algumasprovas da existência real de hebert quain

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Algumas provas da existência real de Herbert Quain Todos conhecemos aquela pintura de Magritte que representa uma maçã e em que ao mesmo tempo se nos diz: «Isto não é uma maçã.» Realmente a pintura tem razão, o que Magritte fez não foi uma maçã, mas sim uma representação dela. Não obstante, e apesar da própria evidência e do aviso do pintor, temos continuado a afirmar, quando olhamos o quadro ou quando o recordamos: «Aquilo é uma maçã.» Tal como Magritte, sinto também eu, neste momento, o dever de vos prevenir de que isto não é uma conferência. Não me surpreenderia, porém, que, terminada ela, um de vós, mais severamente condicionado pelo ritual destes acontecimentos literários, diga ao vizinho: «Isto foi uma conferência.» Espero que esse vizinho tenha a coragem de responder: «Não foi uma conferência, foi só a intenção de uma conferência.» Desafiando o vosso mais do que fundamentado cepticismo, chamei a isto que não é conferência Algumas Provas da Existência Real de Herbert Quain. De facto, de acordo com o que Borges permitiu que conhecêssemos deste assunto, a circunstância de Herbert Quain ter escrito uns quantos livros não seria prova suficiente de que tivesse existido como pessoa. Alguém viu um retrato de Quain? Uma amostra da sua caligrafia? O desenho das suas impressões digitais? O passaporte? Uma notícia no Larousse ou na Enciclopédia Britânica? Uma carta de amor por ele escrita ou por ele recebida? Não, ninguém viu, ninguém leu, portanto Borges parece ter razão, Herbert Quain não existiu, tudo foi um puro jogo. Mas como pode ter sido tudo um puro jogo se o próprio Borges afirma ter lido esses livros, e entre eles um que se chamaThe god ofthe labyrinth? E não só declara que o leu como nos dá precisas indicações sobre a intriga policial que nele se narra... Por outro lado, parece- me dificilmente aceitável que alguém gaste o seu tempo a proclamar a não existência de uma pessoa, ao mesmo tempo que nos vai informando do lugar onde essa pessoa faleceu. Segundo Borges, o escritor Herbert Quain terá morrido numa cidade chamada Roscommon, porém não nos diz de que Roscommon se trata. Ignorava Borges que há dois lugares no mundo com esse

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Page 1: algumasprovas da existência real de hebert quain

Algumas provas da existência real de Herbert Quain

Todos conhecemos aquela pintura de Magritte que representa uma

maçã e em que ao mesmo tempo se nos diz: «Isto não é uma maçã.»

Realmente a pintura tem razão, o que Magritte fez não foi uma maçã,

mas sim uma representação dela. Não obstante, e apesar da própria

evidência e do aviso do pintor, temos continuado a afirmar, quando

olhamos o quadro ou quando o recordamos: «Aquilo é uma maçã.» Tal

como Magritte, sinto também eu, neste momento, o dever de vos

prevenir de que isto não é uma conferência. Não me surpreenderia,

porém, que, terminada ela, um de vós, mais severamente condicionado

pelo ritual destes acontecimentos literários, diga ao vizinho: «Isto foi

uma conferência.» Espero que esse vizinho tenha a coragem de

responder: «Não foi uma conferência, foi só a intenção de uma

conferência.»

Desafiando o vosso mais do que fundamentado cepticismo, chamei

a isto que não é conferência Algumas Provas da Existência Real de

Herbert Quain. De facto, de acordo com o que Borges permitiu que

conhecêssemos deste assunto, a circunstância de Herbert Quain ter

escrito uns quantos livros não seria prova suficiente de que tivesse

existido como pessoa. Alguém viu um retrato de Quain? Uma amostra

da sua caligrafia? O desenho das suas impressões digitais? O

passaporte? Uma notícia no Larousse ou na Enciclopédia Britânica?

