américa - hendrik willen van loon

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Page 1: América - Hendrik Willen Van Loon

H. Van Loon

H

iMÍRICA

Page 2: América - Hendrik Willen Van Loon

£ e i a t a m b é m :

AS A R T E Spor H. W. van L o o n

Pela primeira vez podemos en­

contrar, num único volume, tôdas

as artes reunidas e interpretadas

por um escritor que também é um

grande artista na divulgação dos

conhecimentos humanos. Trata-se

do livro “As Artes”, escrito pelo

célebre escritor Hendrik Willem

van Loon, o famoso autor de “O

M undo em que vivemos”, “Histó­

ria da H um anidade”, “Navios”,

“América", e outras obras de gran­

de repercussão mundial.

Através de 850 páginas, escritas

como apenas van Loon poderia es-

crevê-las, ilustradas como apenas

van Loon poderia ilustrá-las, com

180 ilustrações, muitas delas colo­

ridas, acompanhamos a s e c u l a r

busca da beleza feita pelo homem.

Realizando, por fim, a unidade

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V

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E D I T O R A G L O B O RIO DE JANEIRO — PÔRTO ALEGRE — SÃO PAULO

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Título do original norte-am ericanc "A M E R IC A "

5.a Edição

1 9 5 7

D IR E IT O S E X C LU SIV O S DESTA TRADUÇÃC , E M L ÍN G U A PO R TD G U ÊSA .ED ITO R A GLOBO S. A. ---- PÔRTO A L E G líE ---- R IO GRANDE DO S C I

ESTADOS rX ID O S 10 B R A SIL

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B IL L JO H N ST O N

E

FIA T T IE -B E L L E

Mr. c Mrs. W illiam Johnston, se preferem )

Porque éles representam de maneira m u i cabal aquela rara virtude que se conta entre as dádivas que nossa Pátria até agora tem proporcionado a êste m undo belo e triste:

BONDADE CHEIA DE COM PREENSÃO

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Í N D I C E

Capítulo IPrecisa-se de especiarias baratas e abundantes ........................................ 9Capítulo IIUm mundo imprevisto ................................................................................. V)Capítulo IIIA fé, o ouro e os índios ................................................................................ 53Capítulo IVTierras de ningun provecho ........................................................................ 40Capítulo VSamuel de Champlain de Brouage aprende a nobre arte do remo . . 45 Capítulo VIO dr. Calvino vigia êste mundo e o outro ........................................ 52Capítulo VIIDe hereges a “ highjackers” .................................................................... 57

Capítulo V IIIHerba santa indorum ......................................................................................... 64Capítulo IXUma nova Sião a vinte graus abaixo de zero .................................... 74Capítulo XOs que desesperaram da pátria fundam uma Inglaterra nova e mais

feliz nas margens ocidentais do Atlântico .................................... 82Capítulo X IA companhia holandesa das índias Ocidentais faz um mau negócio 89 Capítulo X IIOs suecos chegam duzentos anos cedo demais ...................................... 101Capítulo X IIIUma colónia aberta a tôdas as nações ................................................. 106Capítulo XIVColonização por Deus e pelo acaso .............................................................. 115Capítulo XVUm império criado por um edito real ................................................... 119Capital XVIHorizontes de esperança ............................................................................... 129Capítulo XV IIUm jôgo real e imperial: tomar terras ............................................... 134Capítulo X V IIIO comêço da era moderna .......................................................................... 141Capítulo X IXGeorge Greenville torna-se "perito de eficiência" ................................ 143

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Capítulo X XChá ho’andés e melaço francês ............................................................ 1-1?Capítulo XXIO rude bom-scnso das fronteiras ................................................................ 15oCapítulo X X IIO advogado Adams de Quincy, M a ss .. . e seu primo Sim entram

na política ativa ..................................................................................... I OCaj)ítu!o X X IIIO comandante das íòrças coloniais de Sua Majestade vÔ-se obrigado

a comunicar algumas más notícias ..................................................... 165Capítulo XX IVO General George Washington, do condado de Fairfaix, na Virgínia,

enverga sua velha farda ........................................................................ 172Capítulo XXVM r. Thomas Jefferson do condado de Allcrmale, Virgínia, mostra

as grandes vantagens da educação clássica .................................... 17óCapítulo XXVIü rei George I I I torna-se um herói popul. r em seu país ............... 1S6Capítulo X X V IILord Xorth obrigado a ficar acordado ............................................... 191Capítulo X X V IIIü dr. Benjamia Frankün, o conhecido impressor de Filadélfia, Pa,

apela para os descendentes de S. Luís ................. . ........................... 195Capítulo X X IXJean Jacqu&s Rousseau escreve um livro e o .Marquês de la Fayette

vai estudar os encantadores filhos da natureza dos desertos ame­ricanos ........................................ .................................................................. 20*

Capítulo XX XA mãe-pátria procura tirar o melhor partido de um mau negócio e

os homens da fronteira aproveitam-se de uma *»oa transação . . 214- Capítulo X X X IO convênio que salva uma nação e funda um império ................... 21?Capítulo X X X IIMr. Alexandre Hamilton, da ilha de Xevis (11. W. I .) , põe o país em

sólidas bases comerciais, e George Washington, esq. volta enve­lhecido e triste para M ount Vernon ............................................. 22?

Capítulo X X X IIISua excelência o Presidente Adams apren le que existem revoluções

e revoluções .................................. ............................................................. 241Capítulo XXXIVO Presidente Tomas Jefferson dos Estados Unidos da América e o

Imperador Napoleão reaüzam uma transação importante . . . . 249 Capítulo XXXVA mãe-pátria faz uma última visita ................................................... .. 263

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Capítulo XX XVIO Presidente James Monroe cumprimenta 2 Santa Aliança c Simão

Bolívar inicia a fundação de uin novo mundo ..........................Capítulo X X X V IIA nova fé ..........................................................................................................Capítulo X X X V IIID itadura ...............................................................................................................

Capítulo X X X IXRabiscadores frívolos e inúteis tocadores de fiauta ................................Capítulo XLO Presidente Santana do México verifica que a natureza tcni mesmo

horror ao vácuo ...........................................................................................Capítulo XLI'T io Sam” e “ Pai João” ........................................................................Capitulo XLIIUm contrato penoso .........................................................................................Capítulo X L IIIUm obscuro advogado de Illinois ofcrecc-se para tornar a questão Capítulo XLIVO caso é submetido ao júri ..................................................... . ................Capítulo XLVO caso fica decidido para sempre ............................................................Capítulo XLVIO último dos conquistadores vclta para casa num caixão ...........Capítulo XLVIIO prego de ouro de U tá .................................................................................Capítulo X LV IIIDecadência e queda do terceiro ciclo da civilizarão americana . . Capítulo X LIXOs “ cento por cento” e os novos emigrantes .............................................Capítulo LO predomínio das coisas ........................................................................Capítulo LIPrecisa-se de matéria-primas baratas e abundantes ................................Capítulo LIIUm mundo imprevisto .....................................................................................Capítulo L IIINovos rumos para os Estados-Unidos .................................................

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CA PÍTU LO I

PRECISA-SE D E ESPECIARIAS BARATAS E ABUNDANTES

. A corporação dos merceeiros se achava em terríveis dificuldi.- des;. Seu abastecimento de especiarias estava prestes a esgotar-se,. E a procura excedia tudo o que tinha sido visto até então.

A corporação dos merceeiros se achava em terríveis dificulda­des. E a isso se prende toda uma história.............................. .................................................................................... . ...........................* . ; l i * *

■ E ’ uma lei reconhecida tanto pelos professores de economia po­lítica como pelos juizes das varas criminais que quem se habituou, a jan ta r durante muito tempo em hotéis de luxo não voltará vo­luntariamente ao feijão com arroz das casas de pasto. Naturalmea- t e ,e m caso de real necessidade, poderá se contentar com os aliraer»-; tos os mais frugais. Mas antes de aceitar assim abertamente a de­cadência, lutará com unhas de dentes para manter o nível de vida* a que .se acostumara.

. .Os bárbaros que, durante os dez primeiros séculos da nossa ç r v invadiram a maior parte da Europa ocidental, eram homens de gô.W" to simples, o que ordinariamente significa sem gôsto nenhum. Para éles, a quantidade era preferível à qualidade, e um continente que tinha permanecido pràticamente intato desde o último grande pe-' ríodo glacial podia facilmente satisfazer-lhes as necessidades. Um banco de pau tôsco, um fatacaz de carne gorda e cerveja à vonta­de, era tudo quanto pediam.

Além disso, havia tanto que fazer e tão pouca gente para tra ­balhar, que as sobras de energia eram inteiramente gastas nos afa­zeres da vida cotidiana. Falando por alto, levaram uns bons mi! anos para se estabelecerem. Finalmente a tarefa terminou. A paz c a calma volveram à terra, e com a paz e a calma dos mais velhos'nasceram a inquietação e a cobiça de conhecer o mundo da jovem geração. . . .

9

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Dez séculos antes, essa cobiça teria conduzido a uma explosão de anarquia. Mas agora a população do Ocidente havia mais uma vez reconhecido um senhor único. Um senhor sem nenhuma preten­são ao poder temporal, cujas armas espirituais podiam, entretanto, aniquilar batalhões inteiros de suíços mercenários. Suas setas de papel perfuravam os muros dos mais sólidos castelo,«.

Seu desagrado era mais temeroso c!o que as ameaças de guerra des reis e dos imperadores.

Cercado pelos mais finos diplomatas, pelos mais astutos dos políticos, éle conseguiu desviar a nova corrente de insatisfação para os canais práticos da conquista estrangeira e realizou assim a gran­de imigração para o Oriente, conhec da depois como a era: das Cruzadas. Infelizmente, êsse episódio foi tan tas vezes escolhido co­rno tema de rapsódias da literatura romântica, que fomos esque­cendo a verdadeira natureza do conflito, muito mais prosaies.

. 0 mundo antigo era o mundo do Mediterrâneo. Quem gover­nasse essa vasta extensão d ’água poderia impor sua vontade ao resto da humanidade. Era uma arrojada empresa, na qual só pe­diam conseguir ligeiras vantagens loca s os pequenos punhados de piratas e flibusteiros que infestavam ss profundas baías da Espa­nha., as penínsulas gregas e italianas e viviam ao longo dos baktes cesteiros de Marrocos, da Tripolitânin e do Egito.

Nenhum dos fracos “grupos raciais” — vastas aglomerações ce povos reunidos por dezenas de milhares de anos de um comum desenvolvimento social, econômico e religioso — seria capaz de d i ­rigir um empreendimento de tão grandes proporções. Todos sabiam bem os riscos que correriam, pois tais disputas poderiam ser tão desastrosas para o vencedor como para o vencido.

Apenas duas vêzes já havia a questão sido abertamente ataca­da. A primeira foi no quinto século antes da nossa era, quando a Grécia, campeã do Ocidente, derrotou as hordas invasoras dos per­sas e, numa série de brilhantes contra ataques, perseguiu os inimi­gos até às margens do rio Indo.

A segunda ocorreu duzentos anos mais tarde, quando os roma­nos escaparam por pouco da ruína, só a conseguindo evitar à custa de um tal dispêndio de energia nacional que a nação quase pereceu antes que a última praça forte cartaginesa houvesse sido reduzida s cinzas.

1C H. VAN LOON

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A M Ê F CA 11

0 mundo medieval

Depois, por mais de oito séculos, reinou a paz..

.Mas no ano de 622, a Ásia, marchando sob a bandeira de um profeta novo em folha, achou-sc mais uma vez pronta para .» íulu desigual. Desta vez a campanha foi planejada numa escala verda­deiramente gigantesca. A ala esquerda do exército maometano to ­mou a Espanha. Ao mesmo tempo, a direita dirigia-se para Cons­tantinopla, passando pela Síria e Ásia Menor. Foi nesse momento que os dirigentes da Igreja Católica, atemorizados, proclamaram a guerra santa. (*)

(1) Que as cruzadas tenham sido também uma hábil canalização de energia», <: uma prova da sabedoria <!a Igreja como Poder Temporal. Mas teriam sido só isso? Teriam sido possíveis ve não fôssem uma manifestação da fé sincera e fe­cunda que dominou a Idade Média e de tal modo elevou o homem que, segundo um dos grandes pensadores modernos (N . Berdiaef — Le Nouveau Moycn-Âge),*e ainda podemos viver, se o espírito não foi totalmente aniquilado, devemo-lo ao impulso dessa énoca generosa.

N. T.

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12 H. VAN LOON

Essa guerra foi um completo fracasso do ponto de vista mili­tar, mas teve grandes e duradouras conseqüências sociais. Pela pri­meira vez, desde o desaparecimento d 3 Império Romano, confron- tavam-se as nações européias com uma civilização por quase todos os aspectos superior à sua. Os europeis foram para leste disposto!* a massacrar os infiéis, a despojá-los de suas possessões pagãs. E vol­taram com novas concepções de conforto e de luxo, profundamente desgostosos da simplicidade da sua rude vida.

Essa súbita mudança logo se refletiu nas habitações, no ves­tuário, nas maneiras de tôda a população ocidental, no modo por que empregava suas horas de lazer, que comia e bebia.

A velha geração (como tôdas as velhas gerações) continuou a enaltecer as austeras virtudes dos antepassados. Os filhos se limi­tavam a dar de ombros e a sorrir. Êles já tinham estado "nas gran­des cidades”, já sabiam viver calmamente, aguardaram a sua hora, *nas quando os velhos morreram, apressaram-se em estufar de no­vo os móveis da sala de visitas, e m an ia ram buscar cozinheiros es-r trangeiros; os filhos, enviaram-nos para a cidade vizinha, a fim de fazer dêles banqueiros ou industriais capazes de adquirir, durante o curto espaço de uma vida, uma riqueza superior à que se extrat do solo em mil anos de penoso e exaustivo labor.

A igreja começou a murmurar.

Não havia previsto essa conseqüência.Infelizmente não voltavam os heróis animados daquele santo

c obediente ardor tão característico de seus pais e avós. A familia­ridade com os amigos pode fazer perigar a estima. Mas a familia­ridade com os inimigos às vêzes consegue criar um mútuo respeito. O resultado foi um esmorecimento na construção das igrejas.

Em compensação, palácios particulares e ricos edifícios públi­cos surgiram de todos os lados.

Eu não digo que isso tenha sido uma boa coisa. Não digo tam ­bém que tenha sido má. Apenas verifico um fato. Quem quiser tirar conclusões, passe na frente e esteja a gosto.

Entretanto , na outra margem do Mediterrâneo, havia também um considerável declínio no zêlo daqueles estranhos devotos que mediam o seu amor a Alá pelo número dos cativos massacrados. Em suma, as duas partes aceitaram uma trégua tácita, desejosa*

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A M È B 1 C A n

A chegado ãv prim eiro homem branco

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14 H. VAN LOOM

de chegarem a um acordo que significava sobretudo dinheiro nos bolsos dos respectivos mercadores.

As antigas estradas de comércio, sulcadas por milhares de ro­das ferradas, cavadas pelos cascos dos animais, foram sendo con­certadas. Os pacientes camelos recomeçaram a transportar cargas de Kachgar para Damasco. De novo, como nos antigos tempos, as caravelas venezianas e as galeras genovesas vogaram entre Alexan­dria e Famagusta.

Em conseqüência, tudo corria bem no mundo, e os juros do co­mércio levantino subiram rapidamente de zero a quatrocentos por cento.

Foi quando aconteceu um desses insignificantes incidentes q i« (cegundo a regra das ocorrências insignificantes) são capazes de mudar para sempre o curso da história. Isso sucedeu nos meados cK» século X II I . Os terríveis tártaros se tinham posto em pé de guerra, e do Amur e do Vístula essa onda de pequenos diabos esgareiros e amarelos fêz voar diante de si populações espavoridas. Entre os fu­gitivos havia um pequeno grupo de nômades (duzentas ou trezen­tas famílias no máxime) que desde tempos imemoriais viviam pa­cificamente no coração da Ásia. Correram êles quase até o Mediter­râneo; ouvindo aí que estava passado o perigo, resolveram voltar a seus penates. Para isso tinham de atravessar o Eufrates, e foi en­tão que se deu o acidente. Seu chefe escorregou do cavalo e se afo­gou. Os outro?, que ainda estavam na rtargem ocidental do rio, to ­mados de pavor, interpretaram essa inesperada calamidade como um aviso do Céu, e pediram ao Rei da Pérsia que os deixasse ficar onde estavam.

O resto é coisa muito conhecida. Dentro de menos de cem anos, ésses pastores errantes se haviam tornado senhores do Império que os abrigara; e uma geração mais tarde, reconhecidos como chefes dos maometanos, começaram uma carreira de conquistas que deve­ria eventualmente levar as suas bandeiras às portas de Viena, e tornaria o simples nome de “turco” sinônimo para sempre de bra­vura e crueldade.

Se essa súbita revivescência da ira de Moslem tivesse sido apenas um movimento político, não teria sido tão grave.

Um profundo frenesi espiritual, porém, desencadeou-se pelas planícies e pelos montes do oeste da Ásia. D urante os seis séculos

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A M t R I C A 15

òerorridos desde a morte do profeta, havia consideravelmente es­friado o ardor dos seus discípulos. A “crença dos pais” era muito pura; mais claros eram, porém, os doces lucros provenientes do t r á ­fico de pimenta, canela e índigo. Era sem dúvida deplorável que* êsse comércio forçasse os verdadeiros crentes a relações amigáveis com cs cachorros infiéis do outro lado do Mediterrâneo. Mas todos sabem como são essas coisas; negócio é negócio, e quem quiser ven­der 2os cristãos não os poderá manter à distância.

Entretanto não pensavam assim os aldeões e os habitantes dos vales isolados. Èsses tomavam a sério a sua religião, e, animados pelos êxitos políticos e militares dos seus condutores turcos, resol­veram reconduzir à verdadeira fé os seus irmãos desgarrados das grandes cidades.

Por todos os cantos, percorriam os dervixes (monges maome­tanos) o reino do Profeta, alguns rezando, outros dançando, ou se contorcendo, ou gritando. Todos, porém, sem exceção, pregavam a volta aos dogmas severos do credo do deserto.

A princípio riram-se os mercadores de Bagdad e de Damasco. Más os “puritanos” estavam possuídos de uma justa fúria. Logo foram os mercadores deixando de sorrir. E pouco depois (postos cm guarda pelo destino de alguns vizinhos assassinados) entraram ¿a limitar as suas operações comerciais aos seus correligionários.

E, dessa maneira, quando o povo europeu já se tinha habitua­do a certos produtos asiáticos, foram cortados os fornecimentos.

Naturalmente, isso não se deu num dia, nem numa semana r«em mesmo num ano. Aos poucos, todavia, víveres que durante mais de duzentos anos tinham afluído para oeste em completa e ininterrupta abundância, começaram a desaparecer dos mercados europeus.

As reservas existentes foram imediatamente açambarcadas pe­les especuladores. Os preços subiram rapidamente. O crédito foi retirado, e os pagamentos tinham de ser feitos em ouro. Isso era novidade para o Ocidente. O mundo medieval, nos negócios diários, nunca exigia dinheiro à vista. Os homens viviam uns aos pés dos outros; o porco de uma era tão bom como os ovos de outro. O mel de um convento podia ser trocado, eh s por elas, pelo vinagre do con­vento vizinho.

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16 II. VAN LOON

N a verdade, os comerciantes estrangeiros sempre insistiram por uma certa soma em moedas de ouro e prata. Fôra impossível satis­fazer aos negociantes de especiarias de Calicut com fatias de toi- cinho ou barris de sal. Antes dc autorizar os seus agentes em Jidda ou Aden a fazerem a entrega, êles pediam um depósito dc dobrões venezianos ou de moedas de ouro portuguesas. Mas agora o mer- cado europeu começava também a qunrer dinheiro no ato da com­pra, o que complicava tudo.

Porque o ouro, essa misteriosa substância amarela que parece desafiar o poder do Estado e da Igreja, era também um artigo de importação. Havia algumas poucas minas de prata na Europa, ma$ a pequena quantidade de ouro achada nas montanhas da Áustria, da Saxônia e da Espanha, não era de modo algum suficiente pajea financiar as operações sempre crescentes dos especuladores e dos exportadores de especiarias.

E começou então o círculo vicioso que o mundo conhece tão b e m .

Um público ansioso por comprar — uma quantidade decres­cente de reservas — um rápido aumento de preços — pedidos ge­rais de ouro — uma diminuição de numerário — países da Ásia ocidental e do norte da África caindo, uns após outros, nas mãos dos infatigáveis pagãos — uma caravana saindo atrás da outra sem saber quando chegaria — e o jovem e ambicioso sistema capitalis­ta europeu lutando para subsistir.

O sistema capitalista (usando o termo no sentido em que é en­tendido, ou desentendido por nossos contemporâneos) foi acusado de muitos e diversos crimes. Mas nenhum dos Seus piores inimigos pode tachá-lo de preguiçoso, nem negar a energia supernatural que é capaz de desenvolver em tempos de crise. Foi exatamente uma dessas crises que ameaçou arruinar o comércio ocidental durante a primeira metade do século XIV.

Já falei da situação dos merceeiros, muito ativos e vociferantes em suas reclamações.

Era, porém, toda a organização econômica da Europa (o que, em última análise significa a organização espiritual, social, literária» artística e científica) que estava em perigo iminente de ruir.

E ’ verdade que a Síria e o Egito (os dois países pelos quais sempre haviam corrido as principais vias de comunicação comercial

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A M É R I C A 17

entre o leste e o oeste) só foram ocupadas pelos turcos uns doze anos depois da morte de Colombo. Mas um homem conhecedor do seu negócio não espera pelo dia do desastre. Deve antecipar- se a ele.

Ouvimos sempre louvar a sagacidade dos modernos príncipes do comércio, e nos envaidecemos por ter a nossa era produzido uma tão intrépida raça de homens. Deixamo-nos levar a pensar de um modo protetor no mercado medieval que, sentado numa sala a tu ­lhada, pesava os seus cequins numa balança pequena, ditava as cartas simultaneamente a dois caixeiros (realmente ele devia ter papel carbono para as cópias!) e tinha de esperar durante meio ¿no as respostas dos seus agentes em Novgorod ou Viborg.

E ’ uma das fraquezas do nosso bom tempo gostar de elogios como um pato da água.

O mundo do ano da Graça de 1927 é na verdade muito seme­lhante ao mundo do ano da Graça de 1427 ou 427. Compõe-se de tôda espécie de indivíduos. Uns são brilhantes. Alguns já não serão tão brilhantes. Outros são indubitavelmente estúpidos.

Os últimos (sempre em grande maioria) não se interessaram por nenhuma solução. A segunda categoria sentiu vagamente que alguma coisa deve ser feita, depois se assustou com a própria teme­ridade e não fez nada. Mas os primeiros (um a pequena minoria) üacou fora casaco e colête, levantou as mangas e tocou para a fren- re, decidida a achar uma saída aqui ou ali. As comunicações por terra para o Oriente estavam sendo gradualmente fechadas. M uito bem. Então procurariam um novo caminho pelo sul ou pelo oeste. A empresa, compreendendo uma viagem por mares desconhecidos, parecia tão difícil como, em nossos tempos, um passeio de aeroplano à lua. Realmente, os obstáculos práticos eram tão colossais que só um sonhador os tentaria vencer.

O mundo estava cheio de pilotos experimentados que predi­ziam a aproximação de uma tempestade pelo reumatismo de seus ossos doloridos; de astrônomos altamente competentes, capazes de ler no livro do Céu com a mesma facilidade com que nós consulta­mos um horário; e de aventureiros impacientes de arriscarem a vida por uma sensação forte ou por um pote cheio de ducados. Mas era necessária uma criatura de espécie diferente para resolver o pro­blema — um gênio estranho cuja inspiração viesse do Apocalipse

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18 H. VAN’ LOON

de Ezra (dc memória de homem, terá jamais alguém lido essa turva mistura de Céu, Inferno e profecia?) — um explorador profissional que não se mexesse até conseguir um contrato devidamente assinado assegurando-!he dez por cento sobre cs metais a serem 2chados do outro lado do oceano — um vaidoso ridículo que insistisse cm ser chamado “Almirante do Oceano”, — um místico humilde que ;nor* rcu vestido com uma reupeta pobre ce monge franciscana.

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C A PÍTU LO II

UM MUNDO IM PREV ISTO

Seus vizinhos cm Gênova tratavam-no sirr.«plcsmente de Chris Pigeon. Os espanhóis, que ganharam bilhões com sua descoberta e o lograram na recompensa, chamavam-no Don Cristobal Colón; depois, lembrando-se dos terrenos auríferos do norte da Venezuela, acrescentaram-lhe o título grandiloqüente de Duque de Veragua. Mas em geral o mundo se refere a ele como Cristóvão Colombo, e como ta l ele vai representar o seu papel na nossa pequena história.

Nasceu cm 1446, ou 1447, ou 1448, ou 1449, ou 1450. N ão sa­bemos com certeza, e isso não tem lá grande importância. Viu a iuz em Gênova ou cm Cogoleto. Não sabemos exatamente, mas tam ­bém isso não tem importância. Porém os sei>; pobres ossos foram enterrados e reenterrados sete vezes cm menos de quatro séculos. E isso significa muita coisa. Significa a sua constante agitação com um par de algemas e as seis tábuas de um caixão de madeira por prêmio.

O pai de Colombo vivia do comércio de lã, meio tecelão, meio negociante, e uma honesta prosperidade permitiu-lhe educar o filho num bom colégio. Mais tarde devia o rapaz substituí-lo no negócio, tornando-se por sua vez um cidadão respeitável, c bom chcfe de íamília — fazer o que sempre se fêz e sempic se há de fazer.

Infelizmente, a respeitabilidade ordinária interessava muito pou­co a Colombo. Porque ele era dèste mundo, e, entretanto, não era inteiramente dêste mundo. Queria dinheiro — muito dinheiro — para planos, estudos c livros. Havia de mostrar a tôda a terra que não pertencia ao rebanho comum, que sua coragem, sua pertinácia c as brilhantes elucubrações do seu talento haveriam de torná-lo, a c!e o filho do tecelão, perfeitamente igual aos príncipes poderosos.

19

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20 H. VAN LOON

O prim eiro in tern o dos homens brancos no N ovo M undo

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V inland

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A M É R I C A 21

N o mais, é difícil dizer exatamente o ^ue esperava obter da sua carreira.

Era excessivamente desajeitado na ciência complicada de vi­ver. Sabia, com o sistema de navegação que imaginara, dirigir um calhambeque furado por mares desconhecidos; sabia amansar um bando revoltado de forçados e salteadores, fazendo-os adotarem um simulacro de boa conduta até encontrar o que tinha resolvido des­cobrir; e nas ocasiões necessárias sabia suportar melhor do que qualquer outro mortal a sede, a fome, a falta de sono e o escorbuto. E Deus sabe que isso tudo bastaria para fazer a fama dos mais am- biaosos dentre nós.

Uma coisa não sabia Colombo. Não sabia escrever. Talvez seja uma pena. Contudo, eu penso que foi uma vantagem. Imagi­nem o que seria um artigo cm série: “Como descobri o Novo M un­do'”, com fotografias especiais das filhas e mulheres do cacique de Guanahani. Imaginem entrevistas assinadas por êle sobre: "A dura aprendizagem que me tornou explorador”. Não, foi muito melhor assim. Não ficamos conhecendo tudo o que desejaríamos do homem, mas também podemos ignorar muita coisa que talvez obscurecesse o ponto principal de sua carreira: a convicção absoluta, inabalável de que, navegando no rumo do oeste, não despencariam da beirada da terra os marinheiros, nem os queimariam os raios do sol tropical, como julgava a maioria dos seus contemporâneos; ao contrário, al­cançariam assim o país dos chineses infiéis, e poderiam regressar paesando pelas índias.

O problema não foi tão simples como ele pensou. Uma faixa de terra insofismavelmente larga separava o oceano da Europa do da Ásia. Isso, porém, era um merc pormenor que não poderia ser previsto. E muito menos poderia toldar a glória do pilôto genovês desengonçado, maltratado pelo sol e pela chuva, que primeiro disse: “ Pode ser feito’’ e depois fêz mesmo.

A Idade Média tinha uma enorme superioridade sôbre o nosso ¡tempo. Era então considerado de boa norma, era na verdade uma iparte essencial da vida, aprender cada um o seu ofício, e aprendê- lo bem. Não se admitiam atalhos nem encurtamentos. Já os gregos, mil anos antes, diziam que os deuses entregariam todos os seus se­gredos por certa quantidade de suor e de esforço honesto. A gente do féculo X V substituiu Zeus pelas insígnias das Corporações, mas

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22 l i VAN LOON

»deriu integralmente à doutrina de que só o trabalho torna o homem apto à sua carreira. Quando o jovein Cristóvão decidiu que não sucederia ao pai no comércio de lã, mas seria marinheiro, foi ime­diatamente entregue como aprendiz a um capitão, c começou a. aprender o ofício como grumete e ajudante de remador.

Durante os quatro anos seguintes há notícias dele em todos 03 portos do Mediterrâneo ocidental. Um pouco mais tarde, encontra­mos indícios de sua presença em Portugal e na Inglaterra, e sabe­mos que se adiantou até às costas recém-desco-bertas da Guiné. De­pois casou-se. Fato muito típico, o sou casamento, mostrando bem a simplicidade de um espírito tode voltado para o mesmo lado, pois escolheu noiva dentro da profissão. A moça não era rica, mas havia

O c*;icio d.0 i rj&nte D. / / «¡f¿7*# o Kav-ggadzr

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herdado o livro de derrota e tódas as notas de seu pai que não era nada mais nada menos do que Bartolomeu Percstrello, capitão a serviço do Príncipe Henrique de Portugal e primeiro governador- geral de Pórto Santo, uma das ilhas recentemente rcclescobertas do grupo da Madeira.

Por ésse modo pôde Colombo entrar em contato com um ho­mem (m orto havia trinta anos) que cm todos os sentidos da pala­vra pode ser chamado o João Batista das modernas explorações e descobertas, o profeta que preparou o caminho para outro maior do que cie e não viveu bastante para ver o dia da vitória.

O Infante D. Henrique de Portugal, habitualmente chamado Iíenrique o Navegador, era filho de pai português e mãe inglesa. N a mocidade fôra um valente guerreiro, mas ora também um ho­mem severo, um verdadeiro puritano, na verdade; quando a luta terminou c Portugal se viu para sempre livre da invasão dos pagãos de além-Gibraltar, ele se retirou da côrte c, perto da cidade de Sa­grei:, no cume silencioso de um promontório isolado edificou um verdadeiro claustro fortificado. Êsse sombrio castelo viria a ser a primeira escola de navegação e o mais importante dos observatórios astronômicos da Idade Media.

Lá, ao abrigo dos barulhos do mundo exterior, os reais geogra- fos, matemáticos, astrónomos c cartógrafos coligiam, escolhiam. * classificavam esse estranho e intrincado acervo de informações qus fez parte integrante da ciência dos pilotos desde os dias em qí*e l lanno o Cartaginês surpreendeu o mundo ocidental com suas mis­teriosas histórias de macacos que andavam como gente e se chama­vam ‘‘gorilas” .

E ’ mister notar desde logo que o interesse desse nobre príncipe ra d a tinha de comercial. O neto de João de Gand, o grão-mestre da riquíssima Ordem de Cristo não precisava correr atrás de dóla­res c de soldos. Além disso, era muito devoto, muito bom fílÍK> da Igreja, para se prender aos bens passageiros. Desde que pudesse ter as almas dos pobres pagãos que viviam em profunda ignorância p a ­ra atém da umidade nebulosa do cabo Bojador, abandonaria de bom grade^ aos mercadores os lucros provenientes das barganhas com 03 mouro* selvagens. E se as suas descoberta? lograssem pô-lo cm con­tato com o reino Prestes .João (o homem-mistério do século X I ! ;

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que parece ter sido um encarapinhado rei da Abissínia), então cie cederia alegremente todos os seus direitos ao ouro de Ofir.

Nada, porém, mostra tão claramente as dificuldades das explo­rações medievais como o êxito medíocre do famoso Institu to de Sa­gres. que representava a última palavra na ciência da navegação e não olhava as despesas. Muitas vêzes os navios com a sua bandeira levavam meses para cobrir a distancia vencida em alguns dias pelos vapores modernos. Cada vez que um novo cabo era dobrado, a data era festejada com aleluias e Te Deurr.s. Um explorador contempo­râneo de volta do pólo Norte recebe menos manifestações do que um capitão português quando anotava mais algumas milhas no ma­pa da costa ocidental da África.

A diferença entre os verdadeiros grandes homens e os homens simplesmente grandes, é que os primeiros nunca têm pressa. Hen­rique o Navegador editava seus mapa-: como Kreisler toca violino. Tinha muito tempo e era imenso o mundo. Não havia razão para se entusiasmar excessivamente, nem para fazer trabalho mal-aca­bado. Assim, gradualmente, começou a tomar feitio a costa ociden­tal da África. Os Açores, perdidos durante tantos anos, foram redes- cobertos. Madeira, que por essa ou ; quela razão permanecera es­quecida por quase um século, deixou de ser um pitoresco fundo de quadro para as bonitas histórias de amor dos ingleses, e se tornou um definido embora mais prosaico ponw do mapa. O cabo Bojador já não era o último limite dos conhec mentos geográficos. Veio de­pois o cabo Branco. No ano de 1445 foi a vez do cabo Verde. E antes da morte de D. Henrique, um dos seus capitães se havia aventurado realmente até o cabo da Serra Leoa, e estavam prontos os trabalhos preliminares que permitiriam mais tarde a Dias con­tornar o cabo da Boa Esperança e a Vasco da Gama achar o cami­nho direto para as índias.

De muitos outros modos (se bem que menos diretamente) au­xiliou o Príncipe D. Henrique a causa da civilização. Algumas -gotas de. ciência desinfetam, não raro, um barril de ignorância e precon­ceitos. Sob a influência do Institu to de Sagres a ciência da navega­ção deixou de ser aquela estranha mistura de monstros, ilhas flu­tuantes e continentes submersíveis e tôdas as mil e uma histórias maravilhosas com que os primeiros missionários irlandeses delicia­ram os seus crédulos paroquianos.

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O compasso e o sextante começaram a substituir os velhos mé­todos de navegação “por Deus e pela sorte”, em que o comum era vir o navio arrebentar-se contra a costa. E as extraordinárias nar­rativas de marinheiros arremessados para fora da sua rota, a quem o pavor fazia ver coisas temerosas, não eram mais aceitas como verdades evangélicas; depois de cuidadosamente examinadas eram, ao contrário, ou rejeitadas ou reservadas para verificações ulrerio- ies, conforme o caso.

