Signo que, para seu Interpretante, é um Signo de Possibilidade qualitativa

é entendido ou representado por esta ou aquela espécie de Objeto possível. Todo Rema

propiciará talvez alguma informação, mas não é interpretado nesse sentido.

(PEIRCE, 2008, p.53)

A caneta-tinteiro, em pleno século XIX, representava o poder da cultura escrita, ou seja,

a posse desse objeto era somente para quem tinha representatividade financeira. Na vinheta, a

caneta-tinteiro qualifica, de forma direta, a classe social das mãos que escrevem e que viveram a

história a ser tratada pela minissérie que ela anuncia; a caneta-tinteiro é um índice de que a

família é detentora de posses, é de classe abastada e tem perfil cultural.

Trata-se de um Ícone, pois denota a virtude da escrita, a importância da escrita para a

sociedade e traz à família Maia – representada no enredo da minissérie – a sua importância social.

A caneta tinteiro então é um ícone em relação ao padrão social e cultural da família Maia.

Entende-se, nesse caso, como Ícone a relação da segunda tricotomia peirceana,

Um Ícone é um signo que se refere ao Objeto que denota apenas em virtude de seus

caracteres próprios, caracteres que ele igualmente possui quer um tal objeto realmente

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exista ou não. É certo que realmente exista um tal Objeto, o ícone não atua como signo o

que nada tem a ver com seu caráter como signo.Qualquer coisa, seja uma qualidade, um

existente individual ou uma lei, é Ícone de qualquer coisa na medida em que for

semelhante a essa coisa e utilizado como seu signo.

(PEIRCE, 2008, p.52)

Percebe-se que a caneta-tinteiro, analisada como signo sob a luz da teoria semiótica

peirceana, constrói um discurso que confere a caracterização da sociedade do final do século

XVIII e início do século XIX. É pela inserção e inferência a este objeto que é possível ao

leitor/telespectador visualizar, na vinheta, o que será esboçado pelo programa, pelo enredo, pelo

discurso que será destinado. Nota-se, então, a regularidade do discurso: se somado o objeto

(caneta tinteiro) ao horário de transmissão da minissérie e ao romance em que a mesma se baseia,

tem-se um discurso formalizado. Percebe-se, nesse discurso, a sedução, a fagocitação do

leitor/telespectador, pois as artimanhas usadas para se conferir ao discurso um processo de

verdade legitimada, comprovam-se pela relação sígnica estabelecida entre texto e o contexto.

A função enunciativa analisada, por Foucault, é presença ativa na construção do discurso

da vinheta da minissérie Os Maias, pois, a partir do signo caneta-tinteiro, visualizam-se as

características da sociedade em que a história da família Maia foi constituída, as características

elementares dessa constituição familiar, principalmente de seu representante maior Afonso da

Maia, conforme enuncia Brait

O exercício da função enunciativa, suas condições, suas regras de controle, o campo em

ela se realiza estão no centro das reflexões de Foucault, na medida em que entre o

enunciado e o que ele enuncia não há apenas relação gramatical, lógica ou semântica; há

uma relação que envolve os sujeitos, que passa pela História, que envolve a própria

materialidade do enunciado.

(BRAIT, 2006, p.42)

No caso da caneta, a materialidade temporal/histórica mostra ao leitor/telespectador num

primeiro momento, que a história a ser narrada não será característica do tempo atual, ela será um

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romance de época, isto é, trará para o leitor/telespectador a história de uma sociedade de outra

época e, nesse caso remete ao passado, ao século passado.

1.4.4 – Um livro que se fecha

Fig. 02

A leitura proposta pelos signos marcados na vinheta nada mais traduzem do que um

livro, sim, um livro sobre a história da genealogia da família Maia que se abre em redescoberta a

partir de seus últimos representantes, Maria Eduarda e Carlos Eduardo marcados por flores que

não aderem ao papel e se fecham com o ramalhete retratado no heráldico da casa da família que

se denominou Ramalhete.

Frame 26

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46

A composição final, que fecha a micronarrativa da vinheta, dá-se pela composição de

azulejos em que se desenha um ramalhete e que situará o heráldico da residência habitada pelos

Maias.

É curioso ressaltar que, nesse heráldico, há um ramo de girassol em que não há flor,

aparentemente um azulejo retirado. Um signo então se levanta: esse azulejo retirado ocupa a

segunda geração da família, Pedro da Maia e Maria Monforte seriam a segunda geração dos

Maias e, tendo-se por base o texto de Maria Adelaide Amaral, em que Maria Monforte não foi

aceita pelo patriarca Afonso da Maia, esse azulejo retirado seria, sob a luz da teoria peirceana, um

sinsigno indicial icônico que assume a representação da personagem Maria Monforte.

Um Sinsigno Icônico (e.g. um diagrama individual) é todo objeto de experiência na

medida em que alguma de suas qualidades faça-o determinar a idéia de um objeto. Sendo

um Ícone e, com isso, um signo puramente por semelhança de qualquer coisa com que se

assemelhe, só pode ser interpretado como um signo de essência, ou Rema.

(PEIRCE, 2008, p. 55)

O diálogo intertextual entre a vinheta, seus elementos e o texto de Maria Adelaide

Amaral é extremamente coerente quando elucidado pela teoria semiótica peirceana. Se índices

eram apenas marcas, suposições; a marcação sígnica traz à tona toda uma concretude da

existência inter-relacional entre tais textos.

1.4.5 – A melodia da vinheta

É a música que enreda e que reforça o diálogo intertextual existente dentro da vinheta.

Sabendo-se que a música que interage na vinheta de abertura é intitulada como “Prelúdio” e, ao

se pesquisar a semântica do termo prelúdio, encontra-se, na etimologia da palavra ligada à teoria

musical, a seguinte definição: prelúdio é um magnífico som que traz a abertura de um célebre

espetáculo. É uma peça musical, dotada de certa autonomia formal, que serve como introdução de

uma certa obra formal, cena ou ato, podendo também ser executada isoladamente.

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O significado semântico remete tanto ao preceito de introduzir a algo grandioso, como

também se apodera do preceito dialógico entre o signo musical, a cena e o ato.

Na vinheta de abertura da minissérie Os Maias, esse diálogo é tão eficiente que o signo

sonoro parece fundir-se às imagens, às cores e mais ao enredo que de antemão ressoa.

Ao barulho-sineta que ressoa, como se fossem taças em brinde, atravessa a lentidão de

um outro som que eleva, assim meio gradativo, como que se timidamente aparecesse. O som

lembra um despertar, uma história sendo recontada. A impressão causada pelo som que

harmoniosamente combina e concorda com o abrir de um livro, parece reabrir o livro da família

Maia, para recontar a história, retomar o curso da construção da árvore genealógica de tal família.

O ritmo lento se esparrama pela imagem, a calma reificada no início dura apenas

segundos e um som mais alto parece levantar algo. Está-se dentro do que se chama dentro da

linguagem cinematográfica da existência reica ou projetiva, o famoso universo do discurso, pois a

música é puramente descritiva, ou seja, no ambiente dessa vinheta a sonoridade descreve uma

trajetória, encaminha o leitor/telespectador ao universo do discurso, seduzindo-o, fagocitando-o.

As sinetas que ressoam conjuminam com o abrir das primeiras flores que em rodopios

longetudinais saem da situação de desabrochar vida para encerrar suas pétalas nas páginas de um

papel. Esse movimento de câmera, conhecido como panorâmica expressiva coloca as figuras

como se fossem manchas em movimento, as quais parecem sublinhar a passagem do tempo,

possivelmente expressam a queda, a decadência.

O som se eleva quando uma rosa de coloração rosa rodopia, utilizando de um

movimento sequencial de panorâmica expressiva, seguida de uma panorâmica oblíqua; que

parece aproximar-se do leitor/telespectador e afastar-se para sair da vida e transformar-se em

papel. A rica harmonia entre movimento, imagens e som dispensa, nessa abertura, a presença da

linguagem verbal.

Montada quase que totalmente sob a linguagem não-verbal, exceto na aparição dos

nomes que compõem o elenco e no momento em que se registra o nome da minissérie que é, na

verdade, o nome da família que será o núcleo dessa história, o leitor/telespectador tem nessa

vinheta de abertura toda uma narrativa, ou seja, ainda que desconheça a obra literária homônima,

na qual foi baseada a minissérie que a vinheta apresenta, ele tem a noção de que pela música

clássica da vinheta de abertura, pelas flores, pela caneta usada, pela montagem expressa de folhas

de um livro, a minissérie tratará de uma história grandemente elaborada.

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Percebe-se, então, que esse discurso somatizado de vários signos ecoa de forma linear,

logo se encontra nesse ponto da análise com a lógica da abdução mencionada por Peirce.

Observa-se que, no caso da linguagem não-verbal estabelecida pela vinheta de abertura, o signo

sonoro capta primeiro os sentidos do leitor/telespectador; “nada está no intelecto que primeiro

não tenha estado nos sentidos”, está menção do princípio aristotélico, será para Pierce, o juízo

perceptivo, que é fonte de todo conhecimento. Num segundo plano de olhar, ou melhor, de

análise da vinheta em questão, percebe-se que ao tomar contato com o nome grafado em negro

pela caneta tinteiro da minissérie, satisfaz-se o processo de abdução evocado por Pierce, pois,

nesse momento a leitura do discurso proposto pela vinheta e realizada pelo leitor/telespectador

evoca as hipóteses de que se anuncia um programa clássico, um produto midiático valoroso.

Trata-se do juízo perceptivo, ou seja, sem que haja clara linha demarcatória entre os elementos,

não se limita a um mero dado, sedimenta-se num fundo abdutivo e interpretativo.

A inferência abdutiva transforma-se no juízo perceptivo sem que haja uma linha clara de

demarcação entre eles: os juízos perceptivos são casos extremos de inferências abdutivas.

A percepção tem sempre, segundo Peirce, um fundo abdutivo e interpretativo, não se

limita a um mero dado.

(SERRA, 1996, p.9)

A linguagem sonora aguça nossa percepção, conduz e induz o leitor/telespectador à

abordagem temática, já que o signo sonoro é muito eficaz no sentido de clarear, aguçar os

sentidos, estabelecendo um vínculo tênue e ao mesmo tempo eficaz entre o som e o juízo

abdutivo.

A música-tema da vinheta de abertura traz em si o contexto de trilha sonora incidental,

ou seja, a minissérie tem a composição-tema com variações românticas, tensas, alegres, tristes,

com trechos livres, passagens, música em cena.

O tema de abertura é como se fosse uma identidade da obra televisiva, pois ele

estabelece-se através das características da trama. Esse diálogo entre tema de abertura e trama é

fundamentado pela relação sígnica, ou seja, é sustentado pela semiose, ou ainda, pelos

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significados que co-relacionam os signos evocados de natureza diferentes que geram e captam o

leitor/telespectador pela percepção. Como afere Righini,

O tema de abertura também é utilizado no encerramento; por vezes, essa música é

encomendada, pois pretende-se que nela estejam as características da trama geral da

novela, para que o público possa absorver o enredo ou a trama principal que está sendo

desenvolvida. È a vinheta de identificação, utilizada nas pausas para o início e término da

propaganda comercial, e também nas chamadas durante a programação diária, a fim de

que o público identifique de qual novela se trata.

(RIGHINI, 2004, p.121/122)

No caso da abertura da minissérie Os Maias a música de abertura é um tema clássico, e

não é por acaso que essa escolha foi feita, porque a obra em que a minissérie foi baseada é um

clássico da literatura portuguesa Os Maias de Eça de Queirós, e, pelo que se viu no texto criado

por Adelaide Amaral, apesar de evocar várias outras obras de Eça, a autora tentou ser bem fiel às

características do autor nessa obra.

Interessante é que esse signo musical estabelecido dialoga também com o perfil da

família Maia que é o eixo central história. Percebe-se que a relação entre a identidade da

minissérie – seu tema musical – é na verdade, um norteador ao leitor/telespectador.

1.4.6 – Um discurso polifônico ou um sujeito coletivo

No texto não-verbal proposto pela vinheta de abertura da minissérie, não podemos

confundir autor do discurso com narrador desse discurso e enunciador desse discurso.

É válido lembrar que o autor desse discurso é uma identidade concreta e histórica, é

quem programa e organiza o texto e as normas de um sistema literário, organiza também a

globalidade do texto, é o ser do qual dependem as vozes que pode travesti-lo – se de enunciador

textual que, na verdade seria um ser criado pelas instituições sociais; já o narrador seria uma voz

delegada pelo enunciador dentro do discurso. Não se pode confundir, dentro do discurso da

vinheta, narrador com enunciador, pois sendo o enunciador um ser criado pelas instituições, ele

se idealiza e idealiza o outro com que vai interagir. Como aborda Aguiar e Silva,

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Parece-nos que a designação de autor textual é mais adequada e menos equívoca: é a

entidade que, aceitando, modificando, rejeitando convenções e normas do sistema

literário, programa e organiza a globalidade do texto.O autor textual tem de ser

considerado a instância da qual dependem as vozes que concretamente falam nos textos

literários: o narrador nos textos narrativos, o sujeito lírico ou falante lírico nos textos

líricos.

(AGUIAR e SILVA, 2002, p.86)

O autor, uma personalidade do mundo real, existe, dir-se-ia, de forma mais simplista,

que é possuidor de documentação que comprovam a sua existência (CPF, RG). O autor está

inserido num tempo e num momento histórico que vivencia, no caso da minissérie, a autora

Maria Adelaide Amaral, é quem organizou o texto da narrativa audiovisual que deu base à

criação da vinheta.

O narrador é um olhar criado por Maria Adelaide Amaral para contar a história da

família Maia é, no caso da minissérie o narrador será a câmera, pois indica tudo aos olhos do

leitor/telespectador.

Já o enunciador é a Rede Globo, a instituição midiática que veiculou a minissérie.

Vale analisar que, no texto midiático, pode-se verificar a presença do que Bakhtin

chamou de autor-pessoa e autor-criador. Autor-pessoa seria o escritor, o artista; o autor-criador

seria a função estético-formal engendradora da obra.

Assim, se há na vinheta o autor-pessoa, o responsável pela obra, aquele que a escreveu,

há também o autor-criador, ou seja, a função que esta vinheta apresenta para a minissérie, é esse

autor o responsável por materializar a relação entre o herói e seu mundo. Bakhtin,

[...]distingue o autor-pessoa (isto é, o escritor, o artista) do autor-criador (Istoé, a função

estético-formal engendradora da obra).

Este último é, para Bakhtin, um constituinte do objeto estético (um elemento imanente do

todo artístico) – mais precisamente, aquele constituinte que dá a forma ao objeto estético,

o pivô que sustenta a unidade do todo esteticamente consumado.

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Ele é entendido fundamentalmente como uma posição estético-formal cuja característica

básica está em materializar uma certa relação axiológica com o seu mundo [...]

É esse posicionamento valorativo que dá ao autor-criador a força para constituir o todo

[...] O autor-criador é, assim, uma posição refratada e refratante. Refratada porque se trata

de uma posição axiológica conforme recortada pelo viés valorativo do autor-pessoa; e

refratante porque é a partir dela que se recorta e se reordena esteticamente os eventos da

vida.

(BAKHTIN apud FARACO, 2008, p. 38/39)

Na vinheta em questão, o autor-criador é o autor-criador que dá forma ao conteúdo, é ele

que materializa a realidade vivida e valorada.

A autora da minissérie Maria Adelaide Amaral escreveu todo o enredo. A vinheta é uma

micronarrativa-prelúdio, um fragmento da minissérie; afinal, por a minissérie ser uma obra

fechada, a vinheta também participa dessa característica, tendo sido constituída para tal função,

ou seja, ser o prelúdio-anunciador da minissérie. Tem-se, então, o autor, Maria Adelaide Amaral.

Esses olhos autorais se dividem em autor-pessoa e autor-criador, sendo o autor – pessoa a

entidade que é objeto, nesse ambiente sociocultural do autor-criador que é um naco do autor-

pessoa, ou seja, aquele que organiza de um modo novo os aspectos do plano de vida que são

destacados, que dá forma ao conteúdo, que transporta parte da vida para a arte; constituindo uma

semiose que materializará o modo pelo qual o mundo invade o horizonte apreciativo dos grupos

humanos. Vale lembrar que, para Bakhtin, “a semiose não é um processo de mera reprodução do

mundo “objetivo”, mas a remissão a um múltipla e heterogeneamente interpretado”.

Fica claro que o autor é quem escreve sob determinada projeção, pois o mesmo se perfaz

em autor-pessoa e autor-criador, tendo este último já uma nova visão de mundo. O narrador é

uma outra entidade nesse percurso, pois é uma criação do autor-criador para contar os fatos.

Observe que aqui se sedimenta uma das faces do autor-pessoa, que, ao dar vida a um narrador ele

já cria também não o discurso real, mas uma entidade para fazer uso do discurso, que possui uma

visão particular da obra.

No caso da vinheta, o narrador acomete-se de várias linguagens, da linguagem

característica da televisão; é a linguagem sincrética, em que vários signos (cor, som,

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movimento...) dão vida ao discurso e o narrador que conduz e usa esses signos para construir a

semiose que materializará o discurso. Na vinheta seria o narrador-câmera.

Esse narrador-câmera para se encontrar com o seu receptor necessita de um meio. Sendo

o meio a televisão, há nela várias emissoras e, a emissora escolhida – que possui sua particular

visão e tem objetivos para executar seu discurso dentro de um contexto – seria o enunciador,

cabendo aqui indumentar que o narrador está a serviço do enunciador; ora, se a Rede Globo de

televisão é o que chamaremos de enunciador, ela projetará seu narrador-câmera para garantir-lhe

o discurso que condiz com seu papel dentro da sociedade.

Observa-se claramente, na construção do discurso da vinheta a presença do enunciador,

que é uma voz criada pela instituição televisão, no caso da vinheta analisada a Rede Globo, o

enunciador seleciona e idealiza com quem ele quer interagir, ou seja, o destinatário desse texto, o

qual difere do receptor, pois esse destinatário é uma entidade com característica semiósica efetiva

ou apenas simbólico-imaginária, ou seja, nem sempre o destinatário é capaz de decodificar a

mensagem, enquanto o receptor apresenta condições para decodificá-la. Para tal, Aguiar e Silva:

O destinatário de uma mensagem é a entidade, com capacidade semiósica efectiva ou

apenas simbólico-imaginária, à qual o autor empírico ou o autor textual, nuns casos

explicitamente, noutros casos de modo implícito, endereçam essa mensagem ao passo que

o receptor de uma mensagem é a entidade com capacidade semósica efectiva que, em

condições apropriadas, pode codificar essa mensagem. Desta distinção se infere que o

destinatário de uma mensagem pode ser, ou não, seu receptor e que um receptor não é

necessariamente – e só poucas vezes, em termos comparativos, o será – o destinatário das

mensagens de que é receptor [...]

(AGUIAR e SILVA, 2002, p.86)

Assim, ao estabelecer-se o discurso da vinheta, o enunciador faz uso de outros discursos,

servindo-se de linguagens, de idéias preexistentes, que são produtos de uma semiose, de criação

de signos novos a partir de signos e idéias preexistentes. Ao construir seu discurso, o enunciador

mostra que o mesmo é produto de seu momento histórico, de seu meio e da circunstância que o

envolve, é, logo, um discurso com linguagens sincréticas dotado de muitos simulacros e não

realidades. O enunciador se serviu de outros discursos preexistentes, mas lhe deu uma coesão e

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coerência em um novo discurso, colocando idéias díspares de outros autores em um novo

contexto de fala.

Se, na vinheta de abertura da minissérie Os Maias, o enunciador se perfaz pela

instituição e pelo momento circunstancial aos quais representa, pode-se visualizar um discurso

preexistente, no caso a obra de Eça de Queirós e um discurso do qual o enunciador se serviu,

colocando sua coerência e sua coesão. Esse ínterim discursivo acomete-se da visão discursiva

foucaultiana que discorre sobre o biopoder e a biopolítica, que seriam dispositivos de controle, no

caso midiático, discursivo. Tendo em vista que o biopoder se produz através da atuação

específica, em que, como salienta Duarte apud Foucault, deu-se um importante deslocamento na

forma de exercício do poder soberano, que passou a se afirmar não mais como um poder de matar

a vida, mas sim como “um poder que gere a vida.” A vinheta de abertura da minissérie Os Maias

traz, em seu enunciador, não alguém que narre o que Eça de Queirós narrou, mas alguém gerando

um novo discurso a partir do discurso queiroseano, tendo em si o poder de re-criar uma obra, ou

melhor, solidificar um novo discurso a partir de idéias e signos preexistentes.

A vinheta da minissérie Os Maias é uma micronarrativa de uma obra adaptada, daí se,

para a re-criação de um texto, a adaptação é algo extremamente sufocante, pois a presença de um

narrador deve ser realizada pela câmera e pelos movimentos dela, é necessário ser dominador da

arte de montagem e roteiro, pois há, num livro, as evocações imaginárias, o vagar pela mente do

leitor; já o leitor/telespectador é acometido pelas manifestações visuais, isto é, todo o vagar

descrito pelo autor, no caso das narrativas audiovisuais deve ser visualizado.

Assim se cria uma nova obra que se oriente pela antiga, cria-se um novo texto que seja

baseado, no antigo, mas nunca igual, pois afinal, há linguagens distintas na formulação desse

texto que solicita do enunciador o uso de variadas linguagens para com por seu discurso,

evocando então o sincretismo lingüístico.