Uma carta de amor por ele escrita ou por ele recebida? Não, ninguém

viu, ninguém leu, portanto Borges parece ter razão, Herbert Quain não

existiu, tudo foi um puro jogo. Mas como pode ter sido tudo um puro

jogo se o próprio Borges afirma ter lido esses livros, e entre eles um que

se chamaThe god ofthe labyrinth? E não só declara que o leu como nos

dá precisas indicações sobre a intriga policial que nele se narra... Por

outro lado, parece-me dificilmente aceitável que alguém gaste o seu

tempo a proclamar a não existência de uma pessoa, ao mesmo tempo

que nos vai informando do lugar onde essa pessoa faleceu. Segundo

Borges, o escritor Herbert Quain terá morrido numa cidade chamada

Roscommon, porém não nos diz de que Roscommon se trata. Ignorava

Borges que há dois lugares no mundo com esse nome, um na Irlanda,

outro nos Estados Unidos? Tendo em conta que só em dois jornais – The

Times e The Spectator –, ambos ingleses, apareceram artigos por

ocasião da morte de Quain, somos levados a crer que o Roscommon

mencionado é o irlandês. No entanto, basta que nos lembremos do

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enorme número de irlandeses que vivem nos Estados Unidos para

termos de admitir a hipótese de que o irlandês Herbert Quain teria

emigrado para os Estados Unidos e por lá se teria deixado ficar. Dir-me-

ão que nenhum jornal norte-americano falou da sua obra ou da sua vida,

mas isso, como a experiência nos tem ensinado, nada prova...

No meio de tantas e tão sérias contradições, desorientados num

labirinto aparentemente sem saída, seria mais cómodo que

renunciássemos ao exame do Examen de la obra de Herbert Quain e

aceitássemos que, tal como o francês Pierre Menard havia sido uma

invenção de Borges, também o haveria sido o irlandês Herbert Quain.

Perseveremos no entanto um pouco mais. A invenção de Pierre Menard,

de cuja existência real não temos efectivamente provas, aconteceu em

1939, e, pouco tempo depois, em 1941, ocorreu aquilo a que, pela

mesma ordem de razões, poderíamos chamar «a invenção de Herbert

Quain». Simplesmente, ao contrário de Menard, o autor de The god of

the labyrinth existiu mesmo. Não foram achadas cartas de amor, nem

fotografias, nem impressões digitais, nem amostras caligráficas, mas há

provas consistentes, tanto das objectivas como das subjectivas, da sua

passagem pelo mundo e da sua efectiva actividade de escritor. Como

passarei a demonstrar.

No final de 1935, isto é, dois anos depois da publicação de The

god of the labyrinth, um exemplar deste livro, pelo menos um exemplar,

fazia parte da biblioteca de um barco inglês denominado Highland

Brigade. Requisitou-o ao respectivo bibliotecário um poeta português,

Ricardo Reis, embarcado no Rio de Janeiro, e de quem, curiosamente,

durante muitos anos, também se disse que não tinha existido. Ora, não é

necessário ter estudado lógica intuicionista para compreender que duas

proposições contraditórias não podem ser, ambas, falsas. Como se

aplica isto a Ricardo Reis e a Herbert Quain? Aceitando, ainda que com

recurso ao paradoxo, que se um deles é autêntico, também o pode ser o

outro. Além disso, temos a prova do livro. Ao desembarcar em Lisboa, o

poeta Ricardo Reis, por esquecimento, não devolveu The god of the

labyrinth à biblioteca. São coisas que estão sempre a suceder, esquecer-

nos de devolver um livro.... Foi só no hotel que Reis, ao abrir as malas,

deu com The god. Digamos, pois, que a existência material do livro fica

claramente demonstrada pelo facto de que, em primeiro lugar, Ricardo

Reis o encontrou e, em segundo lugar, o levou consigo para o hotel.

Devo dizer já que Ricardo Reis, apesar de o ter tentado não poucas

vezes, não chegou a terminar a leitura de The god of the labyrinth: este

facto impediu-me de conhecer, sobre o conteúdo da obra, muito mais do

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que o pouquíssimo que nos disse Borges... As casualidades da vida são

uma realidade, bastará dar-lhes um mínimo de atenção para

compreender que as pessoas e as coisas estão todas relacionadas umas

com as outras, o que acontece, infelizmente, é que nem sempre

sabemos onde se encontra o fio que as liga, e algumas vezes temo-lo na

mão e só nos apercebemos demasiado tarde. A mim surpreende-me

muito que Borges não tenha escrito, por exemplo, O Ano da Morte de

Ricardo Reis. Borges não ignorava, certamente, que o poeta português

era médico e monárquico, que tinha ido para o Brasil em 1919, e que

em 1935, depois de receber a notícia da morte de Fernando Pessoa,

regressou a Lisboa. Foi deste pouco que se veio a fazer o romance. Ora,

se Borges tinha sido capaz de inventar Pierre Menard e Herbert Quain,

está claro que para ele teria sido uma brincadeira de crianças dar vida a

Ricardo Reis. Talvez não o tenha feito precisamente por ser tão fácil.