Entre esses boatos havia um que deve ter sido muito repetido a Colombo como a todos os outros navegantes. Era a história de viagens a terras novas, situadas acima do círculo Ártico setentrio­nal. Não sabemos até que ponto teve Colombo conhecimento direto dessas viagens. A alguns amigos cie insinuou que tinha ido até a “Última Tule” ; mas ignoramos o que entendia por “Última Tule”. Talvez fosse a Islândia, ou as Ilhas Faróe. Convém lembrar que,' em vida de Colombo, ainda havia bispos titulares de Groenlândia^ as comunicações diretas com essa ilha tendo sido interrompidas ha­via apenas uma geração. Os islandeses estavam justamente então empenhados cm colecionar as velhas “sagas” que celebravam os fei­tos dos seus antepassados e descreviam com minúcias os países mis­teriosos do oeste remoto.

Buscando a evidência dos documentos, tem os historiadores, muitas vezes desprezado bagatelas como as correntes e os ventos. Com um mapa do Atlântico nas mãos, não perguntamos mais se os nórdicos teriam jamais alcançado as costas da América. Indagamos de preferência por que teriam levado tanto tempo para fazê-lo. Um navio inglês ou francês, desviado do seu curso tan to podia ir para o fundo do mar como voltar ao pôrto de onde saíra. O Gulf-stream encarregava-se disso.

Mas um Vincking, dirigindo-se da Noruega para as colônias Árticas, corria sérios riscos de ser apanhado pela corrente da Gro­enlândia, c, a menos que tivesse muita sorte, seria arremessado corrente do Labrador, c depois disso não haveria mais salvação pos­sível. Teria de aportar em algum ponto da costa ocidental da Amé­rica do Norte.

Lembrem-se, por favor, de que por mais de quatro séculos (933 — 1410) as comunicações foram diretas e ininterruptas entre a Groenlândia e a Noruega; de que centenas de homens e mulheres.

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, v;;/.-.

0 imindo do Prineip' J). Henrique

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durante èb&e período, fizeram a viagem para as ilhas ocidentais; de que navegavam sem carta nem compasso, estando por conseguinte à mercê das correntes árticas de uma maneira que nós, para quem até o Gulf-streain é coisa sem importância, não podemos compreen­der; e, finalmente, de que eram povos eminentemente imaginativos c- literários, que nos deixaram das suas explorações, relações porme­norizadas e dignas de fé.

Não menciono isso com o fim de fazer reviver aquela velha e estúpida contenda que discutia se o verdadeiro descobridor do nos- í>o continente foi Leií, filho de Érico, o fazendeiro de Haukadalur, e u Cristóvão, filho de Domenico, o tecelão de Gênova. Apenas re­firo-me ao episódio Nórdico na nossa história para mostrar que, nos dias de Colombo, era geralmente aceita a idéia de que existia ’alguma coisa” do outro lado do oceano; e de que essa “alguma coi-

í.aJ> seria encontrada por qualquer pessoa decidida a correr o risco t: disposta a navegar no rumo do oeste durante três ou quatro se-XT^TiLS.

Infelizmente n io bastava a convicção de que essas terras ( pro­vavelmente ilhas costeiras da índia e da China) podiam ser alcan­çadas por um veleiro. Alguém tinha de fornecer os navios, e navios, cu trora como hoje, custavam dinheiro. Is%o nos conduz à segunda p a r te da vida de Colombo, à sua carreira de organizador.

Durante a última metade do século XV, só na Itália havia fun- <3cs disponíveis dignos de menção. M as admitindo que o Papa ou •os Médicis financiassem a empresa, admitindo que Colombo conse­guisse o apoio do governo de Gênova ou de Veneza, que adiantaria isso?

A Espanha tomava conta da porta do oceano. E a Espanha «ra uma nação poderosa, altamente centralizada; seria desigual a luta entre ela e os pretensiosos pequenos navios das pretensiosas cidadezinhas italianas. Era, por conseguinte, o candidato mais co­tado para as altas honrarias que Colombo tinha a certeza de poder conceder ao seu futuro senhor, e foi para ela que volveu as vistas quando começou a fazer os preparativos efetivos para a grande via­gem para oeste.

Nos nossos dias, em que não se hesita em despender em algu­mas horas milhões de dólares para obter uma ligeira vantagem mi­litar, é difícil entender e apreciar com justiça a completa bisonhicc,

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a timidez verdadeiramente desamparada do sistema capitalista an- tes da introdução das reservas abundantes das barras de ouro e pra­ta, e da invenção do crédito. A revolução francesa (que teve lugar pouco mais de um século depois) foi devida ao tato de não ter con­seguido a mais próspera das monarquias do século X V III , com to ­dos os seus ministros e os fiéis membros do parlamento, aconselhada pelo melhor técnico de finanças da época, levantar uma soma que hoje em dia seria realizada mediante uma conversa telefônica da meia hora entre o Ministro das Finanças e um grupo de banqueiros internacionais.

A Espanha quase perdeu a oportunidade de scr a dona do N o­vo Mundo, porque o Rei Ferdinando e a Rainha Isabel eram inca­pazes de lançarem mão de dez mil dó ares. Depois de muitas hesi­tações e pendências, a soma foi enfim completada. Mas sem o au­xílio particular dos irmãos Pinzon, borrados comerciantes da peque­na cidade esquecida de Paios, Colombo teria provavelmente gasta o resto dos seus dias cm Paris, Lisboa e Londres, tentando explicar aos Reais Comissários que seus planos não eram sonhos de visioná­rio, e que alguns dólares arriscados no momento trariam indizíveis riquezas num futuro próximo.

Seja como fôr, os Pinzon resolveram juntar-se ao rei e à rai­nha, e no dia três de agôsto de 1492 Colombo zarpou para os Açô- íes com três navios, construídos para o comércio costeiro com i s Flandres, dos quais o maior era menor do que um cargueiro de ta ­manho regular. Duas vêzes ainda avistou ele a terra, nas Canárias e em Tenerife. Depois rumou intrepidamente para os últimos con­fins do desconhecido. A viagem durou pcuco mais de dois meses. Na noite de 11 para 12 de outubro de 1492 a equipagem viu uma. luz. Era uma fogueira de alarma dos “índios”. N a manhã seguinte realizou-se o primeiro encontro entre um homem branco e os índios côr de cobre. Deve ter sido uma cena singular. Havia a bordo do navio-capitânia de Colombo um marinheiro judeu contra­tado por causa de sua reputação como lingüista. Foram certamente de natureza muito simples os seus serviços nessa memorável ocasião. O almirante: Pergunta ao velho pagão onde ficam as índias. Luís de Tôrres (levantando um objeto brilhante, de metal, e sacudindo os braços): Huh?

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A dcscobcrla

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O “velho pagão” (apontando para o ocidente com um dsdo muito sujo): Huh!

E assiin os bravos aventureiros irais uma vez levantaram a âncora, e mais uma vez navegaram para oeste, e nada encontraram senão ilhas, pequenas ilhas baixas com palmeiras, selvagens nus e crianças manhosas, que encolhiam as cabeças quando o canhão do Santa M aria dizia “bum-m-m-m”. M as das índias, das m ura­lhas em ameia de Kathay, das árvores de incenso de Singapura, nem vestígio ■— nem vestígio — nem \estígio.

Colombo, entretanto, recusava-se cc.nfessar-se vencido.Mais três vêzes atravessou penosamente o oceano. Algum d<a?

algum dia certamente, entre êsses miseráveis arrecifes e prom ontó­rios, encontraria uma brecha que o conduziria diretamente uo seu destino.

M as nunca encontrou.Gasto pelas fadigas, pela fome, pe a sêde e pelas doenças dos

trópicos o seu corpo o traiu, como já o haviam traído tam os dos seus capitães.

Colombo morreu no dia vinte de maio de 1506. E a má sorte continuou a persegui-lo no túmulo.

No início do século X V I existia, na pequena cidade francesa de St. Dié, unia academia popular destinada principalmente aos es­tudos geográficos. Aconteceu que no ano de 1507 o diretor dessa escola, um honesto germano de nome M artin Waldseemüller (ou líilacomylus, como preferia ser chamado) quis publicar um manual de cosmografia. M as que fazer dos sempre crescentes pedaços de terra que pareciam boiar no espaço, algumas milhas para oeste dos Açores?

Não era o momento de agrupá-las e lhes dar um nome?Sim. M as que nome?Alguém sugeriu: Devem ter o nom ; do homem que mais ten!’.a

feito para a sua decoberta e exploração.

Esplêndida idéia! M as quem era êle?Encontramos aqui uma das mais sublimes Incongruências de

tôda a história.A gente do norte da Europa havia certamente ouvido falar em

Colombo, mas os seus feitos não se t i rh am absolutamente tom ado populares. De vez em quando, um pequeno panfleto mal impresso.

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A M É R I C A

Cotonbo

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com horríveis gravuras dc índios e de animais ferozes, anunciava aos aborígenes europeus que um homem chamado Dove ou coisa semelhante tinha estado na terra dos grandes pássaros lendários e voltara para contar a história. E era tudo.

Mas durante os primeiros cinco anos do século X V I, informa­ções ligeiramente mais interessantes começaram a transpor os Pi- rinéus.

A segunda expedição dc Colombo fôra subsidiada por um Flo­rentino negociante em Sevilha. Quando êsse personagem morreu subitamente, foi o contrato passado a um tal Américo Vespúcio, também natural de Florença e representante financeiro dos Médicis na Espanha. Êsse Américo (a acreditarmos na sua versão) acom­panhou várias expedições ao Novo M tn d o e descobriu uma grande quantidade de terra na parte sul do Hemisfério. Era um escritor vivo e um zeloso correspondente, que escrevia sempre ao seu patrão, Lourenço de Médicis, referindo ao velho banqueiro tudo quanto via c ouvia. Essas missivas traduzidas e impressas, crr.m distribuí­das largamente apenas alcançavam Florença.

Quando o sábio Ilylacomylus procurou um nome conveniente para o grupo de ilhas que formavam uma barreira entre a Europa c as índias, lembrou-se logo do populir Florentino, cuja prosa era familiar a todo o europeu que soubesse ler e escrever.

Aqui e ali êle sugeriu que a nova terra devia ser chamada “Ter­ra dc Américo" ou “Terra; América”, porque Américo, segundo pa- iccia, sabia mais a respeito dela do que qualquer outro.

Ninguém disse que não. E que importância tinha isso? Um nome era tão bom como outro, e agor i que a questão estava resol­vida ninguém mais precisava se preocupar.

Não sejamos muito severos para com o pobre Hylacomylus. Êle não tinha más intenções. Foi um coitado de um mcstre-escoU que se deixou iludir por um publicista esperto.

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C A PÍTU LO I I I

A FÉ, Ü OURO E OS INDIOS

No ano da Graça de 1732, o general Jefírey Amherst (que deu c nome a uma aldeia muito conhecida e a um colégio no norte de M:issachusetts) dava a um seu subordinado as seguintes instruçõe.s sòbre o tra tam ento a ser dispensado às tribos que reconheciam Sua Majestade, o rei da Inglaterra, como seu amo e senhor:

“Fareis o possível para contaminar os índios por meio de co­bertores que tenham servido a variolosos, ou por qualquer outro método que possa servir para exterminar essa raça execrável. Gos­taria que pudesse ser levado a efeito o vosso plano de pôr os ca­chorros para caçá-los.”

Se tais sentimentos podiam ser publicamente exprimidos em pleno século dezoito (quando já o mundo começava a se interessar sinceramente pelo bem-estar das mais obscuras raças de homens) por um general inglês educado e até amigável, que seria dos pobres selvagens que trezentos anos antes se acharam subitamente à mercê dos soldados e dos frades de Sua Majestade Católica, o rei de Es­panha? Talvez quanto menos se falar, melhor será.

Porque o espanhol, criado no ódio e no desprezo pelos mouros escuros (que durante cinco séculos haviam governado a sua pá­tr ia ) , considerava os habitantes cor de cobre das suas novas posses­sões como uma espécie de animais que nada tinham em comum com o resto da humanidade.

Sob um ponto de vista, foi isso um bem para os índios. Isen- tcu-os das leis e regulamentos da Inquisição, só aplicáveis a “sêrcs razoáveis” . Por isso, quando no México ou em Cuzco uma nova fornada de inglêses heréticos ou de judeus reincidentes era solene­mente conduzida à pira funeral, era permitido aos nativos aproxi-

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O estreito d« Bering

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marcm-se cio "Qiiemadero'’ c tomarem uma alegre parte nos feste­jos, sem serem molestados por suas crenças idólatras. (*) Mas afora cf.síís raras ocasiões, não era boa a sorte dos índios, c o que a to r ­nava ainda pior era a convicção (escondida cm algum canto obs­curo dos seus pobres cérebros de pagãos) dc serem eles os verda­deiros proprietários do solo, e meros intrusos os estrangeiros que cs haviam reduzido à escravidão, assim como a seus vizinhos, in­trusos que só conseguiam se manter à custa do bacamartes e ca- rhões.

O problema da origem dos nossos índios ainda não está comple­tamente resolvido. Ninguém pode afirmar, escudado cm argumentos ¿e peso, se os pclcs-vermclhas eram asiáticos vindos para a Améri­ca pelo estreito dc Bering gelado, ou por alguma língua dc terra de­ra parecida depois, ou se seriam os descendentes de um povo primi- m o que errou da Europa até o Labrador via Islândia e Groenlândia.

Parece certo, entretanto, que o continente americano só foi povoado muitos milênios depois da aparição dos primeiros homens rta Ásia, África e Europa, e que os antepassados dos índios, após «Icançarem estas paragens, não tiveram mais comunicações com o resto do mundo, durante uns quinze ou vinte mil anos. M entalmen­te, não eram de modo algum os aborígines americanos inferiores às raças que viviam cm outras partes do planeta. Mas tinham ficado tão inteiramente entregues a si, que, sob muitos aspectos, achavam- se com milhares dc anos dc atraso sóbre os europeus que os vinham íTtirprccnder com os seus arcabuzes e escopetas.

Mas há outra razão para terem os índios caído tão facilmente #;ob o jugo dos conquistadores. Eram muito poucos. Todo o conti­gente (A America do Norte e a do Sul, com a parte de poptriação mais densa conhecida por América Central) não continha provavel­mente mais de dez milhões de almas, a população atual de Nova York e de Chicago reunidas. ítsse pequeno número era devido aos seus hábitos nômades, c ao desconhecimento quase geral da agricul­to ra .

( ! ) Admitindo (e não é possível deixar de fazê-lo) que a ação do clero no» F.. U. tenha eido semeihante à que exerceu no Brasil, onde, sempre defendeu o» índios contra a cobiça e a crueldade dos colonos, é de crer que 03 “ frades de Sua M ajestade Católica” não tenham servido apenas para permitir aos nativos assis­tirem falm am cme às execuções...

N . T.

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Os Ires coiUir.erutj

Estou naturalmente jognndo com generalidades perigosas. Ha­via toda sorte de índios, desde os maius e os ineas, altamente civili­zados, até os canibais do sul da Patagônia. Mas, em grosso, não eram competidores para os grupos disciplinados e bem armados dos invasores europeus; o território foi invadido e ocupado com uma presteza incrível.

Acrescentou ao seu infortúnio o fato de ter a descoberta dc Colombo coincidido justamente com o momento em que os espa­nhóis, depois de mais ou menos seiscentos anos de guerrilhas contí­nuas, tinham pôsto para fora de sua terra o último califa maome­tano.

A Espanha ainda estava sob o domínio daquele incompreensí­vel estado de espírito que permite os crimes os mais monstruosos em nome da exaltação religiosa. Homens como Cortez e Pizarrò. que, com um troço de bandidos adestrados, destruíram impérios ín­dios, vastos como a França, Espanha e a Inglaterra reunidas, nunca teriam ousado tanto se não se julgassem os descendentes diretos do Cid e de outros mensageiros do Todo-Poderoso. ■ .r.

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A Aldeia Nativa

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Os conquistadores eram, na verdade, tipos interessantes e pito­rescos. Suas histórias de heroísmo e sacrifício nada perdem ao se­rem contadas, e quando lemos as suas aventuras, sua marcha por sobre brejos e montanhas, sua arraigada e sanguinária devoção, quase esquecemos de que essa piedade era estranhamente mesclada de uma feroz avidez de ouro. 0 desejo de servir a Deus e aos infiéis pode ter conduzido alguns simples frades através do oceano temível. M as a massa dos recém-chegados apenas desejava enriquecer, e en­riquecer depressa. O que seria feito da gente cujas casas saquea­vam, dos camponescs de quem destruíam os canais de irrigação, das íamílias a quem roubavam as filhas, isso não os interessava absolu­tam ente . E não eram menor a rapacidade e a indiferença dos que tinham ficado na Europa. Desde que a quantidade de ouro e prata carregada anualmente pela “Frota da P ra ta ” fôsse suficiente para manter as campanhas sem fim dos Filipes e dos Carlos que se su­cediam em fastidiosa série no trono da Espanha, poucas perguntas eram feitas e nenhuma, aliás, obtinha resposta.

E ’ sobejamente conhecida a desastrosa influência dêsse sistema sôbre o povo espanhol. Menos de vinte anos depois da descoberta <3a primeira ilha americana havia morrido uma grande parte da po­pulação nativa do México, e tornou-se necessário importar traba ­lhadores fôsse de onde fôsse. Buscaram-nos a princípio entre os ín­dios da Florida e da Venezuela. Mas os índios americanos nunca deram bons escravos. Apenas reduzidos à catividade, entravam a morrer como môscas, c o escândalo foi de tal ordem que um certo Bartolomeu de Las Casas (filho de um dos companheiros da pri­meira viagem de Colombo) propôs que não fossem mais os nativos empregados nos trabalhos das minas e das plantações, sendo substi­tuídos pelos negros africanos, mais resistentes. Las Casas fêz essa sugestão com a melhor das intenções, mas o plano não surtiu o bom efeito esperado. Porque logo começaram todos os malfeitores e va­gabundos da cristandade (e havia-os em grande número nesses dias, efe bem que não seja a sua existência apanágio de um único século) a caçar escravos ao longo do rio Senegal e do Congo; o comércio criminoso, uma vez iniciado, só pôde ser interrompido séculos de­pois. - ...

Havia, porém, ainda uma outra razão, e poderosa, pará Ievãr

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a falencia certa as colunias do Novo M undo. Refiro-me ao amor inato da Coroa Espanhola pela centralização. Nessa infeliz terra, t u ­do dependia diretamente de M adrid. Nem uma única colônia teve jamais um vestígio sequer de governo próprio. Os oficiais, em sua totalidade, eram recrutados na metrópole, e a nenhum nativo po­deria ser confiada posição de destaque ou de responsabilidade. Nes­sas circunstâncias, os colonos sacudiam os ombros e perguntavam: “Para quê?” (ou outra expressão do mesmo gênero). Desinteressa­vam-se do governo municipal ou estadual, e t ra tavam de enrique­cer a expensas dos seus vizinhos brancos, governando êles próprios os seus escravos; excetuavam-se aquêles que entravam para a Igre­ja, aproveitando tão bem as vantagens da sua posição na sociedade que em breve mais de oito por cento da riqueza gera! caiu nas mãos do clero e de seu séquito.

Mas o vício econômico que acabou de m atar o progresso foi o sistema dos monopólios, introduzido n > Novo Mundo pela política colonizadora da Espanha. As empresas particulares foram esmaga­das sem piedade. Quem exportasse pot conta própria não escapava da fôrea se fosse apanhado, e cada onça de ouro ou cada libra de canela que saísse de Buenos-Aires ou Havana tinha de ser registra­da cm Cádiz. Um tal paraíso de burocratas e caixeiros privilegiados não deixava margem para o desenvolvimento de uma classe inde­pendente de negociantes. Pequenos grupos de judeus (que, por urna estranha coincidência, foram expulsos da Espanha no mesmo dia em que Colombo zarpou para Paios) tentaram estabelecer-se no M é­xico, no Peru e na Venezuela. Mas assim que, por sua economia e energia pessoais, conseguiam jun ta r alguns mil dólares, a Inquisição invariàvelmente os acusava de apostasia, queimava-os no pelouri­nho, e confiscava os seus bens. Diante disso, mudaram-se os outros para Londres e Amsterdam, pondo sua capacidade e seu crédito à disposição das acirradas inimigas da Espanha; assim, de um modo indireto, auxiliavam a ruína de uma nação que tinha oprimido tão cruelmente a seus antepassados.

Seria fácil aumentar êste capítulo com várias páginas de injus­tiças e enganos de julgamentos devidamente enumerados. Mas já foi dito bastante para explicar por que uma “História da América”

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não significa hoje a história da vasta região onde a língua usual é o espanhol e o português, e não o inglês.

A Espanha, é verdade, descobriu e conquistou um novo conti­nente. Mas apenas conseguido isso, cometeu um êrro que condenou à falência todos os seus esforços futuros — tentou fazer do Novo M undo uma cópia exata do Velho.

Os deuses que presidem aos destinos humanos são de uma pa­ciência inexcedível.

Mas, a certas coisas, dizem não.

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CAPÍTULO IV

TIERRAS DE N IN G U N PROVECHO ( • )

A barreira — essa barreira três vêzes maldita — essa cadeia sem fim de ilhas que cortavam o caminho da Europa para as índias — estava-se tornando uma terrível redidade.

No começo, iam cheios de esperanças os que empreendiam a pe­rigosa travessia.

Colombo tinha fracassado.Outros poderiam ser melhor sucedidos.Além disso, a recompensa de quem achasse a solução do proble­

ma seria tão grande, que pagava a pena. Destarte todos se dispu­nham ardorosamente ao trabalho.

Exploravam baías e recôncavos. Os navios seguiam por cadai estuário e cada rio, até que a importuna aparição de uma margem

arenosa ou os cumes entrecortados das montanhas lhes mostrassem que tinha sido mais uma vez vão o seu zêlo. Até os ribeiros c os barrancos eram cuidadosamente inspecionados. Porque ninguém nun­ca pôde saber ao certo onde estava a saída! De qualquer modo, de­via haver uma abertura, um canal estreito entre duas ilhas, uma fenda entre dois rochedos, suficiente apenas para deixar passar uma caravela, mas ainda assim um caminho direto para as cobiçadas ilhas de canela, pimenta e noz-moscada.

Muitas vêzes chegou-se a pensar que ia ser afinal realizada es­sa aspiração. Em 1500 Vicente Pinzcn, o sobrevivente da famosa expedição de 1492, achou uma vasta extensão de água que parecia poder conduzir para oeste. Depois de cinqüenta milhas, um emara­nhado de ilhas e baixios obrigou-o a retroceder. Quarenta anos mais tarde ficou definitivamente estabelecido que o Amazonas era sim-

( • ) Em espanhol no original.

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0 oceano P acifico

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plesmente um rio como todos os outros, um pouco maior, mais lar­go, mais longo e mais enlameado, mas um rio do mesmo modo.

De novo em 1513 espalhou-se rapidamente nos meios maríti­mos da Europa que a questão estava resolvida: havia sido encon­trada uma via de comunicação direta com a China pelo oceano. O fato era real, mas as ondas faiscantes das quais Balboa acabava de íom 2r posse para o rei da Espanha estavam separadas do oceano Atlântico por muitas milhas de penhascos e vulcões intransponíveis. E Balboa, no cadafalso (sua corajosa independência havia recebido a usual recompensa espanhola), deve ter sabido que tinha fracassa­do, que nada fora solucionado, e que o problema estava ainda mais complicado do que antes. Entretanto, Vasco da Gama havia, en­fim, descoberto o caminho oriental direto para Calicut. A longa e perigosa viagem de Cádiz e Paios par» S. Domingos e Cuba, com a perspectiva duvidosa de “achar alguma coisa”, pareceu então uma aventura absurda e desnecessária. Rumando reto para o sul, seguin­do a rota traçada havia já um quarto do século pelo Infante D. H en­rique, poder-se-ia (exceto em alguns pequenos trechos) ficar intei­ramente à vista de terra, podendo a p o t a r em busca de mantimen­tos todos os três ou quatro dias. “Terra América” perdeu, portan­to, quase todo o seu interesse como problema geográfico de futuro econômico e prático.

Ficou a pergunta: “Que faremos dela no momento?”A resposta era muito simples.“Podemos despojar os nativos para nos enriquecermos, e deixar

e resto para os lôbos e as hienas.”Ao que os senhores aventureiros, salteadores, estranguladores

e outros “lazzaroni” da península Ibérica responderam soltando gri­tos de alegria e cantando: “Vamos depressa!”

Como cumpriram êles a sua nobre tarefa, como balearam, re­talharam, enforcaram, queimaram, roubaram, mentiram, lograram e reduziram meia dúzia de interessantes núcleos sociais onde se pro­cessava uma verdadeira experiência em matéria de colonização em palhoças imundas e em cemitérios, tudo isso foi freqüente e eloqüen­temente referido pelos escritores que consideram o assassinato, o in­cêndio e o saque perpetrados por seus antepassados alguma coisa de muito diferente do saque, o incêndo e o assassinato cometidos pelos avós alheios. Dentro em pouco tôdas as partes do novo con-

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c a - T ;

a m é e i c a

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44 H. VAN LOON

tinente onde existissem valores que pudessem ser mais facilmente adquiridos pelo roubo do que pelo trabalho honesto, caíram rias mãos dos conquistadores espanhóis.

, Primeiro foi a vez do México. Depois o Peru. Em seguida foi o Chile incorporado à Nova Castela. \~a costa oriental, a ambição dos espanhóis e dos portugueses era mantida dentro de limites ra­zoáveis pela pequena linha vermelha traçada na carta do M undo pelo Papa Alexandre VI a fim de que os fiéis pudessem dividir o es­pólio da América sem grande derramamento de sangue cristão.

Mas a história é melhor contada pelos manuais geográficos de então.

Os séculos XV e X V I foram a idade de ouro dos cartógratos profissionais. A maior parte dêles era composta de artistas de pri­meira classe, sem a mínima pretensão a cientistas. Mas é muito curiosa a imagem que nos deixaram d i América. Representando} a América do Sul e a Central, eram quase perfeitos, desenhando com minúcias as linhas das costas e o curso dos nos. 1 ambém o México conseguiam descrever com clareza. Depois disso, entretanto, perd:pm o interesse. E através da extensão deserta do norte, imprimiam essa simples legenda: “Tierras de Ningum Provecho”, ou, “Países sem o menor valor para quem quer que seja. ’

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A M É R I C A 45

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A nova Espanha

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CAPÍTULO V

SAMUEL DE CHAM PLAIN DE BROUAGE APREN D E A NOBRE ARTE DO REMO

O número de pessoas suficientemmte inteligentes para pensa­rem por si, sempre foi excessivamente pequeno. E ’ duvidoso que a percentagem seja hoje muito mais alta do que foi na era paleolítica. E ’ provavelmente um pouco mais baixa do que no terceiro século antes da nossa era, na Grécia e na Ásia M enor. Mas essas coisas são difíceis de provar com exatidão científica.

Entretanto , sabemos muito bem do seguinte: a mentalidade média, no passado como agora, prefere viver numa dieta de fórmu­las facilmente digeríveis, liberalmente temperadas com uma tin tura de lisonja, e um dos pratos mais comuns nas mesas dos que vivem no hemisfério Norte é a crença de que à raça latina (e a todos os outros povos do Sul) faltam as qualidades essenciais para produzir bons marinheiros, sendo os segredos da navegação e da formação dos verdadeiros lôbos do mar apanágio exclusivo dos “anglo-saxões”, aos quais (dentro de limites razoáveis) juntam-se às vezes os fla­mengos e os noruegueses.

Porém, quando ainda os nossos antepassados pintavam de verde as faces e comiam carne crua de urso, um capitão fenício com uma equipagem de Judeus, já havia visitado os arredores do cabo de Boa Esperança.

U m pouco mais tarde, quando as tribos germânicas se embas­bacavam, completamente boquiabertas, diante da espantosa inova­ção chamada “roda”, já traficavam os semíticos de Cartago com os nativos do Congo, já haviam os romanos e gregos explorado todos os recantos do Mediterrâneo, e alguns ntrépidos marinheiros de T i­ro e Sídon visitavam regularmente as minas de estanho da Cor- nualha.

46

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A M É R I C A

V r»/a M i?são

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48 lí. V AK LOON

Ainda mais tarde, os portugueses erraram por tôda a face da terra, um italiano descobriu o Novo Mundo, e o espanhol era a lín­gua falada cm todos os seus portos, da Terra do Fogo à Florida.

Pode nos desagradar essa idéia, m is a verdade é que os nossos antepassados aprenderam o ofício corr os espanhóis e os franceses e só apareceram em ccna quando já o mapa do mundo estava quase todo e cuidadosamente cheio com nomes de origem francesa e es­panhola. Isso não foi devido apenas à superioridade dos conheci­mentos náuticos dos marinheiros latinos, mas também a uma dife­rença na técnica da exploração.

Frobisher e Drakc fizeram várias tentativas para descobrir u m i passagem conduzindo do Atlântico ao Pacífico. Mas eram mari­nheiros agarrados aos seus navios. Se ficasse provado que a sua busca de alto mar os havia conduzido às cabeceiras de mais um rio ou às margens silenciosas de mais uma baía, tanto pior. Pragueja­vam, viravam o leme, apressavam os marinheiros, c iam tentar a sorte noutro lugar. Andar era bom para os camponeses de Yorks- hire.

Um legítimo filho de Devonshire, porém, pertencia às pranchas de madeira dos tombadilhos e não se entendia com gramados e ar­voredos.

M uito diferentes eram os franceses e os espanhóis. Eram des­temidos na marcha e, metidos em pesadas armaduras, venciam dis­tâncias inacreditáveis sob um sol tropical que faria um exército mo­derno clamar furiosamente por caminhões e água gelada. Mas en ­quanto os espanhóis percorriam as novlas regiões como verdadeiros vândalos, destruindo tudo o que viam, os franceses, que não espe­ravam o apoio de sua pátria, gradualmente aprenderam a chegar a seus fins por métodos muito diferente*. Em algumas ocasiões eles eram tão cruéis quanto todos os outros povos que, bem providos de pólvora, entravam em contato com selvagens armados somente d í arcos e flechas. Mas os franceses primeiro parlamentavam e depois é que atiravam, ao passo que os espanhóis começavam invariavel­mente por algumas descargas, deixando os entendimentos para os frades que se apressavam em batizar os sobreviventes.

O primeiro (e por conseguinte o mais interessante) desses infa­tigáveis viajantes franceses foi um certo Champlain, ou Samuel de Champlain de Brouage, como se intituíou orgulhosamente no fron-

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A M É R I C A 49

tispício do livro notável em que sugeriu a possibilidade de se cavar um canal como o de Panamá. Quando ele aportou ao norte do con­tinente, a existencia de um rio podendo levar bem longe no interior já era conhecida havia meio século. Mas não se sabia nada de certo sobre as regiões que se estendiam além das margens brumosas da baía de S. Lourenço. Só mesmo homens desesperadamente conven­cidos do seu ponto de vista poderiam empreender a tarefa de pro­curar o caminho das Indias nos desertos canadenses. Isso foi exa­tamente o que fizeram Champlain e alguns dos seus sucessores.

Homens valentes e decididos, eles não se preocupavam em car­regar consigo escoltas de soldados. Em geral, viajavam apenas com um ou dois homens brancos, pedindo aos próprios nativos cujos ter­ritórios percorriam que lhes fornecessem carregadores e remadores. Porque logo se verificou que o caminho para Oeste passava por uma região onde a viagem era mais fácil por água do qtie por terra.

Os índios, que na sua maioria viviam da caça e da pesca, in­ventaram um pequeno bote, suficientemente forte para atravessar cs “rápidos” dos grandes rios, mas bastante leve para poder ser carregado nos trechos não navegáveis. Com o auxílio desses cha­mados “canois” Champlain, seguindo para oeste, alcançou o lago Huron, demarcou a região do baixo S. Lourenço, visitou o lago On­tario e o lago Oneida, e, explorando habilmente a guerra entre 03 algonquins, os hurões e os iroqueses, pôde explorar as margens do lago que tem o seu nome. E, finalmente, em Pôrto Royal, Montreal e Quebec, fundou feitorias que séculos depois seriam os núcleos da­quela “Nova França” que se deveria estender do estreito de Davis até o golfo do México.

Mas, infelizmente, nem o entusiasmo de homens como Cham ­plain e seus não menos famosos continuadores, M arquette, Joliet, Hennepin e La Salle, que percorreram tôda a região compreendida entre os estreitos de Belle Isle e o golfo de Mobile (via S. Lourenço, os Grandes Lagos, o Ohio e o Mississipi) conseguiu convencer a M o­narquia Francesa, que, com o correr dos anos, o capital empregado nos bens de raiz na América renderia mais do que as terríveis guer­ras de expansão da dinastia, consumidoras de homens e dinheiro.

Os Bourbons, afinal de. çontas, eram primos em primeiro grau dos Habsburg, cujo nome vem de uma antiga fortaleza denominada

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50 H. VAN LOON

Samuel de Champlain

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A M É R I C A 51

“0 ninho do Falcão”. 0 falcão c inexcedivelmente corajoso numa

peleja, mas não é notável pela sua perspicácia.

Enquanto essas dinastias, que governavam o destino da Euro­

pa, puderam viver das presas fáceis achadas nos territórios de vizi­

nhos pacíficos, não quiseram saber de se incomodar com os de­

sertos glaciais de um distante continente nórdico.

E assim, depois' dos feitos dos grandes pioneiros franceses, tudo

ficou como dantes.

Alguns pontos e linhas a mais apareceram no mapa das terras

avistadas pela primeira vez, havia cem anos, pc.r Leif, o Escandi­

navo. Quanto ao resto, era um enorme espaço em branco, ornado

com a legenda ordinária "terre inconnue”. (1)

Desconhecida era e desconhecida ficou um gigantesco diverti­

mento geográfico — alguma coisa com que fazer espírito depois de

uma hoa ceia em Versalhes — uma história de fadas para crianças

bem comportadas que gostavam de ouvir falar do engraçado rei de

Hochelaga que usava penas na cabeça e um anel no nariz.

(1) Em francês no oripinaT.

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CAPÍTULO VI

O DR. CALVINO V IGIA ÉSTE MUNDO E O OUTRO

Existe em Florença, na igreja de S. Lourenço, um monumento

que o consenso unânime de cinqüenta gerações de espectadores crí­

ticos proclamou como urna das mais : dmiráveis peças de escultura

jamais arrancadas pelas mãos do honem a um inerte pedaço de

mármore. Comemora a vida inteiramente fútil de um principete d<¡

sexta grandeza, que cm tôda a sua existência nada fez que merecesse

£er lembrado.