Observa – se pelos objetos, cores, flores e movimentos apresentados na vinheta que a

chamada não tem o mesmo fim que a obra queiroseana de base, que analisava a sociedade da

época, mas, sim, uma chamada que evidencia muito mais as ações. Esse procedimento é muito

claro quando a vinheta propõe um livro que se fecha, uma história contada, uma vida registrada e,

na obra de Eça de Queirós, há a importância da reflexão através das ações. Logo, não se trata de

uma cópia, uma reconstrução da obra queirosena, e nem poderia ser; pois há outra linguagem, há

outro enunciador, esboçada num século distinto.

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A vinheta de abertura deixa esse perfil de nova linguagem e novo discurso muito

evidente; é nesse aspecto que a vinheta de abertura deixa de ser apenas a chamada, a sineta do

programa. Ela, nesse contexto, já contextualiza a história que será oferecida pelo programa,

enunciando linearmente que não será o romance Os Maias de Eça de Queirós que irá ao ar, mas

sim, um novo romance que dialoga com o romance queiroseno, apesar de apresentar nome

homônimo.

As vinhetas de abertura das minisséries são, em suma, muito mais do que fragmento da

narrativa audiovisual que anunciam, elas são um aparte enunciativo, melhor, são uma

micronarrativa, um fragmento da catedral que anunciam, pois tem em si o início e o término de

uma obra fechada em determinado número de capítulos.

Tem-se na vinheta de abertura da minissérie um sujeito coletivo, ou seja, um sujeito

individual que se vale de outros discursos para montar o seu. Desse modo o que vale sempre é o

novo discurso, com o novo significado, mesmo se ele estiver em linguagens sincréticas.

Tendo em preceito a análise sobre o discurso da vinheta anteriormente mencionado, fica

claro que a construção do discurso da minissérie Os Maias não permite que se diga que se trata

do texto de Eça de Queiróz transposto para a televisão, trata-se sim de um texto que se baseia no

texto queiroseano. Trata-se, na verdade, de uma outra obra, que tem um outro discurso e que

sedimenta uma outra visão sobre o incesto cometido por Carlos Eduardo e Maria Eduarda.

Através da análise dos signos é que se pode afirmar que a adaptação nunca será

reescrita, mas sim uma nova visão daquilo que foi escrito por alguém em algum tempo. Ora, com

a análise feita é que se passa a entender o desafio da adaptação e ainda a postura do leitor

queiroseano insatisfeito com a minissérie, pois esse procurou no texto de Maria Adelaide Amaral

uma postura idêntica à postura de Eça de Queiróz, o que seria impossível de ser realizar tendo em

mente desde o momento histórico cultural (contexto) até a linguagem do meio em que se

escolheu para veicular o discurso.

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CAPÍTULO II

Nas três vinhetas de América, as tríades

Peirceanas

Fonte: Youtube

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2.1 – As vinhetas da telenovela América

Como enunciado anteriormente, a telenovela apesar de muito parecida com a minissérie,

apresenta diferença indicial em relação à minissérie quando diz respeito ao caráter aberto ou

fechado. Se a peculiaridade da minissérie é seu caráter fechado, na telenovela sua grande arma

discursiva são seus longos capítulos de caráter aberto, ou seja, sujeitos a modificações no

decorrer de sua exibição.

A telenovela América, exibida pela Rede Globo de Televisão, em 2005, narra a história

de Sol, uma jovem brasileira que sonha realizar seus ímpetos de enriquecer, de ganhar dinheiro

em outro país - no caso, nos Estados Unidos da América - , porém, para isso, ela precisa de

dinheiro o que lhe falta, então ela busca a travessia ilegal e esse caminho lhe acrescenta novas

vivências.

Escrita por Glória Perez, América foi ao ar de 14 de março a 05 de novembro de 2005.

Interessante que essa narrativa audiovisual apresentou modificação em sua vinheta de abertura e

trouxe para o deleite do leitor/telespectador três distintas vinhetas de abertura.

O primeiro núcleo da novela contava com a presença de Jayme Monjardim como diretor

geral e diretor de núcleos, assessorado por Marcos Schechtman e Marcelo Travesso, porém, por

motivos de discordância entre diretor – Jayme – e a autora – Glória Perez sobre os rumos do

enredo da novela, Jayme deixou a direção da novela no capítulo 45, como se pode ler no site Isto

é Gente5:

Você passou por uma situação difícil neste ano, com a desavença com Glória Perez em

América.

Não houve nada disso. Novela é casamento entre autor e diretor. A novela estava muito

bem, nós nunca botamos em dúvida o que foi para o ar, mas sim o futuro. E novela só

sobrevive se o diretor e o autor estiverem 100% de acordo. Se não estiverem, não tem

problema nenhum. É apenas cada um fazer outro trabalho. Isso é saudável. O produto tem

que ser preservado. E a novela é um projeto de sucesso. Tenho muito orgulho de implantar

América até o capítulo 45, foi uma das novelas mais difíceis que a Rede Globo implantou

até hoje. E foi dada continuidade à novela, ao meu trabalho. Me sinto profundamente

orgulhoso de América.

(http://www.terra.com.br/istoegente/317/entrevista/index.htm, acesso em 20 de setembro de 2010)

5. Consulta feita através do sita www.terra.com.br com foco para entrevista de Jayme Monjardim à revista on-line Isto é Gente. (http://www.terra.com.br/istoegente/317/entrevista/index.htm, acesso em 20 de setembro de 2010)

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Jayme Monjardim tem como característica marcante em suas montagens uma imagem

paisagista, voltada sempre para planos de câmera fechados, o que garante ao seu texto um misto

entre o ambiente e personagem, buscando nessa junção a emotividade, ou melhor, busca

despertar, no leitor/telespectador, a emoção. Um exemplo claro do estilo de filmagem do diretor

foi a telenovela O Clone, sucesso de audiência no horário das 20h que apresentava takes

totalmente direcionados ao plano cênico e que enunciava a trajetória épica do romance entre

Lucas e Jade.

O afastamento de Jayme Monjardim da novela América, de imediato trouxe a nova

perspectiva que a narrativa audiovisual queria evidenciar, a vinheta da telenovela já mostrava

claramente a mudança nos rumos da narrativa, porque primeiro modificam cores e vozes da

vinheta de abertura mantendo a bolha de sabão e o logotipo, em seguida, a bolha assume uma

característica mais abstrata e uma outra música mais irreverente passa a chamar o

leitor/telespectador para a degustar a história de Sol.

De posse da visualização dos elementos que compõem a micronarrativa composta de

fragmentos da vinheta de abertura da narrativa audiovisual de América e, sendo fundamentada,

no capítulo anterior, a diferença entre narrador, autor e enunciador, pode-se nesse capítulo

averiguar a postura modificada do enunciador e, de forma comparativa, perceber a tonicidade de

seu discurso na construção das três vinhetas de abertura que sustentaram a narrativa audiovisual

América. A análise semio-discursiva a seguir clareará a postura dos enunciadores, deixando

nítida a percepção do enlaçamento entre o discurso da vinheta e do discurso da telenovela. Trata-

se aqui de mostrar a coerência entre os discursos e a incoerência dos mesmos, o que talvez suscite

e explique o afastamento do diretor.

2.2 – Análise da primeira vinheta de abertura

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A primeira vinheta de abertura da telenovela global América trazia, em sua apresentação

de aproximadamente dois minutos, a imagem da personagem principal – Sol – vivida pela atriz

Débora Secco, numa trajetória indicada pelo sonho, com uma postura visionária, vestida de

branco e dentro de um globo de vidro, parecendo uma bola de cristal que vislumbrava seu sonho

ou sua trajetória de vida, a ser narrada na íntegra pela narrativa audiovisual que ela apresentava.

O enunciador parece tecer um discurso, predizendo tudo o que essa personagem viveria,

como se informasse o leitor/telespectador de tudo o que ele veria e viveria acompanhando a

trajetória dessa personagem.

O tom épico era construído: o sujeito coletivo, através da bola de cristal – símbolo dos

videntes –, mostrava aves em voos livres e a personagem na companhia dessas aves, olhando para

o futuro, como se voasse junto com esses animais ou com um olhar preso ao futuro, à liberdade

de ir. Defronte a uma praia, com uma mochila nas costas e as mãos nos bolsos, ombros elevados

como se indicassem a personagem respirando, absorvendo seu futuro com um sorriso lastrado no

rosto. O enlace desses signos coadunados criam um sema, reconhecido pelo discurso de

enunciador como a metáfora da liberdade engajada ao sonho.

Fica claro que o emaranhar desses signos fundem-se em uma linguagem sincrética que

figura o desejo da personagem central da narrativa audiovisual que irá ao ar. O céu totalmente

azul evidencia a infinitude do sonhar. O vento, que sopra os cabelos dessa personagem, traz e

aguça aos olhos do leitor/telespectador uma sensação de mergulho em um vôo, de aportar do

chão.

O discurso construído nesse primeiro momento-cena enreda um diálogo entre o vento,

as aves e a protagonista-Sol e gera uma relação sígnica que constrói a primeiridade ao olhos do

leitor/telespectador, gerando, em sua mente, hipóteses, dúvidas, sabores de como se dará a

trajetória, da necessidade de validar aquilo que foi visto em sua forma primeira.

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Importante é que toda essa visão está inserida num globo de vidro, uma bola de cristal,

que simboliza o mundo da visão, do sonho, de algo efêmero que poderá transformar-se ou

estourar.

O tempo apresenta-se através de um diálogo entre o tempo cronológico e o tempo

psicológico nesse primeiro momento-cena, pois o tempo cronológico parece estar fora do globo

de vidro e é absorvido pelo tempo psicológico de que emana o sonho, o desejo, a saga.

A temporalidade também é analisada pelo contato do momento-cena com os olhos do

leitor/telespectador que se difunde com o tempo da personagem Sol.

Essa marca temporal, esboçada nesses primeiros segundos da vinheta, é de grande valia

para se entender o que ela antecipa ao leitor/telespectador. Assim, a marca temporal do primeiro

momento-cena difunde dois tempos para indiciar um discurso na narrativa, tendo em vista que a

cena faz parte de uma narrativa e que a narrativa trata de uma sucessão de eventos que acontecem

num determinado espaço e num determinado tempo. E a importância do tempo, nesse momento-

cena, é relevante para a construção do discurso que se almeja.

O enunciador – representação da instituição – para garantir a linearidade e coesão de seu

discurso, usa de seu narrador-câmera para fazer essa marcação de temporalidade e espacialidade

com fins de contar a história. Esse narrador-câmera é parte integrante do discurso do enunciador

que se serve de outros discursos e outras linguagens para elaborar o seu discurso. Poder-se-ia

afirmar que o narrador-câmera é o olho a serviço do organizador.

No entanto seria equivocado supor que, sendo narrador, a câmera supra todas as funções

de um narrador.

Ela descreve, mostra o lugar e dá ordem cronológica; marca uma época, um clima e um

ambiente; faz-nos ver certos acontecimentos dos quais nos cientificamos; às vezes, mais e

melhor do que se fossem narrados pelo diálogo. É um olho. Mas não dá conta da narração

no seu total, visto que é como foi dito apenas uma máquina a serviço de um organizador.

(PALLOTINI, 1998, p.171)

Esse narrador-câmera fornece, então, a visão do tempo dentro desses segundos iniciais

de vinheta. Trata-se do tempo cronológico dialogando e emaranhando o tempo-histórico e

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trazendo o tempo-horizonte existencial que funde o físico e o metafísico, como observa Aguiar e

Silva:

O texto narrativo, caracterizando-se por representar uma sequência de eventos, comporta

como elemento estrutural relevante da sua forma de conteúdo a representação do tempo:

do tempo-cronologia, que marca a sucessão dos eventos; do tempo concreto, do tempo

durée na acepção bergsoniana desse termo, que modela e transforma os agentes; do tempo

histórico, que subsume o tempo-cronologia e do tempo concreto, que configura e

desfigura os indivíduos e as comunidades sociais; do tempo, enfim, como horizonte

existencial, físico e metafísico, do homem, agente ex definitione de toda narrativa [...]

(AGUIAR E SILVA, 2002, p.204)

Toda demarcação temporal, inserida no discurso do enunciador, é emoldurada e

percebida devido ao objeto que contém essas imagens e que é uma bola de cristal, ou ainda uma

bolha de ar ou de sabão que voa, levando ao leve rumo do vento os pensamentos e sonhos. A

simbologia dessa bolha mostra a efemeridade, a transitoriedade, ao sonho.

A bolha de ar ou de sabão – essa bolha de azul-celeste que meu sopro aumenta, escreve

Victor Hugo – simboliza a criação leve, efêmera e gratuita, que estoura subitamente sem

deixar vestígio; nada além de delimitação arbitrária e transitória de um pouco de ar.

Nessa mesma perspectiva, o budismo faz da bolha a imagem de anitya, a impermanência

do olho manifestado: Aquele que olha o mundo como se olha uma bolha de ar, lê-se no

Dhammapada, esse é capaz de não ver mais o reino da morte. Um outro sutra assegura que

os fenômenos da vida podem ser comparados a um sonho, um fantasma, uma bolha de ar

[...]

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.138)

Lança mão, então, o enunciador de signos que traduzem e tecem seu discurso sob o

prisma da coesão, para garantir, dessa forma, a fagocitação através do poder discursivo, uma

visão bem foucaultiana, mas muito eficaz para um midiador.

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Os índices discursivos sugeridos pelos signos que a trajetória discursiva abarca, trazem,

nessa passagem do narrador-câmera, a presença de aves, gaivotas à beira-mar e um misto entre

a coloração branca e azul-celeste. A presença das aves em voo lança a idéia de liberdade, pois

elas, sendo gaivotas, asseguram a presença da luz do dia; segundo um mito indígena da

Colômbia Britânica, a mescla da coloração azul-celeste e das vestes brancas da protagonista

sugere no texto um mergulho no infinito, no caminho da divagação. As cores azul e branca das

vestes da protagonista propõem ao texto a condição do candidato, ou seja, daquele que vai

mudar de condição. Conforme constata Chevalier e Gheerbrant,

O azul é a mais profunda das cores: nele, o olhar mergulha sem encontrar qualquer

obstáculo, perdendo-se até o infinito, como diante de uma perpétua fuga da cor. [...] É o

caminho do infinito, onde o real se transforma no imaginário.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 107)

[...]

[...] é também um momento transitório, situado num ponto de junção do visível e do

invisível e, portanto, é um outro início. O branco – candidatus – é a cor do candidato, i.e.,

daquele que vai mudar de condição [...]

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.141)

O que num primeiro momento se visualizava - a bola de cristal -, fixa-se pelo diálogo

com as cores e com o movimento em uma bolha de sabão que denota a transitoriedade do

sonho. É genial que tais signos abram esse diálogo intertextual e garantam a sobriedade entre o

discurso da vinheta e a narrativa audiovisual. Os primeiros segundos dessa imagem da primeira

vinheta da telenovela América já situam o leitor/telespectador por meio de um discurso

impregnado de signos e significações que geram uma perfeita semiose, o que será relatado pela

narrativa audiovisual que a mesma emoldura.

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Frame 33 Frame 34 Frame 35

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A bolha de sabão alça seu vôo e, através da combinação de plano conjunto seguido de

um plano geral, em um giro em torno de si, traz ao leitor/telespectador a visão onírica, a visão

da protagonista que, nesse momento, parece fundir-se com a visão do leitor/telespectador. Essa

combinação de movimentos de câmera que dialogam com as cores e os pássaros levam ao

sonho já materializado na trajetória que a protagonista viverá. Aparecem, então, prédios,

ambientes rurais, um cavaleiro errante, competições regionais como festas de peão e rodeios

exprimindo a religiosidade que liga o rodeio e a cultura mexicana esboçada pela vinheta.

Percebe-se, portanto, que todos esses índices emanados da bolha de sabão não fazem

ainda parte da vivência nem do sonho da personagem, mas são um presságio ao

leitor/telespectador que o narrador-câmera conduz, através de discurso onisciente do enunciador

sobre a narrativa audiovisual que se projetará.

Frame 39 Frame 40 Frame 41

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A imagem da protagonista Sol vai se desfazendo com outras imagens que vão surgindo,

havendo a nítida presença da efemeridade, ou seja, a bolha de sabão a cada giro mostra um

ângulo, um ponto de vista do sonho de Sol. A vinheta traduz a sensação da fluidez do sonho. A

protagonista não é mais do que seu sonho.

2.2.1 – Elementos componentes da primeira vinheta

Após a aparição da bolha de sabão que envolve a personagem principal e tem com fundo

um céu azul e gaivotas voando ao seu redor, a bolha projeta um emoldurado de prédios.

A aparição dessas construções é, na verdade, a projeção da continuidade do sonho, tendo

em vista que a personagem-título sonha vencer em país longínquo, totalmente urbano. Nota-se

que a imagem de Sol continua aparente, enquanto vão se formando as imagens dos prédios, e

observa-se, nesse ínterim discursivo, que o sonho ainda é de Sol e que essas construções estão

dentro do imaginário dela.

Outro dado fundamental é a geografia dessas construções, ficando nítido que não se trata

de locais do Brasil, ao mesmo tempo que sedimentam o sonho, a saga da busca imigrante.

Frame 42 Frame 43 Frame 44

A sequência desse projetar-sonhar se abre à percepção curiosa, quando, antepondo-se ao

ambiente urbano, surge uma imagem campestre que traz um cavaleiro errante, que vem pelas

águas. Aliás, a presença da água – componente a ser analisado mais adiante - é intensa e toma

parte de quase todas as cenas da vinheta.

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Frame 45 Frame 46 Frame 47

Frame 48 Frame 49 Frame 50

A anteposição ao ambiente urbano e ao ambiente campestre segmentado pela vinheta,

mostra a viagem, a infinitude do sonho, e ainda traduz o encontro entre sonhos distintos entre a

personagem Sol e o personagem Tião.

Enquanto Sol sonha conquistar riqueza em outro país, Tião sonha conquistar riqueza a

partir das montarias em festas de peão de rodeio. Tião – o cavaleiro – é parte do sonho de Sol,

porém ela ainda não o conhece.

Observa-se, pois, que a vinheta prediz, antecipa ao leitor/telespectador o que será

evidenciado na trama da telenovela que anuncia.

A vinheta talha um aspecto cultural implícito, no caso, o ato de sonhar, mostrando que

dentro do sonho podem aparecer figuras desconhecidas. Apesar de muitos estudos tratarem do

sonho, o que mais se relaciona com a vinheta em questão é o sonho profético, ou premonitório.

No Egito antigo, os sacerdotes-leitores, chamados também de escribas sagrados interpretavam,

nos templos, os símbolos dos sonhos, era o que se denominou oniromancia, conforme aduz

Chevalier e Gheerbrant,

O Egito antigo atribuía aos sonhos um valor sobretudo premonitório: o deus criou os

sonhos para indicar o caminho aos homens, quando esses não podem ver o futuro, diz o

livro da sabedoria. Sacerdotes-leitores, escribas sagrados ou onirólogos interpretavam nos

templos o símbolo dos sonhos, segundo chaves transmitidas de era em era. A

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oniromancia, ou a divinação por meio dos sonhos era praticada em todos os lugares. [...] 1.

Sonho profético ou didático, aviso mais ou menos disfarçado sobre um acontecimento

crítico, passado, presente ou futuro; sua origem é frequentemente atribuída a uma força

celeste

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 844/845)

Logo, nessa bolha de sabão efêmera, o sonho de Sol é premonitório e mostra ao

leitor/telespectador o que o futuro trará.

Há, na imagem do cavaleiro, um quê de conto de fadas que se liga intimamente ao sonho,

e lembre o relato eterno do sonho da princesa que espera seu príncipe encantado que virá

montado num cavalo. Esse dado fabulesco da vinheta desmerece toda a projeção da idéia crítica

do trato com o tema da imigração ilegal que a narrativa audiovisual aborda.

O elemento água é presença marcante na vinheta, e se faz presente do início ao fim.

Aparece na composição da primeira cena; segue presente em frente aos prédios; no ambiente

campestre descrito; na retirada do ouro-garimpo; em um lugar entre árvores, lembrando um

pântano; e, finalmente a água banhando o beijo amante.

Frame 51 Frame 52 Frame 53

Frame 54 Frame 55 Frame 56

A simbologia da água entre as várias culturas se faz a partir da idéia de que a presença

da água é presença de vida, ou ainda fonte de vida; há também a idéia de que a água é meio de

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purificação e, ainda no ínterim das combinações imaginárias, a água surge como centro de

regenerescência. A água também é um símbolo das energias inconscientes, das manifestações

secretas e desconhecidas.

A primeira vinheta traz a presença da água de forma constante, mantendo uma co-

relação desse elemento com o sonho e com a bolha de sabão.

Mas o símbolo da água força vital fecundante vai mais longe no pensamento dos dogons e

de seus vizinhos, o bambaras. Porque a água – o sêmen divino – é também a luz, a

palavra, o verbo gerador, cujo principal avatar mítico é a espiral de cobre vermelho. [...] A

água é o símbolo das energias inconscientes, das virtudes informes da alma, das

informações secretas e desconhecidas. Acontece muitas vezes no sonho, a gente estar

sentado à borda da água a pescar

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.15/21/22)

No nosso caso a correlação entre o sonho e a água gera um Rema Simbólico, pois ambos

se ligam à história de Sol por associação de idéias que trazem à mente uma idéia, um conceito

geral, pois como indica Peirce,

um Símbolo Remático ou Rema Simbólico (e.g., um substantivo comum) é um signo

ligado a seu Objeto através de uma associação de idéias gerais de tal modo que sua

Réplica traz à mente uma imagem a qual, devido a certos hábitos ou disposições dessa

mente, tende a produzir um conceito geral, e a Réplica é interpretada como Símbolo de

um Objeto que é um caso desse conceito.