Vejamos agora, em pormenor, as provas suplementares da

existência real de Quain. Vejamos o que nos diz O Ano da Morte de

Ricardo Reis: «Deixou a janela aberta, foi abrir a outra, e, em mangas

de camisa, refrescado, com um vigor súbito, começou a abrir as malas,

em menos de meia hora as despejou, passou o conteúdo delas para os

móveis, para os gavetões da cómoda, os sapatos na gaveta-sapateira, os

fatos nos cabides do guarda- roupa, a mala preta de médico num fundo

escuro de armário, e os livros numa prateleira, estes poucos que

trouxera consigo, alguma latinação clássica de que já não fazia leitura

regular, uns manuseados poetas ingleses, três ou quatro autores

brasileiros, de portugueses não chegava a uma dezena, e no meio deles

encontrava agora um que pertencia à biblioteca do Highland Brigade,

esquecera-se de o entregar antes do desembarque. A esta horas, se o

bibliotecário irlandês deu pela falta, grossas e gravosas acusações hão-

de ter sido feitas à lusitana pátria, terra de escravos e ladrões, como

disse Byron e dirá O’Brien, destas mínimas causas, locais, é que

costumam gerar-se grandes e mundiais efeitos, mas eu estou inocente,

juro-o, foi deslembrança, só, e nada mais. Pôs o livro na mesa-de-

cabeceira para um destes dias o acabar de ler, apetecendo, é seu título

The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês também, por

não singular coincidência, mas o nome, esse sim, é singularíssimo, pois

sem máximo erro de pronúncia se poderia ler, Quem, repare-se, Quain,

Quem, escritor que só não é desconhecido porque alguém o achou no

Highland Brigade, agora, se lá estava em único exemplar, nem isso,

razão maior para perguntarmos nós, Quem. O tédio da viagem e a

sugestão do título o tinham atraído, um labirinto com um deus, que deus

seria, que labirinto era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um

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simples romance policial, uma vulgar história de assassínio e

investigação, o criminoso, a vítima, se pelo contrário não preexiste a

vítima ao criminoso, e finalmente o detective, todos três cúmplices da

morte, em verdade vos direi que o leitor de romances policiais é o único

e real sobrevivente da história que estiver lendo, se não é como

sobrevivente único e real que todo o leitor lê toda a história.»

Um pouco mais adiante, Ricardo Reis vai para a cama. «[...] abriu

o livro que tinha à cabeceira, o de Herbert Quain, passou os olhos por

duas páginas sem dar muita atenção ao sentido do que lia, parecia que

tinham sido encontradas três razões para o crime, suficiente cada uma

para incriminar o suspeito sobre quem conjuntamente convergiam, mas

o dito suspeito, usando o direito e cumprindo o dever de colaborar com

a justiça, sugerira que a verdadeira razão, no caso de ter sido ele, de

facto, o criminoso, ainda poderia ser uma quarta, ou quinta, ou sexta

razões, igualmente suficientes, e que a explicação do crime, os seus

motivos, se encontrariam, talvez, só talvez, na articulação de todas

essas razões, na sua acção recíproca, no efeito de cada conjunto sobre

os restantes conjuntos e sobre o todo, na eventual mas mais do que

provável anulação ou alteração de efeitos por outros efeitos, e como se

chegara ao resultado final, a morte, e ainda assim era preciso averiguar

que parte de responsabilidade caberia à vítima, isto é, se esta deveria

ou não ser considerada, para efeitos morais e legais, como uma sétima e

talvez, mas só talvez, definitiva razão. Sentia-se reconfortado, a botija

aquecia-lhe os pés, o cérebro funcionava sem ligação consciente com o

exterior, a aridez da leitura fazia-lhe pesar as pálpebras. Fechou por

alguns segundos os olhos e quando os abriu estava Fernando Pessoa

sentado aos pés da cama, como se viesse de visita a um doente, [...]»