Entretanto, o astuto veiho agiota que transformou uma aldeola

adormecida nas margens do Arno no centro do mundo civilizado

de há seis séculos, jaz num simples ca xãt> de madeira, perdido nal­

gum sepulcro ignorado do mesmo edifício sagrado.

A glória póstuma é como a luz. Ninguém sabe onde vai dar.

Colombo acrescentou alguns milhões de miihas quadradas às posses-

àões espanholas, e um mero mestre-esola germano, escrevendo uma

geografia elementar para uso das esco as, privou-o da honra de ter

seu nome dado ao novo mundo que êle tinha recentemente revelado

aos seus contemporâneos.

Depois, muitas tentativas foram feitas no sentido de retificar

o erro, e nisso nenhum povo se mostrou mais generoso do que os

cidadãos da nossa república. Nosso mapa é um gigantesco hino

triunfal à glória do navegador genovês. As leis do país são elabo­

radas num charco tornado habitável à custa de esforços, denomina­

do o Distrito de Colúmbia. O primeiro objeto que chama a atenção

do visitante da nossa sede de govêrro é uma enorme estátua de

Colombo. Quer se dirija para Oeste ou para Leste, quer vá no Sul

sté a Florida e no Norte até Vermont, em tôda a parte o automóvel

<io visitante correrá ao longo de estradas colombianas, será guarda-

52

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A M É R I C A 53

do em garagens colombianas, e êle próprio se hospedará em confor­

táveis apartamentos de prédios levantados sob a égide de Colombo.

Para encurtar razões, o proverbial viajante do planeta Marte fica­

ria logo convencido de que Don Cristobal foi o sócio ativo da gran­

de empresa chamada Estados-Unidos, e que representou um papel

saliente no desenvolvimento de nossa terra. Entretanto, se me é

permitido inverter ligeiramente as metáforas, direi que Colombo foi

apenas a parteira da nossa existência nacional. Estava presente

quando o território que agora habitamos viu a luz da civilização

pela primeira vez. Mas o gênio austero que, durante a infância im­

pressionável do vigoroso jovem, conseguiu de tal forma imprimir-lhe

o seu cunho que, mesmo depois de adulto, êle não pôde esquecer os

ensinamentos ministrados, êsse foi tão completamente olvidado que

o seu nome é quase desconhecido para a maior parte dos nossos con­

temporâneos.

E contudo, se a posteridade conhecesse os seus deveres, cada

aldeia e cada cidade destes Estados-Unidos deveria possuir uma ou

uma dúzia de estátuas erigidas em memória do Dr. João Calvino,

nascido em Noyon, na França, em 1509 e falecido em Genebra, na

Suíçi, no ano da Graça de 1564.

Porque o seu duro sistema teológico ficou tão fora de moda

quanto o que foi proposto em tempos pelo profeta do Monte Horeb,

cs que escrevem livros no ano ilustrado de 1927 julgam-se com di­

reito de falarem com menosprêzo e quase com irritação do antiqua­

do francês, e não raro deixam de mencionar os enormes serviços

prestados à causa do progresso humano por êsse teólogo cansado e

doentio. ( x) Ora, se for aceito que a liberdade razoável e a felicida­

de do comum dos homens é o objeto da civilização, Calvino merece

(1) E ’ certo que o protestantismo, desencadeando na Europa as guerras re­ligiosas, pulverirando-se cm seitas que se perseguiam umas às outras, e obrigando destarte os dissidentes a se refugiarem na América, tenha tido, indiretamente,

uma grande influência sobre o povonmento dos EE. UU. Mas que Calvino tenha

ptestado diretamente “enormes serviços à causa do progresso humano” é hoje muito discutido. À Reforma, quebrando a unidade espiritual do mundo ocidental, fragmentando o cristianismo e prejudicando, ao menos temporariamente, a sua

ação, foi, ao contrário, uma grande fonte de males para a humanidade. Males de

que ainda hoje sofremos as conseqüências. Pelo livre exame, conduziu o homem

ao individualismo e à idolatria da razão humana, dos quais nasceram a democra­cia e o liberalismo, contra cujos funestos resultados o mundo moderno procura Jutar.

N. T .

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51 n . VAN LCON

Gcntbra

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A M £ R IC A 55

um nicho especial c proeminente na galeria de heróis que deve exis-

tir em todos os espíritos bem formados. O próprio Calvino, se lesse

esta declaração, negaria violentamente haver jamais tentado fazer

alguma coisa nesse sentido. Naturalmente desejava inteira liber­

dade de consciência para a sua gente (que estava com o direito,

porque concordava com ele). Mas assim que conseguisse livrar os

seus arraiais da influência do Papa, êle pretendia firmemente fazer

de Genebra uma segunda Roma, uma cidade onde a disciplina fôsse

real e completa, onde a palavra dos anciãos fôsse aceita c respeita­

da como a suprema lei do Estado.

Nessa nobre ambição falhou lamentavelmente, mas a sua re­

volta aberta contra a autoridade papal provocou uma guerra du­

rante a qual pôde Calvino reunir os elementos heterogêneos dos

reformadores descontentes e dos protestantes em um exército de

oposição.

Um simples olhar no mapa mostrará por que foi Calvino quem

operou o milagre, e não Martinho Lutero, o qual, entretanto, foi o

primeiro a levantar a bandeira da rebeldia.

Lutero vivia em Wittenberg, uma pequena cidade da Alemanha

do norte. Uma larga barreira de territórios amigos separava sua

terra do país inimigo, c, por conseguinte, êle gozava de uma relativa

segurança. Calvino, ao contrário, na sua cidade da Suíça meridio­

nal, cercada de montanhas, estava a dois passos das fôrças católicas.

Comandava os postos avançados do protestantismo. Viveu toda a

sua vida num campo fortificado, e nos homens dados a essa exis­

tência, quer sejam condutores de corpos quer de almas, desenvolve-

se uma estranha filosofia da vida, diferente de todas as outras.

“Sê duro ou perece” foi o aviso levado a Genebra das piras fu­

nerais em Dijon e Grenoble. E, entre ser duro no campo de bata­

lha e ser duro nos domínios da Igreja e do Estado, o passo é muito

pequeno. Mas foi um passo que afastou da ternura do Novo Tes­

tamento e fêz voltar à crueldade intolerante que entra em tão gran­

de parte no Velho. Foi um passo que fêz os homens voltarem a*

costas aos campos sorridentes de Nazaré, e considerarem os murou

perdidos de Jerusalém como a verdadeira pátria do espírito.

E’ inútil lastimar que isso se tenha passado.

Nos domínios da História é inútil lastimar qualquer coisa,

O mais que se pode fazer é tentar entender.

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56 H. VAN LOON

Do nosso ponto de vista (não, isso é muito vago; do meu pónto

de vista) era muito de desejar que fo^se definitivamente destruido

o poder de Roma como um Superestado internacional, e isso só po­

deria ser feito por homens de ferro que, surdos a tudo mais, so

obedecessem aos ditames da sua rígida consciência. Em tempo de­

vido, as suas convicções religiosas, vin ias diretamente dos profetas

e dos juizes (cujos feitos horríveis mancham tantas páguinas das an­

tigas crônicas judaicas), desaparecerão certamente da face do nosso

planeta.

Entretanto, o bom trabalho que fizeram permaneceu. E, disso

eu tenho certeza, êles nunca teriam sido capazes de cumprir a sua

tarefa se não os inspirasse e dirigisse o áspero idealismo do lutador

solitário das bordas do lago de Genebra.

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CAPÍTULO VII

DE HEREGES A “H IGH JACK ERS” C1)

Para uso daqueles que nunca foram jornalistas nem comissá­

rios de polícia, e por isso não se familiarizaram com a nomenclatura

criminal, vou explicar a palavra “highjacker”. Um “highjacker”

não é um ladrão ou salteador comum. Um ladrão comum é um pobre

diábo que despoja um homem honesto das suas posses. Nes­

se caso, a pessoa prejudicada pode gritar por socorro. No mesmo

momento, um bom policial se apressa em entrar em cena, prende o

culpado e o arrasta aos tribunais, onde juizes severos o condenarão

a longos anos de expiação e arrependimento nas masmorras escuras

das nossas prisões.

Um “highjacker” ao contrário, é um indivíduo pervertido, cu­

ja especialidade é assaltar exclusivamente os “bootleggers”. (2) Ora

um “bootlegger” (térmo com que se designam as pessoas compro­

metidas no comercio ilícito da fabricação, transporte e venda de uísque,

vinho, champanha, cerveja e outras bebidas alcoólicas) é, pela pró­

pria natureza do seu trabalho, uma pessoa fora da lei. Êle não pode

gritar “Assassino!” e chamar os guardas em seu auxílio. Porque os

soldados haveriam de indagar “Qual a sua profissão, por obséquio,

meu caro senhor?”, e se êle fosse dizer a verdade e responder “Sou

“bootlegger”, seria imediatamente encarcerado. Está portanto à

mercê do primeiro “highjacker” que possua ousadia, pistolas e um

automóvel poderoso; não há palavras capazes de traduzir o desprê-

zo do “bootlegger” pelo “highjacker” . Mas o “highjacker“ nem liga

a isso e continua o seu caminho, a menos que o “bootlegger” tenha

conseguido baleá-lo, e então não pode se incomodar com outra coisa

(1-2) Termos intraduzíveis.

57

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H. VAN LOCN

;Tfc o fim da vida, que dura habitualmente mais uns trinta se­

gundos.

E’ muito natural a conspiração que existe, e sempre existiu,

tntre os adultos, para convencer as jovens gerações de que seus avós

eram amáveis e estimáveis cidadãos, e devem ser considerados pelas

crianças bem comportadas com o mesmo temor e respeito que os

gregos sentiam em presença dos seus ieuses montanheses.

O cozinheiro de piratas que foi enforcado em 1600, passa, em

1700, a ser um “intrépido corsário”; na campanha de 1812 é promo­

vido à categoria de “Bravo lôbo do mar” e recebe ein 1900 um mo­

numento como sendo um dos fundadsres de um glorioso império

colonial.

O menino que, aos doze anos, fugiu de casa porque roubara

2 bolsa da avó, e, de parceria com alguns degoladores, consegue se

apoderar das jóias de um rajá hindu, poderá ainda ver o dia de ser

recebido na sua terra como um dos mais brilhantes representantes

da aristocracia local.

Porque, na vida como na História, o que vale é o êxito. O re­

belde vencido é prtso e enforcado como traidor. Mas o chefe de

uma revolução vitoriosa será saudado pelas gerações vindouras co­

mo o Pai da Pátria.

Essas coisas podem ser boas, ou podem ser más. Eu não sei, e,

como já disse uma vez, o historiador não deve ser um moralista.

E ’ seu dever tentar expor o que realmente aconteceu, o que real­

mente existiu, com tôda a exatidão cue lhe fôr possível, jogando

com todos os dados de valor. Mas o julgamento final dos atos dos

seus antepassados, será melhor deixá-lo para Jeová, porque só essa

velha divindade possui perspectiva suficiente sobre os atos dos mor­

tais para poder julgá-los com justiça. Logo, se eu estabelecer que mui­

tos dos grandes heróis da nossa História (e a História da América com­

preende a História de quarenta países) eram “highjackers”, não estou

revelando nenhum segredo espantoso. Estou apenas repetindo o que

tra familiar a todos os seus contemporâneos, e o que muitos dos

próprios interessados confessaram quando se retiraram enriquecidos

da perigosa profissão de corsários.

Entretanto, seria simplesmente absurdo da nossa parte, se nós,

r.o ano da Graça de 1927, fôssemos considerar êsses episódios da

luta entre Genebra e Roma à luz das idéias do nosso tempo. Os

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ilEíIOA

De herejes a “ highjackers’”

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60 H. VAN LOON

negócios ocupam hoje no espírito dos homens o lugar outrora pre­

enchido pela religião, Ficamos horror zados quando os nossos vizi­

nhos discordam de nós em matéria de economia política. Se se con­

fessarem socialistas, acharemos que nossos filhos não poderão mais

brincar com os dêles, (podem aprendei teorias esquisitas). Se os sus­

peitamos de secretas simpatias pela forma soviética de governo, es­

crevemos para Wnashington e entregamos o caso ao Departamento

de Justiça. Mas nem sabemos, nem elidamos de saber se vão à mis­

sa ou ao ofício, e, a menos que sejam também rivais perigosos para

os nossos negócios, podem à vontade alegrar seus corações celebran­

do a festa de Hannukah, e nem se incomodarem com o Natal.

Há quatrocentos anos tal tolerância seria impossível. Um qa-

tólico, aos olhos de todos os bons prorestantes, era um idólatra, qife,

pelo menos espiritualmente, se considerava súdito de um soberano

estrangeiro e que, por todos os meios, lícitos e ilícitos, tentava re­

conquistar o norte da Europa para um déspota italiano. Enquanto

que os protestantes, para os católicos, eram perigosos bolchevistas,

imprudentes, cruéis revolucionários, que destruíram voluntariamen­

te a admirável harmonia de um império espiritual tão grande quan­

to o mundo, com o fim único de permitir o casamento aos seus abo­

mináveis pastores, e de enriquecer os seus ávidos reis à custa de

pobres frades e freiras.

Evidentemente, toda essa gente era injusta, mas não havia

ninguém para esclarecê-la, ao passo que existiam milhares de pessoas

interessadas em convencer a cada um de que estava com o direito.

O resultado foi que, nos encontros no mar, os prisioneiros eram

atirados n’água como se fossem an mais selvagens, e em terra os

adversários enforcavam-se mütuamc nte; dois meios diferentes de

chegar ao mesmo fim.

Assim sendo (e essa desumana forma de guerra durou perto

de dois séculos), não era de estranhar que a luta fôsse inevitavel­

mente conduzindo as forças contendoras para além dos confins da

velha Europa. Já em 1535 o almirante francês de Coligny (mais

tarde assassinado no massacre de S. Bartolomeu) tinha tentado es­

tabelecer uma colônia protestante na baía do Rio de Janeiro, sen­

do rechassado pelos portuguêses. Nove anos depois fêz êle nova

tentativa na Florida, esperando pôr a sua gente a salvo dos espa­

nhóis. Dois meses depois foi a pequena comunidade protestante

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A M í R i C A 61

atacada por uma esquadra espanhola, c mortos todos os homens,

mulheres e crianças. “Não”, conforme explicou o comandcnte, por

serem franceses, mas por serem protestantes.

Treze anos mais tarde vingaram-se os franceses, quando (au­

xiliados pelos índios) atacaram o forte de S. Mateus na Florida e

passaram todos os espanhóis ao fio da espada. “Não como espa­

nhóis, mas como traidores, ladrões e assassinos.’’

Um esforço feito duas décadas em seguida, por Sir Humphrcy

Gilbert, com o fim de fundar um entreposto comercial nas costas

da 'Ferra Nova, destinado aos marinheiros ingleses que lá iam to­

do sos anos pescar bacalhau, também foi inútil, e Sir Humphrcy

perdeu a vida na empresa.

Pareceu que Coligny tinha ido demais para o sul e Sir Hum-

phrey demais para o norte. Felizmente, nesse momento, Sir Wal-

ter Raleigh, voltando de uma expedição a Oeste, mostrou que o lu­

gar ideal para o estabelecimento de uma colônia próspera seria a

meio do caminho entre a Florida e o Canadá, num verdadeiro pa­

raíso terrestre a que cie dera o nome de Virgínia em honra da Rai­

nha Virgem, por cuja glória já enviara tantos espanhóis para o ou­

tro mundo.

Alguns calhambeques, devidamente lotados pelos futuros po-

voadores, partiram sob o comando de um primo de Sir Waltcr, Sir

Richard Grcnville; a pequena frota atravessou incólume o oceano

e despejou a sua carga numa ilha na bôea do rio Roanoke.

Agora o êxito parecia certo.

Mas a colônia desapareceu.

Desapareceu inteira e absolutamente.

Desapareceu misteriosamente, como um navio perdido no mar.

Acontecimentos dessa ordem — assassinatos, fome, extravio em

profundas, escuras florestas — não eram precisamente feitos para

atrair os imigrantes cm perspectiva. Por muito tempo não se cui­

dou mais de construir um refúgio nos desertos norte-americanos.

Entretanto, foi decidido tirar da América o maior rendimento

possível, e para maior vantagem ainda, as barras preciosas eram

adquiridas em segunda mão pelos métodos dos “highjackers”.

O sistema de colonização dos espanhóis e dos portuguêses fa­

cilitava muito êsse procedimento. O mundo do século XV I ainda

era o mundo dos monopólios. A idéia do livre comércio e de portos

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C2 H. VAN LOON

áòertos a todas as nações pareceria tão absurdo a um negociante

de 1525 como as teorias econômicas do comunismo e um capitalista

americano de 1927. Com o fim de controlar absolutamente os seus

monopólios, tanto os portugueses quanto os espanhóis anunciavam

o menos possível as suas descobertas e espaçavam muito a remessa

de produtos das colônias para as metrópoles. Isto é, esperavam até

que tivessem reunido um enorme carregamento de ouro e prata e

então despachavam esses tesouros através do oceano tão depressa

quanto podiam. Evidentemente, de um ponto de vista estritamente

legal, essas riquezas tôdas pertenciam aos índios, a quem as rouba­

vam os espanhóis. E, atacando essas f otilhas e carregando tonela­

das e toneladas de barras de ouro, os piratas ingleses e flamengos

privavam o espanhóis do que realmente não lhes pertencia. Se fos­

sem inteiramente lógicos e se regesse n somente pelos princípios

cristãos de que tanto se orgulhavam, dc veriam restituir os bens aos

primeiros proprietários; mas poder-se-ia por acaso esperar encontrar

(■ endereço de um selvagem perdido num recanto de algum obscuro

vale do distante Yucatan, o qual ainda por cima não possuiria ne-

r.hum documento provando os seus direitos?

As guerrilhas sem tréguas que se iniciaram então entre os na-

a .cs do Norte protestante, ligeiros, pequenos, velozes, e os pesados

galeões do Sul católico forneceram à Irglaterra e à Holanda mate­

rial para no mínimo uma meia dúzia de ‘ Eddas”, Canções de Rolando

e Lendas da Távola Redonda.

Aventuras incríveis, de uma audácia frisando a loucura, toma­

ram-se quase banais. Nenhum veleiro e nenhum armazém espanhol

estava ao abrigo de um assalto. As ilha; das índias Ocidentais eram

continuamente saqueadas, e com um in prudente desprezo pelo des­

tino reservado aos prisioneiros calvinistas (o pelourinho ou as galés

da Real Inquisição) os piratas de Londres e Flushing levavam as

suas operações até as costas orientais do Pacífico.

Assim iam sendo encaminhados para os Países Baixos e para

a Inglaterra montes de ouro em barras, e com isso conseguiam êsses

povos introduzir grandes melhoramentos na construção dos seus

íiavios. E mais do que isso, a arriscada profissão de corsários ensi­

nou aos rapazes do Norte uma técnica de navegar e guerrear que

muito lhes havia de servir num futuro próximo.

Porque, em 158S decidiu a Espanhi acabar de uma vez por tâ~

Page 73: América - Hendrik Willen Van Loon

A M E R I C A 65

¿as com todas as heresias presentes e futuras, por melo de uma

cruzada que destruiria para sempre o poder da Inglaterra e da Ho­

landa. Uma frota de cento e trinta e dois navios ficou ancorada no

porto de Lisboa, e um exército de seis mil homens foi mobilizado nos

portos marítimos de Flandres. O plano era mandar a esquadra pa­

ra Dunquerque, abastecê-la aí de homens e munições, e começar

uma invasão sistemática dos países dos dois lados do mar do Norte.

Túda a Europa sabia que essa seria a luta final entre duas filo­

sofias da vida, e que não se admitiriam conciliações. Nunca nenhu­

ma expedição fora armada com tão altas esperanças de êxito. Todo

espanhol digno do nome almejava compartilhar do triunfo da ver­

dadeira Fé. Mas no Norte, também, era intenso o entusiasmo.

Corsários, “liighjackers”, patriotas, chamem-nos como quiserem,

todos largaram tudo e foram se incorporar à frota improvisada que

deveria proteger suas pátrias do contato do Demônio. Foram os

primeiros a chegar ao campo de batalha.

Parte de suas fôrças bloqueou Dunquerque e impediu o almi­

rante espanhol de se reunir aos seus pilotos e às suas tropas de de­

sembarque. O resto da esquadra protestante perseguiu a Invencí­

vel Armada como uma matilha de cães persegue uma parelha de

ursos feridos.

A natureza protegeu o hereges. Uma série nunca vista de fu­

racões arremessou a armada para fora de sua rota e causou tais

estragos nos galeões espanhóis que apenas menos da metade dêles

voltou aos portos de onde saíra.

Page 74: América - Hendrik Willen Van Loon

CAPÍTULO V III

HERBA SAXCTA 1N X )RU M C1)

Os naturais do grande continente americano eram selvagens,

c, se acreditarmos nos primeiros historiadores dessas remotas pla­

gas, era tal o seu atraso que ainda não tinham descoberto o uso da

roda.

Nós, do século XX , que não poderíamos viver um único dia

sem o auxílio de milhões e milhões ce rodas, enganamo-nos muito

facilmente tentando medir a inteligência de um homem pelas suas

aptidões para as invenções mecânicas. Porque aquêles pobres pa­

gãos que carregavam tudo nas costas (ou de preferência nas costas

rias mulheres) e nunca tiveram a ideia de construir uma carroça,

possuíam algumas outras qualidades suficientes para provar que não

eram de modo algum inferiores aos nossos antepassados.

Para mencionar um único item, eles conheciam a utilidade de

maior número de erva» do que qualquer outra raça humana. Ensi­

naram o uso de algumas plantas sen: as quais teria sido infinita­

mente mais difícil a povoação do con:inente, como o milho, as ba­

tatas, o café, o algedão (de um tipo nuito superior ao que crescia

desde tempos imemoriais no Egito e na Mesopotâmia), a borracha,

o quinino e o tabaco. A borracha, o café e o algodão só mais tarde

foram apreciados pelos europeus.

A batata, transportada para a Europa, livrou da fome várias

gerações. O papel mais importante no momento foi, porém, o do

fumo. Foi êle quem preservou para a causa do Protestantismo tóda

a parte setentrional do continente americano. O que representa gló­

ria suficiente para qualquer erva obscara e daninha como era essa.

Já Colombo voltara da sua prineira viagem contando umas

histórias estranhas de “índios fumantes”. Alguns dos seus homens

(1) Em latim no original.

C4

Page 75: América - Hendrik Willen Van Loon

A M £ R I C A t>3

te tinham aventurado numa pequena expedição pelas ilhas vizinhas,

t, de volta disseram que os naturais tinham o hábito de se sentarem

em volta de um fogo feito

com as folhas secas de uma

certa planta, e aspiravam

o fumo desse fogo por uns

singulares instrumentos de

madeira que introduziam

nas narinas, parecendo ti­

rar um grande prazer dos

efeitos dessa prática. O

nome do objeto de madei­

ra que conduzia a fumaça

para o nariz era, segundo

os marinheiros, “tabaco'’.

Pesquisas posteriores de­

monstraram que o uso do

“tabaco era geral entre os índios que viviam sob o sol tropical.

Sessenta anos depois, um cientista espanhol, que tinha sido en­

viado às novas colônias para estudar as suas capacidades agrícolas,

trouxe para a Espanha alguns pés da planta misteriosa que os índios

queimavam. Não sabemos se a planta ela própria se chamaria mes­

mo tabaco entre os selvagens, ou se os espanhóis (cujo profundo

desprezo pelos aborígines teve a conseqüência de torná-los culpados

de erros crassos de filologia) teriam estendido o nome do cachimbo

à erva nefasta. Indubitável, porém, é a barulhada tremenda que o

tabaco levantou no mundo. Fala-se muito da solenidade da cerimô­

nia de “chupar1” ou “beber’ tabaco, entre os índios, para os quais

uma reunião de fumantes tinha alguma coisa de santo e de sagrado.

Mas na Europa foram os farmacêuticos os primeiros a descobrirem

as vantagens da nova droga. Proclamaram por toda parte as suas

maravilhosas virtudes medicinais; pondo-a para ferver durante cin­

co ou seis horas, fabricavam uma tintura que, com o nome de “her-

ba sancta indorum” era receitada para diversos males. E, na ver­

dade, não deixava de possuir o seu poder terapêutico, pois fazia

tanto mal aos pacientes que ou êles morriam na hora, ou resolviam

ficar bons de uma vez para se livrarem da segunda dose.

Um selvagem e a sua planta sagrada

Page 76: América - Hendrik Willen Van Loon

66 H. VAX L(>ON

Em seguida, aumentou muito o seu prestígio o fato <3e, durante

o primeiro ano depois da sua introdução nos mercados europeus, ter

valido realmente o seu peso cm ouro Até Catarina de Médicis in­

terrompeu um momento as suas meditações religiosas para se inte­

ressar pela nova atração, e para examinar as fôlhas de amostra que

João Nicot (procurem “Nicotina, C, 10 H, 14 N, 2” em qualquer

das enciclopédias usuais), embaixador francês em Lisboa, conseguiu

obter para ela de um marinheiro de volta da América.

Mas a planta só adquiriu a sua tremenda popularidade quan­

do se descobriu que a fumaça, aspirada através de um cachimbo de

barro, produzia uma impressão de contentamento que punha o fu­

mante em paz com todo o universo e não causava nenhuma sensa­

ção desagradável, exceto para crianças muito pequenas, que, aliás,

de qualquer modo, não deviam mexer em tais coisas.

Desde então mudou-se a “herba sancta” das farmácias para a;

cervejarias e botequins, e doze anos não se passaram sem que todo

o mundo masculino (e uma parte considerável do feminino) se dei­

xasse arrastar ao agradável passatempo de acender a “herba sancta’*

c de encher o universo com nuvens ce fumaça azul-clara. Natural­

mente, a velha geração fechou a cara à novidade. As velhas gera­

ções sempre fecham a cara. E dizem que é preciso tomar uma me­

dida para reprimir o abuso. A princípio, eram os fumantes punidos

com uma pequena multa. Depois acrescentou-se à multa a prisão.

Na longínqua Moscou, o “Paizinho", decretou que levariam vinte

e cinco chicotadas de enute tôdas as pessoas que lôssem apanhad:^

com cachimbos. O grande Padishah cm Constantinopla foi mais

longe e exclamou “Cortem-lhes as cabeças!”

Mas a mania já não podia ser dominada. A Europa tôda sa

metera na cabeça de fumar, e fumou.

De fumar tabaco a fundar uma grande república inglêsa na

América no Norte, a distância parece grande. Mas a História fre­

qüentemente tem meios singulares de conseguir os seus fins, c nessa

ocasião ela se sobrepujou.

E’ geralmente sabido que tanto Calvino como Lutero (e a

maioria dos chefes protestantes), anticipando as delícias do Céu,

davam muita importância ao dever de passar por êste vale de lá­

grimas o mais confortavelmente possível (conforto representado pe­

lo dinheiro, sc quisermos pôr os pontos nos ii). A Igreja Católica,

Page 77: América - Hendrik Willen Van Loon

A M É R I C A 67

por outro lado (sob a influência dos patriarcas orientais), sempre

considerou censurável a ambição monetária. Não a julgaria estri­

tamente imoral, mas era uma dessas coisas às quais não se devia

prender o verdadeiro cristão, sob pena de perder a alma imortal na

procura de bens passageiros.

Na verdade, a oposição clerical à idéia de juros interferiu da

tal forma no desenvolvimento do crédito que os negócios, no senti­

do moderno da palavra, foram quase impossíveis durante a Idad?

Média. A Reforma mudou tudo. A doutrina da predestinação, êsse

ponto obscuro e impressionante da Teologia, pela qual Calvino fez

reviver a noção de um pequeno corpo de “escolhidos” vogando cal­

mamente entre um oceano turbulento de “danados” por tôda a eter­

nidade”, era muito do agrado dos comerciantes avarentos; êles pen­

savam descobrir alguma misteriosa promessa de salvação no fato

de prosperarem continuamente ao passo que seus vizinhos meno?

merecedores permaneciam pobres. Achavam-se assim prontos para

"todos os negócios” no mais amplo sentido das palavras.

Mas isso não era tudo. A “guerra santa” contra os “papistas

idólatras” abarrotara de ouro o mundo protestante. Só na Inglater­

ra, a fortuna nacional parece ter triplicado entre 1500 e 1600. Ouro

e prata, porém, não podem ser comidos. Em si, não possuem êsses

preciosos metais nenhum valor. Só valem quando permitem a com­

pra do pão ou de um par de brilhantes. Nós sabemos disso, mas,

no século XV II, pouca gente o suspeitava. Com grande surpresa

cocnvenceram-se os povos de que a simples possessão de barras de

ouro c prata em grande número era realmente um privilégio duvi­

doso, que às vêzes mais parecia uma maldição.

Ora, é também muito sabido que, quem vive numa revolução,

raramente percebe o alcance do que se está passando. E assim não

se pode censurar os contemporâneos da Rainha Elizabeth por não

terem compreendido que a viagem de Colombo acabara definitiva­

mente com as leis da Idade Média e destruíra absolutamente o sis­

tema feudal que governara o mundo por quase dez séculos; e tudo

isso porque êle descobrira um novo mundo, que o velho poderia em­

pregar como um gigantesco albergue para o seu excesso de popula­

ção. Foram necessárias centenas de anos para que êsse fato fosse

inteiramente entendido. Mas o súbito e inesperado dilúvio de ouro

e prata que, por Portugal e Espanha, começara a inundar a Euro­

Page 78: América - Hendrik Willen Van Loon

68 H. VAN LOOM

pa meridional e ocidental, acabou completamente com o velho e

antigo sistema de permutas que fazia do proprietário das terras (o

homem que, praticamente, só fazia ariecadar os ovos, o rnel e a

carne, e todos os produtos que pudessen ser trocados) a figura do­

minante da sociedade medieval.

Repentinamente, o rio de ouro pôs milhões de dólares em di­

nheiro nas mãos dos mercadores que a:é então tinham sido meros

mascates de trouxa nas costas. Éstes oomeçaram a fazer negócios

numa escala que o mundo não via desde os dias dos imperadores1

lomanos. Tornando-se ricos e proeminentes (ou tentando serem

proeminentes porque eram ricos), precisaram para logo morar em

casas melhores, mandar os filhos para colégios caros e gastar com

o casamento das filhas uma soma que bastaria para o resgate de

um rei.

A velha aristocracia rural, vendo o que se passava, não quis

ficar para trás. Seu rústico paraíso fôra violentamente transforma­

do pela introdução a mancheias de xelirs e pennies e libras aprazí­

veis e bem cunhados. Mas eles ainda tinham a terra, e a terra po­

dia produzir grãos, e os grãos seriam vendidos por bom dinheiro

em moedas sonantes.

Más notícias, essas, para os homens de negócios. Não pode­

riam plantar trigo nos seus pequenos jardins das cidades. Teriam

de comprá-lo dos seus nobres vizinhos, e os nobres vizinhos tirariam

do negócio o maior lucro possível.

Finalmente (como parece inevitável) os lavradores foram a-s

vítimas dessa luta econômica. Em nossos dias, quando surge uma

situação semelhante, como aconteceu depois da grande guerra inter-

racial de 1914-1918 (a segunda grande revolução econômica depois

da descoberta das minas de ouro americanas), o honesto trabalha­

dor (que já está mais esperto) arruma a bagagem e deixa um reca­

do dizendo que voltará quando o seu salário fôr aumentado e lhe

der para pagar o toicinho e o gás. Mas os lenhadores e os carrega­

dores de água de 1600 tinham menos sorte. O Juiz de Paz do seu

distrito (um nobre, naturalmente) decidia qual devia ser a justa

paga de um dia de trabalho. O escra\o gozava da liberdade de

aceitar ou não o preço estipulado. Mas no último caso o mesmo

Juiz de Paz tinha o direito de prendê-lo por vagabundagem e podia

mandar dar-lhe uma surrra ou condená-lo aos trabalhos forçados

Page 79: América - Hendrik Willen Van Loon

O Altar abandonado

Page 80: América - Hendrik Willen Van Loon

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Page 81: América - Hendrik Willen Van Loon

A M É R I C A 6i>

até que voltasse voluntariamente ao eito aceitando o salário pres­

crito.

Se houvesse procura de braços para o serviço, os condenados

poderiam rir-se dos cadeados das prisões, porque, senhores do doce

monopolio de trabalhar e penar sem cessar, eles teriam à sua mercê

os negociantes e a aristocracia rural. Mas durante os últimos cem

anos, os imensos latifúndios da Igreja haviam sido, em todo o norte

ca Europa, confiscados pelo govêrno, e centenas de milhares de

¡individuos (frades, freiras, sacristãos e a vasta tropa dos jornaleiros

camponeses, que até então haviam cultivado os campos dos esta­

belecimentos monásticos), privados do seu anterior ganha-pão, fo­

ram jogados nos mercados de trabalho.

Assim se estabeleceram as duas principais condições para uma

proveitosa exploração colonial. Existia um pequeno número de pos­

suidores de riquezas supérfluas, as quais desejavam ardentemente

t-mpregar de modo a obter bons lucros. Enquanto isso, milhares

de pessoas eram tão pobres e famintas e miseráveis que, para es­

capar ao pouco hospitaleiro torrão natal, seriam capazes de ir para

qualquer lugar, até mesmo para os confins dos terríveis desertos

americanos. Entretanto, êstes não pareciam menos sombrios do que

hk cinqüenta anos atrás. Tinha sido um fracasso completo a ten­

tativa de Bartolomeu Gosnold para fundar uma feitoria na baía de

Buzzard, em Massachusetts. Mas os primeiros ecos das recentes

descobertas de um tal Chaplain começavam a se espalhar pelo con­

tinente. As descrições feitas pelo francês de vastos mares interiores

cujas margens visitara com os seus amigos índios, acordaram a es­

perança de que, afinal de contas, devia haver alguma coisa de certo

na teoria (ainda geralmente sustentada) segundo a qual a cadeia

de montanhas americana era uma estreita faixa de terra, através da

qual seria uma questão de tempo achar o caminho do Atlântico pa­

ia o Pacífico.

Além do mais, é preciso lembrar de que os homens, err média,

são incuràvelmente otimistas. Tinha sido já completamente esque­

cido o terrível destino dos colonizadores da ilha de Roanoke. Por

outro lado, as histórias dos poucos marinheiros que tinham seguido

Sir Walter à Virgínia, histórias cheias de índios cujos ornamentos

em tudo se pareciam com o ouro, começaram a correr de cervejaria

cm cervejaria, e não perdiam na repetição nada dos seus maravi-

Page 82: América - Hendrik Willen Van Loon

70 H. VAN LOON

lhosos e disparatados boatos. As poucis pessoas sensatas impressio-

naram-se mais com o relatório do próprio Sir Walter, que afirmava

ser o solo de Virginia o mais rico do globo e capaz de fazer frutifi­

car em colheitas abundantes tudo o que a mão do homem confiasse

à sua generosidade. Mas, como tais esforços agrícolas implicam o

uso diligente de enxadas, arados e outros instrumentos que fazem

sempre calos nos dedos delicados, os futuros imigrantes preferiam

sonhar com ouro, e riam superiormente quando lhes advertiam que

a maldição do Gênesis III , versículo 19, tinha tanto valor no ano

de 1600 como algumas semanas depo s da criação.