(PEIRCE, 2008, p. 56)

Outro aspecto relacionado nessa vinheta é a aparição de dois ícones de religiosidade, o

cinturão do cavaleiro com a imagem de Nossa Senhora e as festas da Virgem de Guadalupe, no

México. Essas imagens recorrem à fé incondicional que é o apoio de brasileiro.

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Frame 57 Frame 58

A religiosidade se transmuta em dois signos que fazem dialogar a fé do brasileiro e a fé do

povo mexicano, ambos ligados pela Virgem, no caso, dois ícones da religiosidade, tendo em

mente que:

Um Ícone é um signo que se refere ao Objeto que denota apenas em virtude de seus

caracteres próprios, caracteres que ele igualmente possui quer um tal Objeto realmente

exista ou não. É certo que, a menos que realmente exista um tal Objeto, o ícone não atua

como signo o que nada tem a ver com seu caráter como signo. Qualquer coisa, seja uma

qualidade, um existente individual ou uma lei, é Ícone de qualquer coisa, na medida em

que for semelhante a essa coisa e utilizado como seu signo.

(PEIRCE, 2008, p.52)

Interessante observar o diálogo existente entre esses dois ícones da fé, pois Sol – a

protagonista – é brasileira, mas nesse momento da micronarrativa ela está no México, tentando

fazer a travessia e recorre à fé daquele povo. Inserem-se na protagonista duas correntes de fé e

abre-se um outro diálogo contingente com a crença na Virgem de Guadalupe, exaltada pelas

festas de Peão de Rodeio em que a grande protetora do peão é Nossa Senhora Aparecida, exaltada

como a mãe que protege na hora da montaria.

Veja que o aparecimento dos Ícones da fé informa e indica ao leitor/telespectador que os

protagonistas se encontrarão, terão seus destinos cruzados.

A vinheta marca dois encontros entre os protagonistas, o primeiro em que Sol usa o

chapéu de peão de boiadeiro, o segundo em que Sol está sem o chapéu e que finaliza a vinheta.

Interessantes, se fazem esses dois encontros: o ato de vestir o chapéu mostra a

protagonista vestida de amor, ou de encanto, ou ainda os pensamentos de Sol em relação ao peão

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Tião, porém não convencida disso; o segundo encontro mostra a protagonista entregue, desnuda,

em águas que purificam esse amor.

Frame 59 Frame 60

A cena do primeiro encontro segue-se à cena da vitória de Tião, em um rodeio, fato que

insere, na micronarrativa, um dado que indica que Sol será parte do prêmio, das conquistas do

peão Tião e que Sol é parte de seus pensamentos. Segundo Chevalier e Gheerbrant,

O chapéu em sua qualidade que cobre a cabeça do chefe (fr. Couvre-chef =chapéu, trad.

literal: cobre-cabeça, simboliza também a cabeça e o pensamento. É ainda o símbolo da

identificação;como tal assume toda relevância no romance de Meyrink, O Golem*: herói

tem os pensamentos e empreende os projetos da pessoa cujo chapéu está usando. Mudar

de chapéu significa mudar de idéias, ter uma outra visão do mundo (Jung). “Usar o

chapéu” significa em francês coloquial (porter le chapéu) assumir uma responsabilidade,

mesmo por uma ação que não se tenha cometido.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.232)

A vinheta vende a idéia de que o amor, os encontros entre Sol e Tião são o ouro que a

protagonista tanto busca em terras estrangeiras e isso se expressa na vinheta pelo aparecimento da

pedra preciosa, que antecede o segundo encontro do casal. Reafirma-se, então, a importância do

amor, encontrar o ouro, a pedra preciosa, seria encontrar o amor. O vídeo sob o plano fechado de

filmagem, característica de Monjardim – diretor geral e de núcleos – até então da telenovela, é

um foco que se volta para o emocional, para o amor que se desvencilha do foco da idéia da

imigração ilegal e seu trajeto.

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Frame 61 Frame 62 Frame 63

Frame 64 Frame 65 Frame 66

O significado de crepúsculo para Chevalier e Gheerbrant é um

Símbolo estreitamente ligado à idéia do Ocidente, a direção onde o Sol declina, se

extingue e morre. Exprime o fim de um ciclo e, em conseqüência, a preparação para outro.

Os grandes feitos mitológicos, prelúdio de uma revolução cósmica, social ou moral,

ocorrem no curso de uma viagem para Oeste: [...] O crepúsculo é uma imagem espaço-

temporal: o instante suspenso. O espaço e o tempo vão capotar ao mesmo tempo no outro

mundo e na outra noite. [...] O crepúsculo reveste-se, também para si mesmo, da beleza

nostálgica de um declínio e do passado, beleza essa que ele simboliza. É a imagem e a

hora da saudade e da melancolia.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 300)

A presença do crepúsculo entre os amantes e o ouro é a marca linear do que chegou ao

fim, ou seja, é o signo que informa o leitor/telespectador de que o fim será esse: está prevista e

encerra-se a mensagem de que o ouro encontrado é o amor. Trata-se da imagem da melancolia

encerrada num instante suspenso em que, ao mesmo tempo que se indica certo final para a

narrativa audiovisual que se apresenta, se insere a dúvida sobre o reencontro, ou o happy end.

A primeira vinheta se encerra trazendo o logotipo da telenovela - uma ponte entre as duas

letras “A” - formando um Símbolo a partir do Legissigno encerrado na palavra América. Ou seja:

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a expressão de que há uma ponte entre as letras “a” da palavra América, que ligam as duas

Américas - a do Sul e a do Norte - e os dois países - o Brasil e o México.

Frame 67

O sol crepuscular, que se esconde atrás do logotipo, mostra claramente que o ciclo vivido

pelo sonho de Sol se encerra quando a mesma, em sua jornada, liga as duas Américas.

Fica claro, a partir da análise semiótica, que os signos na vinheta traduzem, emolduram o

que será narrado. Logo, não se pode dizer que a vinheta de abertura, sendo um aparato que

propaga e anuncia a telenovela, não traz em si o que será vivido, ou visto pelo

leitor/telespectador, podendo-se acusar a mídia de tudo, ou melhor, a vinheta de tudo, menos de

propaganda enganosa em relação ao produto que anuncia.

2.2.2 – O signo sonoro da primeira vinheta

Não se pode nem se deve esquecer do signo sonoro que aguça ainda mais esse tom de

epopéia assinalado pela bolha de sabão que se esvai e leva o sonho e a peregrinação daquilo que

não se sonha viver, mas se sabe que viverá.

Interpretada pela voz de Milton Nascimento, tem-se nessa vinheta de abertura a música

“Órfãos do paraíso” que se faz pela melodia – indicial sonoro – e pela letra – indicial verbal,

sob a composição de Marcus Vianna. A voz de Milton Nascimento, devido a sua trajetória

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musical, transmite ao leitor/telespectador já a grandiosidade, à altura de tamanho talento

musical.

A voz límpida desse cantor, segura e sonante traz ao leitor/telespectador um indício de

que a narrativa audiovisual, que é anunciada, será ímpar, trará segura história envergada de uma

epopéia que mesclará paixão, alegria, religião e sonhos realizados.

O título da música de abertura da telenovela traz um ícone em relação ao Brasil. Órfãos

seriam os brasileiros que tentam atravessar de maneira ilegal as fronteiras, fugir para outro país

sem terem visto permanente, logo ficam despatriados, órfãos pela ilegalidade. A palavra

“paraíso” é um ícone, um representamêm do lugar onde se realizam os sonhos, produz uma

idéia de lugar abençoado, de realizações. No caso, segundo a história bíblica, Moisés conduziria

o povo à Canaã, à terra prometida, ao lugar onde não seria mais escravo, onde haveria

harmonia. A preposição do (de+o) indica posse, ou seja, tem valor de posse no interior desse

título. Forma-se, então, a locução adjetiva “do paraíso” que fundamenta uma leitura muito

peculiar, pois órfão é a qualidade daquele que não possui pais, ou seja, que perdeu os pais, os

tutores, os responsáveis; “Do paraíso” que tinha por tutor ou pai o paraíso, tinha posse do

paraíso; “paraíso”: lugar do sonho, utopia, a terra prometida segundo os textos religiosos. O

título é um representâmen dos imigrantes ilegais que atravessam as fronteiras em busca de seus

sonhos e que ficam órfãos deles, pois despatriados e ilegais são acoitados por punições, sem

direito à defesa ou auxílio governamental. Interessante verificar que o título da música que

enreda a vinheta já estoura a bolha de sabão, já emerge a efemeridade desse sonho exibido pelas

imagens.

A letra da música se inicia pelo verso: “Órfãos do sonho Brasil”, que na verdade, é um

vocativo, um chamado para uma nova busca, um novo sonho. Interessante a derivação

imprópria que se sustenta no termo “Brasil”, que é um substantivo próprio que nomeia um pais,

e ao mesmo tempo é um adjetivo para o substantivo simples “sonho”. É possível enxergar

gramaticalmente também um aposto nominativo descrevendo de forma direta o sonho, como

sendo o sonho Brasil.

A partir desse representâmen gramatical, o discurso gera a idéia de coletividade, criando

um simulacro, ou uma idéia geral de que o sonho de enriquecer, construir a vida, encontrar o

paraíso é um sonho comum a todos os brasileiros. O eixo sintagmático constituído pela estrutura

“Órfãos do sonho Brasil” traz em seu pragmatismo uma escolha densa de significados que

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transformam o particular em geral. Parece, a partir do vocativo musical, que todos os brasileiros

sonham com a conquista, com a riqueza, com uma vida melhor e digna em terras estrangeiras.

Essa característica da linguagem televisiva é fascinante, pois fagocita o

leitor/telespectador pela vinheta, leva-o a ser também um sonhador com o paraíso, embebeda-o

do sonho através da imagem, tira-o do chão, da razão, mas não deixa de mostrar que esse sonho

é efêmero, através da mesma imagem que conduz o sonho por uma bolha de sabão e pela

palavra “órfão”, ou seja, aquele que perdeu seu sonho, ficou órfão dele, foi destituído do sonho.

O segundo verso “busquem os restos nas sombras da vida” apresenta uma vida

destruída, feita de migalhas, de restos, ou seja, a sobra física do sonho emoldurado pela bolha

de sabão. “Nas sombras da vida”, o adjunto adverbial de lugar é o espaço onde ainda se

encontra esperança. É nítida a construção, através da análise do texto verbal, que o sonho trouxe

a destruição da vida.

As imagens interagem com a letra da música e narram antecipadamente ao

leitor/telespectador a saga da protagonista Sol. Nutre-se - a partir dos termos “sombras”,

‘órfãos”, “restos”- que a saga do imigrante ilegal é desastrosa.

O terceiro verso prediz “nas cinzas da esperança” o que evidencia um sonho, uma

realidade destruída, abrandada, sem esperança, sem perspectivas futuras, em que mais se perdeu

do que se lucrou. O quarto verso “as brasas da chama que nunca apagou” deixa claro que há

esperança latente, há vida ainda, que nem tudo se perdeu e, se há vida, pode-se edificar o todo.

O quinto verso “venho inventar um novo país” muda a pessoa gramatical; esse narrador que

deixa a terceira pessoa, o processo de narração observadora, chama para si a responsabilidade

de reinventar o país, a partir dos pedaços, das sobras, a partir do amor e num tom

grandiloquente espera que os anjos possam deixá-lo sonhar novamente.

A letra da música se encontra claramente com as imagens que são transmitidas, havendo

harmonia discursiva entre elas; o sonho de amor proclamado pela letra da música é apresentado

sob a ótica do encontro entre os protagonistas da trama, no final da imagem.

Tem-se, na expressão do signo sonoro, o que Peirce chamaria de legisigno, ou seja, um

signo que se exaspera em um código aceito e aprovado, no caso o código da Língua Portuguesa.

Um Legissigno é uma lei que é um signo. Normalmente esta lei é estabelecida pelos

homens. Todo signo convencional é um legissigno (porém a recíproca não é verdadeira).

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Não é um objeto singular, porém um tipo geral que tem-se concordado com o significante.

Todo o legissigno significa através de um caso de sua aplicação, que se pode ser

denominada Réplica. (...) A Réplica é um Sinssigno. Assim todo Legissigno requer

Sinssigno.

(PEIRCE, 2008, p.52)

O signo sonoro fecunda-se através do som e da letra, ao observar-se o som, o ritmo da

música que se apropria dessa primeira vinheta, tendo o espaçamento ritmo que marcado pelo

compasso não exige muito a alteração de dedilhado, pois há uma variação em Mi menor, Lá

menor, Fá e Sol que deixa o som linear, calmo, que evidencia o infinito, o seguir, aberto, e

permite a voz se abrir em altos e baixos, graves e agudos, envolvente tom para uma história

épica, recheada de sonhos, como se pôde ver na letra em cifras, abaixo6.

Am Órfãos do sonho Brasil, F G Busquem os restos nas sombras da vida Am F Nas cinzas da esperança G Am As brasas da chama, que nunca apagou Em Am Venho inventar um novo país, F G Colar pedaços, de sonhos de amor Am Basta de escuro, F Espadas de fogo, Am F G Am Que os anjos nos abram os portões, do paraíso.

(http://www.cifraclub.com.br/milton-nascimento/orfaos-do-paraiso/ acesso em 24.09.2010)

O tom épico marcado pela voz do intérprete e pelo ritmo que se marca pelo som ao

fundo de um piano que traduz um espaço calmo onde se eleva o sonho e ainda pela lentidão de

um som que se amplia até atingir o ápice indumentado pela voz, colabora para a construção desse

cenário épico.

O signo sonoro explorado pela vinheta acopla-se ao ritmo do movimento da bolha de

sabão, que sobe e vai atingir o seu auge, estourar na imagem projetada por um beijo entre os

6. Cifras: A consulta feita no site www.cifraclub.com.br para explicar a lentidão e o ritmo explorado na vinheta pelo signo sonoro. (http://www.cifraclub.com.br/milton-nascimento/orfaos-do-paraiso/ acesso em 24.09.2010).

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personagens centrais e abrir o logo da novela.

Percebe-se, nesse discurso emoldurado, a criação de um Argumento, o qual focaliza o

itinerário da narrativa audiovisual que essa vinheta projeta. Fica claro que o sonho da personagem

Sol se desvia da conquista de riqueza em outro país, mas se projeta na conquista do ser amado.

Essa divergência entre o discurso da telenovela, que propunha retratar a saga do

imigrante ilegal, desvia-se, quando na vinheta de abertura, que mostra o estouro da bolha de

sabão – retrato da efemeridade do sonho – se dá no encontro de um beijo que marca o final da

saga.

O sonho então se desvia, esvai-se a idéia da autora e firma-se, através da vinheta a idéia

do diretor de núcleo, o que talvez explique os desentendimentos entre Glória Perez e Jayme

Monjardim, acarretando a aparição de outras vinhetas de abertura para a telenovela América.

2.3 – A segunda vinheta da telenovela América

A segunda vinheta da telenovela América segue um formato bem parecido com o da

primeira, porém as alterações trazem ao leitor/telespectador uma nova leitura da trama novelesca.

O primeiro momento-cena já aparece modificado, a cor azul da primeira vinheta dá

espaço ao amarelo e suas nuances. A bolha de sabão agora lembra mais uma bola de cristal, pois

aparece esfumaçada como se algo fosse ser montado, como se fosse formar uma imagem a ser

adivinhada.

Na primeira vinheta a efemeridade do sonho de Sol é claramente retratada. Na segunda,

percebe-se que o tom efêmero ainda persiste, porém se trata de um sonho não delineado, não

traçado com exatidão, como algo que não se pode prever.

Frame 68 Frame 69 Frame 70

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Frame 71 Frame 72 Frame 73

Nota-se então que o sonho claro transforma-se numa mistura de imagens de valores e

mantém-se vivo o tom do amarelo, ou seja, a significação da riqueza prevalece. O amarelo

também pode ser lido como declínio, ou seja, anunciador da morte.

Essa simbologia do amarelo traça uma nova leitura do sonho da protagonista Sol, um

sonho menos imaginativo do que o ditado pela primeira vinheta, um sonho perigoso que se

envolve pelo ato da ilegalidade.

Aqui, na segunda vinheta, embasado pela cor amarela, o sonho de Sol distancia-se da

trajetória do sonho fantasioso da busca em outro país pela sua realização, parece mais um sonho

que tem os pés no chão, ainda confuso e anunciador da tragédia.

A cor amarela é associada à riqueza, reveste-se aqui de presságio, o do declínio, pois

[...]se opõem o que provém do alto e o que vem de baixo. O campo da sua confrontação é

a pele da terra, nossa pele, que fica amarela – ela também – com a aproximação da morte.

[...] Ela é, então anunciadora do declínio, da velhice, da aproximação da morte.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.40/41)

Na leitura semiótica, a cor assume a condição de Ícone, pois assume uma relação dentro

do Objeto vinheta, pois sua presença modifica o Objeto. Conforme certifica Peirce,

Um Ícone é um signo que se refere ao Objeto que denota apenas em virtude de seus

caracteres próprios, caracteres que ele igualmente possui quer tal Objeto realmente exista

ou não. É certo que ao menos que exista um tal Objeto, o Ícone não atua como signo.

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Qualquer coisa, seja uma qualidade, um existente individual ou uma lei, é Ícone de

qualquer coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como seu signo.

(PEIRCE, 2008, p.52)

A imagem da protagonista Sol só aparece nessa segunda vinheta após o aparecimento dos

prédios envoltos pela coloração amarela. Isso mostra que o sonho da conquista é mais intenso do

que a projeção que a personagem faz desse sonho.

Há, logo, uma leitura voltada para o problema da imigração ilegal e o leitor/telespectador

toma ciência aqui da distância da ficção emoldurada pelo enunciador. O fato fica mais evidente

do que aquele que viverá o fato, ou melhor, o sonho.

A personagem Sol deixa de ser a sonhadora e passa a ser um sonho comum entre Sol e os

leitores/telespectadores, ou ainda a parcela de brasileiros que se acometem da imigração ilegal.

O foco não é mais uma personagem sonhadora, mas o sonho dessa personagem, daí a

aparição de Sol brotar em meio aos prédios, pois interessa nessa leitura o local e não quem sonha.

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Após a aparição de Sol na vinheta, as aves, gaivotas continuam a circundá-la. Esse vôo

das gaivotas ainda remete ao sonho. Interessante que a postura da protagonista já é distinta, não

há ombros elevados e nem a expressão de sorriso fica claro. Trata-se de um semblante que ainda

visualiza um futuro, mas um futuro menos romântico, pois traz em seu semblante agora um

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futuro duvidoso, incerto, com pouco indício de vitória e mais aceite do medo. O semblante da

protagonista gera um Sema, pois dá ao leitor/telespectador a essência da dúvida em relação ao

futuro do sonho, mostrando a possibilidade de um sonho sofrido. Para Peirce, 2009, “um Rema é

um Signo que, para seu Interpretante, é um Signo de Possibilidade qualitativa, ou seja, é

entendido como representando essa ou aquela espécie de Objeto possível”.

O sorriso já não mais tão aberto apresenta de forma linear que o sonho a ser conquistado

não é tão simples e não será tão fácil.

A sequência das imagens segue com o aparecimento do Ícone da religiosidade mostrado

na fivela do cinturão do peão Tião. A religiosidade ou fé popular será tratada ainda nessa

narrativa de forma particular, porém se valoriza mais a religiosidade do peão de boiadeiro, com a

fivela aparecendo em entremeio a uma festa de boiadeiro. Logo, pode-se ler que a fé de Sol não é

tão intensa quanto à de Tião. A imagem da vinheta constrói a idéia de que a fé é o contingente

principal para a vitória.

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Frame 83 Frame 84 Frame 85

A cor amarelo-avermelhada, que remete à poeira, à terra, contribui também para a

construção da idéia de sangue, de sofrimento. Segundo Chevalier e Gheerbrant,

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POEIRA, PÓ

Símbolo de força criadora e da cinza. A poeira é comparada ao sêmen, ao pólen. [...]

Inversamente, a poeira é às vezes signo da morte. Os hebreus botavam na cabeça poeira

em sinal de luto. (Josué, 7,6; Lamentação 2, 10; Ezequiel 17,30) e o salmista alude à

poeira da morte. (Salmos, 22,16).

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.727)

A vinheta, em sua totalidade, parece vir empoeirada, ou ainda tomada pela poeira.

As imagens trazem em consonância os dois sonhos, o sonho do peão Tião e o sonho de

Sol. Interessante que nessa vinheta a bolha de sabão se divide ao meio para a passagem de uma

boiada, remetendo à figura de Tião e à passagem da procissão religiosa mexicana em louvor à

Virgem de Guadalupe, fazendo uma relação com o trajeto ilegal escolhido pela personagem Sol.

Essas relações que, na primeira vinheta, tomavam ar de importância, agora na segunda vinheta

aparecem secundárias como algo que é comum, de pouca relevância para a narrativa audiovisual

que se apresentará.

Um dado a ser analisado, nessa segunda vinheta, é o encontro entre os protagonistas,

enquanto na primeira vinheta apareciam duas imagens realçando tal encontro, na segunda vinheta

aparece uma só.

Foi extraída dessa vinheta a imagem de Sol vestindo o chapéu de Tião, o que sugere que

esta já o tem na mente. Isso vai ao encontro do final da telenovela que mostra Tião e Sol optando

pela relação de amizade.