Tenho uma dúvida, não sei se Borges escreveu isto, ou se eu o

copiei. O que é evidente é que este jogo mais se assemelha aos inventos

de Borges que a operações de que eu seja geralmente autor. Já agora, e

antes que me esqueça, aclaro que Fernando Pessoa não aparece

embrulhado num lençol branco, não atravessa as paredes, bate à porta

como faria qualquer mortal e, se lha abrem, entra.

Depois do encontro com Fernando Pessoa, «[...] abriu The god of

the labyrinth, leu página e meia, percebeu que se falava de dois

jogadores de xadrez, mas não chegou a concluir se eles jogavam ou

conversavam, as letras confundiram-se-lhe diante dos olhos, largou o

livro [...]»

Mais tarde retomou a leitura, sentou-se na cadeira onde estivera

Fernando Pessoa, com um dos cobertores da cama tapou os joelhos, e

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pôs-se a ler, começando outra vez da primeira página: «O corpo, que foi

encontrado pelo primeiro jogador de xadrez, ocupava, de braços

abertos, as casas dos peões do rei e da rainha e as duas seguintes, na

direcção do campo adversário.»

Devo notar que as palavras que acabei de ler não são referidas

por Jorge Luis Borges no seu Examen de la obra de Herbert Quain, mas

podem ser lidas no Ano da Morte de Ricardo Reis, o que é mais uma

prova da existência de The god of the labyrinth e, portanto, do seu

autor, isto é, graças à leitura feita por Reis ficámos a saber algo mais do

conteúdo do livro de Quain. Prossigo: «Continuou a leitura, mas, mesmo

antes de chegar ao ponto em que deixara a história, começou a sentir-se

sonolento. Deitou-se, leu ainda duas páginas com esforço, adormeceu na

clareira de um parágrafo, entre os lances trigésimo sétimo e trigésimo

oitavo, quando o segundo jogador reflectia sobre o destino do bispo.»

Tereis observado que toda a minha preocupação, até agora, tem

estado centrada na apresentação e defesa das provas da existência real

de Herbert Quain, e que, para alcançar esse objectivo, me tenho servido

de um romance publicado em 1984 com o título de O Ano da Morte de

Ricardo Reis. É tempo, portanto, de me antecipar a alguma dúvida que

se esteja formando no vosso espírito sobre a existência real, não de

Herbert Quain, mas de Ricardo Reis. Se não o fiz até agora foi por

pudor de introduzir factos e circunstâncias da minha vida pessoal numa

demonstração que está obrigada a respeitar, pelo menos, os limites de

uma aceitável verosimilhança literária. Embora temendo que não ireis

poder reprimir a incredulidade, arrisco-me a ler uma passagem de O

Ano da Morte de Ricardo Reis em que se descreve um episódio da

viagem que Reis fez a Fátima para encontrar uma rapariga de quem se

julgava enamorado. Ei-la: «Ricardo Reis baixou a vidraça, olhou para

fora. Uma mulher idosa, descalça, vestida de escuro, abraçava um

rapazinho magro, de uns treze anos, dizia, Meu rico filho, estavam os

dois à espera de que o comboio recomeçasse a andar para poderem

atravessar a linha, [...]»

Ora, por mais incrível que vos pareça, aquele rapaz de treze anos

que desceu do comboio na estação de Mato de Miranda em 1936, era

eu. É verdade que hoje, passados tantos anos, me será impossível

recordar se um senhor com cara de médico e de poeta esteve a olhar

para mim quando eu abraçava a minha avó, mas se Ricardo Reis afirma

que me viu da janela do comboio, quem sou eu para atrever-me a dizer

o contrário? Se eu estava onde Ricardo Reis diz que me viu, isso só pode

significar que Ricardo Reis existiu de facto, uma vez que eu estava ali,

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de facto, naquele dia. Salvo se, a par das dúvidas sobre a existência de

Quain e Reis, começássemos a ter também dúvidas sobre a minha

própria existência. Espero que não me obriguem a apresentar provas

dela. Como quer que seja, creio ter deixado claramente demonstrado

que há, ou pelo menos houve-a quando eu tinha treze anos, uma relação

directa e quase visceral entre Borges, Herbert Quain, Ricardo Reis e eu

próprio.