Essa recusa de tomar as coisas seriamente por pouco não lhes

custaria a vida, como viram pouco tempo depois. Porque o negócio

de fundar novas companhias de transporte caiu por fim nas mãos

de alguns honrados comerciantes. A í concessões reais logo acudi­

ram, com desusada presteza. Era ainda altamente duvidoso o di­

reito que teria Sua Majestade de dispor de terras que, rigorosamen­

te falando, não lhe pertenciam. Mas como não pertenciam a mais

ninguém, ou, para ser mais preciso, como pareciam ter tão pouco

valor que ninguém, até então, quisera tomar o trabalho de reclamá-

las para si, os mapas inglêses podiam-se estimar tão valiosos como

os que eram assinados pelos reis de Espanha e Portugal.

A Companhia de Londres, cuja urisdição compreendia todo o

sul da Virgínia, foi a primeira a se fo:mar. No dia 20 de dezembro

de 1606, três navios com quarenta nrarinheiros e mais de cem co­

lonos zarparam para oeste. Cinco meses depois, quando os capitães

já não tinham a menor idéia de onde estavam, uma oportuna tem­

pestade vinda de leste jogou-os na b;iía de Chesapeake. Ancoraram

e puseram-se a explorar a região até encontrarem um bom sítio pa­

ra uma fortaleza. Acharam-no nas margens de um rio a que cha­

maram James River, em honra de seu generoso soberano, Jaime I

da Inglaterra.

Só então abriram a caixa lacraca onde estavam as instruções

secretas sobre a administração da no,ra colônia, e se instalaram pa­

ra gozar a vida.

Isso se deu a trinta de maio de 1607, e a esperança enchia to­

dos os corações.

Seis meses depois, a metade dos recém-chegados estava morta,

e a outra metade procurando um meio de escapar. Todos -«s seus

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A M É R I C A 71

Um navio ãe escravos

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12 H. VAN LOON

sonhos tinham sido desmentidos. As argas enseadas, tão risonhas

vistas do mar, eram apenas pântanos. As florestas estendiam-se a

perder de vista. A “passagem direta’ para as Índias continuava

inatingível, como antes. j

E, para chegar ao auge, o ouro de que falavam os marinheiros

de Sir Walter era “ouro de mentira'5 — um atrevido metal amareio

cujo nome técnico é “pirita”, a qual é empregada na manufatura: do

ácido sulfúrico, e não tem o menor va or.

Não, não é possível haver gente mais desiludida e desanimada

do que a população impaludada de Jamestown. j

E’ difícil imaginar as loucuras a que se teriam entregue j os

povoadores se tivessem sido abandonados à própria sorte. Provi­

dencialmente, porém, havia entre êles um homem que conhecia o

valor da disciplina e sabia mantê-la. O companheiro glorioso dos

primeiros dias de nossa história, o inco nparável João Smith de I,in-

colnshire. Depois de aventuras incríveis no mar e em terra, êle; se

tornou uma espécie de homem dos sete instrumentos, e, com firmeza

e bom humor inabaláveis, pôde manter unida a triste irmandade,

até que chegassem socorros da Inglaterra. Mesmo assim, parecia

muito pouco provável que os acionistas londrinos pudessem obter

um único pêni do dinheiro empregado No seu desespêro, tomaram

medidas heróicas para manter aceso o fogo dos acampamentos da

Virgínia. Esvaziaram os asilos de órfãos; começaram a visitar fre­

qüentemente os abrigos de menores abandonados; roubaram meni­

nos e meninas nas ruas. Mas tudo sein resultado.

E depois (como nos cinemas) aconteceu o inesperado. Um dos

fundadores da Companhia de Londres, João Rolfe, surgiu em Ja­

mestown.

Êsse homem se interessava muito pelo fumo. Alguns anos an­

tes, uma partida de tabaco da Virgínia tinha sido enviada para

Londres, e não achara comprador. E^a muito amargo, e os apre­

ciadores preferiam a qualidade espanhola, que vinha das ín<Jias

Ocidentais.

Rolfe suspeitou (e com razão) cue o amargo do produto da

Virgínia era devido à maneira de trarar as folhas. O tabaco bom

para um índio americano não era aparentemente bastante bom pa­

ra uma “gentleman” inglês. Rolfe fêz várias experiências, e afinal

encontrou um modo de beneficiamento, que tornava o fumo da Vir-

Page 85: América - Hendrik Willen Van Loon

A M É R I C A 73

gínüa tão doce quanto o de Cuba. O novo produto alcançou um

êxito instantâneo. O dinheiro começou a se amontoar nas margens

do James River. Tudo se valorizou. Tão grande era a procura de

braços para a lavoura que começou logo a importação de escravos

negros da Guiné; traziam-nos os navios de carga (o primeiro che­

gou em 1619, uma data que não devemos nunca esquecer, nem

permitir que reviva), e os velhos campos mal cuidados, onde cres­

ciam ccreais, os jardins abandonados, e, até mesmo certos trecho3

das estradas, eram aproveitados para o cultivo da rendosa erva.

Os Tudors tiveram a sua rosa.

,Os Stuarts tinham agora a sua flor de fumo.

E, creiam-me, êsses escoceses econômicos souberam escolher um

lucrativo emblema floral.

Os primeiros acionistas da Companhia de Londres tinham tida

a graciosa licença de sc arruinarem numa emprêsa que parecia pre­

destinada à falência. Agora, porém, todo o mundo dera para fumar

tabaco da Virgínia, para cheirar tabaco da Virgínia, para mascar

tabaco da Virgínia.

Nada mais natural do que Suas Majestades reclamarem logo

uma parte dèsses rendimentos inesperados.

E quando os membros da antiga e pouco escrupulosa casa dos

Styarts desejavam alguma coisa, achavam invariavelmente meios

de obtê-la.

Em 1624 foi anulado o mapa da Companhia de Londres.

A Virgínia deixou de pertencer exclusivamente a um pequeno

gtupo de indivíduos. Tornou-se uma suntuosa colônia com um go­

vernador real que rodava em carruagem de quatro parelhas, vivia

rodeado de lacaios de libré, e governava os seus domínios com a as­

sistência de um parlamento em miniatura, composto exclusivamen­

te de representantes da aristocracia rural.

A História, como já disse algumas páginas atrás, dá voltas es­

pantosas para chegar a seus fins.

A “erva santa dos índios” conseguiu o que os velhos sonhos de

riquezas sob a forma de ouro e prata não haviam podido realizar.

Num abrir e fechar de olhos, essa erva daninha transformou

as solidões só povoadas de feras da América do Norte cm abrigo

futuro de milhares de respeitáveis povoadores ingleses.

Page 86: América - Hendrik Willen Van Loon

CAPÍTULO IX

UMA NOVA SIÃO A VINTE GRAUS ABAIXO DE ZERO

Declamar é um hábito que se desenvolve com muita facilidade

naqueles que possuem o título honroso de professor. E em nenhum

outro ponto do presente volume poderia eu denunciar com maior

eloqüência do que neste, alguns métodos viciados de Historiografia.

Porque cheguei agora ao momento em que, segundo algumns opi­

niões, a História Americana deixa de ser apenas mais um episódio

nos anais sem fim da raça humana p ira se tornar alguma coisa à

parte; alguma coisa diferente; uma manifestação dessa singular Von­

tade Divina que, três mil anos antes, dividira a população do mun­

do em duas categorias definitivas; em “escolhidos” e em "condena­

dos”, expulsos para sempre do recinto privilegiado.

Tal idéia pode ser muito agradável ao orgulho dos felizardos

que se encontram do lado de dentro. Mas nos levaria a cogitar so­

bre a inteligência e a justiça do Grande Espírito que a todos nós

governa. Sim, na verdade, o mundo como eu o vejo é uma demons­

tração tão desmedida de arrogância intelectual, que seria incrível se

não fosse verdadeiro.

E'-me até penoso ler as beatas histórias contadas pelos sobre­

viventes do “Mayflower” . De como um marinheiro costumava pre­

gar peças aos pobres passageiros não habituados ao mar, e que en­

joavam; de como êsse indivíduo foi por isso castigado com uma ter­

rível moléstia, sendo o primeiro a merrer e a ser lançado ao mar;

de como ficaram profundamente impressionados os outros marinhei­

ros, sentindo sobre si a mão implacável do Senhor.

O pobre diabo, obrigado a lavar dez vêzes por dia um tomba­

dilho sujo, deve ter tido muito boas r izões para suas caçoadas pou­

co caridosas. E sua viúva e seus filhes podem ter encarado a coisa

sob um aspecto totalmente diverso.

74

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A M E R I C A 7>

Não posso tão pouco concordar com Cotton Mather quando

f*le afirma que a Providência saneou as encostas da baía de Boston

<èe todos os sêres perniciosos (leiam índios) para dar lugar ao que

o reverendo doutor chama “uma humanidade mais perfeita” . Sem

dúvida julgava-se o Irmão Mather um espécime humano muito

mais nobre do que um chefe massasoita, mas os infelizes nativos

que morreram de varíola ou sarampo pouco antes da chegada do

primeiro navio carregado de puritanos, não poderiam entender por­

que deveriam ser exterminados para prover com a quantidade ne­

cessária de milho uma leva de intempestivos fazendeiros. Isso não

significa que cu, que preciso de um aquecedor e de um bom fogo

para poder agüentar com mais ou menos conforto um inverno co­

mum de Connecticut, não aprecie a coragem que foi necessária

aos imigrantes para ficarem, quando o instinto de conservação

devia ter exigido a volta. Fizeram um bom trabalho. Mas se bem

que tivessem sido arremessados a uma costa gelada durante o pior

tempo do ano, não foram tão desgraçados quanto os seus prede­

cessores, que morreram até o último de fome e sêde, ou foram co­

midos pelos índios (realmente algumas tribos gostavam de carne

humana) ou desapareceram de uma vez no deserto, perdidos para

sempre para os seus irmãos brancos.

Êstcs imigrantes sabiam os riscos que afrontavam. Tinham

tudo a lucrar e nada a perder.

Jogaram com o destino e ganharam muito mais do que podiam

sonhar.

Atravessaram o oceano para fugir à fome, para obter o tabaco,

para enriquecer e governar suas igrejas como bem entendessem.

E quase sem o perceberem, fundaram um dos maiores impérios

dos tempos modernos e erigiram uma nação que, falando dc maneira

geral, aceitou suas idéias como suprema lei moral. Não é uma gló­

ria inesperada para padeiros de aldeia, para cocheiros, e para fabri­

cantes de velas de sebo?

Quanto à viagem dos “Pilgrims”, já foi tão contada que quase

todas as crianças lhe conhecem os pormenores.

Os “Pilgrims” eram puritanos. Isso pode significar muita coisa,

ou coisa alguma. Nunca existiu uma seita puritana, como existiram

seitas batistas ou metodistas. O puritanismo era uma filosofia da

vida. Não foi um produto do protestantismo. Houve, como ainda

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76 H. VAN LOCN

há, puritanos católicos. As Cruzadas foram determinadas pelos pu­

ritanos maometanos. Existem puritanos hindus. Há muitos purita­

nos livre-pensadores. Tudo depende dos gostos e inclinações indi­

viduais.

Imediatamente depois da Reforma muitas pessoas sentiram que

o movimento não fora suficiente para expurgar o espírito humano

de todos os desejos e tentações terrenas. Sempre se havia conse­

guido alguma coisa.

A velha prisão espiritual estava c.estruída. Mas seu lugar foi

ocupado por outros pequenos cárceres e os novos senhores, como

logo se viu, pretendiam ser tão severos e exigentes como os antigos,

Mas isso não era tudo.

O século XV I foi um período típico de após-guerra. Alguns

açambarcadores, explorando a situação, haviam conseguido enor­

mes riquezas. Os príncipes dos países nórdicos e da Inglaterra, ha­

vendo-se apropriado (as famílias reais e os governos, como todei

sabem, não roubam — apenas “confiscam” ou “apropriam”) das

riquíssimas propriedades da Igreja, e aquinhoado opulentamente o;»

seus defensores, estabeleceram em seguida um conjunto de leis reli­

giosas ao seu agrado, tão coercivas quanto as de Roma.

Nessas circunstâncias, um homem sinceramente convicto de que

a grande reforma lhe facilitaria o aper eiçoamento da alma segundo

as suas crenças íntimas, não encontrar a mais facilidades do que os

seus predecessores. Não precisava mais se defender dos espiões da

Inquisição. Mas só o Céu lhe poderia valer se algum eco das suas

heresias chegasse aos ouvidos do bispo mais próximo, ou st melin­

drasse a classe recentemente enriquecida dos nobres pajens reais.

Então fizeram os descontentes o que sempre fizeram os des­

contentes de tôdas as épocas. Foram para as “catacumbas”. Encon-

travam-se os estábulos desertos. Reuniam-se nas estreitas e calmas

estradas campestres; e quando lhes arrancavam as orelhas ou lhes

cortavam o nariz, ainda se julgavam felizes por terem sido julgados

dignos de sofrer o martírio pelo que lhes era mais importante e mais

caro do que a vida.

Tais condições, porém, não podiarr durar eternamente. Os mais

fracos da irmandade se reconciliaram com as autoridades. E os ou­

tros fugiram.

No ano de 1607 um desses grupos de herejes duramente acossa-

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A M É Jtt I C A 77

A nova Sião

Page 90: América - Hendrik Willen Van Loon

73 H. VAN LOCN

dos conseguiu escapar da Inglaterra para a Holanda e se instalou

na leal cidade de Amsterdam. Os recem-chegados eram miseravel­

mente pobres. Viviam em cortiços, e as poderosas uniões comerciais

flamengas (podem chamá-las de corpcrações, se acharem mais ro­

mântica a denominação) não viram com bons olhos essa invasão

de trabalhadores estrangeiros. Quanto aos invasores, longe de suas

aldeias, privados das paisagens, dos chfiros e sons da Inglaterra ru­

ral, sentiam-se terrivelmente desgraçados. E logo se mudaram de

Amsterdam para Leyden, o principal centro manufatureiro da re­

pública flamenga, onde esperavam ganhar com mais facilidade a

vida, e onde estariam mais perto dos campos verdes que lhes recor­

davam a pátria.

As autoridades flamengas, que sabiam muito bem o desprezo

em que as tinha o rei da Inglaterra (um bando de pequenos rebel­

des maltrapilhos!), cônscio de sua dignidade de “Soberano pela Gra­

ça de Deus”, não maltrataram os fugitivos. Deram-lhes um local

para as cerimonias do seu culto, perm tiram-lhes importar seus mi­

nistros e rezar os ofícios na sua língua. Mas, apenas saíam dos

seus templos, os pobres puritanos encontravam-se num mundo fla­

mengo, com escolas flamengas, só ouvindo falar flamengo; num mun­

do, portanto, para o espírito de um inglês de classe média, “estran­

geiro”, o que significa decididamente inferior.

Seria talvez injusto acusar a colônia inglesa em Leyden do pe­

cado covarde de “jacobinismo” . Sejamos caridosos, e digamos so­

mente que tinham saudades de sua terra.

Sobretudo, preocupava-os o futuro dos filhos. Em 1621 termi­

naria a trégua de doze anos entre a Espanha e as suas possessões

rebeldes dos Países Baixos. Não era c^rto que a República pudesse

manter-se independente. No caso de ser a Holanda reconquistada

pelos exércitos de Sua Majestade Católica, que seria dêsses ingleses

homens e mulheres, conhecidos por ter?m abandonado seu país, cul­

pados de heresia contra os seus herejts senhores?

Não, tudo bem pesado, era melhor para os puritanos que se

fôssem enquanto era tempo.

Justamente tinha a Companhia de Londres anunciado que trans­

portaria mais uma leva de colonizadores para a Virgínia. Isso se

deu no momento em que a primeira remessa de tabaco chegara ao

mercado londrino e alcançara bons preços. Os acionistas tomaram

Page 91: América - Hendrik Willen Van Loon

A M É R I C A 79

novo alento. O que faltava agora para um êxito completo era mão-

de-obra abundante e barata. Havia, naturalmente, uma objeção

séria. A comunidade de separatistas de Leyden (ou não conformistas,

eu brownistas, ou puritanos, o nome não importa) poderia se tornar

um elemento de discórdia numa colônia de maioria episcopaliana.

Mas a América estava a três mil milhas de distância, e era muito

grande a Virgínia. Devia segu­

ramente existir um recanto de

deserto onde os descontentes se

instalariam sem causar grande

escândalo público.

Não era fácil conseguir os

fundos necessários para uma imi­

gração em grosso. Em 1620, uma

passagem de terceira classe cus­

tava o que custam hoje duas

passagens de primeira num bom

transatlântico.

De uma maneira ou de ou­

tra, reuniu-se porém a quantia,

mas pelos têrmos do empréstimo

os imigrantes desistiam de obter

lotes individuais. Deviam fazer

parte de uma emprêsa comunis-

Os puritanos a caminho de Leyden Não haveria, em sua nova pá­

tria, nenhuma propriedade par­

ticular, a nüo serem os utensílios domésticos.

Em julho de 1620, partia da Inglaterra para a Holanda um ve­

lho navio de umas sessenta toneladas; devia levar os imigrantes pa­

ra Southampton. Atrasos infindáveis prenderam essa pobre gente

na enseada de Southampton durante quase todo o verão. Só em se­

tembro se despediram das plagas nativas. Era realmente já uma

estação muito avançada para atravessar o oceano com relativo con­

forto ou segurança. E além disso não estava o Mayflower (era êsse

provavelmente o nome do paquête, mas não temos certeza) apare­

lhado para agüentar mar. Levou dois meses para vencer a distân­

cia entre Plymouth e as costas americanas. E nem se parece ter o

Page 92: América - Hendrik Willen Van Loon

80 H. VAN LOON

seu capitão distinguido por extraordinárias capacidades de navegan­

te. Em vez de aportar na baía de Chesapeake (como fora combina­

do) êle levou os passageiros nove mil milhas para fora do seu ca­

minho, várias vezes estêve a pique de naufragar numa costa que lhe

era totalmente desconhecida, e finalmente ancorou numa baía igno­

rada, inteiramente rodeada de morros baixos, cobertos de neve.

Os pobres viajantes começaram a perceber que devia haver ai-

gum engano. Haviam partido para trabalhar para a Companhia de

Londres, e se encontravam sob a jurisdição da Companhia de Ply­

mouth. Nada neste mundo, porém, os faria voltar ao alto mar. En­

viaram um bote para fazer reconhecirm ntos na costa próxima, e se

decidiram por um sítio que lhes pareceu menos árido do que o resto,

e onde construíram uma aldeia a que deram o nome de Plymouth.

Até aí, ia tudo muito bem. Mas enrre os passageiros de Mayflo­

wer, alguns tinham pouco dinheiro, e ílguns não tinham nenhum.

Os últimos (quase todos criados de servir) vinham cheios de espe­

rança de encontrar a fortuna na Virgínia. Sem terem nisso a menor

culpa, viram-se condenados a continuai em a mesma insípida exis­

tência. Protestaram. O mapa que tinham visto mencionava a Vir­

gínia. Acreditavam na lei e na ordem. Iriam para a Virgínia, inda

que fôsse a pé.

Isso parecia revolta, e uma revolta perigosa. Porque o número

dos “Pilgrims” estava se enfraquecendo pela doença e pela morte,

e se houvesse mais deserções, todos pereceriam.

Em tais circunstâncias, entretanto, surgem sempre homens enér­

gicos que assumem a chefia, e transformam a derrota em vitória.

Êstes se adiantaram e elaboraram uma espécie de constituição es­

crita, saturada de fraseologia bíblica, que devia reger a conduta dos

sobreviventes; chamaram a êsse documento “O convênio” e tinham

por êle um grande e solene respeito.

Todos os signatários do pergaminho (e até os rebeldes tiveram de

pôr os seus nomes) prometeram obedecer a tôdas “as justas leis e

ordenações que fossem julgadas mais convenientes ao bem comum

da colônia”.

Isso não era de modo algum uma declaração de independência.

Era apenas mais uma expressão do espírito prático dos inglêses, es­

pírito que durante séculos caracterizou essa nação, e fêz com que

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A M É R I C A 81

os revolucionários ingleses degolassem os seus soberanos e homens

de estado com tôda a aparência de decencia e respeito.

E, o que tinha muito mais importancia, a iniciativa deu resul­

tados. 0 convenio conseguiu manter unidos os “Pilgrims” durante

um duríssimo inverno e durante um período de miséria tão intensa

que só mesmo urna severa disciplina poderia conter o povo, e impe-

di-lo de cometer tôda sorte de excessos.

Se não me engano (mas estou citando de memoria), apenas um

homem foi enforcado durante os primeiros cinco anos de existencia

da colonia, o que representa uma bela percentagem, dada a situa­

ção das colonias.

Tvlas, indubitavelmente, o éxito final da tentativa (e o simples

fato de terem muitos imigrantes resistido ao primeiro invernó já foi

urna grande vitória) o final e duradouro triunfo dessa feitoria num

país frio e inóspito, foi devido principalmente ao feitio dos seus

chefes.

Eram homens fortes de firmes convicções.

Sabiam o que queriam.

Eram inabaláveis.

E tinham cortado as amarras atrás de si.

Haviam abandonado definitivamente o velho mundo. Aconte­

cesse o que acontecesse, não voltariam à Gomorra da corrupção eu­

ropéia.

Assim fundou-se a nova Sião do Ocidente.

E os que jaziam sob o gelo do monte de Cole, conheceram que

tudo ia bem pelo mundo, e que não tinham morrido em vão.

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CAPÍTULO X

OS QUE DESESPERARAM DA PÁTRIA FUNDAM UMA INGLATERRA

NOVA E MAIS FELIZ NAS MARGENS OCIDENTAIS DO ATLANTICO

Foi no decorrer do ano setenta do século XV I que Guilherme

o Taciturno, descrente dos lentos progressos da guerra para a inde­

pendencia da Holanda, sugeriu aos seus companheiros a mudança

para a América.

“É muito melhor — exclamou — tentar ser livre nos desertos de

um continente longínquo do que suportar a escravidão no conforto

de uma pátria ingrata”.

Depois disso milhões de outros homens e mulheres obedeceram

ao mesmo impulso e deixaram velhas terras em busca da incerta

ventura num novo e desconhecido hemisfério.

Raramente, porém, um plano de imigração em massa foi ela­

borado com maior cuidado e inteligência do que o que acarretou a

fundação dos povoamentos conhecidos depois sob o nome de Nova

Inglaterra.

Algumas páginas atrás eu disse que o puritanismo não era um

credo ou uma seita, mas um ponto de vista. Agora preciso acres­

centar que, conquanto seja o puritanismo, no espírito popular, ha­

bitualmente associado à idéia de po3reza e modéstia, havia, entre

os membros da classe dirigentes da Inglaterra, puritanos inabalá­

veis, e dispostos a todos os sacrifícios em prol das suas convicções.

Isso não nos deve surpreender. Eran filhos e netos dos contempo­

râneos da Rainha Elisabeth. As austeras virtudes, características

dessa jovem geração, eram uma reação normal depois de um período

que comera, bebera, dançara e se divertira demais, que esgotara os

prazeres da carne de tal maneira que o povo tazia gestos de desdém

à simples menção da palavra “prazer’’.

82

Page 95: América - Hendrik Willen Van Loon

A M É R I C A

Dezembro 21. Ano da Graca de 1620!

Desgraçadamente sob todos os aspectos, justamente quando a

Inglaterra começava a ter juízo, caiu a coroa Inglesa nas mãos de

estrangeiros que não podiam entender o caráter inglês como Henri­

que V III e Elisabeth. Os Tudors foram quase todos tiranos de urna

especie muito desagradável. Mas êles sabiam muito bem até onde

podiam ir com seus súditos, sem provocar uma rebelião aberta; sa­

biam quando era possível jogar no real borralho um regulamento

incômodo, e quando era de boa tática recompensar com o título de

cavalheiro o padrinho de uma nova lei. Os Stuarts, cujos antepas­

sados começaram como mordomos (ou administradores) de algumas

províncias britânicas no início do século X I, procuravam, ao con-

Page 96: América - Hendrik Willen Van Loon

H. VAN LOON

trário, ag!r tão bem quanto podiam, mas eram escoceses, e não in­

gleses, como logo deviam perceber par;i sua eterna desgraça.

A autocracia dos Tudors era temperada por uma exuberante

jovialidade, por um fresco sentido do pitoresco, pela compreensão

de que muitas vêzes se consegue mais com um bom jantar e algu­

mas garrafas de Malmsey do que invocando rigidamente a lei ou as

Escrituras.

A autocracia dos Stuarts apoiava-se na versão presbiteriana das

Sagradas Escrituras e não admitia acordos e atenuantes. O resul­

tado foi que, desde o princípio do reinado de Jaime I (que sucedeu

à sua prima Elisabeth em 1603), começaram os atritos entre a Co­

roa e o povo, atritos que continuaram e se agravaram até conduzir

os Stuarts ao exílio, e a Inglaterra à beira da ruína.

O pobre, desmazelado Jaime foi na verdade um triste caso.

Basta lembrar sua infância e sua prematura elevação ao trono. Dois

meses antes do seu nascimento, sua mãe assistia à morte de seu se­

cretário particular David Rizzio, acusado de ser também seu aman­

te, assassinado por seu marido debaixo de seus olhos. O menino,

com pernas tortas, um caráter tímido e fraco, um secreto desejo de

se vingar de um mundo que lhe fora tão cruel, era totalmente in­

capaz de governar um país onde por todos os lados surgiam dúvidas

2 respeito do direito divino dos reis. Apesar de profundamente ver­

sado na Teologia protestante, Jaime era, no íntimo, muito favorá­

vel aos espanhóis. Para ele, o rei da Espanha era sempre o maiar

monarca da terra, e daria de bom grado tôdas as suas posses para

conquistar as boas graças dêsse magnífico potentado.

Pouco se lhe dava que os seus súditos fossem protestantes, que

abominassem até o nome de Filipe, e considerassem a côrte espa­

nhola como uma antecâmara do i íferno. E seu filho seguiu-lhe

exatamente os passos. Era sumamente vexatório para um honesto

inglês cujos tios, irmãos e primos haviam sido queimados pela In­

quisição como “herejes blasfemadores’’ saber que seu futuro soberano,

sob o nome de Mr. Brown, tinha ico para Madrid para cortejar a

própria neta de Filipe II, do marido de Maria a Sanguinária, do

homem que tinha feito o possível p?.ra converter as Ilhas Britânicas

à verdadeira Fé, por meio da armad i e dos jesuítas. E quando esse

mesmo Carlos subiu afinal ao trono e continuou a má política de

seu pai, quando quis aumentar os impostos contra a vontade do

Page 97: América - Hendrik Willen Van Loon

O rio

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Page 99: América - Hendrik Willen Van Loon

A M £ R I C A «5povo, quando se meteu a governar o país como sc não existisse a

Camara cios Comuns, grande parte da população começou a se sen­

tir sinceramente apreensiva com o futuro próximo. Ninguém podia

ainda prever que essa tentativa de enxertar uma monarquia abso­

luta na Inglaterra, contrariando a índole do povo, acabaria dentro

de algumas décadas, por um definitivo e doloroso encontro entre

Sua Majestade e Jack Ketch. No momento, a Coroa parecia vito­

riosa. Nada mais natural do que partissem aqueles que desespera­

vam da velha pátria, e tentassem salvar ao menos alguma coisa do de­

sastre, fundando uma Nova Inglaterra nas costas de um continente

longínquo.

O chefe dêsse movimento foi um certo João Winthrop, natural

de Suffolk. De origem modesta, estudou em Cambridge e formou-

se èm advocacia. Aias logo enveredou para a política, como quase

todos os homens de bem eram então obrigados a fazer, para defen­

der as velhas liberdades britânicas, que ameaçavam ruir. Tornou-

se logo um dos dirigentes da oposição à tirania dos Stu2rts. Tenra

aciçia de tudo as maquinações católicas. Via por tóda a parte indí­

cios de ameaças do Papa, e uma das razões que o levaram a querer

est?belecer uma colônia britânica do outro lado do Atlântico foi o

receio de que os jesuítas do Canadá fossem aos poucos ocupando to­

do :o norte do continente. A nova Inglaterra que sonhava edificar,

seria um baluarte contra as agressões romanas quando a velha In­

glaterra já não pudesse mais lutar.) *; Winthrop, entretanto, era sobretudo um homem de negócios,- e

procedeu cautelosamente. Não queria que a sua colônia se torna$se

uma outra Virgínia. Gente de moral baixa, os adoradores da carne

(a porcaria, como os chamava no seu inglês pitoresco mas um tanto

cru) que não se apresentassem. Nem tampouco mostrou Winthrop

nenhuma tendência para fazer a sua Nova Inglaterra menos intole­

rante do que a outra, ou para torná-la um pôrto de refúgio para

os que eram alhures perseguidos por terem opiniões pessoais.

Dentro dos limites dos seus domínios em Massachusetts, o Ve­

lho Testamento seria a suprema lei. Haveria um sistema de repre­

sentação popular, mas o país seria governado por puritanos e para

puritanos. Os outros que se submetessem às regras, ou lá não fos­

sem.

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H. VAN LOCN

A Nova Inglaterra

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A M É R I C A 37

Em março de 1630 partiu João Winthrop para a América. An­

tes, porém, havia combinado com seus sócios uma medida que foi

uni verdadeiro golpe de mestre — o governo efetivo da colônia só

seria dado aos acionistas que imigrassem para o novo mundo. Não

haveria mais senhores ausentes, não haveria mais colonos morrendo

de inanição, enquanto os açambarcadores, a três mil milhas de dis­

tância, deliberavam displicentemente sôbre os meios de socorrer a

sua desgraça.

A princípio pensou Winthrop estabelecer-se em Salem, onde já

existia uma aldeia branca. Mas não havia sido muito feliz a colô­

nia de Salem, e Winthrop achou que não seria bom para os recém-

vindos ouvir contar as dificuldades e a má sorte dos imigrantes mais

antigos; por isso adiantou-se mais para o sul, e ancorou numa baía que

o onipresente João Smith já visitara dezesseis anos antes. A aldeia

que construiu chamou-se a princípio Trimontaine, a cidade das três

montanhas. Pouco depois, êsse nome era mudado pelo de Boston,

em honra de uma cidade de Lincolnshire, terra de muitos dos imi­

grantes.

Se Carlos ou algum dos seus cortesãos tivesse percebido a ver­

dadeira natureza do empreendimento de Winthrop, seria certamen­

te sustada a ida de novos inglêses para Massachusetts. Porque a

colónia tornou-se realmente o que Winthrop desejara — uma praça

forte do puritanismo. A população crescia por saltos e pulos. Me­

nos de doze anos depois da fundação de Boston já havia dezesseis

mi! pessoas vivendo sob a jurisdição da Companhia de Massachu­

setts. Mais de duzentos navios já haviam visitado os portos da No­

va Inglaterra, e milhões de dólares estavam empregados no comér­

cio. E* verdade que Massachusetts não pôde enviar muitos volun­

tários para auxiliar os rebeldes da mãe-pátria na sua guerra contra

os abusos sem fim da realeza. Mas a simples existência de um lugar

onde os seus princípios eram os fatôres dominantes da vida social

c religiosa, animou os puritanos da Inglaterra a continuarem o bom

combate. E se desempenharam tão bem da tarefa, que Carlos per­

deu a coroa e a cabeça.

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83 H. VAN LOON

Desde que a velha pátria fora expargada de seus males e peca­

dos, não havia mais propriamente necessidade de se manter um es­

tado puritano fora do território nacional. Algumas pessoas volta­

ram. Mas uma nova geração de jovens nascidos na nova pátria to­

mou o seu lugar.

Êles nunca tinham conhecido outra coisa.

A terra em que viviam lhes agradava.

Olharam em tôrno e disseram “Esta é a nossa pátria’’.

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CAPÍTULO X I

A COMPANHIA HOLANDESA DAS ÍNDIAS OCIDENTAIS FAZ

UM MAU NEGÓCIO

Quando César perseguiu pela primeira vez os selvagens de faces

pintadas de verde da Ilha Britânica, a margem leste do mar do

Norte consistia num vasto pântano estendendo-se da bôca do Reno

à do Elba, habitado por sapos, garças, e por umas tribos germâni­

cas que os romanos (por razões desconhecidas) chamaram a Bata-

vias. Com o correr dos tempos, os charcos foram sendo drenados,

os-rios contidos por um complicado sistema de diques, e os descen­

dentes dos bárbaros teutões começaram a ganhar a vida como pes­

cadores, piratas e pequenos comerciantes.

i Durante o século X II, o arenque, por motivos misteriosos, mu­

dou-se do Báltico para o mar do Norte. Um gênio holandês inven­

tou prontamente um novo e ótimo meio de defumar êsse peixe uti­

líssimo. Como o mundo todo observava os dias de jejum católico,

e íera obrigado a abster-se de carne durante a metade de cada se­

mana, um peixe saboroso, que poderia ser guardado por muito tem­

po sem necessidade de geladeiras, representava um recurso oportu­

no para a dieta internacional.

! Logo todo o continente entrou a comer arenques holandeses, e

os comerciantes holandeses começaram a enriquecer rapidamente.

Infelizmente, não era possível pescar o ano todo; porque, em certas

épocas, os arenques sumiam-se para regiões mais protegidas do ocea­

no, com o fim de criarem suas famílias em paz e segurança; e as

rêdes primitivas daquela época não podiam perseguir as prêsas a

tão grande profundidade.

Enquanto estivessem interrompidas as pescarias, urgia encon­

trar alguma ocupação rendosa para os barcos de Amsterdam c Mid-

35

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H. VAN LOON

O primeiro encontro

Page 105: América - Hendrik Willen Van Loon

A M É R I C A 91

«klburg. Felizmente (felizmente para os holandeses, e para mais

ninguém) os povos do oeste da Europa estavam tão empenhados

nas suas guerras, que não lhes sobrava tempo para cuidarem das

íuas necessidades.

Para viverem, a França, a Espanha e a Itália eram obrigadas

â importar grandes quantidades de cereais. Os holandeses se ofere­

ceram para servir de intermediários e para fazer o transporte dos

.grãos. Enchiam seus navios em Dantzig, e vendiam com grandes

Jucros tôda a carga em Livurno ou Cadix.