Nessa segunda vinheta, apesar de mantida a bolha de sabão não se faz referência à água,

ou seja, foram extraídas as imagens que traziam a presença desse elemento, o que desmitifica a

idéia de inconsciência, de sonho leve. A inexistência desse elemento traz uma outra leitura, a

idéia de que esse sonho é um sonho mais real, menos leve. Trava-se, nesse ínterim, a mensagem

do sonho difícil, mais próximo do real.

De onde surgiria então uma bolha de sabão? Não havendo água, surge somente para

incorporar a idéia de sonho.

Interessante que a falta desse elemento fecunda um Argumento claro de que, ao mesmo

tempo que tal sonho se mostra mais real, mostra-se mais irreal na intensidade com que surge uma

bolha de sabão sem água para a fundamentação da mesma. Tendo em vista que o Argumento

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projetado na teoria peirceana remete ao juízo, cabe, então, a indagação sobre a fecundação da

bolha de sabão, ou ainda da incoerência na constituição da segunda vinheta.

Um Argumento é um Signo que, para seu Interpretante, é Signo de lei. [...] Um juízo é um

ato mental pelo qual o julgador procura impor-se a verdade de uma proposição. Equivale

em grande parte ao ato de afirmar a proposição, ou ato de comparecer diante de um

notário e assumir a responsabilidade formal dela, com a diferença de que estes atos são

realizados para afetar terceiros, enquanto que o juízo só objetiva afetar aquele que o

formula.

(PEIRCE, 2008, p.53)

A segunda vinheta da telenovela América encerra-se sob os moldes da primeira, ou seja,

termina com o encontro entre Sol e Tião num momento crepuscular e adota o mesmo logotipo.

Nela as imagens estão mais emaranhadas, o que talvez caracterize um sonho confuso,

diferentemente da primeira em que as imagens aparecem sob a luz da clareza, da nitidez. Esse

aspecto que envolve clareza e nitidez traz ao leitor/telespectador uma leitura sobre o sonho das

antigas histórias, dos contos de fada em que uma donzela é envolvida por seu sonho e em seu

sonho há um príncipe encantado. Trata-se do sonho representado em um Legissigno estabelecido

pelas leis sócias discursivas. Já o sonho emaranhado, não nítido, traduz um sonho novo, mais

real, menos saboroso, um sonho que tem em parte algo real, cria-se então um Argumento, ou seja,

um Signo de lei para seu Interpretante.

O logotipo da segunda vinheta permanece o mesmo da primeira, uma ponte que liga a

letra “a” inicial da palavra “América” com a letra “a” final, estabelecendo assim uma ponte entre

os países, entre as Américas, ponte esta traçada pela personagem Sol.

Tem-se, pois um Legissigno representado pelo signo “América”, na linguagem verbal, e

um Rema que é a possibilidade da ligação entre as letras “a” estabelecerem a ponte, a ligação,

entre as Américas.

A ponte prescreve dois simbolismos: o da passagem e o da viagem iniciatória. Esses dois

simbolismos se fundem, pois, ao iniciar uma passagem, inicia-se um outro percurso, que se preza

cheio de purificações, de provações.

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Numa leitura intertextual e contextual do texto da vinheta e do enredo da telenovela que

ela anuncia, liga-se a passagem de Sol para outro país com a idéia de aprendizado, e os desafios e

encontros, gerados pelas dificuldades da travessia ilegal levam a personagem ao encontro com a

fé, com o mundo espiritual, por meio da crença mexicana em Nossa Senhora de Guadalupe e de

Nossa Senhora Aparecida.

O diálogo intertextual enlaça a letra da música, quando se fala em orfandade do paraíso,

tendo em mente a teoria catolicista sobre o Paraíso, lugar de paz. Sol busca esse Paraíso em outro

país e percebe-se órfã dele.

Poder-se-ia dizer que a ponte estabelecida pelo Legissigno também seria a ponte entre a

realidade e o sonho. Os simbolismos sobre o Legissigno “ponte” encerram-se nas afirmações de

Chevalier e Gheerbrant, como aquilo que

passar de uma margem à outra, é um dos mais difundidos universalmente. [...] de estado

humano aos estados supra-humanos [...] do sensível ao mundo supra-sensível [...] Notam-

se, portanto, os dois elementos: o simbolismo da passagem, e o caráter frequentemente

perigoso dessa passagem que é o da viagem iniciatória. [...] As tradições do Islã, os

compêndios de Hadith descrevem a travessia da Ponte, ou Sirat, que permite acesso ao

paraíso passando por cima do inferno.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.729/730)

Frame 86 Frame 87 Frame 88

Há uma diferença interessante entre a exibição do logotipo da primeira vinheta e o da

segunda, porque, enquanto na primeira o sol aparece pouco reluzente, evidenciando o crepúsculo,

sua fase final; na segunda vinheta, a luminosidade do sol crepuscular acompanha a vinheta com a

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palavra América, como se o crepúsculo, o pôr-do-sol fosse ocasionado pela América, ou seja,

pela trama América.

Os raios solares penetram as letras, não há um brilho opaco como na primeira vinheta,

mas um brilho vívido, eloquente, cheio de vida e não melancólico.

Através desse indício, pode-se fazer uma leitura da novela mais ácida, mais movimentada,

mais reluzente, tonificando a condição de narrativa audiovisual não acintada pelo tom da

melancolia.

2.3.1 – O signo sonoro da segunda vinheta

O signo sonoro da segunda vinheta da novela América segue os mesmos passos da

primeira: tom lento, com acordes e letras iguais, porém muda o intérprete.

A primeira vinheta trazia a voz de Milton Nascimento entoando a música e dando à

mesma um tom épico, imaginativo. Já a segunda vinheta perde um pouco a altissonância da voz,

pois não é mais interpretada mais por Milton Nascimento e sim pelo grupo Sagrado Coração da

Terra.

Assim, ao ouvir a segunda vinheta, percebe-se um vínculo maior com o sonho real,

descaracterizando o sonho idealizado proposto na primeira. Incrível, como na percepção sonora,

o sentido da vinheta se altera, transforma-se, arranja-se de uma nova forma. A música-tema

também participa do processo de caracterização de uma cena, no caso de uma novela, pois como

Righini argumenta,

O tema de abertura também é utilizado no encerramento [...] pretende-se que nela estejam

as características da trama geral da novela, para que o público possa absorver o enredo ou

a trama principal que está sendo desenvolvida. É a vinheta de identificação, utilizada nas

pausas para início e término da propaganda comercial [...]

(RIGHINI, 2004, p. 121/122)

Além da marcação de entrada e saída da novela, a música de abertura também pode ser

caracterizadora da narrativa-audiovisual, que irá ser exibida,

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Tema de abertura – Muitas vezes, é a púnica música da novela que se encomenda, pois

exerce função fundamental. Deve oferecer o clima da novela e, ainda, em uma única

canção (pela letra, mas também pelo estilo musical, orquestração, arranjo e ritmo), dizer

ao público do que se trata a trama principal, o enredo-chave da novela, procurando dar

pistas e envolver o leitor/telespectador. Além, é claro, de funcionar como alavanca de

divulgação da telenovela e vice-versa.

(RIGHINI, 2004, p.125)

Com a troca do intérprete, da voz que emana a telenovela, a vinheta trouxe ao

leitor/telespectador uma nova proposta da narrativa-audiovisual, talvez de quebrar o tom

melancólico que a anterior efetivava, talvez de buscar uma saga da personagem Sol com mais

vigor, mais real, mais próxima do tema que a novela pretendia abordar.

Assim, a alteração foi feita com intuito de esclarecer ao leitor/telespectador que algo havia

mudado.

A alteração marcava, de certa forma, os desencontros em relação à autora e diretor, pois a

segunda vinheta é alterada, buscando uma releitura do sonho, trazendo um sonho mais real,

focando o tema da ilegalidade, o que difere do ponto de vista do diretor que, através de planos de

cena mais fechados, tinha como peculiaridade de seu trabalho despertar a emoção no

leitor/telespectador.

2.4 – A terceira vinheta da telenovela América

2.4.1 – Introdução: comentário descritivo da terceira vinheta

Totalmente diferente das anteriores é a terceira vinheta que marca a segunda fase da

novela. Percebe-se nela uma mudança radical a começar pela cor. Trata-se da abertura com

predominância da cor azul e que tem dois planos com imagens nítidas, totalmente adversa das

precedentes as quais traziam imagens nebulosas.

As imagens das antigas vinhetas aparecem no interior das letras da palavra América,

espelhadas como se refletindo o passado. Há uma inversão nessa vinheta, pois, enquanto as

anteriores refletiam a efemeridade de um sonho futuro possível ou não, essa terceira vinheta

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reflete o passado, ou seja, no espelho das letras só há passado e em seu sobre plano, ou imagem

de fundo, fixam-se imagens da cidade de Miami nos Estados Unidos.

A música da vinheta, ou música de abertura, também está modificada. Em um tom mais

frenético, bem distante do melancólico emoldurado nas antigas vinhetas, a terceira vinheta traz a

música Soy loco por ti América na voz de Ivete Sangalo.

2.4.2 – Análise semiótica dos elementos que compõem a terceira vinheta

2.4.2.1 – O plano de conjunto da vinheta

A terceira vinheta apresenta o que na linguagem cinematográfica chama-se de Plano de

Grande Conjunto ou Plano Geral.

O Plano de Grande Conjunto é o plano cujo enquadramento abrange vastos ambientes:

cidade, bairro de cidade, rua, praia, deserto, bosque, praça, etc. As personagens parecem distantes

do nosso olhar. Tal plano é utilizado para uma significação social, quando põe em relevo a

relação de uma personagem com outras, com grupos, com a massa, com classes com profissões,

integrando o homem no mundo e na sociedade. Os planos se agrupam para a formação de cenas e

as cenas para formar sequências.

Na terceira vinheta, o plano de grande conjunto, que está ao fundo da imagem, apresenta a

cidade de Miami e, nos reflexos das letras da palavra América, o plano grande de conjunto reflete

a história de Sol e Tião, cenas que ilustraram as antigas vinhetas.

Frame 89 Frame 90 Frame 91

Os reflexos mostram as localidades por onde passaram Sol e Tião.

Essas cenas moldadas por tais planos constroem a idéia a partir do Legissigno “América”,

de que os personagens andaram, traçaram seu trajeto, apresentando ao leitor/telespectador a

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América, seriam quase novos “Colombos” descobrindo a nova América: a América que trata de

temas como imigração ilegal, travessia ilegal, bissexualismo, deficiência visual, cleptomania,

ninfomania, mentira obsessiva, ambição entre outros norteadores do enredo da narrativa

audiovisual.

Os planos grandes de conjunto – tanto de fundo quanto os refletidos nas letras - também

enfocam a proximidade entre as Américas, mostrando as características comuns entre os países

atravessados por Sol e por Tião, como a festa de peão de rodeio e as diferenças abismais

enfocadas pela legislação em relação à imigração.

Outro dado fornecido pelos planos de conjunto é a relação geográfica, ou seja, as

características físicas urbanas entre cidades como Miami e Rio de Janeiro.

Os planos de conjunto estabelecem o foco comparativo para gerar um Argumento que se

transforma em lei aos olhos do leitor/telespectador, que passa a entender que não existe a

imigração ilegal que é real, mas existe a vivida por Sol; não existe Miami e sim um simulacro

sobre a cidade de Miami criada pelo enunciador que será lei para o leitor/telespectador, ou

melhor, haverá o valor de troca apreciado por Eco em que se substitui a Miami real pela Miami

enunciada na vinheta da telenovela América.

Esse discurso nascido sob o Signo de lei – Argumento – é o grande capturador dos olhos

do leitor/telespectador, pois o que se enreda lei lhe parece, fabrica a crença, gera valores, através

de um discurso simulacro, um arcabouço criado que faz da ficção realidade aos olhos

embevecidos de quem é fagocitado, rege-se aqui o poder discursivo dentro do espaço midiático

tratado por Félix,

O poder do discurso subjaz em mecanismos infinitesimais, quase que imperceptíveis e

penetra o mais fundo possível no sujeito que sequer se dá conta da imposição deste

dispositivo anônimo de normatização. É a norma; é normal. É este mecanismo que as faz

revelar publicamente suas intimidades. São os mesmos meios de poder sobre a palavra da

reprimida sociedade vitoriana que, agora diametralmente oposta, impõe a obrigação de

falar de sexo.

Estamos submetidos a este poder midiático, também no sentido em que ele é lei e produz

o discurso que decide, transmite e reproduz os efeitos de “verdade”. Somos julgados,

condenados, classificados, obrigados a desempenhar papéis e destinados a um

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determinado modo de viver, de desfrutar a sexualidade e de morrer em função dos

discursos que trazem consigo efeitos específicos do poder. Expôr o indivíduo, explicitar e

banalizar sua intimidade: são as palavras de ordem na atual Idade Mídia.

(FÉLIX, 2008, p.1)

As locações dos planos de conjunto parecem montar o continente americano, ligar as

Américas, montar o mapa do continente através da travessia de Sol e Tião. Cria-se, desse modo, a

América, faz-se um novo trajeto, não o de Colombo, mas o trajeto da imigração ilegal, do

bissexualismo, da deficiência visual, da ambição.

Os planos de conjunto expressos no Legissigno e no fundo desse Legissigno traduzem

uma nova mensagem, uma nova rota para a descoberta da América.

2.4.2.2 – As cores predominantes da vinheta

A vinheta tem, em sua essência, a predominância da cor azul. Os tons de azul fazem a

união entre o céu e o mar. As nuances dessa cor são, para a interpretação do leitor/telespectador a

visão do infinito, da liberdade. Juntamente com as nuances do azul insere, na vinheta, o prateado,

ou seja, a cor prata em forma de brilho, de luminosidade e, nos entremeios desse prata azulado,

surge um colorido, aquilo que seria uma referência ao vivido.

Frame 92 Frame 93 Frame 94

O azul é o caminho do infinito onde o real se torna imaginário, conforme escreve

Chevalier e Gheerbrant para quem

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Imaterial em si mesmo, o azul desmaterializa tudo aquilo que dele se impregna. É o

caminho do infinito onde o real se torna imaginário. Acaso não é o azul o pássaro da

felicidade, o pássaro azul inacessível embora tão próximo? Entrar no azul é um pouco

fazer como Alice, a do País das Maravilhas: passar para o outro lado do espelho.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.107)

Frame 95 Frame 96 Frame 97

A prata, representada pela cor prata, segundo o mesmo autor, sob a ótica da ética, é o

objeto de todas as cobiças, representa o dinheiro.

Mas a prata, no plano da ética, simboliza também o objeto de todas as cobiças (fr. Argent

= dinheiro), assim como as desgraças por ele provocadas e o aviltamento da consciência: é

o aspecto negativo, a perversão de seu valor,

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.740)

A combinação dessas cores traduz o que o enredo da segunda fase da telenovela abordará

ao leitor/telespectador. A personagem Sol, que sonhava com a felicidade e a riqueza,

atravessando a fronteira, indo a outro país, - no caso, os Estados Unidos, particularmente a cidade

de Miami, situa-se na vinheta a partir da coloração azul, refletida no plano grande de conjunto de

base, ao fundo. Toda a excelência da cor azul e suas nuances mostram a cidade de Miami, o que

numa leitura, a partir do signo da cor, transmite a idéia de infinitude e felicidade.

A passagem, a travessia para esse universo de felicidade, idealizado pela protagonista é

marcado também pela cobiça, pelo enriquecimento. Sol queria sair do Brasil para conquistar um

novo padrão financeiro e é, nesse momento da análise, que se enxerga o Legissigno “América”

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grafado com prata, com brilho que se traduz sob a visão da ética. O legissigno gera um diálogo

intertextual com as lições de moral das fábulas antigas, reluzidas no ditado popular: “dinheiro não

compra felicidade”. Logo, há um diálogo pertinente entre a vinheta e o enredo da telenovela, que

narra a vivencia de grandes e inimagináveis problemas vividos pela personagem-título para alçar

seu sonho, sua felicidade de riqueza material; os problemas e o sofrimento sedimentam o ditado

popular e estereotipam a lição de moral das fábulas.

A vinheta, através do signo da cor, no caso, prata e na constituição da ponte que liga os

dois “as” do legissigno América infere ao leitor/telespectador o preço de um sonho esboçado em

bens materiais e legitimado pela travessia ilegal.

Vê-se, na interpretação dos símbolos, que o azul é o sonho da felicidade/ riqueza material

– Miami – e o prata é a tradução da cobiça pelo sonho material, a representação do dinheiro que

traz desgraças e o padrão da conquista vil, sem valor. Através da leitura da simbologia do signo

da cor, cria-se então um Argumento que evidencia ao leitor/telespectador o que a trama

evidenciará na telenovela.

Há algo interessante nessa terceira vinheta que evoca ainda o signo da cor. A imagem da

religiosidade, no caso a fivela do cinturão de Tião em que aparece a imagem icônica de Nossa

Senhora Aparecida, faz um misto com a vitória em uma competição de Festa de Rodeio e a

crença, a fé.

Frame 98 Frame 99 Frame 100

Trata-se de uma leitura pouco linear, que embasada nos preceitos éticos da cor prata,

mistura a fé com a cobiça. A montagem dessa imagem avilta os preceitos de fé do brasileiro,

pois, se a prata na ética é basicamente a tradução da cobiça, tendo em vista os preceitos do

catolicismo, a cobiça é um dos pecados capitais, o qual foi destacado por Moisés, no antigo

Testamento - nos Dez Mandamentos, no livro do Êxodo, 20, versículo 17: “ Não cobiçarás coisa

alguma que pertença a teu próximo”.

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Ao mesmo tempo em que se entrelaça a religiosidade e a cor prata, esse signo da cor

retoma para o catolicismo um outro significado que, segundo Chevalier e Gheerbrant, (2009:

739), seria, “ Na simbólica cristã, representa a sabedoria divina, assim como o ouro evoca para os

homens o amor divino (PORS, 57)”. Importante salientar que, nesse momento, a cor prata, apesar

de pertencer, de estar dentro do plano grande de conjunto, está nas mãos de Tião, o protagonista

que não possui o mesmo sonho de Sol, ou seja, o enriquecimento para esse personagem está

vinculado à ação da montaria, da competição, do esporte, o que modifica toda a interpretação do

signo da cor.

A semiose propagada pela construção do plano de conjunto e pela evocação da cor prata e

do personagem masculino, Tião, apresenta um novo contexto, parece um aspecto metonímico da

parte pelo todo, como se dentro do todo, que é o sonho de Sol, o signo marcado pela cor prata é

referenciado no contexto ético, não havendo competição nesse caso, somente desejo de dinheiro;

enquanto à parte, intrínseco nesse sonho, aparece Tião que projeta na fé o sonho, não havendo

cobiça, apenas um esforço de vitória em uma modalidade esportiva.

O processo metonímico também pode ser visualizado na contextualização do sonho de

Sol, pois Tião é parte desse sonho, ou melhor, aparece no sonho da protagonista, que é o todo.

A abrangência contextual caracteriza, de forma lícita, os personagens pois, a vinheta dá ao

leitor/telespectador o perfil dos personagens centrais da trama. Enquanto Sol é sonhadora e

materialista e visualiza em seu sonho o ganho material cobiçoso, Tião materializa seu sonho

pelos caminhos da fé. Tem-se um Tião também sonhador, mas de forma linear, sob o preceito da

cristandade, quase um cavaleiro medieval, das novelas de cavalaria, que age sob a ótica da

religião.

Interessante ressaltar que a leitura de tais signos e da semiose por eles enlaçada

transforma a vinheta não mais em uma anunciadora do programa, mas ela oferece muito mais, a

partir de sua micronarrativa, ela dá ao leitor/telespectador um prospecto do que o mesmo irá

assistir, transformando-se num roteiro e fazendo do seu ambiente midiático não mais um

anunciador de falsos produtos, pois, não se pode dizer que o leitor/telespectador foi enganado

pela televisão, sendo que o produto vendido estava anunciado linearmente no discurso da vinheta

de abertura, não houve, portanto um caso de propaganda enganosa.

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2.4.2.3 – O discurso do reflexo no Legissigno

Como visto, a vinheta traz dois planos grandes de conjunto, sendo um de fundo e um dado

internamente nas letras do Legissigno América.

Diferentemente das vinhetas anteriores, a terceira vinheta da novela América não se

apresenta mais em uma bolha de sabão ou bola de vidro, ela agora vem em jogos de planos e

visualização e movimentos do Legissigno América.

É nesse ambiente que o discurso toma outra dimensão, registrando a mudança contextual

da narrativa audiovisual para o leitor/telespectador. Se há o reflexo, há a presença do espelho. Na

vinheta, o reflexo nas letras da palavra América, é o espelho da imagem do sonho de Sol. Esse

sonho refletido traduz não mais sonhos, mas potencialidades vividas, ou seja, a terceira vinheta

não trata mais do sonho de ir a outro país, mas da realidade de estar em outro país, pois segundo

o enredo, a protagonista não luta mais para chegar a Miami, mas está em Miami.

Frame 101 Frame 102

Observa-se que no reflexo das letras, Sol já está nos Estados Unidos, ou seja, o sonho está

real, logo não há mais bolha de sabão, há um espelho da realidade.

A simbologia do espelho remete à revelação da verdade, pois o legissigno espelho tem

etimologicamente seu significado preso a olhar a estrelas, que se enraíza nos estudos dos astros,

dentro da ordem do conhecimento. O reflexo do espelho reflete a verdade, a sinceridade, a

consciência, sendo o símbolo do conhecimento, da sabedoria e também da verdade ilusória.

