algo a perder? a vergonha!

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algo a perder? : a vergonha! léo pimentel – amante da heresia, cerrado 2003 1 pergunta-se: em que sentido podemos afirmar a vergonha? a vergonha é um estado ou é um acontecimento? se a vergonha for um estado ela se mostra como questionamento geral. se a vergonha for um acontecimento ela se mostra como uma curva de um percurso reto. sendo questionamento geral, ela se dá como uma sensação de perdição. sendo curva ela se dá como uma sensação de perda. na vergonha algo se perde ou está em perdição. perda é desaparecer. perdição é nem mesmo aparecer. desaparecer é não se ter mais referenciais. nem mesmo aparecer é o caso geral de que não há nada a perder - aqui não se tem nada. a vergonha como acontecimento abre um jogo para uma subjetividade referida a uma desaparição particular: a do outro, ou a sua própria. como estado denuncia não a perda, mas o caráter ilusório da própria constituição da posse. 2 na vergonha sinto a impossibilidade geral dos acontecimentos. nada possuo: pudor vazio. o que esconder? o que desaparecer? minha fragilidade, meu efêmero? mas o princípio de tudo o que conheço, penso, sinto e vivo se mostra na fragilidade e no efêmero. na vergonha sinto a verdade primeira de tudo o que existe: a própria vida que perde seu caráter vivente. na vergonha sinto o mundo inerte, casual, estranho a toda natureza; perco a própria idéia de alguma natureza. na vergonha emerge a ausência original da vida. as "forças" que aqui atuam me levam para fora: aqui não tenho nada a guardar; aqui sou conservador sem objetos para conservar. 3 vergonha é isso que não se pensa, mas isso a partir do que todos os pensamentos insistem razões de ser. vergonha designa sempre não um objeto, mas um ponto de vista; um certo ângulo de visão. pois o que está sujeito a desaparecer? o desaparecimento da possibilidade de acontecimento, respondo na falta de algo mais frágil e provisório. a vergonha como acontecimento a desaparecer surge quando o mais familiar vem-se superpor ao mais desconhecido: sou incapaz em reconhecer ou constituir uma natureza; sou inapto à existência. sinto

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pergunta-se: em que sentido podemos afirmar a vergonha? a vergonha é um estado ou é um acontecimento? se a vergonha for um estado ela se mostra como questionamento geral. se a vergonha for um acontecimento ela se mostra como uma curva de um percurso reto. sendo questionamento geral, ela se dá como uma sensação de perdição. sendo curva ela se dá como uma sensação de perda. na vergonha algo se perde ou está em perdição. perda é desaparecer. perdição é nem mesmo aparecer. desaparecer é não se ter mais referenciais. nem mesmo aparecer é o caso geral de que não há nada a perder - aqui não se tem nada. a vergonha como acontecimento abre um jogo para uma subjetividade referida a uma desaparição particular: a do outro, ou a sua própria. como estado denuncia não a perda, mas o caráter ilusório da própria constituição da posse.

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  • algo a perder? : a vergonha!

    lo pimentel amante da heresia, cerrado 2003

    1

    pergunta-se: em que sentido podemos afirmar a vergonha? a

    vergonha um estado ou um acontecimento? se a vergonha for um

    estado ela se mostra como questionamento geral. se a vergonha for

    um acontecimento ela se mostra como uma curva de um percurso reto.

    sendo questionamento geral, ela se d como uma sensao de

    perdio. sendo curva ela se d como uma sensao de perda. na

    vergonha algo se perde ou est em perdio. perda desaparecer.

    perdio nem mesmo aparecer. desaparecer no se ter mais

    referenciais. nem mesmo aparecer o caso geral de que no h nada

    a perder - aqui no se tem nada. a vergonha como acontecimento abre

    um jogo para uma subjetividade referida a uma desapario particular:

    a do outro, ou a sua prpria. como estado denuncia no a perda, mas

    o carter ilusrio da prpria constituio da posse.

    2

    na vergonha sinto a impossibilidade geral dos acontecimentos. nada possuo: pudor vazio. o que

    esconder? o que desaparecer? minha fragilidade, meu efmero? mas o princpio de tudo o que conheo, penso,

    sinto e vivo se mostra na fragilidade e no efmero. na vergonha sinto a verdade primeira de tudo o que existe: a

    prpria vida que perde seu carter vivente. na vergonha sinto o mundo inerte, casual, estranho a toda natureza;

    perco a prpria idia de alguma natureza. na vergonha emerge a ausncia original da vida. as "foras" que aqui

    atuam me levam para fora: aqui no tenho nada a guardar; aqui sou conservador sem objetos para conservar.

    3

    vergonha isso que no se pensa, mas isso a partir do que todos os pensamentos insistem razes de

    ser. vergonha designa sempre no um objeto, mas um ponto de vista; um certo ngulo de viso. pois o que est

    sujeito a desaparecer? o desaparecimento da possibilidade de acontecimento, respondo na falta de algo mais

    frgil e provisrio. a vergonha como acontecimento a desaparecer surge quando o mais familiar vem-se superpor

    ao mais desconhecido: sou incapaz em reconhecer ou constituir uma natureza; sou inapto existncia. sinto

  • vergonha ao sentir que estou no meio do nascer e do morrer. sinto vergonha de ser uma obscura aparncia e

    sombra. sem pudor, sou uma incerta e dbil opinio.

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    todo acontecimento se mostra como um reflexo do estado. toda perda se mostra como um reflexo da

    perdio. todo desaparecimento se mostra como um reflexo do nem mesmo aparecido. ao sentir vergonha sinto

    que existe "alguma coisa", mas essa alguma coisa no nada; nenhum dos seres concebidos e concebveis. ao

    sentir vergonha excluo da existncia a prpria noo de ser. uma constatao emprica da vergonha. sentir

    vergonha definir; definir determinar uma natureza; ora, nenhuma natureza . no estado de vergonha vejo o

    mais forte elo de toda forma de racionalismo: tudo se repete. sem vergonha sou o mundo em festa: irrupes

    inesperadas, excepcionais; no sobrevindo seno uma vez e que no se pode apreender seno uma vez.

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    de maneira geral, o pensamento da vergonha tambm admite, para caracterizar o conjunto dos modos

    de existncia, seno o estatuto da exceo. tudo excepcional. no tenho nada a perder. no h o que possuir.