Depois veio a reforma, e os holandeses, como todos os habitan­

tes das regiões onde chove a maior parte do ano, tornaram-se parti­

dários entusiastas das idéias de Lutero e Calvino. Isso naturalmente

lhes acarretou grandes dificuldades com o Rei Filipe da Espanha

que, por uma série de casamentos dinásticos, assassínios e roubos

conseguira fazer-se o seu soberano legal. Exasperados pelas idéias

de Sua Majestade sobre Teologia e impostos, êles se libertaram do

jugo espanhol e começaram uma guerra de independência que durou

citenta anos.

Durante os primeiros vinte anos estiveram implacàvelmente cer­

cados. Mas depois começou a se mostrar a sua grande superiorida­

de como navegadores. De 1590 em diante, as façanhas dos piratas ho­

landeses era de tal sorte que nenhum dos galeões espanhóis que

transportavam ouro se pôde mais aventurar em alto mar sem a es­

colta de pelo menos meia dúzia de navios de guerra. E mais tarde,

cm 1595, um intrépido marinheiro, Jan Huygen van Linschoten, pu­

blicou o célebre livro em que ensinava aos seus compatriotas o ca­

minho exato para alcançarem as índias pelo cabo da Boa Esperança.

Linschoten, quando menino, fugira de casa, e fôra servir com

cs portuguêses. Por isso é que sabia tanta coisa sobre Calicut, Goa,

e a longínqua Macau. Assim mesmo, os primeiros veleiros holan­

deses que foram a Java gastaram dois anos indo e vindo. Mas os

benefícios de tais viagens prometiam ser tão fabulosos, que as “Com­

panhias das índias” brotavam como cogumelos.

Essa expansão súbita trouxe como resultado um verdadeiro caos

comercial, por causa da competição entre as diversas companhias;

para salvar os interêsses das emprêsas menores, e para pôr um pou­

co de ordem na desorganização que ameaçava ser desastrosa para

lôdas. o chefe do covêrno holandês suseriu uma fusão. Esta reali-

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92 H. VAN LOON

zou-se em 1602, e pouco tempo depois a Companhia Reunida das

índias Orientais se assenhoreava daquelas iihas produtoras de es­

peciarias que, havia mais de um século, já tinham seduzido Colombo.

Como todos os seus contemporâncos, os “Dezessete” que diri­

giam a Companhia e que, durante qua.se duzentos anos, administra­

ram um gigantesco império colonial sem prestar contas aos seus

acionistas, acreditavam firmemente no sistema dos monopólios. As

índias lhes pertenciam, e entendiam a astar de lá todos os estran­

geiros. Mas o caminho para as índias passando pelo Cabo estava à

disposição de todos. Evidentemente, conviria muito aos holandeses

terem um caminho só para si.

Durante a última metade do sécu o XVI, e o primeiro quarto

do XV II, fizeram repetidos esforços para estabelecerem uma comu­

nicação direta entre Amsterdam e Batávia, passando pela Sibéria,

Após quatro ou cinco expedições, êles se viram irremediavelmente

perdidos no gelo do oceano Ártico; e uma das expedições tendo sido

forçada a passar um desconfortabilíssimo inverno nas margens se­

tentrionais de Novaya Zemlya, o fervor para encontrar uma passa­

gem norte-leste foi morrendo. Mas em 1608 os ilustrados geógrafos

e cartógrafos de Amsterdam (que just unente então estavam elabo­

rando mapas pelos quais todo o mundo se guiava), mais uma vez

chegaram à conclusão de que a coisa era possível, e persuadiram ao

diretor do setor da Companhia das índias Orientais em Amsterdam

que experimentasse de novo o caminho de leste.

Heemskerk, o comandante da malograda expedição de 1596,

morrera em combate com os espanhóis. Mas havia na Inglaterra

um capitão, de nome Iludson, que firmara a sua reputação como

explorador a serviço da Companhia A íglo-Moscovita. Os holande­

ses mandaram chamar Hudson, deram-lhe um contrato, um navio

e algumas dúzias de marinheiros, e lhe encomendaram um caminho

para as índias via pólo Norte.

A cinco de abril de 1609, o Halze Maen deixava o rumo de

Texel. Um mês mais tarde, o navio estava no mar de Barento. Mas

já ia muito avançado o ano (as expedições polares têm o hábito ir­

reprimível de se adiantarem ou se atrasarem demais), e Hudson

viu-se obrigado a voltar. Dirigiu-se d:retamente para as ilhas Fa­

rde, onde esperava encontrar água e víveres frescos, e depois reuniu

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A Nova Amsterdam

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H. VAN LOON

todos os seus marinheiros e perguntou-lhes o qus deveria fazer em

seguida.

Êle próprio era de opinião que navegassem para oeste, em bus­

ca daquela grande baía de que lhe havia falado fazia muitos anos

o seu jovial amigo John Smith; segundo esse simpático fanfarrão,

seria esta a tão procurada fenda na barreira. Os marinheiros, que

nunca tinham visto nada tão terrível quanto os icebergs e os ani­

mais polares, foram logo favoráveis a um plano que os devia levar

a climas quentes, e gritaram “Sim!”

E se bem disseram, melhor fizeram. A âncora foi levantada, e

Hudson (como esperava) pôs-se a caminho de Thorshavn para Pe­

quim, passando pela América e outros sítios ocidentais.

A três de setembro de 1609, êle achou, realmente, um estreito

por onde as correntes passavam com tão terrível rapidez que pa­

recia ser a comunicação entre o Atlântico e o Pacífico. Essas terrí­

veis correntes ainda existem. São fatais aos maquinistas inexperien­

tes dos pequenos barcos-motores, e causam momentos de ansiedade

aos capitães dos transatlânticos. Técnicamente, são conhecidos co­

mo o rio de Hudson. Oferecem um agradável percurso para quem

quiser ir sem se apressar de Nova York para Albany, mas não che­

gam até a Califórnia.

Antes de partir, já o pobre Hudson havia começado a suspeitar

clisso. Entretanto, tirou da sua decepção o melhor partido que pô­

de, e escreveu um relatório dizendo que tinha descoberto uma terra

rica em peles e peixes, oferecendo excelentes condições para o esta­

belecimento de uma colônia; acrescentou que eram muito bonitas

as margens do rio por êle explorado. Um ano depois zarpou nova­

mente para o norte, firmemente convencido de que dessa vez seria

bem sucedido. Foi até a baía de Hidson e passou o inverno na

baía de James. Apenas começada a primavera, tentou se adiantar

mais para oeste (só poderia caminhar nesse sentido mais ou menos

três milhas). Mas a tripulação recuscu-se a segui-lo. Os marinhei­

ros revoltados puseram o capitão e oi :o homens doentes num barco

pequeno, e os abandonaram aos cuidados dos mares árticos.

As relações das grandes viagens 3o século XV e XV I contêm

muitos episódios pouco lisongeiros para a natureza humana.

Êsse assassínio premeditado de um bravo capitão e oito desgra­

çados inválidos por um grupo de marinheiros amotinados parece ser

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A M É R I C A 95

c cúmulo da insensibilidade bestial. Nossos amigos latinos podem

<e felicitar de não ter esse crime sido perpetrado por gente de sua

raça; senão, nunca mais acabariam de ouvir alegar isso.

Entretanto, em Amsterdam, o corpo de diretores da Compa­

nhia das índias tinha tomado em devida consideração as informa­

ções do capitão Hudson e depois não fez mais nada. Êles queriam

pimenta e noz-moscada. Não se interessavam por cenários. Quem

quisesse que se aproveitasse das descobertas do capitão.

E assim aconteceu. Adriaen Block explorou Long Island Sound,

subiu o Connecticut River até Hartford, e depois, passando por

Nantucket, foi até a baía de Massachusetts, dezessete anos antes da

fundação de Boston.

Cornelius May fez rota para o sul, contornou um cabo a que

deu modestamente o próprio nome, encontrou em seguida uma gran­

de baía e um rio, a que chamou South Bay e South River, e mais

tarde foram conhecidos respectivamente como baía e rio Delaware.

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96 H. VAN LOON

Todos êsses visitantes vinham à c:ía clc peles, e como pagavam

o que os índios consideravam bons preços cm bugigangas, armas e

álcool, conseguiam fazer boa camaradagem com os naturais, que os

consideravam como espécies de “Papai Noel” e de bom grado lhes

davam hospitalidade por algumas sennnas.

Êsses contatos amigáveis, porém, eram violentamente pertur­

bados quando acontecia ficarem para :rás alguns holandeses que se

apoderavam dum pedaço de terra, e começavam a pilhar os ben3

dos selvagens. Então a desordem reinava, e logo as cinzas fumegan-

tes de alguma fazenda destruída atestavam que o Oriente e o Oci­

dente se haviam encontrado e, segunJo as suas antigas tradições,

não se tinham mutuamente apreciado. Mas o número dos colonos

permanentes aumentava muito lentamente c pôsto que muitas pes­

soas na velha Holanda dissessem: “É )reciso fazer alguma coisa por

essas possessões americanas”, o progresso era muito pequeno. Era

difícil reunir os diretores holandeses, a menos que se lhes acenasse

com lucros imediatos c avantajados; e só no ano de 1621 ficou fun­

dada a Companhia Holandesa das índias Ocidentais, com um mo­

nopólio de comercio na costa da África e da América do Norte e

do Sul, incluindo as margens do Hudson River.

Com o correr dos tempos, um governador foi nomeado para

administrar o território da Nova Hoknda; pequenos grupos de re-

fugiacLs políticos foram induzidos a tentar a sorte num mundo me­

nos sobrecarregado: a ilha de Manhattan tornou-se o centro do go­

verno local, e uma cidade foi edificada na confluência dos rios Hud­

son e East, com o nome de Nova Arrsterdam.

No papel, isso tudo estava muito bonito, mas os conhecedores

sabiam que o sucesso não poderia ser durável. Na Inglaterra e na

Escócia as condições econômicas haviam arrastado os operários a

um tal grau de miséria, que êles se achavam decididos a tudo, e a'é

a irem para a América. Além disso, o sistema da primogenitura e

a forte posição política da nobreza rur; 1 impediam o aproveitamento

de grandes extensões de terra, e privava centenas de milhares de

camponeses da esperança de poderem jamais possuir uma proprie­

dade sua.

Tambem estes preferiam correr os riscos e aderiam ao exército

dos imigrantes.

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A M É R I C A

A nova Holanda

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98 H. VAN LOCN

Mas na República Holandesa a situação era muito diferente.

A antiga aristocracia havia sido destruída durante a longa guerra

com a Espanha, não havia grandes atifúndios, e o comércio de

transportes, combinado com um ativo desenvolvimento industrial, e

os incríveis lucros tirados do comércio de especiarias da índia (não

falando dos extras consideráveis, recompensas de serviços de pira­

taria avulsa), tinham espalhado por tôda a parte uma larga pros­

peridade, de modo que ninguém sentia o menor desejo de se mudar.

Nessas circunstâncias, a Companhia das índias Ocidentais, que

nunca tinha sido bem financiada (tôias as sobras de dinheiro da

República era consumidas pela Companhia das índias Orientais,

vinte anos mais velha) c que só conseguia se manter à custa de um

criminoso tráfico de escravos africanos, nessas circunstâncias, como

eu espero tornar patente, a companhia não podia esperar obter su­

cesso com as suas explorações americanas. Os moços mais capazes

se empregavam na Companhia das índias Orientais, onde tinham

a certeza de fazer carreira. A Companhia das índias Ocidentais ti­

nha de se contentar com caixeiros incompetentes, exploradores fali­

dos, tôda a sorte de espertalhões de terceira classe; foi essa gente

que se viu de repente guindada à direção de uma colônia quarenta

vêzes maior do que a Metrópole e redeada de inimigos brancos ou

vermelhos.

As vantagens naturais de Nova Amsterdam para o comércio

internacional eram extraordinárias. Um jesuíta francês que visitou

a cidade em meados do século X V II encontrou nada menos de de­

zoito nacionalidades representadas i os habitantes da capital. O

mesmo princípio de liberdade individual e respeito pela liberdade

alheia que fizera da Holanda, durante quatro séculos, um imenso

escritório de comércio internacional, parecia ter prevalecido na co­

lônia. Mas que se poderia fazer sem colonos efetivos, sem lavrado­

res, sem açougueiros e padeiros, sem fabricantes de castiçais dispos­

tos a perseverarem?

À última hora esforçaram-se por povoar a colônia por meio do

sistema de feudos que já caíra em desuso na Europa do Norte, ha­

via centenas de anos. Conduzia a abusos e regalias absurdas, e não

produzia nada de prático. Estavam passados os tempos em que um

patrão (um comum, banal dono de terras) podia obrigar os mora-

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A M É R I C A

dores de suas terras a levarem para o seu moinho o trigo que co­

lhessem, e a comprarem sai no seu armazém, sob pena de incorre­

rem no seu desagrado.

Para complicar ainda mais as coisas, andavam os batavos a

jogar as peras com os seus vizinhos, os puritanos de Massachusetts,

que pareciam viver com a convicção (já mencionada) de que o Con­

tinente Norte-Americano fora por razões misteriosas, criado pelo

Senhor para seu uso exclusivo; assim sendo, consideravam quase

como um insulto à Providência as pretensões das outras raças, sue­

cos, franceses, alemães ou holandeses. Mas a hostilidade da parte de

um grupo de pessoas que só alguns anos antes haviam procurado e

encootrado um refúgio no país, e que acusavam os recém-vindos de

todos os crimes cometidos debaixo do Sol, não foi a principal razão

do colapso definitivo da grande tentativa de Nova Holanda.

Nem tampouco podemos jogar tôda a culpa para cima dos go­

vernadores de vista curta que, com raras exceções, estavam cinqüen­

ta anos atrasados relativamente ao espírito do seu tempo. Com o

correr dos anos, êsses incompetentes cavalheiros acabariam decen­

temente enterrados, sob escudos resplandecentes, nalguma linda igre­

jinha caiada de branco, c seus lugares seriam ocupados por moços

mais enérgicos e menos mesquinhos.

Não, foi uma completa falta de homens, e nada mais, que des­

truiu o sábio sonho de um império holandês na América.

Em 1664, durante a guerra entre a Holanda e a Inglaterra, a

Nova Holanda foi ocupada pelas tropas britânicas. Sete anos de­

pois uma esquadra holandesa reconquistava a colônia perdida. Mas

a Holanda estava muito empenhada em empreendimentos mais lu­

crativos em outras partes do mundo para se incomodar com uma

faixa de terra que tinha sido sempre uma fonte de aborrecimentos,

abrigo feliz dos oficiais corrompidos, dos fazedeiros descontentes,

dos processos sem fim; desagradáveis domínios, que viviam a apelar

para a Assembléia Geral, para os chefes do Estado, a reclamar di­

nheiro, a reclamar isso e aquilo, sem dar um pêni de renda.

Na Paz de Westminster, cm 1674, os Estados Gerais cederam

todos os direitos sôbre o território da Nova Holanda. Os inglêses,

por seu lado, prometeram respeitar as possessões holandesas na Guia­

na, onde o açúcar podia ser cultivado em quantidade ilimitada, e

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100 H. VAN LOON

onde os lavradores holandeses esperavam refazer-se da sua falência

no Norte.

Lançando uma vista retrospectiva sobre a transação, achamos

ihe um aspecto cômico.

Os antigos, na sua sabedoria, trocaram o porto de Nova York

por um charco na América do Sul. T.les trocaram Nova York por

um pântano infestado de pragas na América do Sul!

E se gabaram de terem dado um hábil golpe comerciall

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CAPÍTULO X II

OS SUECOS CHEGAM DUZENTOS ANOS CEDO DEMAIS

Os franceses (eu nunca pude escrever um livro sem alguma

referencia à sabedoria peculiar do povo francês cjue parece huma­

nizar tudo aquilo em que toca), os franceses há muito tempo de­

ram-nos uma receita para escrever História.

“Compilemos, meus amigos’’ dizem êles, “compilemos, e de sete­

centos e oitenta e quatro livros, tiremos mais um, para fazer sete­

centos e oitenta e cinco.”

Uma História da América em cem mil palavras pode dificil­

mente ser considerada uma compilação. Êste, ao menos, é um cri­

me de que não posso ser culpado. Mas, de um modo geral, é tam­

bém justo saber o que escreveram os vizinhos, e por isso eu li tôdas

as obras mais conhecidas que se publicaram nestes últimos vinte

anos sobre assuntos da nossa História, e descobri uma estranha ilu­

são mental.

Quando os autores da maioria dêsses eruditos volumes escrevem

sôbre um carregamento de aventureiros ingleses aproximando-se des­

tas plagas, há u msilêncio de comentários sôbre acontecimentos reais;

os filhos de Israel estão prestes a atravessar o Jordão e a tomar

possessão da terra prometida que nunca pertencera realmente aos

pobres canaanitas (que nela viveram desde o comêço dos tempos)

e que está agora aguardando o contrato sagrado dos verdadeiros

donos.

Mas quando um sueco ou um holandês, ou mesmo um alemão

decide arriscar alguns florins, ou coroas, ou táleres, nos bens de raiz

americanos, quando arma um navio à sua custa, afronta mil peri­

gos e penosamente se estabelece num charco cheio de mosquitos

101

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102 H. VAN LOON

perto de Deleware River ou no coração de Connecticut, há sinais

de grande agitação entre os professores.

Ou “O rei da Suécia foi atacado pelo micróbio da colonização",

ou “um grupo de mercadores de Amsterdam esperou engrossar os

seus lucros vendendo pólvora e quinquilharias aos índios”, ou “uma

família de banqueiros de Augsburg procura aumentar os seus mi­

lhões explorando as minas de ouro recentemente descobertas”, ou

palavras equivalentes.

Essas exposições, em si, estão absolutamente corretas.

Mas são um tanto unilaterais.

Naturalmente, os suecos, holandeses e franceses que se deram ao»

trabalho de atravessar o oceano e varar parte dos desertos ameri­

canos tinham em vista fazer dinheiro. Mas estavam nas mesmas

condições os seus competidores ingleses. Alguns cavalheiros britâ­

nicos vieram efetivamente para a América porque desesperaram da

pátria e esperavam resguardar alguma coisa das virtudes ancestrais

estabelecendo uma Inglaterra nova e purificada nas margens da

baía de Massachusetts. Mas mesmo um homem de princípios ele­

vados como Winthrop não era um anjo. Êle sabia perfeitamente

que com suas idéias lhe seria impossível tentar qualquer carreira,

num país governado pelos Stuarts, e sendo um indivíduo de arro­

jada ambição, preferiu ser o Cidadão n.° 1 numa aldeola nas mar­

gens do Charles River, do que ser o Cidadão n.° 47 numa grande

cidade sobre o Tâmisa.

E quanto àqueles que o seguiram, a grande maioria se mudou

de Portsmouth, cm Hampshire, para Portsmouth, em Rockingham,

porque Portsmouth em Rockingham oferecia oportunidades infini­

tamente maiores para a felicidade mitcrial do que Portsmouth em

Hampshire.

O fato de ser bem-visto ir a uma greja puritana em Portsmouth*

em Rockingham County, e comprometedor ir a um templo presbi­

teriano em Portsmouth, em Hampshire, pode ter influído um pouco

na decisão de jogar a cartada arriscada da mudança de terra, mas,

de modo geral, os ingleses imigraram pela mesma razão de Tony o

Engraxate, que não usa de rodeios e diz simplesmente: “A América

é um grande país! Estou ganhando dinheiro.”

A Física e a História têm muito pouco em comum, mas em

ambas as ciências uma lei tem valor, é a que afirma que a natureza

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A M É R I C A 103

tem horror ao vácuo. Mais cedo ou mais tarde (e quanto mais ce­

do, melhor, do ponto de vista da Natureza), o vácuo será preen­

chido, e que o seja por água, por gente ou por ar, pouco importa.

O deserto americano, etnológicamente falando, era um vácuo

com grandes possibilidades econômicas. Muita gente tinha experi­

mentado o novo mundo e o tinha achado a seu gosto. Hoje, quando

uma companhia faz fortuna com rádio, logo em poucos minutos se

forma uma dúzia de outras companhias. Quando se sabe que um

homem ganhou dinheiro nos terrenos da Florida, logo seiscentos mil

Idiotas empilham mulher e filhos no Ford familiar e dispaiam para

Miami.

Em 1620, quando os cidadãos de Estocolmo, Copenhague e Enk-

huizen souberam dos extraordinários preços que o tabaco da Virgí­

nia estava alcançando nos mercados londrinos, quando souberam

da cotação da pimenta na bôlsa de Amsterdam, êles disseram: “Al­

to lá!” (ou outra expressão correspondente na sua língua) Nós

também gostaremos de ter um pouco desse dinheiro!” E apenas

conseguiram juntar alguns milhares de dólares, montaram uma pe­

quena companhia de comércio e entraram na competição. A histó­

ria econômica do período conta-nos o restante. Durante a primeira

metade do século XV II, as companhias das índias Ocidentais proli­

feraram como cogumelos. Cresciam de noite e desapareciam com

os primeiros raios solares. Consumiram as economias de milhares

de infelizes, mas trouxeram a riqueza para uma dúzia de felizardos.

Então as pobres vítimas exclamavam: “Oh, vejam que o negócio

não é impossível! Experimentemos a sorte mais uma vez!” E de

novo corriam à caça feroz do proverbial pote de escudos.

Parece que existe pelo mundo uma estranha crença na frieza,

no fleumatismo e na reflexão dos povos que habitam os climas nór­

dicos. Porém a verdade é que muitos dêles preferem muito especu­

lar a comer, e Deus sabe como prezam os prazeres da mesa.

Na Holanda, o número de companhias com privilégios, meio

privilegiadas ou sem proteção nem garantia alguma, formava le­

gião. Os dinamarqueses podiam vangloriar-se de cinco Companhias

das índias Orientais, tôdas extraordinariamente prósperas num mo­

mento, e irremediàvelmente falidas no momento seguinte. Os russos,

sem bons portos de mar, mas desejosos de obterem a sua parte nos

despojos, prolongaram para oeste as suas expansões coloniais, até

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1C4 H. VAN LOON

conseguirem entrar na América pela porta de trás, e se apossarem

do Alaska como da sua parte da herança de Colombo.

Antes que a mania decrescesse, até as bandeiras da Áustria e

de Brandenburgo, mais familiares aos camponeses do que aos marí­

timos, apareceram no oceano. Mas o único empreendimento sério

dessas pequenas empresas colonizadoras foi o dos suecos.

Por muito tempo, tentaram seus bons vizinhos, os dinamar­

queses, bloqueá-los no Báltico, e o castelo de Helsingor foi mais co­

nhecido como uma fortaleza singularmente perigosa comandando o

estreito de Sund do que como o teatro do drama do velho e lúgubre

Hamlet.

Mas, por um desses inesperados arremessos de energia (que são

tão súbitos quanto misteriosos, e ocorrem nas nações como nos sim­

ples seres humanos), os suecos, na primeira metade do século XV II,

tornaram-se o poder dominante da Eu opa setentrional. Num abrir

e fechar de olhos os regimentos invenc veis de Baner, Oxenstjerna e

Torstensson haviam salvo o continente dos horrores de uma Contra-

Reforma. O gênio militar da família dos Wasa pôs um limite às

ambições dos seus vizinhos semiciviliz idos, os eslavos, e o Báltico

foi convertido num lago sueco onde os russos e os poloneses tiveram

de abrir hospitaleiros ancoradouros aos navios com a bandeira de

tríplice coroa.

Quando os soldados recém-vindos dos campos de batalha de

Lützen e Breitanfeld fizeram a sua entrada na foz do Delaware Ri-

ver, os inglêses e holandeses começaram, e com razão, a sentir-se

inquietos. Mas as enormes aquisições territoriais conseguidas pela

Suécia em resultado das suas vitórias sôbre o imperador e o czar

tinham-lhe custado muitos homens. A população sueca, espalhada

por êsse vasto império nórdico, era apenas a metade do que é hoje

em dia; e se os camponeses suecos se dispunham com facilidade a

funder um novo lar na Finlândia (situada exatamente do outro

lado do Báltico), não navegavam de bom grado para Forte Cristi­

na (hoje Wilmington), que só podia ser alcançado depois de uma

viagem perigosa de dois ou três meses, e que se dizia infestado de

animais selvagens e de nativos ainda mais perniciosos. E, assim,

eles preferiram ficar onde estavam, como os seus primos, os holan­

deses, e tôdas as promessas, mesmo as mais mirabolantes, não os le-

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A M E R I C A 105varam a abandonar suas confortáveis propriedades em Dalecárlia ou Norlandia.

Só muito tempo depois entrou o país a sofrer com o excesso de população. Então começou um grande movimento imigratório para Oeste, e quase um milhão de suecos abandonou seus campos e se mudou para a América. Mas chegaram muito tarde os escandina­vos para poderem estabelecer-se em colônia independente.

Em 1665, as feitorias suecas na Pensilvânia foram anexadas pelos holandeses. Nove anos depois o território entre o rio Connecti­cut e Schuylkill caiu nas mãos dos ingleses, e isso foi o fim da Nova Suécia.

Infelizmente, boas intenções, mapas finamente gravados e pro­gramas bem impressos nunca fizeram uma próspera colônia.

O dinheiro vale muito, mas não é tudo.Uma colônia, para ser bem sucedida, precisa ser o refúgio na­

tural de uma classe de indivíduos que tenham fortes razões para deixar a sua pátria.

Essas condições existiam na Inglaterra. Não existiam na Fran­ça, nem na Suécia, nem na Holanda.

Como resultado, estas páginas, apesar de compostas no Estada de Connecticut, não são escritas na língua de minha terra de ori­gem, e sim no dialeto franco-romano que Guilherme o Conquista­dor impôs aos seus súditos saxões durante a segunda metade do sé-* culo X I . E a população de Filadélfia importa seu “Kãkebrõd (*) de um padeiro de S. Paulo, Minessota.

( I ) Espét’ie de biscoito ciandc. usual nos paíícs ests-'íinavn.».

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CAPÍTULO X III

UMA COLÓNIA ABERTA A TÔDAS AS NAÇÕES

Nestes últimos quatrocentos e tr ir ta e cinco anos dirigiram-se da Europa para a América as embarcações as mais esquisitas. Mui­ta gente navegou através do oceano, flutuando, ou viajando em to­da a espécie de navios. Uma vez alguns escandinavos, com sauda­des da pátria, remaram para a Europa e não se deram mal, com a experiência. Mas o recorde deve ter sido alcançado pelo completo desconforto do péssimo barco em que George Fox realizou a sua viagem, o qual fazia água na proporção de dezesseis polegadas cada duas horas, obrigando tanto a tripulação como os passageiros a não largarem as bombas. E ’ verdade que isso não incomodava muito ao amigo George. Êle tinha estado em prisões muito mais sujas do que o porão dêsse velho calhambeque. Além disso, nada o impedia de subir de vez em quando ao tombadilho para conversar com 0 £ marinheiros, e, se é verdade o que eu sei a respeito dele, não poderia se sentir infeliz enquanto tivesse um úmco ouvinte para os seus agra­dáveis discursos sobre a alma humana.

Há na História dois temas que habitualmente eu procuro evitar, não porque me desagradem, antes porque me agradam demais. Para que encher longos capítulos com minúcias melancólicas sôbre o de­senvolvimento do papado na Idade Média, ou sôbre o progresso da Nova Inglaterra puritana no século XVII, quando se pode escrever um livro alegre sôbre S. Francisco de \ssis ou George de Drayton. Esses dois homens são figuras à parte; valem por si. Eram artistas da vida, criaturas gloriosas, extravagartes, cidadãos violentos, insu­bordinados, incríveis, tudo o que quiserem. Mas pela grande força de sua fabulosa confiança em si e o sea infatigável entusiasmo fize- iam mais pelo progresso real dêste mundo (e o fizeram em menos

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A M É R I C A 10?

Tempo) do que noventa por cento dos respeitáveis santos e teólogos cujas efígies nos olham desdenhosamente do alto desses edifícios que o amigo Gcorge designava desrespeitosamente como “casas com cam­panário” e que não raro fechavam suas portas ao humilde irmão das margaridas e dos pássaros.

No tocante ao primeiro, eu não corro o risco de dedicar-lhe es­paço demais. A colônia católica, hoje conhecida como o Estado Li­vre de Maryland, era em todos os aspectos superior às feitorias cal- vinistas espalhadas ao longo da costa da Nova Inglaterra. Mas o espírito de tolerância que se manifestou nas margens do Patapsco parece ter sido inteiramente devido às incontestáveis qualidades pessoais de George Calvert, o fundador; é impossível saber até onde foi sua senhoria inspirada pelo doce filósofo das montanhas da Úm- foria, e até onde agiu por política.

Mas com George Fox a coisa é diferente.

A grande dificuldade de todos os movimentos puramente espi­rituais, que não degeneram num duro e fechado sistema de dogmas, é o seguinte: ninguém pode esperar traçar com alguma exatidão a influencia que tiveram no desenrolar dos fatos. Pode-se afirmar ca­tegoricamente que a oposição organizada à instituição da escravidão partiu de Pensilvânia. Mas quererá isso dizer que a guerra civil foi desencadeada pelos correligionários de Guilherme Penn? Não sei.

Todo o mundo sabe hoje que os primeiros a proclamarem a necessidade da reforma das prisões foram os imigrados que haviam passado boa parte de sua existência nos infetos cárceres da velha como da nova Inglaterra. Mas terá sido George Fox quem nos ensi­nou a considerar o criminoso antes como um doente do que como um indivíduo simplesmente perverso, ou foi esta a lição trazida pe­lo espírito do temper Ainda uma vez, não sei.

Quem estuda as “concessões” elaboradas por Penn para a sua colônia na América, espanta-se com a semelhança dêsse documento com o pedaço do pergaminho onde, alguns anos mais tarde, Thomas Jefferson escreveu suas concepções da liberdade individual e nacio­nal. Poderemos concluir disso que o famoso céptico do Condado de Albermale era, no fundo, um quacre?

Os paralelos históricos, quando aparecem (o que é muito ra­io) coadunam-se de tal modo com o nosso senso inato de ordem

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tos H. VAN LOON

que nos induzem a conclusões que raciocínios subseqüentes não po^ dem absolutamente sustentar.

De urna coisa, entretanto, eu estou convencido: se Guilherme Penn tivesse podido conti^'-ar as sua? tentativas por mais tempo, e se tivesse tido sucessores tão capazes quanto ele próprio, dentre em breve a influência do quacrismo teri i vencido, no continente ame­ricano, a do puritanismo, a História da nossa terra teria sido muito menos violenta, e, corro nação, seríamos muito mais amáveis e feli­zes do que somes agora.

0 regime de Penn na América nao durou muito tempo. Cin­qüenta anos no máximo. Nesse curto espaço de tempo, porém, os quacres acenderam um farol de honestidade espiritual que nunca cessou inteiramente de iluminar os cai tos obscuros e escondidos da paisagem local. E o mais notável de tudo é que fizeram isso sem alardear a sua santidade, sem quererem ser melhores do que os seus vizinhos; sem nem mesmo tentarem irrpor a êsses vizinhos as idéias e princípios que se enquadravam com os seus gostos e predileções. Representa isto um êxito notável para uma corporação que, por mais de meio século, estêve à mercê do primeiro magistrado arbitrá­rio, cujos membros eram enforcados, esquartejados, açoitados até à morte pelo único crime de terem algumas opiniões consideradas pe­rigosas para a avidez dos bispos anglicanos e para a dignidade dos pastores puritanos; êsse punhado de homens e mulheres profunda­mente crentes estava sob a constante tentação de tirar dos seus so­frimentos uma prova da sua superioridade, e tinha razões de sobejo para se considerar o povo escolhido de Deus.

Êsses estranhos e interessantes hereges, que queriam levar ri­gorosamente a sério as palavras de Jesus, marcharam, sem protes­tar, do pelourinho para a fôrea durante duas gerações, até que ines­peradamente lhes surgiu pela frente um protetor poderoso.

Os quacres, que não acreditavam na Igreja oficial da Inglater­ra como não acreditavam em nenhuma outra igreja estabelecida onde e quando fôsse, tinham o costume de se reunirem freqüente­mente. Essas reuniões eram de natureza extremamente pacífica. Os quacres não acreditavam na violência física, e se alheavam inteira­mente da vida política. Os juizes sabiam disso, naturalmente. Mas naqueles bons tempos, a justiça era uma fonte de renda. Quando os negócios iam mal, constituía um ótimo passatempo arrastar um

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A M £ Il I C A 109

quacre aos tribunais c multá-lo cm algumas libras por rccusar-se a í-e descobrir diante dos juizes. Além disso, como êsses originais não acreditavam nos advogados, não havia perigo de processarem nin­guém por tê-los prendido sem motivo justificado. E ’ uma coisa cu- liosa, mas muitos dos mais ardentes reformadores da sociedade fo­ram rapazes ricos que viveram na largueza e no conforto até que uma circunstância eventual os pôs em contato com as asperezas da existência; ficaram tão perturbados e horrorizados pela experiência, que se transformaram em rebeldes até o tim de seus dias.

Isso foi verdade com Buda, S. Francisco de Assis, George Fox, e agora chegava a vez de um jovem gozador da vida, chamado G u i­lherme Penn.

Um dia resolveu a polícia da cidade de Cork organizar uma pe­quena expedição e apanhar todos os quacres que encontrasse na mais próxima das casas onde habitualmente se reuniam. Segundo o cos­tume, levaram os presos para a delegacia, até que' fôssem examina­dos por um juiz competente. Imaginem o desespero de Sua Graça quando descobriu entre os detidos um autêntico gentleman. O ma­gistrado foi abjeto nas suas desculpas. Evidentemente, tratava-se de um lamentável equívoco; quereria o jovem esquecer êsse inciden­te desagradável e se considerar livre de voltar para sua residência quando bem entendesse?

Não, o jovem gentleman não queria, e essa foi, ao que consta, a maneira pela qual Guilherme Penn foi atirado ao movimento Quacre, e tomou assento entre os oprimidos e miseráveis adeptos da nova fé.

O jovem Guilherme sempre se tinha interessado mais ou me­nos por assuntos religiosos. Já no colégio, êlc acreditava tão firme­mente no direito do homem de procurar salvar-se ao seu jeito, que foi censurado por falta de assistência à capela. Mas, como filho do Almirante William Penn de Wansteas House, Essex, êle passou seus primeiros vinte anos numa esfera social onde não é considerado de boa educação mostrar emoções em público, e nunca tinha tido cora­gem para se revoltar inteiramente.