Como aduzem Chevalier e Gheerbrant,

Speculum (espelho) deu nome à especulação: originalmente, especular era observar o céu

e os movimentos relativos das estrelas com um espelho [...] hoje designam operações

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altamente intelectuais, enraízam-se no estudo dos astros refletidos em espelhos. Vem daí

que o espelho seja o suporte de um simbolismo extremamente rico dentro da ordem do

conhecimento. O que reflete um espelho? A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração

e da consciência [...] Esse papel é utilizado nos contos iniciatórios do Ocidente, no ritual

das sociedades secretas chinesas [...] O espelho, do mesmo modo que a superfície da água,

é utilizado para a adivinhação, para interrogar os espíritos. Sua resposta às questões

colocadas se inscreve por reflexo.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 393/394/395)

É dado ao leitor/telespectador não mais a projeção do sonho em uma bolha de sabão ou

bola de cristal, mas o reflexo do vivido, o relato daquilo que é verdade, que a personagem Sol

viveu em sua peregrinação, em sua travessia ilegal.

Toma, então, posse o leitor/telespectador na terceira vinheta de que o sonho se transforma

numa realidade dura, difícil, adversa ao sonho.

Interessante é que esse sonho transfigurado em realidade através do reflexo está dentro de

um Legissigno, e vale lembrar que, pela teoria peirceana, um Legissigno “ é uma lei que é um

signo. Normalmente esta lei é estabelecida pelos homens.” Logo, cria-se uma lei sobre o tema da

travessia ilegal. O discurso, emoldurado pelo enunciador, mostra ao leitor/telespectador e prevê

as consequências desse ato e, prescrevendo-o, cuida-se de trazer uma moral, como nas fábulas ao

leitor/telespectador, de que a ilegalidade acarreta profundas decepções ao sonhar.

2.4.2.4 – Um eco das fábulas na terceira vinheta

A terceira vinheta da novela América enfoca, em seu discurso, alguns itens que trazem à

nossa mente as histórias dos contos de fadas.

Frame 103 Frame 104

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Um dado interessante é a presença do espelho evidenciado nas letras da palavra América.

O reflexo traz à tona toda a história não mais sonhada, mas vivenciada por Sol. Se, usando a troca

de valor expressa por Eco, que consiste em um processo simbólico de cunho semiótico que se

perfaz de valores materiais/físicos até valores de uso, Sol é uma princesa sonhadora, o espelho da

madrasta da Branca de Neve que vê tudo, também vê o todo da vida da personagem Sol. Logo, o

espelho mágico é um signo que se constrói nas letras da palavra América, havendo um quê das

fábulas na vinheta.

Frame 105 Frame 106

Outro dado fabulesco, que se visualiza na vinheta, é a presença do cavaleiro também

refletido no espelho, no caso Tião.

Nos contos de fada, a presença do príncipe vindo ao encontro da princesa montado em um

cavalo é algo muito comum, afinal, Branca de Neve é acordada de seu sono, que seria eterno, por

um beijo do príncipe que desce de um cavalo.

Frame 107 Frame 108

Não se pode deixar de observar que a imagem de Sol debruçada num alto prédio, também

refletida no espelho, traz à mente instantaneamente a imagem de Rapunzel, a princesa que foi

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enclausurada em uma torre e que jogava suas tranças para encontrar-se com o príncipe, seu

grande amor.

Nota-se que a vinheta reabre um diálogo intertextual dos contos de fada, cuja existência

leva o leitor/telespectador a crer que mesmo a narrativa audiovisual que busca tratar de temas tão

sérios, como: bissexualismo, imigração ilegal, ambição desmedida, não ignora o lado ingênuo e

romântico dos personagens, ou melhor, procura não se abster de dialogar com os valores talhados

nos contos de fada, valores esses que dialogam diametralmente com o teor da terceira vinheta que

mostra que os reflexos vividos são muito mais do que experiências e que o sonhar pode não ser

tão belo quanto os sonhos preveem.

2.4.2.5 – O signo sonoro: a música de abertura da terceira vinheta de América

Totalmente diferente das outras vinhetas, a terceira vinheta traz um ritmo cheio de

balanço, de alegria, um ritmo que traz balanço e vida, um ritmo característico do sangue latino

em que a dança e a agitação traduzem a garra e a sede de viver, conferindo uma nova cara à

abertura da novela América.

A sonoplastia é fundamental! Além do vídeo, você mexe com a sensibilidade das pessoas.

Você dá uma cutucada se a música for bonita; se a cena ficou bonita, se você coloca uma

música ela fica mais bonita.

(RIGHINI apud CHALITA, 2004, p.110)

Interpretada por Ivete Sangalo, a música Soy loco por ti América traz em seu título um

caráter ambíguo proposital, linearizado pelo uso de Legissgno, a partir de seu eixo sintagmático

que propõe um carinho pela América, pelo continente americano e um carinho também pela

novela América. Esse trocadilho, a partir do Legissigno “América”, gera no leitor/telespectador

um carinho, um amor pela novela América e desenvolve um orgulho nesse leitor/telespectador de

ser americano, de estar nas Américas. Afinal, a letra da música declara esse amor à América logo

nos primeiros versos, quando ressoa “Soy loco por ti, América. Soy loco por ti, amore”. Os

vocativos, América e amore, possuem dentro do sintagma frasal algo em comum e ambos são os

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aspectos da loucura da primeira pessoa que enuncia o discurso; América seria o Amor e o amor

seria a América, logo amor e América possuem o mesmo valor dentro desse discurso. Trata –se

de um Legissigno Indicial que indicia um amor a partir da palavra, que é expressão escrita, que

sendo um vocábulo reconhecido em seu uso é uma lei verbal estabelecida pelo homem.

A música usada na terceira vinheta de abertura da novela América é uma das letras mais

representativas do Tropicalismo, movimento cultural brasileiro que surgiu sob a influência das

correntes artísticas de vanguarda e cultura pop nacional e estrangeira, como o pop rock, e o

concretismo. Uma característica do Tropicalismo era traduzir todo tipo de referencial estético seja

erudito ou popular, incorporando à estética pop.

A vinheta aproveita-se da peculiaridade da música escolhida e une-se ao preceito da pop

art mostrando a cultura estrangeira nas passagens de Sol em cenas refletidas dentro das letras da

palavra América, como se dissesse que dentro da América cabe tudo, todas as culturas, inclusive

as populares, no caso, as festas de peão de rodeio e a fé popular bem como a dança do pau de

fita em território mexicano.

A letra, que traz uma mescla com estrofes com duplo código linguístico, ou Legissignos

que alternam nas estrofes a língua portuguesa e língua espanhola, indumenta o Tropicalismo e

mostra os passos, o trajeto de Sol pelo México onde se fala o espanhol, castelhano.

Não se trata de uma escolha aleatória da música-tema da vinheta, apesar de se ter aplicado

uma música incidental, como afere Righini:

Trilha sonora incidental – Constitui-se de: a) temas com variações; b) trechos livres; c)

passagens e d)música em cena.

[...]

Tema de abertura – Muitas vezes, é a única música da novela que se encomenda, pois

exerce função fundamental. Deve oferecer o clima da novela e [...] dizer ao público do que

trata a trama principal, o enredo-chave da novela, procurando dar pistas e envolver o

telespectador.

(RIGHINI, 2004, p.124-125)

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A música da vinheta de abertura congrega e dialoga diretamente com a narrativa

audiovisual e com as imagens que a vinheta esboça.

A letra traz, em sua primeira estrofe, o amor pelas cores, pela mulher latina que traz em

sua bandeira essas cores e que, na verdade, não é uma mulher e sim a América Latina que

apaixona por suas cores.

Há uma sonoridade que gera, em Língua Portuguesa, uma nova mensagem nos versos:

“ Que su nombre sea Marti,/que su nombre sea Marti”. Observa-se que, enquanto no linguajar

castelhano se nomeia uma mulher, Marti, a elisão entre o “sea” somado ao som ‘Marti”,

decodifica-se em Língua Portuguesa uma nova mensagem e parece, através da sonoridade, ler-se

“ e seu nome será amar-te”. O apanhado aportuguesado indica que o nome é amor, será amor, um

amor pelas Américas.

A segunda estrofe da música é basicamente uma descrição da geografia física da América

Latina, pois acrescenta a um sorriso de nuvens que redesenha rios, canções e medos e quer,

conhecer em fogo ardente, conhecê-la. Reabre-se um diálogo entre Sol e o eu-lírico da música

pois, ambos têm um fogo por conhecer a América, fogo bem colocado, podendo-se entender a

agitação, a ansiedade e toda a impaciência do sangue latino e da imaturidade da personagem.

A letra vai tecendo toda uma história entre um homem e uma mulher de sangue latino

americano, mas além de evidenciar história, esse trajar de forma personalizada o amor à América,

a música vagarosamente vai misturando as culturas, primeiro uma estrofe em castelhano e outra

em português, mantém o refrão em Língua Portuguesa e, aos poucos, vai alternando nas estrofes

os versos castelhano, português, português, castelhano, deixando claras a mistura das culturas, a

metamorfose cíclica, a mistura irmã que envolve os países latinos americanos e suas culturas e,

acima de tudo, a mistura dos capítulos da novela que ora estarão no México, ora em Miami e ao

mesmo tempo vinculados ao Brasil, devido à origem dos personagens e suas relações familiares.

Esse jogo idiomático, nos versos da música, mostra através de um Legissigno, o que os

planos grandes de conjunto já mostravam um lá e cá, estar aqui em Miami e lá no Brasil, estar

aqui no México, no Brasil e em Miami, daí os reflexos mostrando que a história vivida estava no

México em vivência (reflexos), mas em Miami em sonho ( plano de fundo/ imagens de fundo),

havendo logo a partir de um sincretismo linguístico signos que convergem para formar um

discurso uníssono.

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A vinheta disseca, criando uma micronarrativa, o que será contado na telenovela, no caso

o que será contado na segunda fase da telenovela em que tal vinheta se prende e configura através

de um sujeito coletivo.

2.4.2.6 – O logotipo da terceira vinheta

Mantendo a mesma letra, mas oportunizando uma mudança na cor, o logotipo da terceira

vinheta da telenovela América traduz a mudança de perfiz da segunda fase da trama.

Um misto das cores azul, prata e nuvens no céu insere-se no Legissigno “América”. Há a

ponte que liga uma letra “a” a outra letra “a”, indiciando uma ponte entre as Américas, entre os

países americanos.

Frame 109

Sobre as cores prata e azul, muito já foi dito anteriormente, o que seria lugar-comum

relatar novamente. Sobre a ponte que liga os “as” também já foi enfocado, ao analisar-se o

logotipo da primeira vinheta.

O que se tem nesse logotipo é uma visão paradisíaca, ou seja, enquanto nos logotipos das

vinhetas anteriores, o chegar à América se fechava em noite, afinal a imagem crepuscular remetia

ao término do dia, nesse logotipo, a imagem foca a luz do dia, possivelmente uma manhã ou uma

tarde, onde se faz presente a claridade solar em sua total luminosidade, deixando o Legissigno

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“América” nas alturas, como se trouxesse ao céu, à visão do infinito do azul, a imaterialidade do

azul que suaviza as formas do Legissigno, lançando a ideia constituída de lei para o infinito, ou

seja, a ideia de chegar ao paraíso América é infinita, o sonho é infinito e materializado no

Lessigno América, que se torna, nesse ínterim, um Rema, pois é uma possibilidade qualitativa,

uma representação possível do Objeto - sonho.

Assim a cor azul, ao desmaterializar o sentido da palavra América, que surge como um

objeto a ser alcançado, como um sonho que deixou de ser sonho e passou a ser uma realidade

amarga circundante, tendo em vista que a terceira vinheta remete à segunda fase do enredo da

novela, em que a protagonista já reside de forma ilegal em Miami e vive a decepção de seus

sonhos. Então a América sonhada está desmaterializada, suavizada

Aplicada a um objeto, a cor azul suaviza as formas, abrindo-as e desfazendo-as. Um

asuperfície repassada de azul, já não é mais uma superfície, um muro azul deixa de ser um

muro. Os movimentos e os sonos, assim como as formas, desaparecem no azul, afogam-se

nele e somem, como um pássaro no céu.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.106/107)

O plano de fundo do logotipo da terceira vinheta traz uma vista da cidade de Miami,

percebendo-se ao fundo os prédios, a cidade dos sonhos de Sol, o paraíso onde se realizariam

todos os sonhos da protagonista e, por ironia ou não, esse paraíso lhe traz a prisão.

Interessante é que nesse aspecto de plano de fundo, a imagem do logo mostra uma

imagem com pouca nitidez. Essa deformidade da imagem traduz-se em um índice do paraíso, ora,

num Rema, pois propicia alguma interpretação de visualizar a imagem como um paraíso, levando

em conta a capacidade legissígnica de que paraíso é um lugar bom, ou ainda, a condição cristã

que indica o paraíso como Canaã, a terra prometida, ou ainda como especifica Chevalier e

Gheerbrant:

[...]os desejos de nos encontrarmos sempre e sem esforços no coração do mundo da realidade e da

sacralidade, em suma o desejo de superar de uma maneira natural a condiçao humana e de

recuperar a condição divina; um cristão diria a condição anterior à queda. Um mago moderno,

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olhando o futuro mais que o passado diria: a condição sobre-humana.Tal era a situação de Adão no

paraíso terrestre: um estado de graça sobrenatural.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.684)

Porém, a cidade, os prédios estão na sombra, pouco nítidos e numa metáfora, poder-se-ia

dizer que Sol mordeu a maçã, expressando que Sol se deleitou em seu desejo, atingiu o paraíso e

dele foi expulsa, assim como Adão, que se rendeu ao seu desejo, mordeu a maçã e o pecado

original se fez. Ironia ou não para a protagonista da novela, o pecado original se fez, o desejo

pela riqueza em outro país se guarnece nas sombras, oculta algo que se revela.

Novamente, vemos no logotipo da vinheta um aparato para os olhos do

leitor/telespectador que vislumbra o que o enredo tratará.

Percebe-se, então, com a guinada da trajetória da personagem, que, com a mudança de

foco da visão da autora, fez-se necessária a mudança da vinheta.

Dessa forma, lê-se então que a autora Glória Perez tinha em mente um enredo que não se

comungava com aquele mentalizado por Jayme Monjardim, diretor geral e de núcleos, logo a

necessidade de mudança e a inadaptação de ambos, porque, usando as palavras de Monjadim,

“novela só sobrevive se o diretor e o autor estiverem 100% de acordo.”

Fica claro que a vinheta expressa, de forma direta, aquilo que vai aquém e além da trama.

É possível dizer que a semiose, criada a partir dos signos e da linguagem sincrética da televisão

expressa na vinheta, gera o discurso do enunciador e dá ao leitor/telespectador muito mais do

programa do que sua vã imaginação pode esperar. Pois como diz Lima (2007,p.86/89) “a

racionalidade não representa a linguagem da TV, um veículo frio que só conquista grande público

quando consegue criar vida e emocionar. [...] mas que sabe atingir o imaginário [...] Todos os

problemas acabam quando começa a novela.”

A relação de uma abertura não se esgota, portanto na trama, mas finaliza pela trama.

Fecunda a imaginação do leitor/telespectador, deixa claro que há mais mistérios nas narrativas

audiovisuais do que aquilo que se projeta em seus capítulos, e, nesse interim, que a vinheta deixa

de ser somente anunciadora do programa que irá ao ar, já que ela ultrapassa o limite intertextual

com a ficção esboçada, transcende e evidencia um outro ambiente que permite ver a ideologia

dos autores e diretores.

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No caso da transformação da vinheta de América, esse dado fica bem evidente e incapaz

de ser questionado, pois a vinheta se adequa à trama que se adequa à visão daquele que a

dimensiona.

Tem-se logo a leitura da ideologia do enunciador, do ponto que o mesmo quer enaltecer,

da mensagem subliminar que tal sujeito esboça a partir da história de Sol.

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CAPÍTULO III

Análise semiótica da vinheta do Jornal Nacional

Fonte: Youtube

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3.1 – Um traço do passado

Fig. 03

O Jornal Nacional ou JN entrou no ar em 1º de setembro de 1969 e era apresentado por

Cid Moreira e Hilton Gomes, sendo o primeiro programa gerado no Rio de Janeiro e transmitido

pela Embratel, o qual trazia em seu formato a característica da transmissão ao vivo, ao contrário

das novelas da programação que eram gravadas.

A vinheta do JN foi inspirada na peça musical The Fuzz, composta por Frank De Vol

para o filme The Happening (1967), que já sofreu vários arranjos.

Fig. 04 Fig. 05

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Desde a sua inauguração teve sete aberturas, que variavam desde pessoas e fatos do

Brasil – primeira vinheta com duração de vinte e três segundos -, um jogo com as iniciais do JN

transcendendo os cantos da tela, a produção do programa, um globo se formando com as letras

JN, um mapa com as letras JN no centro e a terra girando na tela e deixando de lado as letras JN

até chegar à bancada dos apresentadores.

A trajetória da vinheta desse programa jornalístico nunca abriu mão de evidenciar o

signo verbal, caracterizador do nome do programa. Surge, então, um processo de identidade do

Jornal que se tornou, depois de alguns anos, um dos noticiários mais famosos da televisão

brasileira.

Engendrado no horário nobre da televisão brasileira, esse programa jornalístico que

sempre foi ao ar entre o horário das 20 e 21h, tem em sua história o marco de ser o primeiro

telejornal transmitido em rede nacional a cobrir as “As Diretas Já” em 1984; o chamado “caso

Pronconsult” em 1982; e vários outros que até hoje são evocados pelo Jornal Nacional que, em

seus anos de existência, se poderia dizer que foi visto por quase todos os brasileiros.

Atualmente, continua mantendo seus pontos no Ibope e é um dos telejornais mais apreciados

pelos telespectadores.

3.2 – A vinheta atual de abertura do Jornal Nacional: um breve ensaio

Sempre atualizada no início de cada ano, a vinheta do Jornal Nacional parece

acompanhar a evolução tecnológica e traduzir a imagem de um jornalismo atento à atualidade, à

identidade das novas visões e de novos padrões sociais e aos preceitos do homo videns que toma

consciência dos fatos através, não só da escrita ou da narração oral, mas também das imagens que

derrubam a relação entre o ver e o entender, como acrescenta Sartori,

Através da televisão nos aventuramos em uma realidade radicalmente nova. Por isso a

televisão não é um acréscimo, mas antes de mais nada, uma substituição que derruba a

relação entre o ver e o entender. Até hoje nós tomávamos tanto o conhecimento do

mundo, como também dos acontecimentos, mediante à narração oral ou também a escrita;

hoje porém podemos vê-los em nossos olhos, e a narração – ou a sua explicação – é quase

apenas das imagens que aparecem no vídeo.

(SARTORI, 2001, p.22)

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Esse novo aspecto imagético do jornalismo, caracterizado como telejornalismo que dá à

notícia, traduz as informações em um novo aspecto.

A partir da etimologia da palavra telejornal, num processo conhecido pela Língua

Portuguesa como hibridismo, concretizado a partir de uma palavra que possui dois radicais,

sendo tele do grego e jornal do latim; recupera-se um significado de que tele algo que está

distante e jornal escrita diária, registro, publicação diária. Lê-se, então, algo distante, mas diário,

que remete a uma informação distante e diária.

Assim, telejornal seria um jornalismo à distância e, nesse caso, já se instaura um

paradoxo: se o vocábulo remete à distância, como pode o telejornal ser algo tão próximo do

leitor/telespectador a ponto de efetivar, nesse, verdades e reflexões? Será essa distância algo

somente relativo ao território? Vislumbra-se, então, um processo de desterritorialização, afinal se

vive a Era do homo videns,

Para o autor, na troca, ou na comunicação, entre mim e o outro, ambos são arrastados para

uma zona da qual perdem algo de si. Porque algo de mim passa a compor o outro, e eu

passo a ser composto por algo do outro. Para Gilles Deleuze, isso é o que poderia definir

como uma desterritorialização e reterritorialização em seguida; o eu e o outro como dois

territórios que são arrastados para redefinições territoriais a partir do encontro.

(DELEUZE apud DUARTE, 2003, p.47)

A marca da desterritorialização é justamente verificada ao se analisar o discurso

proferido pelo enunciador na vinheta de abertura do Jornal Nacional. As relações sígnicas que

facultam o discurso movem-se por um sincretismo linguístico, ou seja, cada processo semiótico

que se aborda é feito a partir do receptor. Analisa-se, através de um processo sociológico o que e

como abordar, magnetizar e construir para que se garantam os índices do Ibope e o poder da

linguagem e da televisão. Dessa forma, resgata-se algo do leitor/telespectador (receptor),

deixando-se nele o modo de pensar, os valores nele através da comunicação; desterritorializa-se

para reterritorializar em seguida e grande veículo dessa projeção midiática é a linguagem da

televisão.

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Ao se avaliar a linguagem televisiva, que tem em si o sincretismo como marca imbricada

de seu discurso, percebe-se que o nome telejornal só serve para a caracterização do meio que

veicula o mesmo, ou seja, somente para evidenciar que se trata de um segmento televisivo, da

mídia TV, e, no caso do Jornal Nacional, da Instituição Rede Globo de Televisão, pois não há

distanciamento do Jornal Nacional e do leitor/telespectador; é justamente a proximidade entre

esses interpretantes que se evidencia em índices do Ibope.