Adiante. Chega um momento em que Ricardo Reis debate consigo

mesmo se deve continuar em Lisboa ou regressar ao Rio de Janeiro.

Faltou-me dizer que Reis tem uma ligação mais carnal do que

sentimental, o que não deve surpreender-nos, com uma criada do hotel

onde se encontra hospedado. Fraquezas da carne... Ela chama-se Lídia,

que, como sabeis, é o nome de uma daquelas incorpóreas criaturas que

serviram de musas e pretextos a Reis em algumas das suas odes. Esta

informação era indispensável à compreensão do que se segue: «E até

poderia pôr Lídia como empregada, a atender os doentes, Lídia é

inteligente, desembaraçada, em pouco tempo se faria capaz, com algum

estudo deixaria de cometer erros de ortografia, livrava-se daquela vida

de criada de hotel. Porém, isto nem é sequer sonhar mas simples

devaneio de quem se entretém com o pensamento ocioso, Ricardo Reis

não irá procurar trabalho, o melhor que tem a fazer é voltar ao Brasil,

tomar o Highland Brigade na sua próxima viagem, discretamente

restituirá The god of the labyrinth ao seu legítimo proprietário, nunca

O’Brien saberá como este livro desaparecido tornou a aparecer. Chegou

Lídia, deu as boas-tardes um pouco cerimoniosa, retraída, e não fez

perguntas, foi ele quem teve de falar primeiro, Lá estive em Fátima, e

ela condescendeu em querer saber, Ah, e então, gostou, como há-de

Ricardo Reis responder, não é crente para ter experimentado êxtases e

esforçar-se agora por explicar o que êxtases são, também não foi lá

como simples curioso, por isso prefere resumir, generalizar, Muita

gente, muito pó, tive de dormir ao relento, bem me tinhas avisado, o

que valeu foi estar a noite quente, O senhor doutor não é pessoa para

esses trabalhos, Foi uma vez para saber como era. Lídia já está na

cozinha, faz correr a água quente para lavar a louça, em palavra e meia

deu a entender que hoje não pode haver carnalidades, palavra que,

evidentemente, não faz parte do seu vocabulário corrente, duvida-se

mesmo que a use em ocasiões de eloquência máxima. Ricardo Reis não

se aventurou a averiguar das razões do impedimento, seriam os

conhecidos embaraços fisiológicos, seria a reserva duma sensibilidade

magoada, ou conjunção imperiosa de sangue e lágrima, dois rios

intransponíveis, mar tenebroso. Sentou-se num banco da cozinha, a

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assistir aos trabalhos domésticos, não que fosse costume seu, mas em

sinal de boa vontade, bandeira branca que desponta por cima das

muralhas a tentear os humores do general sitiante, [...]»