Uma vez, porém, que o passo decisivo estava dado, êle não te­ve mais meias medidas. Despiu a farda, renunciou a todas as am­bições para se tornar um soldado, escreveu panfletos cm que expu­nha seu estranho credo, insensível a todos os motejos; conseguiu

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110 H. VAN LOON

fazer-se o centro de um processo célebre onde os jurados, recusan- do-se a se pronunciar pela culpabilidade do réu, desobedeceram as indicações do juiz presidente, e estabe eceram um precedente legal que depois foi sempre respeitado tanto na Inglaterra como na Amé­rica.

Êsse não foi contudo o seu único encontro com as autoridades. Penn vivia a pregar e a ser encarcerado, a ser perdoado para depois ser de novo prêso por algum outro crime de um caráter altamente cristão. Enquanto isso, não parava de operar conversões, e a situa­ção estava ameaçando ficar ligeiramente ridícula quando, com gran­de satisfação de sua exasperada família, êle se interessou pela idéia de fundar uma colônia de quacres no deserto americano.

Os quacres estavam muito bem in ormados a respeito da Amé­rica. Como os primeiros franciscanos, eles andavam sempre meti­dos em toda a sorte de singulares expedições. Podiam surpreender o sultão da Turquia, o czar moscovita ou o bei da Argélia, quando estes menos esperassem. E porque e ran simples e sinceros, porque não tinham nenhum dos fastidiosos característicos da maior parte dos profetas profissionais, eram quase sempre bem recebidos e (en­quanto lidavam exclusivamente com potentados não-cristãos) não parecem ter sofrido praticamente nenhum mal.

O grande Padishah pode ter ficado ligeiramente espantado quan­do a boa Mary Fiske, recentemente saída de uma longa reclusão nos cárceres de Yorkshire, lhe apareceu no seu acampamento de Andrinopla. Todavia, portou-se como um gentleman, ouviu atenta­mente as suas palavras, e deu-lhe comoleta liberdade no seu impé­rio, oferecendo-lhe ainda a escolta de sua guarda de corpo.

Quanto ao moscovita e ao mouro, tambem êles agiram com um decôro inesperado, e quando os buliçosos “amigos” os visitaram e lhes mostraram como o mundo seria melhor se toda a gente se amasse realmente e cessasse de rouba:’ as possessões dos vizinhos, êles disseram “sim”, com grande solenidade, e convidaram seus estra­nhos hóspedes para jantar.

Muito diferente foi a recepção que esperavam na América êsses modernos apóstolos. Um grande número dêles foi enforcado. Outros foram escorraçados de aldeia em aldeia. Quanto às mulheres, fica­vam à mercê dêsses teólogos da Nova Inglaterra para quem todo caso em que entrava uma mulher de aspecto agradável se tornava

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A M £ R I C A 111

logo um caso de sedução e de caça, do qual procuravam tirar todas as vantagens.

Nessas circunstancias, os membros de qualquer outra seita te­riam ido procurar abrigo alhures. Os quacres, é preciso confessá-lo, antes apreciavam essas violentas lutas com o destino, e, ainda por cima, tomaram-se de um interesse pueril pelo bem-estar dos selva­gens, e procuraram uma ocasião de demonstrar ao mundo em geral e aos ingleses em particular que havia outros e mais eficazes meios de resolver o problema dos nativos além dos usuais, representados pela espingarda e pela garrafa de uísque.

Em 1670 tiveram a sua primeira oportunidade.O Almirante Penn morreu deixando a seu filho oitenta mil do­

bres que estavam emprestados aos Stuarts. Os Stuarts eram reais devedores, mas quando chegava o momento do pagamento sentiam tremer dentro de si o gênio dos seus antepassados, e podiam ser tão miseráveis como o mais humilde dos “mordedores” de Glasgow. Mas possuíam uma certa maestria nos domínios da finança. Esta­vam sempre prontos a pagar dívidas com coisas que não lhes per­tencessem. Assim, depois de vários anos de negociações, êles ofere­ceram a William um pedaço de terra que se chamava Pensilvânia (nome derivado do pai do rapaz) e que se acreditava existir entre Maryland e Delaware, avançando para oeste tanto quanto se qui- i-esse.

A primeiro de dezembro de 1682 Penn deixou a Inglaterra e se ¿ingiu para as suas novas possessões num bom navio, o Welcome.

Foi o comêço de uma das mais interessantes tentativas de colo­nização de antes da independência nacional.

Êsse novo núcleo não estava destinado a ser mais uma empre­sa possuída, dirigida e explorada por um corpo de diretores sempre ausentes. Ao contrário. E Penn exprimiu muito bem as suas in­tenções quando chamou a seus domínios “uma colônia livre, aberta a toda a humanidade”.

Mas, com seu ingênuo entusiasmo, adiantou-se demais. Che­gou a sustentar que os primitivos habitantes do continente eram se­res humanos, e, ouvindo tão afrontosa afirmação, os outros coloni­zadores viram logo com quem lidavam — com um louco visionário, <1e idéias impraticáveis e perigosas. Para êles, os índios eram uma dessas duas coisas: ou um brinquedo triste, que precisava ser ale­

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grado com gim e contas coloridas, ou uma invenção de Satanás, posta nestas plagas para privar o povo escolhido de Deus da heran­ça que lhe era devida, e portanto à mercê de todo o bom cristão armado de um valioso mosquete.

Quando os quacres, obedecendo à “Grande Lei” de seu chefe, puseram realmente em prática a teoria de “brancos e índios ami­gos”, não massacraram os índios, nlo foram à igreja carregando meia dúzia de arcabuzes e de clavas, mas, ao contrário, deixavam

Os quacr •!

as crianças aos cuidados da cunhã mais próxima enquanto iam so­lenemente ao seu centro, os outros cclonos viram que havia um tra­tado secreto entre o Demônio e esse tal Penn, tomaram precauções para proteger suas propriedades contra as conseqüências de tão vi­ciada e leviana política de conciliação, e se apressaram em mandar vir uma carga suplementar de pólvora.

Quando, para aumentar tôdas essas cnormicT-dcs, a assembléia

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anual dos quacres declarou em 1696 que a instituição da escravidão era contrária aos ensinamentos do Novo Testamento, tornou-se pa­tente aos olhos de todos os cidadãos decentes da Virginia e de Mas- sachusetts que essa absurda tentativa de estado colonial devia ter breve um mau fim. E infelizmente eles tinham razão.

Parece pesar urna singular fatalidade sobre todos os esforços tendentes a mudarem as palavras mortas de Jesus Cristo em regra viva de conduta. Durante uns poucos anos, homens como George Fox ou Francisco de Assis ou Guilherme Penn alcançam tantos éxitos que podem dizer: “Agora, a coisa está feita! O mundo ouviu as palavras simples que o livrarão da maioria de seus males. Será uma continuação do Paraíso. As crianças continuarão a ter saram­po e os velhos a morrer disso ou daquilo, mas as invejas e os odios absurdos que envenenam a vida cotidiana serão lançados para lon- ¿e, como tolas futilidades.”

E depois, assim que se acalma o primeiro entusiasmo, quando o mundo começa a perceber que tais homens não são deuses disfar­çados, que não possuem nenhuma fórmula secreta para livrar subi­tamente a humanidade da pobreza e das pestes, então um grito se levanta chamando-os de miseráveis impostores e hipócritas, mere­cendo serem pendurados nas mais altas forcas.

O pobre Penn, que gastara o seu patrimônio na colônia, que devotara todo o tempo que não estivera prêso ao bem de seus ir­mãos os homens, conheceu dias terríveis. Seus filhos morreram ou afun­daram no vício da embriaguez. Um deles tornou-se mesmo um po­bre tipo popular numa cidade chamada Filadélfia. Seus fiéis ami­gos o lograram, e seu secretário particular tentou furtá-lo em mais de sessenta mil dólares, e como Penn quisesse se defender, procurou pô-lo na prisão por dívidas. Enquanto isso, as outras colônias com as suas perseguições aos nativos, desencadearam uma guerra que depois veio tornar muito difícil a posição dos quacres. No ano de 1712, um misericordioso ataque (a natureza se mostra algumas ve­zes mais piedosa do que a raça humana) tornou Penn insensível às pequenas contrariedades da vida cotidiana. Durante alguns meses ainda ele pôde vagar pelas alamedas risonhas de sua casa de campo. Depois morreu, e o admirável sonho de George Fox morreu com ele.

Mas não morreu inteiramente.Os grandes homens são como as enchentes do Egito: passam,

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mas deixam a terra mais feliz, mais rica, mais fértil em nobres ideais graças à sua presença temporária.

Os quacres, como seita, obedeciam às leis que regem tôdas as sociedades bem organizadas. Cedo perderam a benignidade espiritual que foi o maior legado de seus fundadores. Mas, ainda assim, res­tava-lhes um pouco de caridade, simpatia e tolerância que os tom a­va superiores aos seus vizinhos calv nistas e episcopalianos; dentro dos limites de sua colônia m antinhan um nível de liberdade indivi­dual que durante longo tempo deu à Pensilvânia um lugar de des­taque entre as colônias.

Naturalmente, eu conheço tôdas as objeções que se levantam contra eles. Eram tacanhos e avarentos, e terrivelmente solenes. Nunca iam ao teatro. Não gostavarr de música e viviam monótona e tristemente. Isso é verdade. Mas tinham um mérito enorme: ge­ralmente não se metiam onde não eram chamados.

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CAPÍTULO XIV

COLONIZAÇÃO POR DEUS E PELO ACASO

Em todos os manuais de navegação dos séculos XVI e XVII há um capítulo dedicado à útil arte do rumo estimado.

Naqueles dias, apenas um navio deixava o pôrto, encontrava- se "ao largo” no sentido pleno da palavra. Não havia informações pelo telégrafo sem fio, nem cabos submarinos, nem quadros de ma­rés, nem rádios, nem previsões do tempo e dos icebergs, nem qual­quer outro desses acessórios que transformam os modernos transa­tlânticos numa sublimação dos barcos de transporte.

Os capitães tinham, é verdade, uma familiaridade muito maior com as estrelas do que os modernos comandantes. Com o único au­xílio dessas órbitas providenciais e de alguns instrumentos muito simples, eles realizavam freqüentemente os mais extraordinários fei­tos de navegação. Mas quando as ventanias, a neblina e o mau tempo contínuos os impediam de fazer as observações necessárias, êies só tinham, para saber onde se achavam, as linhas de barquilha, os compassos, e a sua boa sorte.

Ou, como se dizia naqueles piedosos dias, navegavam com Deus e com o acaso.

Se fossem felizes chegariam ao pôrto.Se o destino estivesse contra eles, não chegariam.Tudo isso fazia parte do ofício. Amém.Nossos antepassados, que estavam bastante próximos dos tem­

pos da Igreja medieval para entender o emprego dos símbolos, gos­tavam de falar da Nau do Estado.

Nós, filhos de ^empos menos ingênuos, que sabemos como um navio pode ser fàcilmente destruído por uma explosão interna} como

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pode ir rapidamente a pique pelo descuido dos oficiais, gostamos menos dessa comparação.

Mas durante o século XVII, muitas naus do Estado ainda cor­tavam garbosamente as águas do oceano internacional, seriam con­fiadas a comandantes mais incompetentes do que o magnífico galeão que ostentava as insígnias britânicas, e que devia obedecer às or­dens de um certo capitão Stuart.

Nunca soçobrou porque quase tôda a tripulação conhecia tão bem seu ofício, que, num aperto, qualquer marinheiro podia tomar conta do leme e salvar o navio antes que fôsse muito tarde e êle se despedaçasse contra os rochedos do descontentamento popular.

Eu poderia continuar essa interessante alegoria ainda um pou­co, mas receio que o meu cabedal de termos náuticos seja limitado; per isso acho melhor chegar ao ponto que me propunha demonstrar no início dêste capítulo — de que a política colonizadora inglesa durante os séculos XVII e XVIII era uma política inteiramente baseada em Deus e no acaso.

Os puritanos foram as únicas exceções. Ao menos êles sabiam c que queriam. Mas as outras iniciativas viviam ao léu da sorte. Algumas delas começaram como especulações sobre as riquezas na­turais, financiadas, apenas, por empresas particulares. Outras fo­ram fundadas por homens e mulheres bem intencionados, recente­mente escapados ao despotismo religioso e econômico da gente da região da baía da Massachusetts.

Ainda outras eram experiências filantrópicas que se esforçavam por criar um abrigo para os párias sociais da mãe pátria.

Duas pertenceram inicialmente a outras nações e foram incor­poradas ao Império Britânico pela fôrça das armas.

Uma era a propriedade privada de um católico benevolente que, excepcionalmente, cumpriu a sua promessa de tolerância reli­giosa e a cumpriu com tal honestidade de propósitos que incorreu no ódio dos seus vizinhos protestantes.

Um grande pedaço de terra tinha sido dado a um rico jovem quacre como pagamento de uma dívida real que não pôde ser salda­da em dinheiro.

Outras feitorias deviam a sua existência à mesma causa, e era c resultado do inveterado hábito dos Stuarts de recompensar seus

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fiéis servos com notas promissórias sôbre bens que pertenciam a outrem.

O último dos Stuarts, conhecido por seus adeptos como Henri­que IX, e cardeal de profissão, morreu em França em 1807.

Era uma pessoa amável e boa, mas dizem que não era muito inte­ligente. Se possuísse a filosofia risonha do seu simpático, incapaz e remoto avô, o rei Carlos, teria contemplado com irônico espanto o mapa da América. Porque raramente, durante todo o período histórico que conhecemos, uma empresa concebida com tão descui- dosa indiferença deu frutos tão extraordinários,

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CAPÍTULO XV

UM IM PÉR IO CRIADO POR UM EDITO REAL

O canal da Mancha não é muito largo.Um vapor veloz pode transportar um turista continental de

Calais para Dover em pouco mais de uma hora. Mas do momento em que entra nas alfândegas inglesas acha-se num mundo diferente que há de continuar a espantá-lo até o fim de seus dias.

Tomemos um exemplo.Na Europa, a bagagem é sempre mais ou menos um trambo­

lho. Tem que ser levada para um canto da estação e pesada. De­pois é preciso obter um recibo. Em seguida é necessário pagar êsse recibo, e cada uma dessas cerimônias é cheia de formalidades exi­gidas por um parágrafo determinado de uma determinada lei, apro­vado cm dia e anos determinados por um competente comissário de estrada de ferro.

Na Inglaterra, um sujeito com um laço vermelho empilha va­garosamente as malas no vagão de bagagens; arruma-as segundo a sua fantasia e depois desaparece com um breve e alegre: “Bom-dia”. Chegando ao têrmo da viagem, um outro cidadão de laço vermelho junta todos os volumes sobre os quais o viajante se julga com di­reito, põe-nos numa carreta e sem mais complicações mete-os num táxi.

— Alas — indaga o estrangeiro a quem tal ausência de forma­lidades oficiais parece criminosa — não se perdem com êsse seu sistema uma grande quantidade de malas?

— Não — responde o inglês — nunca se perde nada. Talvez uma ou outra mala se extravie de vez em quando. Mas já estamos acos­tumados a êste método. Creio que nos vem dos tempos das dili­gencias. Para que mudá-lo?.

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Um Império criado por u -n edito real

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Em resumo, o sistema inglês (se a isso se pode aplicar um ter­mo tão sonoro) parece ser o de deixar as coisas se arrumarem por si, de dar ao indivíduo a maior liberdade possível, e de restringir a interferencia do governo a certas particularidades desagradáveis, po­rém necessárias, como a polícia, os juizes, e os corteses e destros carrascos. Enquanto que, no continente, o público é considerado co­mo um pobre imbecil que não poderá viver sem a assistência contí­nua do governo.

Êsse ensaio filosófico sobre “as alfândegas e as nações” pode parecer ligeiramente deslocado num capítulo que trata da história do século XVII, mas foi êsse eterno intrometimento das autorida­des que fez a França perder o seu império na América e depois disso tem sido em grande parte responsável pela falência das tentativas coloniais de tantas outras potências européias.

Se Nobel tivesse inventado sua dinamite alguns séculos mais cedo, e se seu prêmio anual fosse conferido ao homem que mais se tivesse distinguido no terreno das descobertas, a maior parte das recompensas recairiam sôbre súditos do bom rei Luís. Êsses france­ses andaram, cavalgaram, navegaram, remaram e patinaram pelo interior do Canadá com tão sublime desprezo pela sua comodidade pessoal (desdenhando da dúzia de modos diferentes de mortes len­tas e dolorosas que os ameaçavam), que a crônica de suas aventuras parece um admirável capítulo esquecido dos Três Mosqueteiros.

E, ao cabo de tudo, não fizeram nada.Enquanto isso, seus vizinhos ingleses, mantendo-se tão perto

quanto possível de seguros rios e baías, fundaram a maior das nações modernas.

Coisa muito triste, do ponto de vista francês, mas absoluta­mente inevitável.

Porque a França do século XVII estava degenerando rapida­mente numa arquicentralizada monarquia. O poder da aristocracia feudal fora rebaixado, enquanto o poder de Sua Divina Majestade o Rei tornava-se absoluto.

Ora, é um fato incontestado que a nobreza de um país cessa de ser um fator importante no desenvolvimento do Estado assim que deixa de exercer uma ação de condutora e descamba suavemen­te para “servir”.

Durante o século XVII, os nobres inglêses continuaram a ser

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potentados nas suas comunas, e só iam a Londres quando não o po­diam absolutamente evitar. Seus colegas franceses, entretanto, sen­tiam-se extremamente honrados quando lhes era permitido cuidar dos canários reais e podiam gravitar permanentemente na presença de seu ilustre soberano.

Assim, enquanto na Inglaterra a Coroa era obrigada a ser mui­to cautelosa e não ousava promulgar uma lei sem o assentimento cordial dos cavalheiros dos condados, os reis franceses governavam seu reino como melhor lhes parecia, ou como parecia melhor às suas “ministras” e a um ou outro ocasional ministro.

O francês é geralmente pouco dado a sair de seu país, e é, além disso, proverbialmente ignorante dos hábitos, tradições e moral das outras nações, que julga ligeiramente ridículas e inteiramente bár­baras. E, quanto aos reis franceses, podiam conhecer cada pedra do caminho de Paris para Versalhes, mas de Geografia não tinham a mais leve noção.

Eu não quero insinuar que os Stuarts gastavam o azeite de suas lâmpadas estudando o mapa dos atlas reputadíssimos de Mr. Blauw. Mas no seu caso não havia necessidade disso. Êles exaspe­ravam tanto os seus súditos, que êstes atravessavam em massa o oceano, e assim ficavam resguardados os interêsses da Inglaterra. Mas nem isso os monarcas franceses conseguiam.

Costuma-se falar da grande Revo ução Francesa de 1789 como se ela tivesse sido causada unicamente pela miséria do povo. “Que comam capim se não podem comer bolos!” etc., etc. Agora, final­mente, uma concepção menos sentimental e mais verdadeira da His-

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fórJa começa a ¿esmanchar essas idéias. Os camponeses, em muitos cutros países da Europa, eram não somente convidados a comer ca­pim, mas efetivamente obrigados a consumir essa erva dura para viver. E, em conseqüência, ficavam tão fracos que lhes faltava ener­gia para fazer uma revolução eficiente. Entretanto, os sans-culottcs e outros açougueiros provincianos que dirigiram a sangrenta revolta pareciam muito bem nutridos. De outro modo, não seria possível que se mostrassem tão enérgicos e fossem tão bem sucedidos como foram.

Realmente, os campônios franceses viviam sordidamente. Mas o magnífico palácio de Versalhes também não era muito digno de elogio pelo seu asseio e conforto, e, a julgar pela pouca vontade da maioria dos franceses da província para abandonar suas aldeias, suas condições não deviam ser tão desesperadoras quanto nos tentam fa­zer crer alguns historiadores da Revolução.

Foi a velha, velhíssima história da falta de homens que impe­diu o desenvolvimento das possessões francesas na América do Nor­te. Quando os exploradores voltavam a Paris e contavam as suas descobertas, as infinitas milhas de terra que haviam acrescentado 20 reino de França, Sua Majestade e seus conselheiros mais chega­dos sentiam que era preciso agir. Mas onde, entre seus setecentos pasteleiros, iriam buscar o número necessário de povoadores?

Gradualmente, alguns milhares de indivíduos corajosos muda­ram-se mais ou menos voluntariamente para os arredores de Mon­treal e Ouebec. Apenas, porém, foi isso conseguido, logo o espírito francês, ordeiro e lógico, entrou em campo e cometeu o seu êrro ha­bitual de centralizar excessivamente; centralizou as novas capitais tão completamente como se fossem aldeias da Gasconha ou da Bor- gonha. Por conseguinte, qualquer coisa que se quisesse fazer no dis­tante Canadá tinha de ser previamente comunicada aos funcionários de Paris. Se um homem desejava uma licença para caçar, tinha de mandar para Paris o seu requerimento. Se um governador queria se ver livre de um subordinado estúpido, precisava primeiro consul­tar seus superiores em Paris. Em tais circunstâncias, as iniciativas privadas eram logo aniquiladas, e uma colônia (principalmente na­queles dias) depende, para se desenvolver rapidamente, de gente que

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A Nova França

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produz mais quando deixada livre de agir ao scu arbitrio, e que nun­ca, em caso algum, pede o auxilio do govérno central.

Havia ainda outro motivo que explicava o atraso da popula­ção da Nova França sôbre os seus vizinhos ingleses ou holandeses. Nos territorios protestantes havia pouco ou nenhum atrito entre as autoridades civis e o clero. Ocasionalmente ocorria uma desinteli­gência entre as diferentes seitas luteranas ou calvinistas, mas, em tais casos, a minoria se afastava e ia fundar a sua Sião em outro canto da floresta, e a comunidade, de maneira gera!, se beneficiava dessa extensão da esfera de influencia inglesa.

No Canadá, ao contrario, a Igreja e o govêrno viviam em pé de hostilidades. Em data já remota, haviam os jesuítas aportado ao país e tomado i sua conta os selvagens, que indubitàvelmente ti­nham grande necessidade de tudo o que os bons padres lhes pudes­sem ensinar. Mas essa extraordinária sociedade de homens santos e instruídos (o exército de choque da Igreja católica) nunca acei­tou inteiramente a doutrina que firma a superioridade do Estado sôbre a Igreja.

Numa parte da América, no Paraguai, os jesuítas tinham mes­mo conseguido estabelecer um Estado seu, que foi reconhecido co­mo nação independente, possuía um exército e manteve a sua sobe­rania por quase um século. No Canadá nunca foram tão longe, mas tanto êles quanto os outros missionários não admitiam de bem grado o que chamavam a indevida interferência dos governadores reais nos seus trabalhos, e foram, enquanto o Canadá dependeu da França, inimigos figadais dêsses dignitários.

O govêrno francês pretendia naturalmente tirar alguma renda dessas possessões americanas, e era obrigação dos funcionários colo­niais exibir um balanço lucrativo no fim de cada ano. Como e por que maneira era reunido o número necessário de peles não os in­teressava. Pelo que lhes dizia respeito, tôda a população nativa po­dia morrer de excesso de aguardente, desde que os armazéns de Mon­treal tivessem os seus fornecimentos de peles de urso e couros de castor.

A Igreja, por seu lado, apenas interessava a lenta degradação que invadia os naturais, resultado inevitável de uma orientação

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que os honestos padres tudo faziam para impedir. Durante muitos anos as possessões francesas foram governadas pelo Bispo de Quebec e os negócios ficaram quase paralisados. Mas isso não adiantou na­da. Os astuciosos selvagens, longe de apreciarem essa benevolência, interpretaram-na como uma expressão de fraqueza, e, sob a direção dos iroqueses, quase empurram tôda a população francesa para den­tro do oceano. Houve por isso grande alvoroço e aflição nas mar­gens do Sena. Despachou-se a tôda pressa para o rio S. Lourenço um homem de grande energia, capaz de domar os infiéis, um certo Luís de Frontenac. Mas, assim que ê e chacinou um número sufi­ciente de índios para aborrecer os outros das atividades guerreiras, recomeçou a velha brincadeira dos esca pamentos. As amigas de Sua Majestade, tão piedosas quanto belas, derramaram lágrimas copio­sas na mesa real quando se aludia à sorte dos seus protegidos tonsu­rados. Um depois do outro, os bispos toram voltando. Logo em se­guida foi o violento governador chamac o a Paris para “dar conta das suas recentes atividades”, e tudo cont nucu como dantes.

Em dado momento do século XV] I, durante o reinado de Car­los II, teria sido para os franceses a ccisa mais fácil do mundo ane­xarem tôda a costa do Atlântico. Forque, justamente quando a guerra estourou entre a França e a Ing aterra, aquela tinha em Mon­treal um dos seus melhores regimentos, e esta estava praticamente sem soldados.

Mas, precisamente nesse momentc, e em meio de uma das cri­ses mais sérias na História da Nova França, algum intrigante idiota da metrópole conseguiu, a pedido do clero descontente, fazer voltar para a Europa o governador-geral do Canadá, e quando o êrro foi reparado, já havia passado a oportunidade para uma invasão vito­riosa da Nova Inglaterra.

No papel, entretanto, o império díi Nova França parecia magní­fico. Êle se alongava, imponente, do círculo Ártico ao gôlfo do Mé­xico, e suas fronteiras eram cuidadosamente marcadas por uma sé­rie de pesadas placas de chumbo onde os servos de Sua Majestade gravaram uma legenda dizendo que a ]uela terra pertencia a Ludo- vico — fôsse qual fôsse o seu númerc.

Na realidade, era um deserto paupérrimo, governado pratica-

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mente apenas pelos padres, ora esquecido, ora sufocado pelo excesso de leis e regulamentos, que nunca se pôde desenvolver de acôrdo com as necessidades de seus habitantes porque estava à mercê de intrigas femininas e dos caprichos reais. Até a última metade do século XVII poderia ainda a França salvar essa valiosa colônia. Em 1685 Luís XIV revogou o Édito de Nantes, pelo qual Henrique IV havia prometido aos seus súditos protestantes os mesmos direi­tos políticos de que gozavam os católicos. Durante os vinte anos subseqüentes foram os huguenotes vítimas de uma forma estúpida e cruel de perseguição. Sua vida na pátria se tornou impossível e pediram permissão para mudarem de terra. Êsses operosos homens e mulheres dariam tudo para poder fundar uma nova e leal França do outro lado do oceano. Mas seu pedido foi sumariamente recusado. E como insistissem, trancaram-lhes as fronteiras.

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Naturalmente, quem quer sair ou entrar num país acaba por consegui-lo. Durante os cinco primeiros anos que se seguiram ao fechamento das fronteiras, mais de cinqüenta mil familias hugue­notes puderam escapar-se da França. £rrar?.m pela Holanda e pela Inglaterra. Consigo, só levavam sua frugalidade e economia, sua habilidade e seu crédito. Sua bagagem, entretanto, foi suficiente para as suas necessidades. Em breve, estavam de novo solidamente instalados no comércio. E essa mesma gente, que poderia ter sido um baluarte seguro da cultura francesa em partes distantes do glo­bo, agora aumentava as forças daqueles que só aguardavam a oca­sião favorável para despojar a França da última das suas possessões coloniais.

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CAPÍTULO XVI

HORIZONTES DE ESPERANÇA

Todo o mundo vive a se maravilhar com a imprevisibiliclade ¿o destino. Numa rua próxima uma casa cai “subitamente”, um velho vizinho morre “subitamente”, uma famosa dinastia européia t “subitamente” expulsa do seu reino.

Mas, naturalmente, como todos os cientistas, os jornalistas, e até alguns historiadores sabem, nada acontece “subitamente” . A destruição de casa, a demissão da dinastia e o desaparecimento do vizinho parecem ter sido efetuados num curto espaço de tempo. Todavia as forças causadoras do estado de decadência que tornou a destruição, a demissão e o desaparecimento uma questão de minu­tos ou segundos trabalhavam havia longos anos na sua tarefa se­creta.

Invertendo o processo, veremos que “o súbito progresso” de uma república, a “súbita” aquisição de uma fortuna por uma fa­mília, a “súbita” manifestação do gênio de um tocador de rabeca «té então obscuro, são os resultados de alguns planos misteriosos que vinham sendo preparados com muito cuidado nos pacientes la­boratórios do tempo.

Somente algumas páginas nos separam do grande levante polí­tico que “subitamente” transformará treze indisciplinadas pequenas colônias num poder político fortemente unido. Mas como se proces­sou essa mudança “súbita” ? Terá sido causada pelas fadigas comuns de uma longa campanha militar, ou pela necessidade de uma mais tstreita cooperação econômica? Terá sido o resultado da habilidade ¿e um estadista?

Certamente não.A revolução foi um mero incidente, embora bastante barulhen-

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Montanha, floresta c planicie

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to para despertar muita atenção. Os verdadeiros alicerces da nova iniciativa já haviam, porém, sido estabelecidos havia séculos.

Como, entretanto, isso foi feito calma e suavemente, e feito quase exclusivamente por gente muito simples, a grande maioria dos contemporâneos nem percebeu de que estava se passando no mundo alguma coisa desusada.

Não são muito dignas de fé as nossas estatísticas sôbre a imi­gração nos séculos XVII e XVIII. Sabemos alguma coisa sobre alguns dos grupos recém-transplantados, mas sôbre outros não sa­bemos praticamente nada.

Mas colhemos informações suficientes para ter uma idéia bas­tante aproximada da espécie de gente que então tomava o trabalho de atravessar o oceano.

Vinha de tôdas as camadas sociais, c por todos os motivos ima­gináveis.

Em primeiro lugar, havia os negros, que eram jogados nas cos­tas americanas pelas companhias rivais dos caçadores de escravos ingleses e holandeses. Essas pobres criaturas não pertencem, porém, propriamente ao nosso quadro. Vieram para cá porque não podiam deixar de vir, condenadas a penar por um pecado que não tinham cometido.

Depois vinham os “empregados-servos”. Os “empregados-ser- vos” do século XVII eram realmente jornaleiros, pequenos artífices e negociantes falidos que não podiam pagar a passagem. Então, contra uma soma estipulada, êles concordavam em ser postos em “servidão” por algum patrão colonial durante um período que or­dinariamente variava entre cinco e sete anos. De um modo geral, não me parece que o negócio fôsse eqüitativo para essa pobre gente. O custo de transportes naqueles dias era muito mais elevado do que hoje. Quatrocentos dólares para uma passagem simples era um pre­ço normal. Mas, ainda assim, sete anos de servidão e penas contra um bilhete de terceira classe, é um pouco duro. Mas o imigrante em perspectiva naturalmente pensava que era esse o único meio que tinha para se ver livre da sua terra ingrata. Uma vez passados êsses sete anos, seria livre e poderia começar a trabalhar para si, e como lhe conviesse.

Em seguida temos os pequenos capitalistas, os privilegiados que tinham conseguido juntar algumas economias, ou que herdaram al-

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gumas centenas de libras; leram algumas paginas de propaganda, onde o Irmão Penn descrevia as delícias do seu paraíso silvestre, e resolveram obter a sua parte dos tesouros e correr à nova pátria antes que fosse tarde demais.

Havia ainda os que pertenciam a seitas perseguidas por alguns magistrados pertinazes, e que esperavam encontrar algum recanto do deserto onde pudessem rezar e pregar em paz.

E os que tinham nascido com aquela alegre aflição chamada “mania ambulatória”, e foram para a América unicamente porque estavam enfarados de sua terra e sentiam a necessidade urgente de mudar um pouco.

E os que sentiam igualmente uma urgente necessidade de mu­dança, mas porque os meirinhos os incomodavam.

Em suma, era uma turba variegada aquela que, vencendo to­das as barreiras, se mudou de uma parte do mundo para a outra.

Mas apenas tocava em terra, toda essa multidão, todos êsses fanáticos religiosos, empregados-servos rapazolas à cata de diverti­mentos, negociantes falidos, nobres descontentes, forçados fugidos, marinheiros desertores, fazendeiros arruinados, concordavam logo num ponto: este mundo era muito nelhor do que o que haviam deixado para trás. Não um mundo fácil e ameno, pois apenas os mais fortes dos colonos podiam esperar sobreviver. Não obstante era um mundo de possibilidades ilimitadas, um mundo de espaços vastos, um mundo onde um homem ainda podia estender os braços e dizer "Vede, sou livre!’ e pegar seus embrulhos e sair andando, e andar durante dez anos sem conseguir achar o fim das florestas e das pla­nícies.

Muito antes que a alguém ocornsse a idéia de reunir as colô­nias rivais das costas do Atlnâtico num único Estado, os habitantes do território entre Charles River e Chesapeake Bav possuíam um característico que serviria para uni-los em torno de um ideal co­mum durante os anos decisivos que se apresentariam breve.

Refiro-me à convicção de que a felicidade futura de cada um neste mundo depende exclusivamente dos seus esforços pessoais, e de que os que tinham escolhido viver nos confins do deserto eram senhores do seu destino em tôda a acepção da palavra.

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Algumas horas dtpois do navio, incerto do seu caminho, ter tido abordado pelo piloto, o contorno impreciso de um rochedo co­meça a se desenhar. Para os primitivos descobridores, que iam em Lusca de ouro de Zingapu, isso significava atraso e desastre. Para os milhões que vieram depois, isso foi o primeiro lampejo do seu horizonte de esperança.

Eruditos tratados tem sido escritos sobre as mudanças psico­lógicas que se operam nos imigrantes recentes, do “como” e do “por­quê” do caráter americano. ,

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Mas desta vez eu posso dispensar a direção dos sábios volu­mes. Eu também vi a tênue linha escura.

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CAPÍTULO XVII

UM JôG O REAL E IM PER IA L: TOMAR TERRAS

Existe uma velha anedota (eu já nem me lembro onde a ouvi pela primeira vez) sôbre um certo professor de Ictiologia, que estavi um dia discursando sôbre o debatido assunto de um nobre peixe chamado esturjão. Na mão esquerda levava o sábio doutor um fei­xe de notas penosamente colhidas em todos os livros publicados so­bre o Acipencer Rubicundus. Sua mão direita empunhava uma v a ­ra curta com a qual apontava para um grande e belo quadro repre­sentando a matéria em discussão. À medida que os lentos minutos iam passando, ele ia se tornando mais eloqüente.

“Senhores,” dizia, “o e s tu r jão . . .”Nesse momento abriu-se a porta. Um velho e prateado escur-

jão, encanecido pela neve do tempo e pela sabedoria dos anos, en­trou na sala nadando calmamente, e s< dirigiu para a mesa do ora­dor. Por um momento, o homem de ciência ficou estarrecido. Não sabia como devia tomar essa interrupção. Mas voltou logo a si, e disse com grande dignidade: Quererá um dos senhores ter a bondade de levar essa criatura, a fim de que eu possa continuar as minhas observações?”