Umas das peculiaridades da linguagem do telejornalismo é a necessidade de o

apresentador estabelecer uma conversa informal com o leitor/telespectador apoiando-se, para

isso, na linguagem coloquial a qual prima pela virtude da objetividade e da clareza, envolvendo-

se na construção de um discurso erístico, este caracterizado por Platão, em que não há troca entre

o falante e o ouvinte e, nesse caso, o leitor/telespectador somente recepta as mensagens do

enunciador. Efetiva-se um pseudo-diálogo, gerado através da adoção da linguagem coloquial;

esta, manifestada pela palavra falada, e indiciadora de um diálogo,

que é aquele citado por Platão no diálogo ‘República’ em que não há troca entre falante e

ouvinte, não dá chance ao interlocutor de se manifestar. O falante ganha a discussão pela

argumentação erística, isto é, se utilizando de jogos de palavras que deixam o ouvinte sem

condições de responder.

(RIBEIRO, 1988, p.16)

A proeminência da ausência do diálogo entre enunciador e enunciatário não abstém o

leitor/telespectador de visualizar - através do sincretismo linguístico estabelecido pela linguagem

televisiva, enredada dentre imagens que se pronunciam através de cores, movimentos e sons - e

entremear-se no discurso do telejornal, além de facultar um diálogo onisciente que reflete sobre

tal discurso.

Apesar da inexistência física do diálogo, há uma zona comum de contato entre emissor e

receptor, ou uma zona de percepções: trata-se da consciência individual gerada a partir das

percepções,

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Há uma linha sutil que atravessa as idéias de pertencimento a muitos ou a todos,

comunhão, tornar comum e estar em relação. Uma linha que está contida entre estes

termos e traz uma nova idéia a esse conjunto a partir da observação de um fato: para que

algo seja comum a um grupo, para que haja comunhão, para tornar um pensamento

comum, os envolvidos têm de estar em relação. Estar em relação implica a emergência de

uma superfície comum de troca ou uma zona de encontros e percepções dos emissores e

receptores.

(DUARTE, 2003, p.46)

As percepções são geradas pelas faces incutidas na linguagem imagética. Elas são

emanadas a partir da superfície que se projeta pelas cores, pelo som, pelas imagens; assim, abre-

se uma conotação discursiva que está além da linguagem verbal, está imbricada na linguagem

não-verbal e se estabelece um diálogo não físico, mas um diálogo de contato, contratado pela

suspensão das estruturas tácitas de conceitos, um diálogo cognitivo entre o leitor/telespectador e

ele mesmo – gera-se um terceiro plano dialógico:

[...] o diálogo só é possível a partir de uma suspensão, por mínima que seja, das estruturas

tácitas de conceitos e idéias que cada consciência traz. Com essa suspensão o plano

cognitivo do outro pode se fazer presente no meu plano cognitivo, formando um terceiro

plano cognitivo que não estava presente antes do encontro.

(DUARTE, 2003, p.48)

Assim, as imagens contidas na vinheta de abertura do Jornal Nacional estabelecem o que

se chamaria não de um diálogo físico, mas de um diálogo cognitivo, pois se exercita aqui a

primeiridade peirceana em que há sensações abdutivas em relação aos signos manejados pelo

Objeto vinheta. Se a relação comunicativa, nesse ínterim, faz-se pelos fluxos de troca e pelos

processos assimétricos, estabelece-se então uma relação indicial, movida pelos signos, a qual se

consagra do particular para o geral através da hipótese abdutiva.

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Nesse diagrama sígnico, uma relação indicial é, sobretudo, hipótese que, às avessas, só se

comprova do particular para o geral, do fenômeno para a teoria, da relação comunicativa

para a comunicação; não se recusa o ensaio, mas é possível enriquecê-lo confrontando – o

com a experiência empírica concreta ou simulação como dimensão empírico digital.

(FERRARA, 2003, p.65)

Na vinheta de abertura do Jornal Nacional, essa relação indicial comunicativa é

favorecida pelas imagens, pelas cores e pelo som. A imagem da Terra girando e em torno de si e

o posicionamento das letras indicativas do nome do programa que se inicia, estabelecem no

leitor/telespectador uma pré-leitura do teor do discurso do enunciador. O girar sendo captado pelo

JN, logo o JN capta tudo o que se observa no mundo, então há informações inéditas – os

conhecidos furos de reportagem.

O Legisigno JN é um representâmen de um satélite, os movimentos (girar) coligados ao

Legissigno globo terrestre – outro representâmen, no caso do planeta, da Terra – geram uma

representação.

Estar em lugar de, isto é, estar numa relação com o outro que, para certos propósitos, é

considerado em alguma mente como se fosse o outro. [...] quando se deseja distinguir

entre aquilo que representa e o ato ou relação de representação, pode-se denominar o

primeiro de “representâmen” e o último de “representação”.

(PEIRCE, 2008, p.61)

O signo verbal, estereotipado pelo Legissigno JN – registro do nome do telejornal -

corrobora a leitura de que tal programa está em órbita, gira em torno do planeta para trazer ao

leitor/telespectador uma amplitude de notícias, de informações, ou seja, os conhecidos furos de

reportagens, as matérias e informações inéditas, referenciadas em primeiro plano. Essa relação é

icônica, pois se trata de uma qualidade representativa, ou seja, excita uma idéia em seu

interpretante, no caso a idéia de que o JN é um satélite do planeta Terra ligado a uma nave.

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Um ícone é um Represetâmen cuja qualidade representativa é uma Primeiridade [...] Um

Representâmen apenas por Primeiridade somente pode ter um Objeto similar. [...] Mas um

signo pode ser icônico, isto é, pode representar seu objeto principalmente através de sua

similaridade, não importa qual seja seu modo de ser.

(PEIRCE, 200, p.64)

Mantendo as letras que evocam o nome do programa e a música que marcam sua

identidade, a vinheta de abertura do Jornal Nacional se guarnece de todo um processo de

enunciação que caracteriza a forma abrangente e universal de materializar a notícia.

É nesse ambiente lingüístico que se visualiza o posicionamento do caráter do enunciador

que é o destinador-manipulador responsável pelos valores do discurso, levando o enunciatário a

crer e a fazer, como cita Barros

[...] o enunciador define-se como o destinador-manipulador responsável pelos valores do

discurso e é capaz de levar o enunciatário a crer e a fazer. A manipulação do enunciador

oferece-se como um fazer persuasivo, enquanto ao enunciatário cabe o fazer interpretativo

e a ação subseqüente.

(BARROS, 1997, p.65)

Sendo um dos programas telejornalísticos que possui uma riqueza ímpar de material

iconográfico, o JN traduz em sua vinheta de abertura toda essa particularidade que o faz tão

peculiar, tão singular e líder de audiência. De posse de tal material iconográfico, o enunciador

gera seu discurso, manipulando o leitor/telespectador, este já fagocitado pelo não-verbal que o

seduz.

A sedução ou fagocitação do leitor/telespectador se dá pela condução manipuladora que

se instaura no discurso do enunciador. Trata-se de um poder gerado pela arte desenvolvida na

vinheta de abertura, pela presença do belo que embriaga os olhos, afinal a vinheta dá sabor, é um

antepasto talhado para ser saboreado, apreciado e para incitar a degustação do programa que a

mesma introduz. Tais enunciações, a partir da linguagem sincrética – característica da TV -,

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moldam os olhos fazendo o enunciatário- leitor/telespectador - crer na verdade pela grandeza de

valores nela apregoados.

A vinheta inebria, venda os olhos do leitor/telespectador como se fosse Odisseu na Ilha

de Calipso, onde o herói, mesmo com saudades da esposa Penélope e do filho Telêmaco, não

consegue livrar-se das mãos da feiticeira, não consegue retornar ao lar, libertar-se. Apesar de

saber de sua existência, não consegue enxergar a saída, por estar enfeitiçado pela beleza da

feiticeira. Assim se dá com a sedução da linguagem televisiva no discurso da vinheta em relação

ao leitor/telespectador que, por mais que saiba que há um ponto cego nesse discurso, não

consegue libertar seu modo consciente, pois já está vendado pela beleza e pelas artimanhas do

discurso midiático, afinal está se tratando do homo videns que tem como primeiro sentido a visão,

uma visão que, tomada de um sincretismo linguístico, vem acompanhada não mais da

estaticidade, mas do movimento, das cores e do ritmo, que faz de seus olhos os olhos das

câmeras, pois

a televisão mudou a vida da maior parte do povo brasileiro; na verdade, passou a dominar

o imaginário da população. Para as pessoas mais pobres e menos instruídas, gente do

interior ou das capitais que não sabe ler ou escrever, mas sabe ligar um aparelho de TV,

essa poderosa máquina representa o personagem mais importante da casa e da família.

(LIMA, 2007, p.21)

A televisão transformada em membro da casa personifica alguém da família em quem se

pode confiar, em quem se deve acreditar, logo, passa de eletrodoméstico a guia; então tudo o que

ela veicula torna-se absoluto. Assim, as vinhetas televisivas representam os programas, marcam o

horário de encontro e escravizam os olhos do leitor/telespectador através de sua beleza. Percebe-

se que há, nesses fatos, uma condição forte e isso traduz a relação do homem com o aparelho,

como se esse fosse uma extensão daquele.

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3.2.1 – A composição da vinheta atual

Apresentada em um plano de detalhe chamado pela linguagem cinematográfica de

planos aproximados em que se foca partes do objeto no quadro fílmico, a vinheta do Jornal

Nacional traz, através do plano de detalhe, a imagem do planeta Terra a partir de um de seus

polos, seguida das letras JN que indicam o nome do programa e, em seguida, adentra, em seu

cenário na sala de edição, onde estão aqueles que cuidam de buscar e “fabricar” a notícia. Depois

se constitui a bancada que se estabelece sob o mezanino. Atrás da bancada, estão os jornalistas

Willian Bonner, também diretor chefe do jornal, e Fátima Bernardes.

Os planos que apresentam as imagens de composição conduzem o leitor/telespectador a

uma leitura e nota-se que há uma condução para a efetividade do discurso, condução essa dada

pelo narrador-câmera que se projeta pelos planos de filmagem. Aprecia-se o movimento, a leitura

que esse movimento projeta, ora, o movimento é então um signo, pois é tratado “como

“representâmen” do qual algum interpretante é a condição de um espírito” (PEIRCE, 2008:51).

Assim o leitor/telespectador enxerga, a partir do movimento, efetivado pelos planos e pelo

narrador-câmera, os primeiros acordes de uma idéia que carrega o discurso do enunciador, pois o

movimento corrobora a noção de ação, de busca. Instaura-se o primeiro indício: a localização

espacial; está-se no espaço. Essa idéia espacial é associada pela imagem do Planeta através do

Legissigno - globo terrestre.

O plano de detalhe gera a noção de giro que adentra a sala de edição e pousa, fixando-se

na bancada onde se encontram os apresentadores. Efetiva-se na mente do interpretante um Rema,

- nascido de um Signo Discente é um Signo, que para seu interpretante é um Signo de existência

real -, para descrever um fato que é interpretado como sendo por ela indicado. (PEIRCE, 2008,

p.53)

A vinheta tem a predominância da cor azul e tanto os objetos como a bancada e o

desenho dos países dentro do Globo Terrestre são demarcados pela cor prata. Assim, um outro

Signo é evocado – o Legissigno Icônico que é todo tipo ou lei geral, na media em que exige que

cada um de seus casos corporifique uma qualidade defina que o torna adequado para trazer à

mente a idéia de um objeto semelhante (PEIRCE, 2008, p.55), pois tais cores evocam

simbologias que traduzem infinitude, verdade e transparência, segundo algumas culturas.

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A partir da semiose gerada pelo enlace desses signos, fecunda-se a ideologia do

enunciador. Apresentam-se ao leitor/telespectador as interfaces do telejornal, a partir de códigos e

convenções do mundo real, ou seja,

[...] uma maneira fácil de construir uma interface consistente é seguir os códigos e

convenções do mundo real [...]Em outras palavras, toda idéia de metáfora visual é na

verdade uma extensão do princípio mais geral de consistência da interface, só que desta

vez projetada além dos limites da própria tela.

(STEVEN, 2001, p.167)

Observa-se, então, a partir da montagem do cenário da vinheta, a existência de uma

ideologia reinante que levará o leitor/telespectador ao fazer crer na verdade enunciada pelo

telejornalismo e que garantirá de forma linear sua longevidade nos números do Ibope e da

condição pioneira de manter visibilidade e credulidade em relação à informação dada.

3.3 – Os signos integrantes da vinheta

3.3.1 – A presença do globo terrestre

A vinheta se abre com a aparição do Globo Terrestre sob a ótica do plano de detalhe, ou

seja, focaliza-se o pólo Sul e a Terra vai girando até transcender do lado esquerdo para o lado

direito da tela.

A imagem do Globo Terrestre representa um Símbolo do planeta Terra, pois se refere à

Terra, denotando a lei estabelecida pelos homens, um Legissigno que atua através de uma

Réplica do planeta Terra.

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Frame 110 Frame 111 Frame 112

Frame 113 Frame 114 Frame 115

Percebe-se, ainda, pelo movimento de câmera panorâmica oblíqua, que segue um

movimento ou da direita ou da esquerda para baixo ou para o alto, e que o planeta Terra é

focalizado a partir do polo Sul.

O movimento estabelecido pela câmera é puramente descritivo, pois tem a finalidade de

explorar o espaço, num papel introdutório ou conclusivo que serve para evocar objetos em

movimento. No caso da panorâmica oblíqua, que traz para a apresentação do globo terrestre uma

imagem puramente descritiva, em se tratando da ausência de personagens em foco, o movimento

traduz-se aos olhos do leitor/telespectador: os olhos dos personagens acompanham o movimento

do Globo terrestre, ou seja, do movimento da Terra.

Seguir tal movimento é uma das propostas sugeridas pela imagem desse primeiro

instante da vinheta. Capta-se, portanto, a mensagem subliminar de que o leitor/telespectador,

através do Jornal Nacional, acompanhará todos os movimentos do planeta de forma descritiva e

em forma de noticiário, informações.

Essa proximidade descritiva estereotipada pelo movimento, que parte do canto direito

para o fundo esquerdo, coloca o leitor/telespectador em sintonia com a órbita terrestre, num

movimento de rotação capaz de ver, de ler e analisar tudo o que o planeta vive e sofre.

O Símbolo do planeta Terra se posiciona sobre a equipe de produção, que está abaixo do

mezanino ocupado pelos apresentadores e esse posicionamento é marcado como uma passagem,

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ou seja, é como se a órbita planetária da Terra passasse sobre a cabeça dos editores, dos

jornalistas.

Abre-se, nesse preceito, uma nova leitura, o planeta transita sobre as cabeças dos

jornalistas como se estivesse inteiro dentro da cabeça da equipe de produção.

A vinheta de abertura do Jornal Nacional parece evidenciar, através de seu enunciado,

que todos aqueles que trabalham para produzir, para veicular, para diagramar ou editar as notícias

estão em consonância com o movimento do planeta, ou, ainda, estão com a cabeça carregada do

todo e de tudo que norteia o planeta Terra e que, a partir desse contato imediato, guarnecerão o

leitor/telespectador de todas as informações possíveis, de forma a atualizá-lo, de maneira global,

conhecendo todos os acontecimentos do planeta e colocando-os como tripulantes de uma nave

interplanetária que é regida pela notícia.

Uma outra leitura, a partir do movimento e da aparição do Símbolo do Globo Terrestre,

é a idéia de que os assuntos são globais, nesse caso pertencente ao Planeta Globo, referindo-se à

idéia de que a emissora de televisão que veicula o telejornal seja um planeta. Interessante que

nessa leitura, torna-se parte do discurso do enunciador a emissora e o programa que a vinheta

apresenta. Neste caso, poder-se-ia visualizar um aspecto metalingüístico no discurso da vinheta,

pois, tendo-se em mente que o enunciador é a instituição – Rede Globo – e que o enunciador

evoca esta instituição, gera-se a hipótese idéia de que a instituição fala dela mesma, um preceito

metalingüístico.

Ocorre a criação de uma metáfora que apresenta o planeta-emissora o qual possui um

asteróide-programa, que abre ao leitor/telespectador o mundo através da notícia. Trata-se, nessa

leitura, de um processo de simbolização, um processo de troca de sinais em que se projeta a idéia

de que

[...] todo processo comunicativo implica em troca de sinais, mas existem trocas (como as

de bens ou presentes) onde não se trocam sinais propriamente ditos, mas bens de

consumo. Sem dúvida é possível considerar a troca de bens como processo semiótico

(Rossi-Landi, 1968), mas não porque essa troca implique na troca física mas porque na

troca o VALOR DE USO dos bens é transformado em VALOR DE TROCA. Tem-se um

processo de simbolização definitivamente aperfeiçoado[...]

(ECO, 2007, p.18/19)

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O valor de troca estabelecida seja como Símbolo do planeta Terra metaforizando a

emissora, seja o planeta Terra metaforizando a configuração sobre as cabeças pensantes

(jornalistas), que detêm a produção e a edição das notícias, se dá a partir de dois signos que

introduzem as primeiras imagens da vinheta, o movimento e o globo terrestre.

As leituras que se fizeram sobre o Símbolo designado de Globo terrestre correspondem

ao que Eco (2007) caracteriza como sendo “função sígnica (...) a possibilidade de significar (e

portanto de comunicar) algo a que não corresponde nenhum estado real de fatos.”

Tem-se nessa leitura sígnica a falácia referencial que, como aduz Eco (2007), “o

significado” (leitura feita) “de um significante” (Símbolo do planeta – Globo terrestre) “ tem algo

a ver com o objeto correspondente” (telejornal).

3.3.2 – A aparição do nome do programa

Após o posicionamento do Globo terrestre, ou a passagem do Globo terrestre que se fixa

ao fundo do cenário, aparece no canto direito do mesmo modo e seguido o mesmo plano de

movimento panorâmico oblíquo às letras JN, caracterizadoras do nome do telejornal.

A evidência do sincretismo linguístico fica mais visualizada, pois se mistura à

linguagem verbal e não-verbal, todos os aspectos semânticos e sintáticos de construção dessas

linguagens. O legissigno JN segue o mesmo plano de movimento, como se o JN acompanhasse a

Terra, ou melhor, a movimentação do planeta em sua atividade orbital, rotativa, tecendo o texto-

discurso de enunciador que incute a idéia de que, ao acompanhar a órbita do Planeta, se

apreendem os acontecimentos que estão inseridos nessa movimentação orbital. Ou seja,

engravida-se da noção de que há posse de tudo e do todo que acontece com o planeta e em torno

dele, a visão universal e abrangente fica explicitada, resultando um telejornal que apresenta

notícias universais, completas, que está “antenado” em tudo e a tudo.

Frame 116 Frame 117 Frame 118

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Frame 119 Frame 120 Frame 121

As letras JN parecem circundar o planeta, pois, conforme a imagem faz seu trajeto, elas

saem do canto esquerdo e passam sobre a equipe de produção de jornalismo, no momento em que

as letras parecem se esvaecer atrás da imagem do Globo terrestre, e outras letras posicionam-se

no canto direito, como se fossem reflexos, como se o JN estivesse atento, não perdesse nenhum

foco de informação, nenhum acontecimento do planeta.

O cenário se edifica da seguinte maneira: No fundo, o Globo terrestre; em seu canto

direito e em seu canto esquerdo, as letras JN.

Essa imagem montada, através dos signos verbais e não-verbais, conota a seguinte

leitura ao leitor/telespectador: que o JN está voltado totalmente para as notícias, para os

acontecimentos do Planeta Terra, como um radar que tudo vê, ou ainda um semideus que a tudo

assiste e em tudo está presente.

3.3.3 – As cores da vinheta

Tendo o azul como cor predominante, a vinheta transmite a idéia de infinitude, da

transparência, do frio exato. Seria a cor da verdade, de tudo o que pertence ao celestial. Jean

Chevalier e Alain Gheerbrant relatam que segundo os egípcios

O azul é a mais profunda das cores: nele o olhar mergulha sem qualquer obstáculo,

perdendo-se até o infinito [...] é a mais imaterial das cores [...] feito apenas de

transparência, [...] O azul é a mais fria das cores e, em seu valor absoluto, a mais pura, à

exceção do vazio total do branco neutro. [...] Já se disse, também, que os egípcios

consideravam o azul como a cor da verdade.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.107/108)

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Ao optar pela cor azul, o enunciador transfere para seu discurso a concretização de um

discurso transparente, regido pela verdade dos fatos que traz um número infinito de notícias, de

informações verídicas.

O signo da cor nada mais é do que um dos laços elencados ao texto para criar um discurso

coerente e persuasivo, bem ao gosto midiático, para vender a representação ou a ideologia do

programa anunciado.

Tendo em vista que o telejornal deve ter compromisso com a verdade dos fatos, gera-se a

partir da vinheta, um texto que, aos olhos de leitor/telespectador, deva ser medido e condicionado

à verdade das informações e dos fatos.

Trata-se de fertilizar, através da vinheta, a imaginação do leitor/telespectador para

carregar a sua percepção em relação ao telejornal que a vinheta apresenta, para que o mesmo

tenha uma idéia perceptiva de que o programa anunciado vale a pena, ou, ainda, como quer a

vinheta, que o Jornal Nacional é um telejornal que veicula todos os fatos ocorridos no mundo

sob a ótica da verdade e da transparência. Assim, como salienta Cecília Guirado, a imaginação

assume um papel decisivo na relação de observação do leitor/telespectador.

Contudo, a imaginação desempenha um papel especial, no sentido de carregar a bateria da

percepção. Segundo Octaviano Paz, a imaginação desdobra ou projeta os objetos e sem ela

não haveria nem percepção nem juízo.

(GUIRADO, 2004, p.33)

Apesar da proeminência do azul, há de forma tímida a presença do vermelho que

circunda as letras JN.