Rebenta então a guerra civil em Espanha. Lídia tem um irmão

marinheiro que é militante político de esquerda, comunista, para que

fique tudo dito. Ela própria, mais por intuição de pobre do que por

conhecimentos de ilustrada, partilha das ideias de Daniel, que é o nome

desse seu irmão. Lídia fala a Ricardo Reis do massacre de duas mil

pessoas pelo exército de Franco na praça de touros de Badajoz: «[...] a

praça de touros abriu as portas para receber os milicianos prisioneiros,

depois fechou-se, é a fiesta, as metralhadoras entoam olé, olé, olé,

nunca tão alto se gritou na praça de Badajoz, os minotauros vestidos de

ganga caem uns sobre os outros, misturando os sangues, transfundindo

as veias, quando já não restar um só de pé irão os matadores liquidar, a

tiro de pistola, os que apenas ficaram feridos, e se algum veio a escapar

desta misericórdia foi para ser enterrado vivo. De tais acontecimentos

não soube Ricardo Reis senão o que lhe disseram os seus jornais

portugueses, um deles, ainda assim, ilustrou a notícia com uma

fotografia da praça, onde se viam, espalhados, alguns corpos, e uma

carroça que ali parecia incongruente, não se chegava a saber se era

carroça de levar ou de trazer, nela tinham sido transportados os touros

ou os minotauros. O resto soube-o Ricardo Reis por Lídia, que o soubera

pelo irmão, que o soubera não se sabe por quem, talvez um recado que

veio do futuro, quando enfim todas as coisas puderem saber-se. Lídia já

não chora, diz, Foram mortos dois mil, e tem os olhos secos, mas os

lábios tremem-lhe, as maçãs do rosto são labaredas. Ricardo Reis vai

para consolá-la, segurar-lhe o braço, foi esse o seu primeiro gesto,

lembram-se, mas ela furta-se, não o faz por rancor, apenas porque hoje

não poderia suportá-lo. Depois, na cozinha, enquanto lava a louça suja

acumulada, desatam-se-lhe as lágrimas, pela primeira vez pergunta a si

mesma o que vem fazer a esta casa, ser a criada do senhor doutor, a

mulher-a-dias, nem sequer a amante porque há igualdade nesta palavra,

amante, amante, tanto faz macho como fêmea, e eles não são iguais, e

então já não sabe se chora pelos mortos de Badajoz, se por esta morte

sua que é sentir-se nada. Lá dentro, no escritório, Ricardo Reis não

suspeita o que se está passando aqui. Para não pensar nos dois mil

cadáveres, que realmente são muitos, se Lídia disse a verdade, abriu

uma vez mais The god of the labyrinth, ia ler a partir da marca que

deixara, mas não havia sentido para ligar com as palavras, então

percebeu que não se lembrava do que o livro contara até ali, voltou ao

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princípio, recomeçou, O corpo, que foi encontrado pelo primeiro jogador

de xadrez, [...]»

Objectareis agora: «Muito bem, aceitemos, à vista das provas

apresentadas, que Herbert Quain realmente existiu. Mas falta ainda a

prova final. Sabe o senhor José Saramago onde está o livro que ele

escreveu?» Tenho resposta para esta interpelação. Em primeiro lugar,

recordo que só temos notícia da existência de dois exemplares de The

god of the labyrinth, aquele que Borges leu e aquele que Ricardo Reis

levou da biblioteca do Highland Brigade. Do primeiro não se me podem

pedir contas. Tanto quanto se sabe, não foi encontrado na biblioteca de

Jorge Luís Borges. Quanto ao segundo exemplar, esse sim, estou em

condições de poder dizer-vos o que lhe sucedeu: «Estavam no quarto,

Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa cadeira.

Anoitecera por completo. Meia hora passou assim, ouviram-se as

pancadas de um relógio no andar de cima, É estranho, pensou Ricardo

Reis, não me lembrava deste relógio, ou esqueci-me dele depois de o ter

ouvido pela primeira vez. Fernando Pessoa tinha as mãos sobre o joelho,

os dedos entrelaçados, estava de cabeça baixa. Sem se mexer, disse,

Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu

tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha para uns

meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis subiu o nó da

gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa-de-cabeceira buscar

The god of the labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse,

Para onde é que você vai, Vou consigo, Devia ficar aqui, à espera da

Lídia, Eu sei que devia, Para a consolar do desgosto de ter ficado sem o

irmão, Não lhe posso valer, E esse livro, para que é, Apesar do tempo

que tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o

tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde,

lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis,

uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas mesmo

assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma.»

Creio ter apresentado provas suficientes da existência real de Herbert

Quain. Faltou-me, materialmente falando, a prova que nos faria a

reconhecer em Quain essa qualidade de autor, isto é, um livro

chamadoThe god of de labyrinth. Lamento a minha insuficiência. E

lamento mais ainda que já seja demasiado tarde para chamar a este

tribunal as testemunhas mais idóneas: Ricardo Reis e Jorge Luis Borges.

Permita-se-me ainda um último comentário. O facto indesmentível

de Ricardo Reis ter tido em seu poder o livro de Quain autorizou-me a

vir a Bérgamo participar num colóquio sobre o autor de Ficciones.

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Suponho ter ficado igualmente demonstrado que Borges não tinha uma

informação completa sobre um escritor que ele supôs ter apenas

imaginado e sobre o livro que lhe atribuiu. Devemos esperar tudo,

principalmente o que nos parecer impossível, quando heterónimos,

pseudónimos e similares se põem a viver por sua própria conta. Dividida

entre o respeito que deve ao que Borges escreveu sobre Quain e o

testemunho definitivo de Ricardo Reis, a cidade de Bérgamo não saberá,

neste momento, o que pensar. Dêmos tempo ao tempo, esperemos que

as paixões acalmem. A verdade acabará por triunfar.