Quando leio os doutos trabalhos de alguns dos meus irmãos europeus, lembro-me dêsse apólogo. Êles trabalham com tanta ló­gica; são tão tremendamente conscienciosos; poderão gastar uma vida à procura de um documento pe dido, examinarão minuciosa­mente fardos e fardos de material manuscrito ou impresso; e cora isso conseguirão apenas explicar alguns pontos dos movimentos im­portantes, como as grandes imigrações, ou alguns aspectos mencã conhecidos do sistema feudal ou do desenvolvimento dos estado»

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O jógo real e imperial de tomar térra i

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dinásticos. Entretanto, parecem desprezar o fato evidente de estar a Idade Média ainda em franca ebulição dêste lado do Atlântico; esquecem-se de que a moderna América é o laboratório ideal para o estudo de um grande número de fenômenos sociais, espirituais e econômicos que ocorreram na Europa s< culos antes do nascimento ide Colombo. ;

Uns poucos exemplos explicarão o meu modo de ver.Na Europa as imigrações cessaram há 1.200 anos. Na América

estão em inteira atividade, e em Washington o problema de novas hordas de bárbaros clamando por serem admitidas é uma questíto tão séria em 1927 quanto era em Roma em 227.

A grande guerra extinguiu os últimos remanescentes da Euro­pa feudal. Nas cidades americanas o s stema feudal continua a rei­nar, e quem duvidar das minhas palavras que se detenha e estude Tamany Hall ou qualquer outra das nossas grandes organizações políticas.

E quanto à rivalidade entre as diversas dinastias, que tanto sofrimento causou na Europa durante os séculos XVII e XVIII, também existe na América, modificada, mas tão violenta que segu­ramente um têrço dos nossos jornais é dedicado ao assunto. Natu­ralmente, os métodos empregados em 1927 diferem dos que eram habituais em 1727; mas os Habsburgs, os Bourbons, os Romanows, os Hohenzollerns e os Wasa, lutando por pedaços de terra européaa, podiam dar bons conselhos aos grupes de capitalistas que, neste momento, estão se guerreando por causa de monopólios de óleo, ou grão, ou carvão, ou eletricidade.

O passado é sempre pitoresco. A distância cria o encanto, co­brindo com uma caridosa camada de poeira as manchas gordurosas do chapéu de plumas de Sua Majestade. Mas a grande luta intçr- dinástica de há duzentos anos era em todos os pontos tão estúpida e destruidora como os conflitos entre os grupos representativos de interêsses financeiros que agora disputam a posse das nossas que­das d’água ou da nossa borracha.

Só há uma diferença.As campanhas do século XVIII eram conduzidas em dorso de

cavalo.As de hoje são dirigidas do décimo-sétimo andar de um arra­

nha-céu.

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Quanto às principais linhas gerais do período dinástico dos Luí- ses e dos Georgcs, são muito conhecidas e bem pouco interessantes.

O frenesi teológico da era que se seguiu imediatamente à Re­forma tinha perdido quase toda a sua força. Tôda a gente começa­va a se sentir ligeiramente ridícula e tôla quando pensava nos ocea­nos de sangue derramado em nome da fraternidade. Ninguém mais tinha vontade de fazer uma guerra em honra de algum parágrafo ininteligível de algum capítulo igualmente obscuro de um dos li­vros sagrados. Mas sentiam-se todos tomados de um ardor beli­coso quando se tratava do impreciso porém venerado princípio da “legítima sucessão” . E as horas gastas outrora em decorar o cate­cismo oficial eram agora dedicadas ao estudo dos quadros genea­lógicos.

As predileções populares mudaram, mas a raça humana era a mc$ma, e a maioria dos cidadãos saía tão convictamente para rei­vindicar “os direitos de George ou Luís” quanto os seus avós morriam, havia um século, para “a maior glória do verdadeiro Deus”.

Como as dinastias européias eram realmente fechadas corpora­ções de soberanos profissionais que durante centenas de anos se ca­saram entre si, era quase sempre dificílimo saber, entre uma dúzia de candidatos ao mesmo trono, qual era o “legítimo”. E os “quase- legítímos” podiam sempre conseguir o auxílio de um corpo dos cha­mados “conselheiros judiciais”, que (em troca de algumas vantagens) sustentavam e provavam os direitos dos seus patrões provisórios.

Eram guerras curiosas as do século XVII, e não deixavam de lembrar uma grande partida internacional de cartas. Todas as na­ções que tomavam parte (e geralmente todo o continente já tinha sido arrastado antes das hostilidades serem oficialmente declaradas) procuravam lançar mão de tôdas as artimanhas possíveis, e quando chegava o momento de tratarem de um acordo, diziam umas às ou­tras: “Eu tomei quatro de suas províncias, nove grandes cidades, doze milhas quadradas de terra na índia e catorze mil na América, algumas outras mil na África, e trezentos e oitenta e dois navios mercantes, e, vejamos bem — você tomou cinco províncias minhas,: mas apenas seis grandes cidades, dez mil milhas na índia, vinte e cinco mil na América (o que é um golpe valente, devo confessar) c nenhuma na África (isso sim, é melhor!), e duzentos c setenta e nove navios mercantes. Então, temos quatro mais cinco, mais doze mil...”,

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II. VAN LOCN

e assim prosseguiam até que, por êsse processo conhecido nos cír­culos não oficiais por “negocio de cigano'’, chegassem a uma com­binação que julgassem honesta sob todos os aspectos.

Parece nunca ter passado pela cabeça dos poderosos que gover­navam o mundo de Paris, Londres, Viena e Amsterdam que os na­tivos da África e da Asia e os colonos americanos, forçados a tomar parte nessas brigas que não os interessavam absolutamente, deves­sem ser consultados. : ’

Mais urna vez, porém, devo pedir que não sejam muito severos p2TZ com nossos antepassados, que tinham a desculpa da ignorância.

Nós mesmos, há bem poucos anos, transformamos o coração da África num campo de batalha onde um kaf f ir matava outro kajjir para maior glória dos alemães ou dos aliados. Praticamente, verda­deiras carnificinas em cidades chinesas que não pertenciam a nenhum dos povos que porfiavam para obtê-las. Arrastamos incontáveis hin­dus ou africanos a um conflito com o qual não tinham absoluta­mente nada a ver. E quando tudo urminou, um pequeno número de velhos estadistas jogou aos dados pedaços de terra e tonéis de óleo, tendo a ousadia de dizer que estavam tentando cada um rou­bar as colônias do outro “para assegurar a Paz do mundo”.

As dinastias causadoras das guenas antigas não existem mais, enquanto os bens de raiz americanos que os nossos remotos avós jo­garam displicentemente ou trocaram como sendo maus empregos de capital, têm agora os nomes sonoros de “Domínio do Canadá” ou “Estados Unidos da América do Norte”.

Quanto à série de guerras franco-inglêsas que finalmente tor­naram inglêsa a parte nórdica do continente americano e destruí­ram o poder da França, já foram tão freqüente e eloqüentemente descritas que não me alongarei sôbre elas.

Respeitando as conveniências e a exatidão histórica, nossos li­vros didáticos falam da guerra do Rei Guilherme, da guerra da Rainha Ana, da guerra do Rei Georg¿, e da guerra franco-indiana; dizem-nos que êsses conflitos duraram respectivamente de 1689 a 1697, de 1701 a 1713, de 1744 a 1748 e de 1755 a 1763; contam sucintamente as famosas batalhas onde o nosso lado obteve apenas “vitórias morais”, e dão uma descriçfo mais entusiasta dos encon­tros nos quais o exército britânico ferçou uma guarnição francesa,

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composta c!e trinta c sete soldados e trinta e oito cunhãs, a se ren­der, evacuando o forte isolado que ocupava.

Mas essas fortuitas explosões de violência entre pequenos gru­pos de membros da carreira militar, trajando uns, casacos verme­lhos e azuis os outros, não tinham realmente importância alguma comparadas com a tragédia silenciosa que se desenrolou nesses mal­fadados anos ao longo das fronteiras do grande deserto americano.

Os estadistas do século XVIII, que só pensavam em termos de protocolos, convênios e memórias oficiais, nem suspeitaram do que se estava passando. Mas enquanto êles desenhavam suas linhas bem traçadas e pontilhadas sóbre o mapa do Novo Mundo, combinando o que caberia a cada um, outras fôrças já trabalhavam, que Jogo iriam desmanchar o penoso labor dessas mesquinhas Excelências, com um desprezo quase sublime pelos pretendentes oficiais.

Refiro-me, evidentemente, ao número sempre crescente dos imi­grantes europeus.

Via de regra, os homens e mulheres que deixavam as cidades e aldeias superpovoadas do velho mundo e se instalavam numa pe­quena clareira das florestas da Pensilvânia ou tentavam cultivar alguns cereais entre os pedregulhos de Massachusetts,- cranr pessoas muito simples. Liam poucos livros além do Novo Testamento.

Seus conhecimentos políticos não ultrapassavam os limites do condado natal. Viviam uma vida monótona (do nosso ponto de vista), comendo o que plantavam, bebendo vinho fabricado em ca­ra, usando roupa tecida pelas suas mulheres. Mas, como todos os organismos primitivos, t!es sabiam o que queriam, e o que queriam se resumia numa palavra: TE R R A .

"Oh, meu Deus!”, exclamava um perplexo funcionário na lon­gínqua Londres, quando ouvia dizer que uma centena de habitantes dc Rhode Island se tinha mudado para oeste. “Mas essa gente não } ode ir para lá. Essa parte da América pertence à França.”

"Ah! não podemos!”, respondiam os homens pondo as cangas nas suas juntas de bois.

E iam.E verdade que algumas vezes tinham aborrecimentos. Desta­

camentos de soldados franceses podiam fazê-los voltar ou para maior comodidade, matá-los no lugar.

O.s fortes franceses, que pareciam tão formidáveis no papel,

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deviam proteger uma fronteira, estcndendo-se do golfo de S. Lou- renço à baía da Mobile. Havia brechas muito largas entre as forti­ficações, e, por essas brechas, uma constante e irreprimível corrente de imigrantes começou a invadir com ininterrupta mono toma a3 ricas florestas e campos do Oeste.

Em menor escala, a coisa sempre fôra assim ao longo da costa do Atlântico. Quando os holandeses reclamaram mais terras do que podiam aproveitar, o excesso de população da Nova Inglaterra rá­pidamente tomou posse dos risonhos vales do Connecticut, e os la­vradores britânicos abrigaram suas colheitas nos muros das forta­lezas holandesas sem serem incomoda los, porque os imigrados pre­cisavam uns dos outros e não se podi im prender a fidelidades arti­ficiais a suas pátrias européias.

No século XVII chegou a vez da França de aprender que é inú­til hitar contra as leis da Natureza. O governo de Paris começava a perceber a importância das possessões americanas. Mandou tro­pas numerosas para Quebec, Montreal, Nova Orléans, Forte Vincennes e Forte Detroit, com a ordem de garantir o território da Nova França contra os ingleses. Mas tôda a bravura e a habilidade dos soldados de nada valeram quando as massas miseráveis de leste resolveram alcançar as propriedades vagas do oeste. Quando, finalmente, em 1759, protegidos pela sorte, os ingleses tomaram Quebec, a cadeia de fortes franceses, que devia proteger o território dos grandes la­gos e do vale do Mississipi, já praticamente não existia.

Aqui e ali um velho nome francês nos recorda o drama que te­ve lugar naquelas distantes regiões nos dias dos avós dos nossos avós. E é tudo o que resta dêsse passado.

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Espaço

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CAPÍTULO X V III

5 DE JANEIRO DE 1753

O COMÊÇO DA ERA MODERNA

Êste capítulo c apenas uma sugestão. Mas pode nos ajudar a entender um pouco melhor do que ate aqui a História dos últimos duzentos anos.

Tendo cm vista a sua conveniência e a vaidade de ligar seu nome à iniciativa, um historiador da Renascença dividiu o passado da raça humana cm três períodos: Antiguidade, Idade Média e Tem­pos Modernos. Os Tempos Modernos representavam naturalmente a sua ípoca. Não mencionou o homem pré-histórico, porque nunca ouvira falar dêle. Fêz o Período Clássico terminar com a queda de Roma, e decidiu que a conquista de Constantinopla pelos turcos marcava o fim da Idade Média e o princípio dos Tempos Modernos.

Essa divisão está há muito necessitando urgentemente de uma completa revisão. Roma não caiu nunca, e a declaração de que isso aconteceu pode criar uma idéia errônea. A Idade Média pode ou não ter acabado quando os turcos tomaram Constantinopla, mas outros acontecimentos causaram muito maiores dados à concepção medieval da vida do que a invasão da Europa por Suleiman o Gran­de. No presente volume, entretanto, meu fito principal é a História da América.

Desejo fixar que no nosso continente a Idade Média terminou 2 5 de janeiro de 1769.

Nesse dia um certo Jones W att obtinha uma patente para a sua “máquina de fogo” recentemente aperfeiçoada.

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II. VAN LOON

O nascimento âe um ¡ ideia nora

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CAPÍTULO X IX

GEORGE G REENVIELE TORNA-SE “ PER ITO DE E FIC IE N C IA ”

O caminho dos imperios decadentes é juncado pelos restos dos fíitemas imprestáveis. Na verdade, nada, tanto na vida pública como na particular, conduz tão inevitavelmente à falência como a estreita aderência a rígidas formas de lei ou de conduta; e, via de regra, quanto mais forte o sistema, maior o desastre.

Enquanto o Império Britânico estêve, por assim dizer, nos es- laleiros, tudo correu muito bem. Os homens enviados aos quatro cantos do mundo para combater o monopólio espiritual da Igreja t o monopólio econômico da Espanha não tinham a sua ação difi­cultada pelas exigências do govêrno da Metrópole. Deixavam-nos ig:r como agentes independentes, e assim puderam fazer tudo o que .lhes parecia razoável e urgente no momento. Algumas vêzes, é ver- élade, se mais tarde se verificava que tinham levado um pouco lon­ge a sua rapacidade, corriam o perigo de serem os bodes expiatórios de Sua Majestade, e de serem enforcados ou decapitados. Mas ês- Mcs acidentes eram os ossos do ofício, e não influíam no entusiasmo ¿es sobreviventes.

Porém, lá pelos meados do século XVIII, terminou o duro tra­balho de construção de um império. Chegara o momento da centra­lização, da organização, da classificação e (conseqüência inevitável) <:<a taxação. Os Raleighs fizeram a sua reverência, e quando a cor­tina se abriu de novo, apareceu a nobre figura de George Greenville r.o papel de “Menino Patriota’’, trajando o uniforme de lorde do .Almirantado.

Pode parecer injusto trazer o nome de Greenville à baila, como fe o pobre George tivesse sido o único responsável pela perda das íolônias norte-americanas. Mas Greenville foi um representante tão

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típico dêsse genero de mentalidade o icial causadora de maiores e mais rápidos maleficios do que qualquer outro das formas conheci­das de ingenuidade humana, que ele t< m de representar o seu papel e não escapará a quatro ou cinco pági ias pelo menos. Não pensem, porém, que vamos assistir a uma pura comedia. Um sopro de tra­gedia passa por toda a peça — a tragedia implicada nestas palavras “csfôrço inútil”.

Porque George era realmente um bom servo da Coroa, inteligen­te e muito consciencioso. Não havia cm todo o Império Britânico um homem que se levantasse tão cedo e deitasse tão tarde, que le­vasse tanto tempo esquadrinhando a menor minúcia do seu expe­diente como êsse inocente Chanceler do Tesouro.

Nos tempos da Rainha Elisabet i teria sido muito útil como guarda-livros de alguma associação de “gentlemen” aventureiros.

Sob George III foi indubitavelmente nefasto, pois foi o homem que resolveu dizer aos americanos como, quando e onde deviam dar a sua contribuição para o sustento do Império.

Provavelmente acreditava com Cirios Townsend que os coloni­zadores eram “filhos diletos da Inglaterra, sustentados pela indul­gência da pátria-mãe até chegarem a um bom nível de fôrça e opu­lência”. Mas que cara devia ter feito quando o velho Coronel Barre retrucou: “Filhos criados pelos vossos cuidados? Absolutamente não! Foi a vossa opressão que os levou para a América, e a vossa negli­gência que lhes permitiu se desenvolverem”, e quando tôda a Amé­rica se levantou como um só homem para aplaudir essas declara­ções sediciosas?

Porque, embora na Nova Inglaterra, na Virgínia, na Carolina, os homens crescidos no respeito às velhas leis de obediência ao rer, nem ousassem sonhar em formar uira nação independente, tinham graves motivos de queixa. Abandonaram a terra de origem para se livrarem de certas imposições que consideravam incompatíveis com a sua liberdade individual, e para criarem com maior largueza os seus filhos. Mas apenas se viram livres e o govêrno os alcançava através do oceano, e mais uma vez os pioneiros se viram presos nas malhas de uma rêde oficial, que sobremodo lhes desagradava, da qual pensaram estar de todo livres quando rumaram de Boston na Inglaterra para Boston em Massachusetts. Quer quisessem quer não. eram obrieados a enviar seus produtos para os mercados in*

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U m forte na fror.teira

gitses e por meio de intermediários ingleses, ainda quando os mer­cados holandeses ou espanhóis lhes oferecessem preços muito mais vantajosos do que os seus patrícios. Com exceção das ferramentas e instrumentos agrícolas que podiam fabricar nas suas fazendas, ti­nham de comprar na Inglaterra todos os produtos manufaturados, ou então passar sem êles. E tudo o que importassem ou exportas­sem devia chegar aos portos em navios ingleses, tripulados e co­mandados por ingleses.

Durante os últimos cinqüenta anos de estado de guerra com a França tinha sido relativamente fácil burlar todos esses regulamen­tos. Mas agora que a paz estava feita, George Greenville tinha de arrecadar renda suficiente para pagar as centenas de milhares de libras que a Inglaterra pedira emprestado para sustentar seus exér­citos e navios.

Greenville, como quase todos os membros de sua classe, não era privado de um certo instinto grosseiro, mas vivo, de política prá­tica. Preferia uma luta a três mil milhas de distância a um conflito dentro da casa, e viu que era muito mais simples elevar os impostos <]os colonos americanos (fazendeiros simplórios que viviam no fim do mundo) do que incorrer no desagrado dos seus vizinhos, que logo arranjariam jeito de expiiísá-lo do Parlamento e de afastar sua mu­lher e seus filhos de todos os bons negócios. Os tremendos sacrifí­cios feitos pela mãe-pátria para proteger seus filhos bem-amados

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contra as cruéis usurpações dos franceses e dos índios deviam per­mitir-lhe tomar algumas medidas tendentes a aumentar cs rendi­mentos das agências fiscais de Charleston e Filadéfia e incidente­mente auxiliar a Inglaterra a reerguer sua fortuna decadente.

Em primeiro lugar era preciso fazer cumprir rigorosamente a Lei de Navegação, que praticamente se tornara letra morta desde: Cromwell; os contrabandistas seriam julgados por um tribunal d- almirantes, e não mais pelos júris cc mplacentes compostos de ou­tros contrabandistas, que consideravam o crime do acusado como um ato supremo de patriotismo.

Em segundo lugar, aquelas grandes extensões de terra recente­mente tomadas à França deviam ficar fechadas à imigração até que o govêrno pudesse fazer um inventário das suas novas possessões e decidir sôbre as medidas a serem tomadas para proteger os interes­ses dos seus novos súditos índios.

Em terceiro lugar, um grande número de coisas necessárias à vida, como melaço e açúcar (e mais tarde o chá), deviam ser ta­xadas para os fins dos impostos ind retos, e, finalmente, todos oi documentos oficiais, os jornais, os baralhos, os dados, os contratos* as hipotecas, deviam ser adornados :om a graciosa figura que oí agentes fiscais de Sua Majestade vendiam por preços ocupando to­da a escala entre um pêni e um par de libras.

Comparados com as largas somas que o mais humilde dos nos­sos cidadãos e obrigado a entregar hojt ao Govêrno Federal de ash- ington, êsses raros níqueis e pratas lirados das carteiras dos anti­gos povoadores parecem realmente insignificantes. Mas não era ps- lo dinheiro, era pelo princípio. Os oradores populares da colônii referiam-se a essas medidas vexatórias em termos inflamados, faia­vam de liberdade e de morte, e da nefanda teoria de imposto sem representação. Éles se esqueciam de ]ue, se não tivessem imigrada, teriam tão pouca representação no Parlamento, como agora, que moravam na Geórgia ou em Nova J ;rsey. Porque naqueles bendi­tos dias nem dez por cento do povo inglês comparecia às eleições. Os outros noventa por cento eram parceiros mudos. Pagavam e não piavam. Os chefes da oposição americana sabiam muito bem disso. O que queriam, era não pagar impostos de modo nenhum, e usa­vam o lema “sem representação, nada de impostos”, porque era bo­nito e mostrava que os adversários das taxas estavam empenhado«

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siuma campanha em prol de um princípio nobre e desinteressado de justiça política.

Durante muito tempo, entretanto, nada mudou. O governo central continuou a promulgar novas leis e regulamentos.

Os colonos continuaram a rasgar essas leis e regulamentos logo cue os recebiam.

E George Greenville passava noites “estudando a questão”, quo expunha em relatórios verbais tão profundos, solenes c fastidiosos que George III acabou por despedi-lo unicamente por ser insuporta­velmente prolixo.

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CAPÍTULO XX

CHA HOLANDÊS E MELAÇO FRANCÊS

Os habitantes das colônias inglesas na América precisavam de muitos artigos que só podiam obter na Europa.

Para pagá-los precisavam de dinheiro.Para obter dinheiro, precisavam exportar alguns produtos e

vendê-los na Europa.Tudo isso parece muito simples, e, realmente, é muito simples.

E’ indispensável, porém, que se possa obter a matéria-prima para a manufatura dos produtos a exportar por um preço que permita vender o artigo dando margem a um pequeno lucro. Se, ao contrá­rio, houver obrigação de comprar a matéria-prima num determina­do mercado e pelos preços impostos pdo vendedor, tornam-se muito grandes os riscos de falência.

Os americanos do século dezoito, como todos os homens do seu tempo, consumiam grandes quantidades de bebidas alcoólicas. Em Nova Inglaterra bebia-se aguardente; em Nova York preferiam gim; o Canadá era fiel ao seu velho conhaque; mas em toda a parte se bebia. Bebiam tanto que em alguns Estados a aguardente era o principal produto de exportação. Mas para fabricar aguardente, as destilações puritanas precisavam muito de açúcar e melaço. Êsses ingredientes indispensáveis podiam ser adquiridos muito em conta nas ilhas vizinhas das índias Ocidentais. A maioria dessas ilhas, po­rém, pertencia ou aos franceses ou aos holandeses. Segundo a lei inglesa em vigor, estavam, por conseguinte, “fora dos limites”, e os americanos eram obrigados a comprar açúcar e melaço na Metró­pole, onde alguns negociantes exploravam tanto quanto podiam um monopólio que lhes tinha sido grac osamente outorgado pelo go­verno.

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O j rebeldes

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Os contrabandistas

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Pergunta: Os habitantes da Nova Inglaterra, como súditos obedientes de Sua Magestade o Rei Grorge, atravessaram o oceano para comprar açúcar à razão de cem dolares a tonelada em Londres ou Bristol?

Resposta: Não. Como obedientes mas inteligentes súditos 'de Sua Majestade o Rei George, êles se dirigiam a Guadalupe ou S. Euspa- tius e compravam açúcar a trinta dólares a tonelada.

Pergunta: O governo de Sua Majestade o Rei George gosíjou da idéia?

Resposta: Não.

' Pergunta: E isso impediu os barcos americanos de continua­rem o mau hábito de transportar açúcar ou aguardente às escondi­das?

Resposta: Certamente não. 1Está aí, na verdade, um bom assunto para um debate prolon­

gado.E ’ curioso que se possa, mesmo levando as indagações até 03

babilônios, verificar que os homens suportam quase tôdas as formas de abuso desde que o governo não interfira com os seus alimentos ou bebidas. Algumas vezes pergunto de mim para mim se a cerveja não terá causado mais derramamento de sangue do que a Teologia, o que seria enorme. Quando o governo britânico se desavinha com um grupo de dissidentes, sempre surgiam outros dissidentes que to­mavam o partido da Coroa e se alegravam com as infelicidades dos seus inimigos. Mas no momento em que o Parlamento taxou a aguar­dente, o café ou o chá, meteu-se num terreno perigoso, porque to ­cou em coisas igualmente caras às “spinsters” 0 ) quacres, aos diá­conos batistas e aos mais endurecidos agnósticos. Na verdade, <¡> impôsto era muito pequeno, três pennies por libra, mas era um abor­recimento porque cada vez que um pacato cidadão se regalava com uma taça da deliciosa mistura sabia que estava auxiliando e apoian­do uma lei injusta.

Por fim, as humildes chicaras de chá (cenas proverbiais de tantas tragédias) provocaram um alarido que iria agitar mais de um oceano, e tudo por causa de uma renda avaliada em 3200,009.

Mas quem poderia prever tal conseqüência?

(1) Espécie de dinconisas.

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Sejamos honestos — ninguém. * • >>A princípio, os colonos americanos valentemente resolveram

privar-se de chá. Mas sempre tinham tomado chá. Tinham o ve*' neno no sangue. Precisavam de chá. • ■.

“Muito bem”, disseram os navegantes de Nantucket e Píy-’mouth, “podemos fazer o con­trabando do chá tão fácilmente quanto o do açúcar”, e larga- ram para Cúraçau, de onde voí-' taram com um bom carregaméri- to de chá, conseguido muito ba-' rato, importado diretamente das índias Orientais Holandesas. Fot- então possível tomar chá sem se' sentir infiel aos principios, e den­tro de alguns meses os armazéas da costa da Nova Inglaterra. es-: tavam abarrotados de chá hoiaa^. dês. A perda era grande para os. negociantes ingleses, que ficaram furiosos. Comerciantes ingleses zangados, tornam-se perigosas. O Parlamento decidiu que era preciso fazer alguma coisa. En­tão jogaram nas margens ameri­canas grande quantidade de chá da Companhia Inglesa das ín­

dias Orientais; e, mediante um subsídio do governo, ofereceram-no ao público por um preço muito mais baixo do que o holandês.

Os honestos contrabandistas (pertenciam às classes mais influ­entes da sociedade) acharam que o governo, vendendo por um pre­ço baixo demais, havia grosseiramente desrespeitado a ética comer­cial. O seu departamento de publicidade entrou em ação. Artigos* cm jornais ou em folhetins especiais denunciavam como “traidores5* os que tomavam chá inglês.

Foi sempre muito fácil estimular os sentimentos dos povos in- climdos ao puritanismo. Estão tão habituados a recalcar suas e tno

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ções reais, que acolhem com alegria qualquer ocasião de se deixarem levar a “uma excitação legítima”. Aqui e ali navios carregados de chá eram queimados por turbas de cidadãos que se deleitavam com o espetáculo. Em Boston um grupo de rapazes (e rapazes muito distintos) disfarçados em injuns selvagens abordaram três navios recentemente chegados das Índias Britânicas e, apesar de haver varíola a bordo, valentemente foram até o porão e, com grande ale­gria de uma vasta e entusiasta assistêrcia, jogaram no porto todos os fardos de chá. Em Massachusetts tornaram-se heróis populares. Mas na Inglaterra foram denunciados como reles malfeitores que deviam ser entregues à Justiça e condenados à fôrca.

Mas nada se fêz. E quando se tornou patente que a violência cometida com o nome de patriotismo não é punida, multiplicaram- se subitamente os patriotas profissionais.

Com intervalos regulares, os infelizes oficiais encarregados da venda dos selos eram atacados por bandos de desordeiros, suas ca­sas eram saqueadas e seus selos queimados. Os tímidos cidadãos que obedeciam às leis do país, embora sem aprová-las, e que compra­vam estampilhas e as colocavam nos seus documentos legais, expu­nham-se ao motejo e ao ridículo. E era impossível aos tribunais protegê-los.

Evidentemente, o governo não podia tolerar tal situação. Um govêrno que não governa, que decreta leis e deixa que o povo as desrespeite, não pode esperar viver muito. Ou toma as mais vio­lentas medidas para impor a sua vontade, ou desiste de tudo.

Mas como, de tão longe, fiscalizar a execução das leis?

Havia tribunais nas colônias americanas. Naturalmente que havia tribunais, e muitos até. Mas êsses tribunais eram como Os tribunais da Metrópole. Um júri devia decidir se o acusado era inocente ou culpado. O júri, compostc de íntimos amigos do acu­sado, de homens que apoiavam de coração o suposto crime do réu, declarava-o invariàvelmente inocente. A despeito de tôdas as pro­vas evidentes reunidas pelo procurador de Sua Majestade, o prisio­neiro era pôsto em liberdade.

Que fazer então?

Fazer passar um decreto de emergência, determinando que, de

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Quanto vale a lealdade ?

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futuro, certos casos, a serem discriminados, seriam mandados para a Inglaterra para serem julgados lá? Podia-se tentar. Mas ia au­mentar ainda as causas de queixa. Porque uma antiga e venerável lei britânica estabelece que nenhum hcmem poderia ser julgado fo­ra do seu distrito.

Imaginemos então que o governo promulgasse uma outra medi­da de emergência suspendendo os direitos dos cidadãos livres serem julgados por seus pares. Também isso se poderia fazer, mas seria arriscar-se num terreno perigoso. Realmente, seria responder a uma injustiça por outra; seria combater o demônio com as suas próprias armas, precedente pernicioso que só deve ser empregado no caso de revolta aberta e violenta.

Entretanto era preciso tomar alguma iniciativa. Porque os co­lonos encaravam o problema tão sèriamente que esqueciam as suas pequenas desavenças e mandavam delegados a um Congresso que *e devia reunir em Nova York para protestar contra as ilegalida­des da Metrópole. Evidentemente as coisas estavam degenerando rapidamente em crise, e em tais circunstâncias a melhor medida era esquecer o passado e assentar tudo em novas bases. O Parlamento também podia operar uma retirada digna se, embora insistindo no « u direito de legislar para a Inglaterra e suas colônias, se afirma que não pretendia nada de ilegal e estava pronto a entrar num acordo.

Mas o Parlamento, na verdade, não estava absolutamente dis­posto a chegar a um acôrdo, e começou a proferir vagas ameaças sobre o restabelecimento da ordem com o poder de que dispunha.

Ora, “poder”, em têrmos de govêino, significa duas coisas: po­lícia e exército. E isso nos conduz à segunda fase da guerra da in­dependência.

Um bom número de tropas foi rrandado para a sede dos dis­túrbios com ordem de patrulhar as cidades e aldeias onde se deram os ultrajes contra os impostos oficiais. Patrulhar é um trabalho di­fícil. Mesmo os soldados os mais disciplinados podem se exceder quando soltos entre uma população hostil. Além disso, levavam ca­rabinas. Podiam atirar. Quando uma turba dos atrevidos meninos de Boston começava a bombardeá-los com bolas de neve, êles po­diam sentir a tentação de se livrarem dos assaltantes com uma de«'

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carga que mata cidadãos perfeitamente pacíficos e espalha o pânico por tôda a cidade.

E ’ uma história velha, muito velha.

E encerra uma lição que muitos historiadores começam a sus­peitar; é que o passado nunca ensina nada, e cada geração tem de ¿»prender à custa de seus próprios erros.

“Pessimismo”, dirão.

Meu amigo, sinto muito, mas não fui eu quem fêz êste mundo.

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CAPÍTULO XXI

O RUDE BOM-SENSO DAS FRONTEIRAS

E agora vamos ouvir falar muito em fuzilarias, ver pequenos grupos de lavradores exaustos errando pelas estradas cobertas de geada de uma terra impassível, exércitos desarvorados perdidos nos poeirentos e perigosos caminhos da roça; e repetiremos a pergunta: De quem foi a culpa? Porque essa fúria de ingleses contra ingleses? Porque êsse derramamento de sangue le parentes próximos e caros?

E mais uma vez devo dizer que não sabemos. Há, na história da humanidade, alguns acontecimentos que parecem inevitáveis; a Revolução americana é um destes.

Se não tivesse rebentado em 1776, rebentaria em 1777. Se al­gum gênio político tivesse podido evitar o rompimento das hostili­dades em 1777, êle teria lugar em 1778.

Porque não foi apenas um conflito de interêsses.Foi um choque de ideais.E ’ sempre um pouco perturbador sentar-se alguém no trono de

poderoso Zeus e dispensar justiça aos seus próprios antepassados, observando com grandiloqüência: “Êste e aquêle merecem censura, os outros estão absolvidos.”

Seja portanto dito num espírito Je grande humildade que, na minha opinião, o govêrno britânico cometeu um grave êrro de jul­gamento. O rei, o parlamento e os ministros continuaram a consi­derar os colonos como inglêses. Do ponto de vista legal e político, eram ainda indubitàvelmente inglêses, mas eram inglêses com me­mória. Tinham uma nítida memória do asilo onde nasceram, da vala comum onde foi jogado o corpo de sua mãe. Nunca esqueceram a angústia da fome, as pancadas que receberam quando seu pai estava na prisão por dívidas. Lembravam-se de tôdas essas coisas e lem-

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bravam-se com o triste ressentimento de quem sofreu uma miséria injusta. E depois a fuga — a viagem num imundo navio de imi­grantes — a comida infeta — os corpos que se jogavam ao mar — e finalmente a chegada às praias do Novo Mundo para ser o servo de algum avarento fazendeiro da Pensilvânia, o escravo de alguma terrível mulher puritana, e trabalhar — trabalhar — trabalhar du­rante cinco ou seis ou sete ou oito anos para ganhar a liberdade, dois ternos de roupa e uma barrica de farinha.

E depois, a jornada penosa para o deserto — as cabanas sujas e solitárias — as costas doloridas de derrubar intermináveis fileiras de árvores — os braços doendo de arrancar essas pedras incontáveis que precisavam ser empilhadas antes de plantar qualquer coisa — a mulher que morreu por falta de socorro médico — as crianças maltratadas, que de qualquer modo tinham de ser alimentadas e vestidas — os insetos que destruíam as sementes — as ratazanas que matavam os frangos, e os mosquitos que transformam a vida num inferno como nunca o imaginou tão ruim o insaciável Jona­than Edwards.

E depois — enfim — uma pequena prosperidade — uma nova mulher — a terceira ou a quarta — filhos bastante crescidos para manejarem um arado ou vigiarem um porco — uma casa com mais de um quarto — um pequeno trecho de estrada transitável — al­guns vizinhos para quem apelar no caso de doença ou de nascimen­to de criança — a ufania de ser o senhor absoluto de uma pequena clareira no mato e de não ser obrigado a dizer a ninguém no mun­do: “Sim senhor!” !

E depois — numa bela manhã uma carta — um grande enve­lope com um sêlo oficial — um documento difícil de decifrar dizen­do que a Divina Majestade do Rei, devidamente apoiada no decre­to do Parlamento de tal e tal data, “pelo presente ordena e manda ao leal servo de Sua M ajestade.. . ou de outro modo que sofra...** Tudo perfeitamente direito, justo e legal, mas recordando uma coi­sa que o colono queria esquecer — o passado.