Frame 122 Frame 123

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Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009), o vermelho é “universalmente

considerado como símbolo fundamental do princípio da vida, com sua força, seu poder e seu

brilho,” então na vinheta ao circundar o JN e os pilares do núcleo da editoração, o vermelho traria

ao leitor/telespectador a leitura de que quem dá vida às notícias é o telejornal que a vinheta

apresenta.

A cor prata também se faz presente na vinheta, é a cor da mesa, da barra, do

preenchimento do interior das letras. Algo que traz à memória o lunar, o ser do futuro, algo

relacionado à sabedoria divina como aduzem Chevalier e Gheerbrant (2009, p.739): “Na

simbólica cristã representa a sabedoria divina, assim como o ouro evoca para os homens o amor

divino (PORS,57).”

Logo, tem-se um complexo discurso montado a partir do signo da cor que traduz a idéia

de infinitude, de verdade em relação aos fatos noticiados sobre a vida no mundo. A cor é um

referente, pois, nesse contexto, ela se reafirma a partir de um diálogo contextual com os outros

signos presentes na vinheta. Não é outro o pensamento de Umberto Eco.

Assim, em um enunciado que tende a mencionar algo, isto é, a referir-se a um estado do

mundo, o que sucede à fonte não é outra coisa senão aquilo que, em outros contextos, se

chama referente.

(ECO, 2007, p.45)

Trata-se de uma conotação, ou seja, de uma significação anunciada a partir de outra

significação dentro de um plano de expressão.

Nesse sentido, a resposta comportamental não é estimulada pelo sinal: é SIGNIFICADA

(ou imperativamente comunicada) pelo fato de um dado estado da água ter sido

previamente significado. Temos, assim, uma significação veiculada por uma significação

anterior, com o que se obtém uma espécie de ‘supra-elevação’ de códigos

[...]

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O que constitui uma conotação enquanto tal é o fato de que ela se institui parasitariamente

à base de um código precedente e não por ser veiculada antes de o conteúdo primário ter

sido denotado [...]

(ECO, 2007, p. 45/46)

Muito curioso é que as cores unidas ao movimento de plano panorâmico e ao Símbolo

do planeta estereotipado no globo terrestre, traduzam para o imaginário do leitor/ telespectador o

compromisso que o jornalista assume em difundir os fatos com veracidade e imparcialidade.

Segundo pauta o capítulo II do Código de Ética do jornalista em seu artigo 4º que prevê

que “o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, deve pautar

seu trabalho na precisa apuração dos acontecimentos e na sua correta divulgação.”

Assim, o telejornal global assume, a partir de sua vinheta, o compromisso com o

leitor/telespectador que deverá ser honrado, através de seus furos de reportagem e de seu

noticiário diário. Cria-se, desse modo, uma visão platônica no leitor/telespectador sobre o aparato

jornalístico, pois apesar de o discurso da vinheta corroborar todo esse ensejo de linearidade e

verdade discursiva, sabe-se que, na prática, a coisa não funciona bem assim, pois o diretor de

jornalismo não tem autonomia para pensar de forma independente, porque no fundo ele é um

cumpridor de ordens que vêm de cima, como salienta Lima, embora este se refira à TV pública:

De certa forma, as televisões públicas são obrigadas a deixar de lado os erros do governo e

elogiar sempre as realizações desses “patrões”. É um grande erro do diretor de jornalismo

de uma TV pública achar ou pensar que é independente. No fundo, ele é um cumpridor de

ordens. E as ordens, como sempre, vêm de cima.

(LIMA, 2007, p.168)

Não obstante a Rede Globo ser uma empresa privada, é fato que os criadores (diretores,

jornalistas e artistas gráficos) submetem-se a rígidas normas de controle empresarial, que não

cabe a esta dissertação aprofundar.

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Totalmente distinta em sua ideologia das vinhetas das telenovelas e das minisséries, que

se fundam em pinçar parte do enredo da trama que será exibida, na vinheta do telejornal isso não

acontece, afinal não há um enredo retilíneo a ser incorporado nessa vinheta.

A vinheta do telejornal se fixa na imagem, nos valores que o programa, no caso, o

telejornal quer remeter ao leitor/telespectador, ou seja, trata-se de talhar os olhos do

leitor/telespectador com a ideologia do telejornal.

Muda, então, o foco da enunciação, pois agora o enunciador tem outro paradigma, não

há enredo para ser vendido, há ideologia e para tal faz-se necessário entender que não há um

enunciador, mas uma enunciação, pois

O enunciado, nessa perspectiva, é concebido como unidade de comunicação, como

unidade de significação, necessariamente contextualizado. [...] o enunciado é tido como

um produto de um processo, isto é, a enunciação é o processo que produz e nele deixa

marcas da subjetividade, da intersubjetividade, da alteridade que caracterizam a

linguagem em uso, o que diferencia de enunciado para ser entendido como discurso.

(MELO, 2008, p.63-65)

Logo, mesmo a vinheta do telejornal possuindo a linguagem sincrética, o som, a

linguagem verbal e a linguagem não-verbal, ela traz em si um outro acorde de sentido, pois

enquanto a vinheta da telenovela e da minissérie se preocupam com um enunciado que esteja

consonante com o enredo, com a trama, para se traduzir num antepasto ao leitor/telespectador; a

vinheta da telejornal também se dá ao consumo, mas através da enunciação, não realçando a

trama e sim a ideologia que o telejornal abarca.

Pode-se dizer que ambas as vinhetas trabalham com o imaginário do leitor/telespectador,

porém o discurso das mesmas é distinto no tangente à imaginação.

Ora, enquanto a vinheta da telenovela e da minissérie está vinculada ao aspecto ficcional

do imaginário, a vinheta do telejornal vincula-se ao aspecto imaginário dos valores sociais como

a ética e o compromisso com a verdade.

Pensa-se, no ambiente não ficcional, em aspecto imaginário de valores, pois os mesmos

são concebidos a partir de vivências e não se pode estipular o que seria ético para um ser e para

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outro ser na mesma intensidade de valores. Trata-se de um aspecto fluído, bem característico da

modernidade líquida, em que a sociedade se insere que garante o encurtamento das distâncias

físicas, a valorização do poder de consumo e presença acentuada das mídias nas relações sociais.

O futuro sempre foi incerto, mas o seu caráter inconstante e volátil nunca pareceu tão

inextricável como no líquido mundo moderno da força de trabalho flexível, dos frágeis

vínculos entre os seres humanos, dos humores fluidos, das ameaças flutuantes e do

incontrolável cortejo de perigos camaleônicos

(BAUMAN, 2005, p.74)

Enxerga-se nitidamente o que se caracterizou para Bakhtin a carnavalização, ou seja, a

permutação do alto e do baixo ou a lógica da inversão (DISCINI, 2006:55), em que as ações não

são movidas por valores, mas valores são inventados por ações, ou ainda em que valores não são

norteadores de palavras, de expressões, mas sim são criados por elas. Não se trata de seguir

valores, mas inventá-los, recriá-los.

A vinheta do telejornal abarca um preceito universal de valores, mas fica claro que esses

valores são designados pelos atuantes do mundo jornalístico e que o respeito pelo

leitor/telespectador se valerá a partir de sua ética.

3.3.4 – Um mezanino ou uma cabine

A aparição dos apresentadores do JN é formatada a partir de um movimento circular que

estaciona defronte a uma mesa onde estão sentados os apresentadores. O movimento circular

segue mostrando tubos cilíndricos prateados que formam uma espécie de grade protetora

separando os apresentadores dos jornalistas-editores.

Frame 124 Frame 125

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A montagem do cenário deixa claro que os apresentadores estão à frente e a equipe de

produção encontra-se atrás e abaixo dos mesmos, como entidades construtoras e captadoras da

notícia e entidades emanadoras da notícia.

Frame 126 Frame 127

Dessa forma, pode-se visualizar uma grande nave espacial norteada pelo satélite

Legissigno JN, que possui em seus apresentadores os pilotos da nave, responsáveis em anunciar a

notícia, e os tripulantes dessa nave, os jornalistas e editores, que se dedicam a agilizar,

sedimentar, pesquisar, observar, correr atrás dos furos de reportagens e transformá-los em

notícias as quais são enunciadas pelos pilotos – os apresentadores Willian Bonner e Fátima

Bernardes.

Parece que a nave espacial telejornal que possui satélites - JN - passa diariamente pela

órbita terrestre, captando as notícias do Mundo para trazê-las, de forma confortável, ao

leitor/telespectador, ou então convidá-lo a uma viagem no mundo das notícias, embarcado na

nave JN.

O movimento da câmera faz um giro completo, estreitando a leitura de movimento de

rotação da Terra. Assim sendo, gera um enquadramento de triângulo simples, fazendo com que

os apresentadores se aproximem e dando a impressão de que a nave estacionou, ou seja, parou,

aportou para trazer as notícias ao leitor/telespectador.

Montado o cenário, os apresentadores veiculam as notícias e vale dizer que enquanto os

mesmos informam ao leitor/telespectador os fatos ocorridos, o Símbolo do Planeta fica com um

leve movimento de rotação em torno de si, gerando uma mensagem subliminar de que o mundo

não pára para transmitir às informações, ou melhor, que mesmo com a parada da nave para

informar o leitor/telespectador, ela continua acompanhando e captando o movimento do Mundo,

o movimento das notícias, das informações.

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3.4 – O Signo sonoro da vinheta do JN

Quem não reconhece o som da vinheta do Jornal Nacional?

O som de tambores em ritmo lento que vai acelerando aos poucos e ganhando

intensidade marcam a abertura desse telejornal.

O ritmo marcado pela música orquestrada que começa com som pouco expressivo que

vai tomando forma, crescendo, aumentando, ganhando molde e forma até culminar com o

aparecimento dos apresentadores, encerram a abertura do telejornal mais visto de país.

Comparado a uma figura de linguagem, o aumento do som traduz-se em uma gradação

que, ao ressoar de cornetas, atinge o clímax que consagra a imagem do planeta pairando sobre o

fundo do cenário e com a fala dos apresentadores desejando “Boa noite!” ao leitor/telespectador.

Na mitologia de povos africanos e asiáticos, os tambores marcam o ritmo do universo, a chuva de

bênçãos, a invocação dos favores celestes, as batidas do coração, o pulsar da vida. É o ritmo que

desfaz a resistência e marca o som dos raios que liga os acontecimentos da vida humana.

Assim, o soar dos tambores na vinheta de abertura do Jornal Nacional pode estar

associado ao ritmo do universo.

O ruído do tambor é associado à emissão do som primordial, origem e manifestação e,

mais geralmente, ao ritmo do universo. [...] É sabido que nos Laos o uso ritual do tambor

chama a chuva benéfica, a bênção celeste. [...] O tambor africano, evidentemente, invoca a

descida dos favores celestes de modo análogo.[...] O tambor é o símbolo da arma

psicológica que desfaz internamente toda a resistência do inimigo [...] Mas é mais do que

isso: na África, o tambor está estreitamente ligado a todos os acontecimentos da vida

humana.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 861/862)

Baseando-se no significado etimológico da palavra ritmo, consta que ela se liga a rio,

sugerindo mais o movimento de um trecho do que sua divisão em articulações. Como direção,

dir-se-ia que o som de cornetas unidas articula-se juntamente ao dos tambores e a gradação

crescente congrega a idéia da direção da nave rumo a seu porto, ou seja, pousando na terra.

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Uma nave que se abre com a recepção dos apresentadores e que remete o

leitor/telespectador ao mundo das informações.

O ritmo parece moldar um espaço através de um tempo determinado, ser uma seta que

sequencia determinada direção, e no caso do ritmo da vinheta do Jornal Nacional traduz-se em

direção à notícia que será transmitida ao leitor/telespectador, como esclarece Righini:

Originalmente o ritmo e rio estavam etimologicamente relacionados, sugerindo mais o

movimento de um trecho do que a divisão de articulações. No seu sentido mais amplo,

ritmo divide o todo em partes, articula um percurso como degraus (dividindo o andar em

partes) [...] Ritmo é a forma moldada no tempo como desenho é espaço determinado. [...]

Assim como citamos o espaço real e virtual, podemos falar em tempo real e virtual. [...]

Pelo fato de o ritmo ser uma seta que aponta numa determinada direção [...]

(RIGHINI, 2004, p.182/183)

Na vinheta do JN, o ritmo traduz-se na seta que direciona a mensagem, através de um

tempo que faz com que a nave pouse ao som de tambores que evocam as configurações da vida

humana em forma de notícias e acontecimentos.

3.5– O caráter do enunciador na vinheta do JN

O enunciador na vinheta do JN mostra-se vinculado a valores, sejam eles existentes ou

construídos pelo “deus” telejornal. O discurso construído através da enunciação é totalmente

ideológico e vinculado à postura da ética jornalística e não se questiona que tipo de ética.

Todo enunciado – desde a breve réplica (monolexemática) até o romance ou tratado

científico – comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes de seu início há

outros enunciados, depois de seu fim, há os enunciados-respostas dos outros [...] O

enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente

delimitada pela alternância de sujeitos falantes [...]

(MELO apud BAKHTIN, 2008, p.61)

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Sendo um texto, com base em narrativas audiovisuais não-ficcionais, o discurso nesse

tipo de narrativa, exerce uma condição dissertativa, ou seja, discute e apresenta seus valores,

delineia a condição para assegurar sua credibilidade diferentemente das vinhetas das narrativas

audiovisuais ficcionais.

A vinheta do telejornal, apesar de carregada de simbologias que emergem para o

imagético do leitor/telespectador, consagra não o imaginário voltado ao devaneio, mas o

imaginário que redesenhe aspectos que talhem o discurso jornalístico. Trata-se da interface

discursiva projetada através dos signos que constroem o enunciado proposto.

[...] a interface na realidade todo um mundo imaginário de alavancas, canos, caldeiras,

insetos e pessoas conectados – amarrados entre si pelas regras que governam esse pequeno

mundo. Isso, para mim, é uma interface em seu modo de arte elevada.

(STEVEN, 2001, p.5)

Assim, ao evocar o imaginário do leitor/telespectador, através da linguagem sincrética -

característica da televisão, que mescla as variedades sígnicas para obter um discurso eloquente, a

vinheta do telejornal utiliza-se de um narrador-câmera e da linguagem não-verbal para despertar

o imaginário do leitor/telespectador, criando um discurso uníssono no quesito sobre a

credibilidade, ou seja, todos os signos convergem para assegurar ao leitor/telespectador que o

programa anunciado prezará pela veracidade dos fatos, pelo respeito com a notícia.

A linguagem sincrética, que concebe o enunciado discursivo da vinheta, é acometida de

fatores históricos, sociais e culturais que alçam desde a comunicação efetiva até os sujeitos e

discursos nela envolvidos. Há um processo interativo na construção do enunciado das vinhetas,

pois suas entidades discursivas participam de um processo de construção de significações que

evocam o imaginário do leitor/telespectador, assim há um enunciado concreto que se materializa

pela parte realizada em palavras, no caso da vinheta o signo verbal - o legissigno JN; e a parte

presumida que estabelece uma miríade de conexões com o contexto extraverbal da vida.

A vinheta do telejornalismo apresenta semelhanças e diferenças em relação às das

minisséries e telenovelas.

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As ilustrações ficcionais põem em evidência fragmentos de uma catedral (trama),

trazendo de forma específica a história narrada no enredo, simbolizada em recortes sígnicos,

tendo um narrador-câmera ocupado em construir um discurso que corrobore o que será enredado

na narrativa-audiovisual, que anuncia tentando ser fiel ao máximo à trama e constituindo a visão

do autor, emoldurada pelo enfoque do diretor geral e engendrada pelo enunciador que busca

sensibilizar, fagocitar o leitor/telespectador causando neste um prospecto de primeridade que

ressalte dúvidas de como serão as cenas das narrativas e assim, já abduzindo-o e levando-o a

acompanhar os capítulos da telenovela ou minissérie.

A vinheta do telejornal fagocita o leitor/telespectador não pela curiosidade em saber

como será o programa, mas na credibilidade que a vinheta do mesmo expressa a partir de um

discurso que um enunciador perspicaz tece através dos signos evocados como a cor, o som, o

movimento de câmera e os símbolos que estabelecem um elo significativo com o contexto vida

do leitor/telespectador.

Não há, na vinheta do telejornal, vínculo com uma história que será transmitida, o que

há é um vínculo com a instituição que o veicula. Ressalta-se que apesar de o discurso do

enunciador talhar seu discurso com o belo, com o artístico, o mesmo usa o discurso do belo sob

um novo contexto que resvala não mais a beleza emocional, mas sim a beleza racional.

O discurso da vinheta do telejornal não é uma micronarrativa pinçada da trama central,

afinal o telejornal não apresenta uma trama central, mas se trata de uma micronarrativa que

assume muito mais a característica anunciadora, projetora de veracidade e compromisso e para

isso utiliza-se de uma situação extraverbal que se integra ao enunciado constituindo sua

significação, como é o caso de signos como a cor, o som, a linguagem não-verbal.

Assim a situação extraverbal está longe de ser meramente a causa externa de um

enunciado – ela não age sobre o enunciado de fora, como se fosse uma força mecânica.

Melhor dizendo, a situação se integra ao enunciado como parte constitutiva essencial da

estrutura de sua significação.

(VOLOSHINOV apud MELO, 2008, p.67)

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É por isso que a opção da cor azul se fez necessária, garantindo ao discurso a

transparência. Não se podia colocar na vinheta um ritmo melódico que acocorasse um sentimento

de valsa ou bailia, afinal não se trata de uma dança, trata-se de um texto jornalístico que prima

pela agilidade e pela seriedade, daí o uso dos sons dos tambores que ressoam o fazer da vida

humana. A presença do Globo terrestre aprisiona o texto-vinheta na realidade conduzindo-o à

verdade, ou melhor, a notícias, informações que buscam o compromisso com a verdade.

Apesar de todo esse cuidado com a composição textual da vinheta, o enunciador

apresenta em seu discurso uma arma de poder, o poder de construir valores, ou de emanar

verdades, de ser o detentor de um discurso não tão verídico assim, um discurso manipulador que

vende a ideologia de um jornalismo desvinculado, de um jornalismo que pensa que é

independente, quando na verdade é um cumpridor de ordens.

Cria-se um mito em relação aos valores, uma linguagem roubada, a expressividade da

língua destinada a gerar um sentido, que se perfaz pelo mito, o mito de verdade que abstrai

conceitos dando a possibilidade da interpretação.

Qual é a função específica do mito? Transformar um sentido em forma. Isto é, o mito é

sempre um roubo de linguagem. [...] De fato, nada pode se proteger do mito; este pode

desenvolver seu esquema segundo a partir de qualquer sentido, não importando o qual [...]

A língua, que é a linguagem mais frequentemente roubada pelo mito, [...] o esboço de um

aparelho de signos destinados a manifestar a intenção com que é utilizada, é aquilo que

poderíamos chamar de expressividade da língua [...] A língua se presta ao mito de um

outro modo: é muito raro que ela imponha desde o início um sentido pleno, indeformável.

Isto provém da abstração do seu conceito [...] Mas em volta de um sentido permanece

sempre uma espessura virtual em que flutuam outros sentidos possíveis [...]

(BARTHES, 2003, p.223/224)

A vinheta do telejornal em questão sugere, em sua essência, o mito da transparência a

partir do signo da cor; o mito da universalidade de informações a partir da visualização do globo

terrestre que simboliza o Planeta; o mito de ligação intrínseca com a vida humana como sugere o

signo sonoro, iniciado com o toque do som fundo de tambores o qual se refere aos

acontecimentos relativos à vida humana.

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Um novo sentido, a partir da simbologia do som dos tambores se desenha, talvez o que

Barthes quis dizer com expressividade e infinitude de sentidos, pois o uso do signo sonoro com

início de sons de tambores cria uma interface, a qual garante um outro sentido aos definidos ou

indiciados pelo enunciador. Ora, os tambores, segundo os africanos, também indicam a descida

de deuses celestiais, e poder-se-ia entender que o telejornal é um deus celestial que desce aos

leitores/telespectadores dessa emissora? Afinal, uma nave se forma, está em movimento etéreo,

pois a imagem do globo terrestre é a garantia de que se pode ver o mundo, logo o JN está em

órbita, no céu, em volta da Terra, aquele que tudo vê, um possível deus jornalístico.

É na construção dessa expressividade, sinalizada por Barthes, que se edificam os mitos

no discurso do enunciador, afinal se a expressividade se localiza pela infinitude de sentidos, não

se têm somente os sentidos evocados pelo enunciador, apesar da qualidade de um discurso em

que a voz do enunciador é altissonante e dominadora - característica do discurso erístico - mas, é

pelo ato da cognição do leitor/telespectador que são gerados outros sentidos para os mitos

enunciados, ou seja, há a formação de sentidos que para o enunciador são desconhecidos, mitos

gerados a partir dos sentidos da expressividade.

Afinal o espaço midiático constrói um discurso sob a luz da linguagem sincrética que se

apossa de signos que elencam simbologias diferentes, é que permitem a decifração da enunciação

alinhada nas vinhetas; “tem-se um espaço cultural híbrido que surge contingente e

disjuntivamente na inscrição de signos da memória cultural e de lugares de atividade política”

(BHABHA, 2007, p.27)

Na abertura do telejornal, existe algo de ficcional, de fantástico, de informações que estão

aquém e além do leitor/telespectador para se garantir o poder do discurso. Nota-se a pertinência

do show, da expressão do fantástico, ficando o ilusório, o iconográfico em primeiro plano, da

carnavalização sobra o mito da verdade para o que será noticiado, e nisso reside o poder

discursivo do enunciador da vinheta do telejornal, ludibriando o leitor/telespectador,

transportando-o pelas veredas do imaginário fantástico e, assim, fagocitado, noticia sob a

ideologia que mais o conforta.

Visualiza-se, pois, uma diferença peculiar entre o discurso da vinheta das minisséries e

telenovelas e o discurso dos telejornais; aquelas, de certa forma, não fazem propaganda enganosa

em seus discursos, mesmo porque estão imbricadas ao universo ficcional, logo tudo é possível; já

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a vinheta do telejornal conduz o leitor/telespectador a acreditar na verdade de um discurso

manipulador que o leva a crer que vê a realidade, como afirma Arbex:

Assim, reproduz-se através da TV uma certa estruturação de mundo que não é “natural”,

mas fabricada segundo a ótica de quem controla os meios e a tecnologia para essa

fabricação. Só que essa é uma lógica oculta, apresentada sob o signo de uma “verdade”

que a identificação visual eleva à categoria indestrutível de “realidade”.

Essa sensação de que vemos a “realidade” é reforçada pelo distanciamento físico, cultural

e político dos telespectadores em relação às cenas mostradas.

(ARBEX, 1995, p.14)

A vinheta do telejornal deixa de consagrar, como as vinhetas das minisséries e das

telenovelas, a característica de não serem propagandas enganosas do produto que anunciam, pois

o discurso de seu enunciador é um mero convite a valores pouco validados pela trajetória das

informações que serão veiculadas.

A contingência sígnica permite avaliar o discurso da vinheta do telejornal como algo

pouco palpável, ou melhor, como uma venda de ideologias que remetem ao fantástico da notícia.

O material iconográfico de tamanha qualidade que a emissora possui leva também à

mensagem de que se investe muito em qualidade de som e de imagem, potencializa o visual e

deixando escapar pelas mãos algo mais importante que é o compromisso a notícia em favor de

um índice de Ibope.

Insere-se nessa vinheta um processo de carnavalização - mutabilidade dos fenômenos e

fica reforçada a metamorfose contínua da própria existência (DISCINI, 2006, p.61), construindo

valores inversos que se incluem, de maneira direta, na cultura do leitor/telespectador totalmente

despreparado para avaliá-los, pois a dinâmica da imagem solicita respostas imediatas de quem a

ela está submetido. As reações são reflexas e rápidas. (ARBEX, 1995, p.13).

A vinheta de abertura do telejornal sedimenta-se a partir de um enunciador perspicaz que

fecunda conceitos a partir de mitos, ou seja, de uma expressividade ideológica, voltada para

sacramentar os valores erradicados pela instituição que tal enunciador representa, afinal o

telejornal, a partir dessa leitura semiótica, é um “deus” que tange o mundo e participa dele.

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Concebe-se, após essa análise, a imagem da onipotência do JN, ou seja, daquele que

controla e tudo vê, daquele em quem se deve acreditar, visto que o mundo gira dentro de sua nave

e seus discípulos satélites estão sempre tão atentos e volantes que não perdem nenhum fato,

nenhuma ação humana e controlam os olhos a partir de seu “Plim-Plim”, ou melhor, há no

discurso vinheta do enunciador, não só a presença da onipotência como do controlador, mas

também daquele que fabrica verdades, num mundo que co-existe em seu interior.

As simbologias existentes no ínterim da vinheta de abertura credulam um discurso

ideológico que se fundamenta no imaginário do leitor/telespectador.

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Considerações Finais

Fonte: Youtube

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As vinhetas de abertura, apesar de atualmente terem fecundado uma nova forma de

expressão, de terem se adaptado à linguagem da televisão, guarnecem em si muito de sua história,

pois, ainda, de forma direta ou indireta, continuam a dialogar com os textos que introduzem,

fazendo de forma linear um elo com o contexto que os mesmos elucidam.

Apesar do parentesco com as Iluminuras, elas têm sua diferenciação em relação às suas

primas, pois, enquanto estas estavam diretamente associadas ao texto, sendo uma representação

visual do mesmo, exercendo também uma função decorativa, aquelas, por sua vez, estão

indiretamente ligadas ao texto, exercendo amplamente uma função decorativa, uma ação gráfica

decorativa, não tendo função de moldura.

As atuais vinhetas de abertura são repetidas diariamente, ou melhor, repetem-se

enquanto viceja o programa que anunciam, ou melhor, que representam.

Cabe aqui cautela ao usar, anunciar e representar. As vinhetas representam, pois elas são

a identidade dos programas, acampam muito mais do que meras anunciadoras, trazem em si uma

história coligada, relacionada com a narrativa audiovisual que a mesma representa, seja em forma

de narrativa ficcional – como é o caso das telenovelas e minisséries, seja de narrativa não

ficcional – no caso os telejornais.

Ao contrário das Iluminuras, as vinhetas não preparam seus leitores/telespectadores para

perceberem a relação entre o conteúdo das vinhetas e os conteúdos dos enredos que representam,

e no caso das Iluminuras, o povo das nações católicas, durante a evangelização, era preparado

pelos religiosos para relacionar o conteúdo da iluminura com o conteúdo do texto bíblico,

objetivando melhor compreensão (AZNAR, 1997, p.34). Assim, a vinheta se relaciona com

símbolos e conhecê-los torna-se princípio fundamental para interpretá-las e reconhecê-las na

trama ou na ideologia dos programas, daí sua característica de representatividade e não

simplesmente de anunciadoras.

É fato que a representatividade das vinhetas está aquém das narrativas audiovisuais e

além de suas caracterizações, no tocante à análise do signo sonoro que compõe a vinheta,

processa-se um ponto caracterizador do programa que lhe cede identidade, que o conduz. O signo

sonoro esboçado nas vinhetas de abertura normalmente dá tom à trilha sonora que dissecará a

narrativa audiovisual. Na minissérie Os Maias, o “Prelúdio”, interpretado por John Neschling,

evidencia, de forma linear, a característica da família Maia que se mostra muito ligada à cultura,

que possui grande poder aquisitivo, que é pautada pelo respeito aos valores clássicos difundidos,

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na época, pela sociedade burguesa do século XIX. Assim, ao pinçar pequenos temas marcantes

das narrativas audiovisuais, a vinheta passa a ser, aos olhos do leitor/telespectador, a identidade

do programa.

Não só a sonoridade é extraída do interior da narrativa audiovisual, mas as cenas e a

ideologia, como se observa em América e no Jornal Nacional.

Em América, na primeira vinheta constituída, aparece a protagonista em uma bolha de

sabão ao lado da praia olhando para o horizonte. Pelo olhar da protagonista o leitor/telespectador

perceberá que há anseio, que há sonho, mas esse só é explicado pela simbologia que detém a

relação da bolha de sabão com o sonho, ou seja, a semiose que permite a ligação entre esses dois

signos. Fica claro que, nesse ambiente, reside a diferenciação linear entre a vinheta e a iluminura.

Essa última liga-se diretamente ao texto, não havendo necessidade de conhecimento subliminar,

já a outra recupera outros valores, necessários ao entendimento.

O legissigno JN, veiculado pelo Jornal Nacional deixa claro ao leitor/telespectador que

se trata do nome do telejornal que será exibido, porém é só através da leitura dos movimentos e

de outro legissigno, no caso, o globo terrestre, que se identifica a ideologia de que o JN visualiza

e noticia o que o acontece no Planeta.

Os signos inter-relacionados estabelecem uma linguagem que esboçará um discurso

carregado de simbologias, de interpretações, de mitos, enfim, notoriamente emancipados em uma

expressividade que explora o imaginário.

A linguagem não-verbal contida nas vinhetas explora, a partir da correlação com os

signos, o simbolismo discursivo. Há, na semiose gerada pelos signos, um referencial de Remas,

Ícones, Índices, Símbolos, Argumentos que conduzem a uma linguagem híbrida, construtora de

um discurso ideológico fundamentado a partir do imaginário do leitor/telespectador para garantir

a fagocitação do mesmo.

Percebe-se claramente a construção do enunciado concreto.

Nas vinhetas, os enunciados concretos participam de um processo de enunciação, ou

seja, vivem da interação social entre os participantes da enunciação, devido à interação que se dá

entre a vida e o aspecto enunciado, pois “bombeia energia em uma situação de vida para o

discurso verbal, ela dá a qualquer coisa linguísticamente estável o seu momento histórico vivo, o

seu caráter único.” (MELO apud VOLOSHINOV, 2008, p.68)

É na relação da enunciação que se gera a condição de expressividade projetada, em que

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se criam os sentidos e se perfazem os mitos, “pois a língua contém certas predisposições míticas,

um esboço de um aparelho de signos destinados a manifestar a intenção com que é utilizada”

(BARTHES, 2003, p.224).

A enunciação se dá pela relação sígnica, tendo como presságio que a “palavra Signo será

usada para denotar um objeto perceptível, ou apenas imaginável ou mesmo inimaginável num

certo sentido...” (PEIRCE, 2008, p.46). No uso do enunciador concreto o signo apropria-se de

suas tríades para realizar um discurso que engravide o imaginário e o transcenda.

Nasce, então, a diferença do enunciar nas vinhetas de abertura. Ora, se a enunciação é

uma condição da expressividade e se perfaz pela relação entre signos que diferenciam entre si

fomentando condições distintas à enunciação, não seria possível dizer que as vinhetas de

abertura, levando em consideração suas interações com seus momentos históricos e suas

peculiaridades de horário e distinção na programação, tivessem as mesmas características. Logo,

elas apresentam-se em semelhança como micronarrativas que se enlaçam ao contexto do produto

programa a que se relacionam, porém, ainda que sejam ficcionais, estas se particularizam, pois

apresentam leitores/telespectadores distintos. Cabe verificar que cada enunciador constrói seu

enunciado para um leitor/telespectador ideal que, não necessariamente seja o real; assim, a

interação assume condições interpretativas distintas.

Se o leitor/telespectador é em suma o destinatário da mensagem estereotipada nas

vinhetas de abertura, cabe indicar que esse leitor/telespectador pode não ser o destinatário a quem

o enunciador endereçou a mensagem.

O enunciador de cada vinheta de cada programa, sendo ele ficcional ou não, imagina um

leitor/telespectador diferenciado para interagir com o enunciado, no caso vinheta, gerado. Reside,

nesse aspecto, a diferença entre as vinhetas de abertura televisivas. Elas sucumbem às

características de cada programa, de cada horário, de cada público, de cada momento histórico,

enfim, de cada contexto.

As vinhetas de abertura das minisséries globais não apresentam os mesmos moldes das

vinhetas de abertura das telenovelas, pois estão vinculadas a públicos e a horários diferenciados,

além de enunciarem histórias distintas. Apesar de estarem elencadas a narrativas audiovisuais

ficcionais, elas se distinguem pois o caráter do programa-produto que veiculam são distintos.

Enquanto a minissérie se apresenta em capítulos fechados, já demarcados e com final conhecedor

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do autor, do diretor e dos atores, a telenovela está sujeita a modificações, a novas percepções e

alterações, logo, apresentam capítulos abertos, com finais imprevistos.

Não só na estrutura os produtos-programas se diferenciam. As diferenças emergem

também de um cuidado com a produção da trilha sonora e da composição dos personagens, e tais

diferenças foram evidenciadas a partir do estudo realizado na vinheta de abertura da minissérie

Os Maias e da telenovela América. Se em América, a personagem Sol era o veículo do assunto

principal da trama que se emoldurava a partir da travessia ilegal e esse sonho era mostrado ao

leitor/telespectador a partir da efêmera bolha de sabão, do olhar preso ao futuro e ainda da

tonalidade azul, na primeira vinheta, em Os Maias a projeção da personagem que dissecaria a

história vinha metaforizada em uma flor que se abria e não se transformava em papel. Só nesse

primeiro aparato de observação, nota-se que o enunciador elaborou seu discurso de forma distinta

veja que se trata de duas vinhetas vinculadas a narrativas audiovisuais ficcionais, porém já

distintas em seu teor enunciativo.

Enquanto em Os Maias há uma correlação com a minissérie e com a obra queirosiana, que

exige do leitor/telespectador conhecimento literário para decifrar a mensagem, na abertura de

América o leitor/telespectador não precisa de base literária pré-concebida, exige simplesmente

um esforço em entender a relação entre a bolha de sabão e o olhar da protagonista dentro dela.

Há, portanto, discursos distintos, pois há, para o enunciador, um leitor/telespectador

distinto. A percepção da distinção de leitor/telespectadores inicia-se a partir do período de

exibição e do enaltecimento que a emissora dá a cada programa, pois, enquanto a exibição da

telenovela é diária, a da minissérie é pautada nas férias. O horário também evidencia a diferença

entre leitor/telespectador, pois a minissérie é exibida normalmente após a última telenovela, num

horário pertinente não à classe trabalhadora que, em princípio, deverá deitar-se cedo, pois acorda

cedo; ela está vinculada e é projetada, a um público que não possui a necessidade de sair cedo da

cama.

Envolvem-se, então, na enunciação, outros valores sígnicos que emoldurarão o discurso

dessas micronarrativas, pois, para que haja a interação é necessário um mínimo de envolvimento

e, sendo assim, cada leitor/telespectador necessita de um estímulo diferenciado para que o

discurso emanado tenha sentido e seja merecedor de altos índices de Ibope. Afinal, a televisão

não é um livro.

A visualização dessas diferenças são vistas através da relação sígnica esboçada em cada

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uma das vinhetas. Há, na sonoridade sígnica a marca diferencial de público – leitor/telespectador.

Enquanto em Os Maias o signo sonoro é um Prelúdio interpretado por John Neschling e

acompanhado por uma orquestra sinfônica, em América há três momentos, pois há três vinhetas

de abertura: a primeira em que a voz de Milton Nascimento interpreta a música Órfãos do

paraíso, depois, devido à melancolia e ao tom épico que denotavam uma história triste, alterou-se

a voz na segunda vinheta e, finalmente, na terceira vinheta, foi explorada a voz de uma cantora

popular – Ivete Sangalo – interpretando a música Soy loco por ti América que evocava um tom

estonteante e alegre que, apesar de se desvincular da tristeza da ilegalidade, levava ao

leitor/telespectador o contagiante e alegre envolvimento com a trama.

Ao olhar para esses signos sonoros, percebe-se a necessidade de modificar a postura do

enunciador, afinal os desígnios de cada programa e de cada público-alvo são distintos e requerem

um aparato para poder fertilizar a imaginação.

A percepção abdutiva, caracterizada por Peirce como primeridade, é fundamentada de

maneira distinta na postura do enunciador, já que, para despertar no leitor/telespectador tal

percepção, a válvula discursiva tem de apropriar-se de signos que indumentem e abordem

persuasivamente o imaginário desse leitor.

Enquanto em Os Maias a projeção de um ramalhete – emancipado a partir de flores -

que dialoga com a obra homônima de Eça de Queirós, suscita no leitor/telespectador a dúvida

pertinaz de que a minissérie vá narrar fielmente à postura queirosiana, ainda que com outra

linguagem, fagocitando-o, abduzindo-o a fazer a verificação e instaurar secundidades e

terceridades. Em América, a primeridade é facultada a partir da própria protagonista inserida em

uma bolha de sabão que induz o leitor/telespectador a verificar os caminhos do sonho propagado.

Se para Peirce a primeriade é a fase mais importante dos princípios, pois é nesse estágio

que a idéia está sendo gerada, para a enunciação discursiva das vinhetas de abertura e da televisão

propriamente, é muito mais efetiva e importante, porque é a partir dela que acontece o processo

de fagocitação, ou seja, é a partir dessa fase que o leitor/telespectador se engaja, se submete a

acompanhar diariamente a história projetada pela narrativa audiovisual que a vinheta enuncia.

Se nas narrativas audiovisuais ficcionais as vinhetas de aberturas pinçam fragmentos e

constroem uma micronarrativa que dão identidade ao produto-programa, nas vinhetas de abertura

dos telejornais isso se projeta, não a partir de fragmentos, mas a partir da ideologia a que o

enunciador se propõe.

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A relação sígnica indiciada, através da linguagem verbal e não-verbal respectivamente, a

partir de legissignos como o JN – indicação verbal do nome do telejornal estabelecida por

homens, daí caracterizar-se um legissigno – e do legissigno não-verbal, a imagem do globo

terrestre, que indica um legissigno, pois se trata de uma lei humana de representação do Planeta,

projeta aos olhos do leitor/telespectador que o telejornal (produto-programa) que será exibido, no

caso o Jornal Nacional (JN), se valerá de informações e as noticiará com uma visão abrangente e

universal do planeta.

É com base nesses primeiros legissignos que a vinheta fagocita, abduz o

leitor/telespectador, pois, em sua enunciação, faz o mesmo crer que tais notícias são válidas pela

universalidade.

O plano de expressão propagado pela relação intertextual nos signos das linguagens

verbais e não-verbais, como som, ritmo, cor, letras e movimentos engravidam a imaginação do

leitor/telespectador de mitos que se valem de valores como a ética, o respeito, a transparência, a

universalidade e a verdade que deveriam ser a expressão do discurso jornalístico.

Visualiza-se, na vinheta do telejornal, a carnavalização, ou seja, “a mutabilidade dos

fenômenos e fica reforçada a metamorfose contínua da própria existência” (DISCINI, 2006,

p.61). Esse aspecto acomete-se da criação do mito em relação aos valores, muito definidos pelo

contexto da modernidade líquida que apresenta o derretimento de valores, propagados pelo

avanço tecnológico onde “a verdade que torna os homens livres é, na maioria dos casos, a

verdade que os homens preferem não ouvir” (BAUMAN, 2001, p. 26).

A vinheta fecunda a idéia de que o telejornal se apropriará da verdade em seu discurso,

mas a verdade do enunciador, ou seja, daquele que elabora e tem o poder de conduzir o discurso,

um discurso erístico que, ao abranger legissignos imediatos, conduzem à não reflexão, à

aceitação e à submissão dos valores enunciados pela vinheta.

Percebe-se que, diferente das vinhetas das telenovelas e minisséries que fagocitam os

leitores/telespectadores pelo elo intertextual da vinheta e trama, as não ficcionais, dos telejornais,

fixam-se na venda de mitos sobre verdades, diria até que se fixam na criação de um conceito

sobre verdade, afinal, com o aparato tecnológico e iconográfico que a emissora possui fica muito

fácil vivenciar e transformar valores, tendo como presságio a modernidade líquida em que se

projeto o contexto social atual.

A facilidade encontrada em transformar valores e recriá-los se dá pela inexistência da

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interação comunicativa, adotado pelo discurso televisivo erístico e também pela capacidade da

linguagem televisiva de requerer respostas imediatas exigidas pela dinâmica da imagem.

A percepção e leitura do leitor/telespectador fica prejudicada, pois o sincretismo

linguístico que se assegura de ambientes imagéticos transforma o destinatário

(leitor/telespectador) num mero que reprodutor das mensagens que lhes são facultadas sem

exercer sobre elas um mínimo de reflexão, num ato de reação simplesmente.

As reflexões e análises expostas permitem, então, sedimentar a idéia de que as vinhetas

de abertura são micronarrativas diferenciada, que envolvem o leitor/telespectador a partir de uma

relação sígnica que se concretiza no ato da enunciação. Tais relações são propositalmente criadas

pelo enunciador que busca construir um discurso convincente para fagocitar o leitor/telespectador

e fazê-lo engajar-se no programa-produto que as vinhetas emendam.

É fato que, para garantir tal fagocitação do leitor/telespectador, o enunciador se vale da

apropriação do imaginário desse leitor. Para tal apropriação, o enunciador fertiliza o discurso das

vinhetas a partir do contexto sócio-cultural de seu público, ou seja, para cada produto-programa

um público, observando desde o horário do programa até os valores simbólicos que serão

expelidos através de signos que constituirão o discurso.

As vinhetas de abertura não são molduras ou sinetas de chamadas para o produto-

programa que elas anunciam, vão muito além de tudo isso. Elas se traduzem na identidade do

programa que introduzem e são, na verdade, o elo, o nó que aprisionam, que viciam, que inserem

o leitor/telespectador em contato com a trama ou com a ideologia que será tratada nas narrativas

audiovisuais que a procedem pois, afinal, é a partir das vinhetas que se vendem os enredos e que

se enlaçam ideologias, sendo elas o antepasto para saborear o produto-programa, elas que

permitem ao leitor/telespectador conhecer um pouco mais da ideologia da emissora através do

seu discurso.

As vinhetas são obras de arte dentro da programação televisiva, pois sua linguagem

sincrética recheada de simbologias e signos trazem estranhamento aos olhos do

leitor/telespectador, um estranhamento verificado através da primeiridade, a fase das descobertas,

que fecunda o poder abdutivo, recheando-o de hipóteses e dúvidas, momento sublime, segundo

Peirce, em que as idéias são geradas, concebidas.

É no contato com as vinhetas que o leitor/telespectador opta ou não por assistir ao

primeiro capítulo e, por conseqüência, acompanhar o programa, é através do signo sonoro

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emanado pelas vinhetas que se tem a ideia, mesmo estando longe, dos horários, desatando uma

saudade fina de estar em casa, frente à TV, podendo saborear a programação.

Não se pode tratar as vinhetas como um preâmbulo ou um anúncio, elas vão além e

aquém disso, pois permitem ao leitores/telespectador experimentar das três leis da faneroscopia

ditadas por Peirce: quando açoitam o leitor/telespectador de dúvidas sobre o produto-programa,

traduzem-se em primeiridade; ao testarem o gosto desse leitor/telespectador, fundamentam a

secundidade; e quando permitem a esse leitor/telespectador interpretar e crer no programa que as

mesmas elencam, efetivam, enfim, a terceridade.

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