Os homens que vivem graças à sua própria prudência e ao tra­balho de suas mãos têm o direito de serem impacientes com as au­toridades. Os homens para quem “autoridade” foi sempre sinônimo de “opressão” só têm um modo de desagravo íntimo, a desobediên­cia. Nas cidades, à beira da costa era fácil manter a população sob

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controle. 0 negociante, que tinha cont is a receber de noventa por cento dos seus vizinhos, podia obrigá-los a suportar muita coisa. Os ministros de cada culto, discorrendo sobre a inviolabilidade dos oficiais públicos e o direito sagrado da propriedade privada, podiam se encarregar dos outros dez por cento.

Mas nessas terras sem fim que se estendiam do Ohio ao Mis­sissipi, as letras promissórias perdiam-se facilmente, e o pastor que pregasse uma doutrina impopular podia ser convidado a voltar à “civilização” . Porque aí o fazendeiro era negociante e pregador, sol­dado e rei, e governava o seu domínio como bem lhe parecia, sem dar satisfação a ninguém.

Os ingleses que não entendiam esse estado de espírito (mais ou menos noventa e sete por cento da população total), que apro­veitassem da sua situação no Parlamento para deblaterar eloqüen­temente contra os miseráveis trabalhadores de algum obscuro con­dado de Tennessee, que informava a sua Majestade o Rei George I II que o povo de Watauga não reconhecia mais a sua autoridade suprema.

Mas não era nada fácil apoderar-se desses obstinados rebeldes e enforcá-los para exemplo. Dentro err breve ficou mesmo patente a impossibilidade da repressão, e os rebeldes, sabedores disso, tira­ram da situação o melhor partido.

Os homens que passaram os dias carvados sôbre o cabo da en­xada ou manejavam um machado desde a manhã até à noite, não tinham geralmente ânimo para cuidar ie confiar seus pensamentos ao papel. Liam poucos livros e não escreviam nenhum.

Mas algumas vêzes expunham suas idéias, e sabemos muito bem quais eram elas.

Não se interessavam particularmente por teorias de governo. Sabiam o que lhes convinha, o que era bom para as pequenas co­munidades que tinham fundado ao longo das fronteiras do Império. Viviam numa intimidade muito grande com espingardas e pistolas para serem muito entusiastas de guerras.

Mas o deserto lhes tinha dado a sua única boa oportunidade— a única felicidade que jamais lhes coubera na vida. E estavam dispostos a defendê-la.

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Não se consideravam um povo escolhido, como os puritanos te há cem anos.

Tinham poucas ilusões sobre si.Reconheciam perfeitamente suas faltas, seus hábitos de blasfe­

mar, as bebedeiras que eram seus únicos divertimentos depois de anos de um trabalho estafante e contínuo, suas lágrimas sentimen­tais, seus esporádicos ímpetos de crueldade, seu caráter indomável, seu desrespeito por qualquer forma de lei escrita.

Mas não pretendiam ser admirados pelo mundo nem citados como cidadãos exemplares. Só queriam que não os incomodassem, que os deixassem sós.

E quando o mundo não queria ou não podia fazer isso, resmun­gavam uma vaga ameaça, punham pólvora nas caçoletas dos baca­martes, e aguardavam os acontecimentos.

Tinham aprendido a ser pacientes nas suas lutas sem firn com 2 natureza.

Em tais questões era sempre muito melhor esperar que os ou­tros fizessem o primeiro êrro.

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CAPÍTULO X X II»

O ADVOGADO ADAMS DE QUINCY, M A S S ..., E SEU PRIM O SAM ENTRAM NA POLÍTICA ATIVA

Se o governo inglês do ano da graça de 1775 tivesse estado mais a par das condições das colonias americanas, ter-se-iam pou­pado muitos dissabores. Podia ter explorado a inimizade existente entre as cidades que emprestavam dinheiro e os distritos rurais, seus devedores; jomando as duas partes uma contra a outra e ganhando a confiança tanto dos negociantes o m o dos fazendeiros, ter-se-ia constituído um utilíssimo corpo de a iados.

Felizmente para a causa da liberdade americana, os funciona­rios ingleses cometeram tôda sorte de desatinos, e por urna serie de erros formidáveis obrigaram os habitantes do litoral e os das mon­tanhas a se darem as mãos e esquccerem (ao menos temporaria­mente) os desentendimentos econômicos que tornavam um banquei­ro ianque quase tão impopular nas comunas agrícolas quanto os co­letores de selos e os prepostcs de Sua Majestade.

Ora, as revoluções (creio que j í disse isto num outro livro) fazem-se habitualmente do seguinte nodo:

Dez por cento da população dispostos a darem a vida pelos seus princípios.

Dez por cento dispostos a darem a vida, mas sem grande en­tusiasmo por tal sacrifício e preferindo ver se os ideais pelos quais lutam não poderiam ser alcançados por meios menos violentos.

Quarenta por cento (os homens que se crêem práticos) ficam na expectativa até que a vitória se decida, e então aderem ao grupo vencedor.

Isso perfaz um total de sessenta por cento. Os outros quarenta por cento acreditam “na lei e na ordem” a despeito de tudo, e, ou

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Bevolução. Os caieças

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enforcam seus antigos camaradas se êstes forem mal sucedidos, o í i

são eles próprios enforcados quando 2 vitória não lhes dá razão.Podem dizer que estou muito sanguinário nestas páginas. Sinto

muito, mas quem 1er a literatura desse período (de um como de ou­tro lado do Atlântico), verá que a forca estava sempre presente à mente dos que se juntavam aos rebeldes c às dos que permaneciam fiéis à Coroa britânica.

Isso deve desagradar aos que recuam diante da palavra revolu­ção, repetem amáveis tolices acerca de um perverso soberano ale­mão instalado no irrepreensível trono inglês, e afetam gestos de in­credulidade quando se lhes afirma que, para o comum dos ingleses do ano de 1778, George Washington cra um verdadeiro Lenine (so­mente um pouco pior, porque não tinha tantds motivos de queixa). Para seu consolo, acrescentarei que essa foi a mais cortês e respei­tável das revoluções — tão cortês e respeitável quanto uma revolu­ção pode ser. N enhum a Bastilha foi assaltada. Nenhum Palácio de inverno foi arrasado. Não houve execuções em massa de prisionei­ros civis. Nenhum tribunal secreto espalhou o terror.

Ao contrário, foi a melhor gente do país que tomou parte no levante, e quando os azares da guerra forçavam um general a se render a outro, o acontecimento dava ocasião a uma troca de gen­tilezas e civilidades, a mútuos testemunhos de simpatia que poriam água nos olhos de Hindenburg e Fo:h.

Sem dúvida, isso só aconteceu porque, no século XVIIT, a guer­ra era uma carreira para os homens de condição, que a conduziam respeitando determinadas regras. Pcdia-se prever quem ganharia a próxima batalha. Logo, convinha ao vencedor não abusar das van ­tagens e t ra ta r o adversário como ele próprio esperava ser tra tada quando chegasse a sua vez de perder o primeiro lugar.

Além disso, havia entre nós muito pouco dessa animosidade pessoal que tornou tan tas guerras européias uma luta de morte. Muitos dos governadores inglêses e seus subordinados tinham sido administradores irritantes, atrasados, velhacos, de mentalidade es­treita, considerando os colonos como uma espécie inferior; tra tavam os americanos com um soberano desprêzo, com essa arrogância dis­plicente que pode levar até ao assassínio o mais pacato dos homens; obrigavam os que precisavam falar-’hes a ficarem horas e horas em

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antecâmaras frias e escuras, à espera de que Suas Excelências aca­bassem sua terceira garrafa de vinho do Pôito.

Mas essa classe de gente, apesar de, num momento de pânico, poder mostrar-se quase desumana, é raramente muito cruel. As atrocidades cometidas no continente americano correm por conta da histeria religiosa dos próprios povoadores; não se pode culpar neste particular os administradores inglêses.

Não foi, portanto, o que a Inglaterra fizera no passado que ar­mou os colonos contra a mãe-pátria, e sim o que ela poderia vir a fazer se os direitos e prerrogativas dos colonos não os protegessem cabalmente contra futuras intromissões reais e ministeriais. Os che­fes rebeldes sabiam disso muito bem. Concordavam, portanto, cm soltar um pouco as rédeas à multidão (não se faz uma omeleta sem quebrar os ovos!), mas a ralé (os dirigentes do movimento eram aristocratas pouco habituados a lidarem com o povo), a arraia- miúda, as massas, deviam ser mantidas dentro de certos limites pa­ra que as coisas pudessem ser feitas com ordem e decência, de acor­do com as antigas e respeitáveis leis de uma comunidade de bur­gueses livres e independentes.

Êste capítulo traz os nomes de John Adams e seu primo Samuel, mas por favor não pensem que êsses dois homens foram os únicos responsáveis pela agitação que conduziu à declaração de indepen­dência. T an to um quanto o outro eram, se bem que muito diferentes sob certos aspectos, representantes típicos dos patriotas que deram o primeiro passo e assumiram o comando; por isso servem aos nossos propósitos tão bem quanto um outro par em quem penso neste mo­mento.

Os Adams eram de velha origem inglesa e se mudaram de De- vonshire para Massachusetts durante os fins do primeiro têrço do século X V II. Fizeram-se agricultores e trabalharam muito para vencer. Assim que se fundou o Colégio de Harvard, mandaram pa­ra lá os seus filhos para aprenderem tudo o que na época se ensina­va e poderem seguir boas carreiras. John (H arvard 1755) formou- se em direito. Não era precisamente um bom companheiro. “Um ho­mem de convicções”, como o poderemos chamar, mas, por outro la­do, extremamente útil durante um período de agitação; fechado,

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casmurro, metido consigo, tão indiferente ao desagrado real ou à

aprovação do público como um bloco de mármore de Vermont.M uito diferente era o seu primo Samuel, que se formara quin­

ze anos antes e conhecia pelo nome cada habitante da cidade, sem­pre pronto a fechar a porta da sua fábrica de cerveja para se jun tar a um grupo folgazão; êsse chefe de reação se sentia tão à vontade num chá em Boston como numa convenção de vereadores de Massa- chusetts.

Quando êsses dois homens aderiram a ela, a oposição ainda era muito fraca. O povo das colônias, apesir de tudo, era inglês e inglês queria ficar. Acreditava no poder da razão humana. Quando do ou­tro lado do oceano se soubesse o que se estava passando na América, tudo melhoraria.

Entretanto , para esclarecer seus primos e sobrinhos de além- mar, os colonos se puseram a escrever panfletos e redigir progra­mas, reuniram um “Congresso Continental” de representantes de todas as colônias (solenemente instalado em Filadélfia, a 5 de se­tembro de 1774), instituíram os Comitês de Vigilância (tam bém chamados Comitês de Correspondência porque deviam informar os bons patriotas de todo novo ato da tirania oficial), conduziram seu caso de um modo perfeitamente justo e legal, que não poderia dei­xar de, com o tempo, ir convencendo o mais obstinado dos tóris in- glêses da justiça das reivindicações americanas.

Era em abril de 1775.A cena estava preparada para o segundo ato e a cortina pres­

tes a ser corrida.

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CAPÍTULO X X III

C COMANDANTE DAS FORÇAS COLONIAIS DE SUA MAJESTADE VÊ-SE OBRIGADO A COMUNICAR ALGUMAS MAS NOTÍCIAS

Há mais ou menos quarenta anos um certo capitão Carlos Boy- co tt se desaveio com os camponeses de uma propriedade que admi­nistrava no condado de Mayo, na Irlanda. Em conseqüência, foi declarado “fora da sociedade” . Ninguém lhe dirigia a palavra. N in­guém lhe comprava nem vendia nada. Ninguém lhe dava alimento, entregava sua correspondência, ordenhava suas vacas. Em suma, no que dependia de seus vizinhos irlandeses, tinha cessado de existir.

Èsse método especial de oprimir uma pessoa ou um grupo de pessoas tornou-se depois conhecido com o nome de “boycott” e acar­reta grandes prejuízos sempre que é aplicado.

Em primeiro lugar, é insuportavelmente humilhante para o in­divíduo que o sofre. Deve pô-lo logo fora de si. Em segundo lugar conduz a vítima ao desespero porque esta não encontra um meio de reagir.

Se, por exemplo, os chineses dc Cantão se recusarem a comer © feijão americano ou a usar os tecidos inglêses de algodão, em re- Mimo, se boicotarem os produtos inglêses e americanos, os comer­ciantes inglêses e americanos nada poderão fazer. Ficarão comple­tamente sem recursos, pois ninguém, mesmo sendo chinês ou esqui­mó, pode ser obrigado a comer feijão ou vestir algodão contra a sua

vontade. E, não tendo para onde apelar, as vítimas perderão a ca­

beça, farão uma série de tolices, reclamarão navios de guerra e es­creverão aos jornais cartas exigindo uma guerra imediata.

Os chefes do grupo dos descontentes americanos sabiam disso. A votação, pelo Congresso Continental de Filadélfia, de uma De­claração de Direitos, onde as queixas das colónias eram devidamen-

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te enumeradas, foi o primeiro passo na boa direção. Mas os docu­mentos oficiais são raramente lidos pela massa do povo. N a melhor das hipóteses, causam um ligeiro distúrbio nos meios governamen­tais, onde se começa a dizer “Ah! ah , parece que temos barulho. Precisamos tomar umas providências!’ N a pior, são simplesmente ignorados.

Êsse mesmo Congresso, porém, tomou, antes de se dispersar, uma resolução de muito maior alcance. Nem um só amigo da li­berdade, declararam os delegados, poderia daí por diante importai ou exportar produtos inglêses, nem lampouco usaria dêles ss os encontrasse à venda.

Essa medida, lamento dizê-lo, causou grandes sofrimentos na.» colônias. Havia ainda muitos negociantes fiéis à mãe-pátria, e que entendiam do seu direito negociar ccmo, onde e com quem lhes agradasse. Êstes estavam à mercê da lei de Lynch. Seus armazéns eram assaltados, seus bens destruídos. Freqüentemente êles próprio > eram sujeitos a um suplício especial, qi e consistia em passar alcatrão pelo corpo todo, e depois cobri-lo de penas, e eram expulsos de sua terra por uma turba onde se misturavam patriotas e vagabundos. Mas as conseqüências se fizeram sentir também na Inglaterra. E os negociantes e industriais inglêses começaram a reclamar em altos brados medidas severas e urgentes que trouxessem ã razão as colô­nias insubmissas.

Quando chegaram à América os primeiros jornais noticiando a extensão do sentimento anticolonial no povo da Metrópole, os ca­beças da oposição em Boston, Filadélfia e Norfolk começaram a ver a gravidade da situação. A todo momento, podiam esperar repre­sálias do govêrno, que mandaria tropas para Massachusetts ou de­cretaria o bloqueio das costas americanas. Era sempre melhor fica­rem de sobreaviso. Aqui e ali ativos Comitês de Correspondência (as organizações particulares que tinham tomado o encargo de con­duzir a revolução) começaram a con prar barrüetes de pólvora, a arrolar os fuzis em bom estado, a procurar adegas e porões bem abrigados onde as armas pudessem ser escondidas do faro dêsses oficiais inglêses que diziam andar rondando por toda a parte, dis­farçados, e cuja suposta presença era uma contínua fonte de irri­tação.

Essa acusação, embora baseada inteiramente em boatos, não

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deixava de ser justa . 0 serviço secreto do “Lieutcnant-GeneraP Thomas Gage, que comandava Boston, estava implicado nessas es­pionagens, e Sua Excelência, não só sabia que os colonos haviam escondido grande número de armas na aldeia de Concord, como tam ­bém que Samuel Adams e João Hancock, os mais hábeis dos chefes oposicionistas estavam nesse momento dirigindo uma campanha sub­versiva no condado de Middlesex. Ficou decidido que se mandariam

tropas destruírem as munições dos rebeldes e possivelmente capturarem os patriotas pros­critos, que seriam enviados para Londres para serem julgados por um tribunal inglês.

Mas durante períodos como êsse, de grande excitação popu­lar, ninguém se pode fiar em na­da, há espiões que espiam es­piões, c ainda outros espiões en­carregados de vigiarem os es­piões que espiam os espiões, e nenhum segredo pode ser guar­dado.

Cerca de doze horas depois da expedição do Coronel Smith ter partido para o norte, Gui­lherme Dawes, Paulo Rever e Samuel Prescott, três jovens americanos mandados pelo Co­mitê de Segurança de Boston

para dar o alarma ao povo de Middlesex, galopavam a toda pressa na direção de Hancock, e Adams, avisado pôde ainda escapar.

De modo que, quando muito cedo na m anhã seguinte um des­tacamento do 10.° Regimento de Infanteria marchou para Common em Lexington, encontrou-se frente a frente com um grupo de lavra­dores entusiastas e decididos.

Quando deu o primeiro tiro ninguém o sabe, nem nunca saberá.

Mas êle foi dado.

O sinal

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Logo uma descarga ressoou nos campos silenciosos, e oito ame­ricanos tombaram feridos de morte.

Os ingleses conseguiram alcançar Concord, mas retiraram-se pa­ra Boston sob constante fuzilaria, cue só cessou quando Gage mandeu Lord Percy com algumas peças de artilharia ligeira para proteger a retaguarda das tropas vencidas e conduzir os soldados transviados e os feridos.

Se os colonos possuíssem armas mais mortíferas do que as ru­dimentares espingr.-rdas de caça de seus avós, dificilmente teria es­capado com vida um soldado inglês. Alas, ainda assim, os ingleses perderam 273 homens entre mortos, feridos e desaparecidos, ou se­ja, um têrço das suas forças, antes de alcançarem as embarcações em Charleston e se abrigarem nas fortificações de Boston.

As notícias do combate espalharam-se com incrível rapidez. Por tòda parte, os mensageiros do Comitê le Correspondência galoparam para levar a boa nova aos que ainda hesitavam em aderir de corpo e alma à causa das colonias. De todos os pontos do oeste, dos mais longínquos recantos do sul, vinham homens magros e esfaimados pela longa caminhada, dirigindo-se to los para Massachusetts, que­rendo tomar parte no próximo encontro, e vingar os mártires de Concerd.

De um momento para o outro, G ige se viu isolado, sem comu­nicações com o resto do mundo. Uma tentativa para desalojar os rebeldes do alto do morro de Bunker custou-lhe 1500 homens. Os esforços para entrar num acordo amigável foram vãos.

E isso ainda não era o pior.

A dez de maio de 1775 o segundo Congresso Continental se instalou em Filadélfia.

Dessa vez estavam presentes delegados de tôdas as treze colô­nias. Isso significa que pela primeira vez na nossa História as re­clamações de todo o povo americano iam ser ventiladas em con­junto . A gravidade da situação fêz essas pequenas nações indepen­dentes e vaidosas esquecerem suas rm tu as rivalidades e desconfi­anças.

A sorte estava lançada.

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Revolução. Os combatentes

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Os colonos, com surpresa sua, tinham sido subitamente sur­preendidos num ato de rebeldia formal. Êles podiam não estimar particularmente seus vizinhos presbiterianos, ou quacres, ou holan­deses reformados, mas, como o observou o cabeça da revolução, era uma questão de serem “enforcados juntos” ou separadamente, e a perspectiva da forca cria estranhas fraternidades de armas.

Diante disso desenvolveu-se um entranhado ardor cooperativo, e cs banqueiros, usurários e donos de casas de penhor do litora), ccmumente conhecidos como “aristocratas” e geralmente malquis­tos, se dispuseram a trabalhar com os rudes filhos da terra das fron­teiras agrícolas, habitual e pejorativamente chamados “democratas” t tidos em má conta pelos polidos h abitantes das cidades. Porque, embora a rebelião tivesse partido dos comerciantes da Nova Ingla­terra, não poderia ser bem sucedida se não tivesse o completo apoio dos cultivadores de tabaco das margens do Potomac e caçadores de fndies do vale do Ohio.

No começo de junho de 1775 João Adams propôs que o coman­do em chefe de todas as fôrças que pudessem ser reunidas para a defesa da causa americana fôsse entregue ao seu distinto colega de delegação, o Honorable George Washington, do Condado de Fairfaix, na Virgínia.

A moção foi apoiada.

A moção foi aprovada.

Nessa mesma noite, o dono da maior propriedade americana ta­lhou ele mesmo uma pena nova, e escreveu a sua mulher a seguinte csrta:

“Pode crer, minha querida Patsey, no que lhe afirmo solene­mente; longe de procurar essa honra, eu usei de todos os meios ao meu alcance para evitá-la, não somente porque não me queria se­parar de você e da família, como porque tenho a consciência de que é um encargo superior às minhas capacidades.”

Depois enrolou sua capoteira, e fêz o cavalo tro tar para Nova York.

Tôda a cidade movimentou-se para ver Sua Excelência.

Uma companhia da milícia local serviu de guarda de honra.

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Alguns dias mais tarde, tôda a cidade agitou-se com o mesmo cnlusiasmo para ver o novo governador, chegado nesse instante de Londres, na Inglaterra.

A mesma companhia da milícia local serviu de guarda de honra.

A dois de julho de 1775 Georgc Washington desembarcou cm Cambridgc.

Levava no bólso um documento oficial. No momento, esse pc- ¿«ço de pergaminho era a única prova tangível da Grande Revo- tacão americana.

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CAPITULO XXIV

O GENERAL GEORGE WASHINGTON, DO CONDADO DE FAIRFAIX, NA VIRGÍNIA, ENVERGA SUA VELHA FARDA

Apenas o novo comandante entrou em função, as línguas come­çaram a trabalhar. Que espécie de homem era êsse maneiroso vir- giniano que ocupou todo o andar térreo da Craigie ITouse e procu­rava obstinadamente pôr em ordem no caos desesperador de milícias com fardas mas sem armas — m atutas sem fardas mas com cara­binas — fornecedores de material bé ico cheios de reclamações — patriotas profissionais querendo dar conselhos — aventureiros es­trangeiros e ambiciosos — Membros los comités com suas descon­fianças — desertores ingleses com plantas das fortificações inimigas— jogadores trazendo combinações infalíveis — pastores com ser­mões eloqüentes — legalistas secretamente esperançados — táticos amadores que sabiam “como se pode arranjar tudo, e muito facil­m ente”.

N a verdade, não é fácil descrevê-lo em poucas palavras.Era um homem de quarenta e quatro anos. Media, descalço,

seis pés e três polegadas. Pesava duzentas e vinte libras, e era, não obstante, um ótimo cavaleiro. Originário da Virgínia — de uma boa família, das melhores do tempo. Nascera em Bridges Creek no condado de Westmoreland, mas vivia em M ount Vernon, uma pro­priedade nas margens do Potomac, assim chamada por causa de um almirante inglês, Eduardo Vernon. A fazenda pertencera a seu meio- irmão Lourenço, que morrera em 1752. T inham sido bons amigos, êsses dois irmãos. Quando Lourenço ficou tuberculoso (tôda a fa­mília tinha .pulmões fracos), foi George quem o acompanhou às í n ­dias Ocidentais. Lourenço morreu a despeito disso, e George apanhou bexiga. Viam-se sinais evidentes da moléstia em seu rosto. Talvez por isso sorrisse tão raramente. Por outro lado, não era incapaz de entender uma brincadeira, e nem era á muito de igrejas. No mais, desde que os outros andassem como deviam, êle apreciava os esfor-

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BevolugSo. Um suspcito

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ços e era capaz de tomar o partido da um honesto cidadão às vol­tas com um figurão prepotente cujo galinheiro tivesse sido saquea­do por alguns soldados famintos. Mas Deus valesse a quem ador­mecesse no pôsto, ou descobrisse que cinha urgentes negócios na re­taguarda quando um vaso de guerra inglês visava o seu setor. Des­compunha desabridamente o covarde, e sabia descompor como ur.i marinheiro. Mas isso estava direito Certamente estava direito. Guerrear não é rasgar sêdas. Já se v u uma guerra sem palavrões? Mesmo que tivesse que pagar de seu bolso a comida de seus homens, queria que fossem bem alimentados. E isso também estava direito. N ão recebia um tostão pelos seus serviços. Era bastante rico e não queria auferir lucros do que considerava seu dever. Não tinha, po­rém, desejado o posto que ocupava. Possuía uma boa casa na Vir­gínia, e terras e escravos à vontade. 0 povo de Georgetown dizia-o milionário. Talvez não chegasse a tan :o . Mas, sem dúvida, era rico. E casou-se com a dona de uns cem mil dólares. Uma viúva, uma opulenta e bela mulher, M arta Dandridge. E tinha dois garotos. Ou melhor, a mulher é que os tinha M as o coronel os adotara e os educava como se iôssem seus filhos. Em tudo e por tudo, um homem de valor. Não era dessa gente que precisa ser empurrada. Ao contrário. Se éle decidisse fazer í s í o ou aquilo, os outros sentiam logo vontade de segui-lo. Condutor de homens, como se diz. Isso é o que êle era. E já tinha pôsto à prova sua capacidade. Combatera nas índias. Fora capturado pelos franceses. Salvou o que foi possí­vel salvar dos batalhões de Braddosk. Mas alguns annos depois teve a sua desforra. Pois foi ele quem tomou ao velho Luís o forte de Duquesne, cujo nome mudou para forte Pitt. Por isso foi feito comandante das forças da Virgínia, quando apenas contava vinte e três anos. Não, não era um presbiteriano. Ia à igreja episcopal. Mas não era fanático. Viver e deixar viver era o seu lema. Não se metia com a vida de quem cumpria o seu dever, e quem quisesse falar-lhe podia fazê-lo em liberdade, contanto que não fosse proli­xo, pois êle era muito ocupado e pouco dado a conversas fiadas. T al era o homem.

E a situação?Era tão horrível que chegava a ser cômica.Em primeiro lugar, não havia canhões.A retirada de Lexington provara que nenhum miliciano, por

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mais valente que fosse, podia resistir a um tiro. E enquanto Gage possuísse artilharia, seria senhor de Boston.

Nesse momento crítico os rebeldes tiveram uma sorte extraor­dinária.

Havia duas fortalezas ao norte de Nova York. Toconderoga e Crown-Point. Antigamente haviam impedido os franceses e seus adiados, os índios, de invadirem pelo Canadá as possessões inglesas. Agora que o Canadá não era mais colônia francesa, tinham-se tor­nado inúteis do ponto de vista estratégico, e serviam de arsenais. Alguns veteranos compunham tôda a sua guarnição.

A dez de maio, um vermontês, de nome Ethah Allen, tomou tsses fortes com sua tropa de montanheses, e um certo Benedito Arnold, transformando uma velha escuna num navio de guerra de emergência, dirigindo-se para o lago Champlain, apoderou-se do forte de S. João. De um momento para o outro os rebeldes se viam com orgulho de posse de quarenta canhões. E no inverno, quando grossas camadas de neve cobriam as montanhas de Berkshire, um engenhoso livreiro de Boston conseguiu transportar os valiosos des­pojos do coração do Estado de Nova York até Dorchester Heights, em Massachusetts. Os canhões estavam municiados com as balas tomadas a um navio cargueiro inglês, o Nancy, e, ao menos, o gran­de porto do Atlântico estava à mercê dos americanos.

Em dezessete de março de 1776, os inglêses e os americanos fiéis ao Rei George embarcaram para Halifax, na Nova Escócia.

O exército que entrou na cidade conquistada era muito dife­rente da turba indisciplinada e irregular que o General Artemus Ward apresentara ao comandante em chefe havia quase um ano, nos campos públicos de Cambridge. E foi uma multidão muito di­ferente a que espiou a êsses garbosos regimentos cozinharem sua íopa nas velhas campinas comunais.

Enquanto as fardas vermelhas dos soldados de Sua Majestade passavam pelas ruas, essa boa gente fora obrigada a se dizer in­glesa.

Mas agora podia escolher livremente.No momento, as tropas americanas pareciam vitoriosas, mas,

sntes de se decidirem, os habitantes queriam saber de mais alguma coisa.

“Que se estava passando em Filadélfia?”

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CAPÍTULO XXV

MR. THOMAS JEFFERSON DO CONDADO DE ALBEMARLE, VIRGÍNIA, MOSTRA AS GRANDES VANTAGENS DA EDUCAÇÃO CLÁSSICA

Até uns cinqüenta ou sessenta an3S atrás considerava-se a Id a ­de Média unia época colorida e teaíral, onde entravam princesas perseguidas e trovadores, santos e instrumentos de suplício, uma espccie de enorme melodrama que durou quase dez séculos.

A História Moderna operou uma limpeza muito útil entre ai ruínas pitorescas porém perigosas de um passado que se pintava por demais encantador. Agora sabem js que os homens e mulhere? dos séculos V III , X I I e X IV eram realmente muito parecidos co­nosco: as diferenças que nos pareciam tão importantes eram artifi­ciais; sob suas cotas de malha e seus mantos de veludo, nossos an­tepassados eram animados da mesma ambição que nos dirige o ins­tinto todo poderoso da conservação.

Um dos terrenos cm que fomos obrigados a modificar nossas opiniões foi o da arquitetura.

Nossos avós olhavam para uma cidade medieval e diziam: “Es­sas torres e êsses muros imensos são muito interessantes. Foram naturalmente construídos para proteger os habitantes da cidade con­tra os ataques dos inimigos, os barões — salteadores e os reis.”

Hoje sabemos que esta é apenas uma parte da verdade. O sis­tema de defesa medieval tinha um duplo propósito: manter os ini­migos do lado de fora, aos cidadãos do lado de dentro.

Porque essas nobres batalhas e êsses cercos que tan to prazer nos causam nos livros de Walter Scott eram funestos acontecimen­tos para a maioria dos homens.

Nos povos da Idade Média não era disseminada a noção do na­cionalismo. Eram fiéis aos lugares do seu nascimento, mas não pen-

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"Revolução. A vítima

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savam em termos de Nação ou de is tado. Aceitavam os reis e imperadores como nós aceitamos instimições que não nos agradam, mas que existem independentemente da nossa vontade, e são tão sólidas que não sabemos como nos livrar delas.

Quando o rei da França declara\ a guerra ao rei da Espanha, as tropas do rei da França estavam na obrigação de sitiar as cida­des fortificadas do rei da Espanha, c as tropas do rei da Espanha deviam sitiar as cidades fortificadas do rei da França, e as guarni­ções das cidades pertencentes ao rei da França tinham de fazer o possível para guardar para o seu senhor, em Paris, as cidades con­fiadas à sua guarda, e as guarnições cas cidades pertencentes ao rei da Espanha lutavam ferozmente para proteger seus redutos e bas­tiões contra o contato imundo dos mercenários de Valois.

Enquanto isso, os pobres cidadsos deviam sofrer calados até que a contenda se decidisse, quando eram saqueados por inimigos vitoriosos, ou se viam compelidos a ri partir todos os seus bens com os bravos que os haviam protegido; ce qualquer modo, ficavam ar­ruinados.

Não preciso dizer que não viam isso com bons olhos. Quando entendiam que já tinham comido bastantes ratos e camundongos pa­ra constituir uma prova suficiente de lealdade, tinham vontade de abrir as portas da cidade e dizer aos dois adversários: “Façam o

que quiserem, mas, pelo amor de Deus, cessem com essas mortan­dades inúteis e deixem-nos cuidar dos nossos negócios.5’

O dever da guarnição era natural nente impedir semelhante tra i­ção. Assim, como já disse, as fortificações da Idade Média serviam a um dup!o propósito, e eram construídas de maneira a permitir que os soldados dirigissem suas setas e seus tiros contra os inimigos ou con­tra os amigos, à vontade.

Os homens que tomaram a seu cargo a revolução americana asse­melhavam-se a uma guarnição medieval. Porque não somente preci­savam defender-se dos ingleses, como tinham de impedir os america­nos fiéis de fazerem causa comum com êlcs.

Agora que tudo já passou, temos tendência a esquecer como foi grande o número de pessoas que permaneceram fiéis ao rei.

Ésses importunos cidadãos pertenciam quase sem exceção a classes ricas, e por isso a sua influên ia foi nula. Desde tempos ime­moriais. tinham sido usurários, e por isso incorrido no ódio profundo

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Revolução. Urn destacamento justiceiro

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e duradouro dos pequenos agricultores. Ora, êsses pequenos agri­cultores eram atualmente soldados dos exércitos da Independência. Era o momento de tirarem a sua desforra. Faziam declarações pú­blicas tão ferozes sobre a sorte que esperava os “traidores”, que os legalistas, por bem ou por mal, tinham de meter a viola no saco. Se os americanos tivessem perdido a guerra, nem se pode imaginar o que teriam feito os partidários da Coioa. Mas como desde o início os rebeldes levaram vantagens, os outros não tugiram nem mugiram.

O problema dos ingleses não se resolveu com muita facilidade. Segundo as notícias de Londres, o govêrno inglês estava apelando pa­ra todos os mercenários disponíveis para subjugar os colonos. Ma? êsse projeto de invasão não deu muito que pensar a Washington e aos seus conselheiros. Conheciam bastante os oficiais inglêses para não temê-los muito. Além disso, estavam habituados ao terreno, sa­biam a melhor tática para combater no deserto e estavam próximos de suas bases de abastecimento. Não, a perspectiva de uma campa­nha contra os pesados camponeses ale nães de Sua Majestade não os assustava.

O problema que os preocupava ansiosamente era o seguinte: duraria até o fim o bom espírito que animava o país? Poderiam manter unidos os seus homens e a popilacão civil até que o inimigo comum fôsse derrotado?

Mais tarde ou mais cedo, havia de se decidir, não só se seriam cs inglêses ou os americanos os senhores das ricas regiões que se es­tendiam ao longo do litoral do Atlântico, mas também qual das duas facções dominaria a nação americana: os “aristocratas”, mer­cadores ou banqueiros das cidades, ou os “democratas”, fazendei­ros e pequenos negociantes a varejo das fronteiras.

Com o inimigo à porta, a cooperação era indispensável ao êxito. E para conseguir essa cooperação, era necessário elaborar um pro­grama que conciliasse as duas correntes, ainda que provisoriamente, por alguns meses ou anos.

Washington estava muito ocupado em instruir seus recrutas pa­ra poder tomar a si a tarefa. A John Adams faltava êsse magne­tismo pessoal, êsse poder convincente, indispensável para captar as simpatias de elementos tão diversos como os que se encontravam na antiga capital de Guilherme Penn. Mais uma vez um virginiano salvou a situação.

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Tilomas Jefferson, como Washington, era do Sul. Tamben» ele pertencia a urna das melhores famílias do país, pois sen pai despo­sara uma Randolph. Mas aí param as semelhanças entre os dois. Porque Washington, por nascimento e por educação, era um “aris­tócrata” — membro do pequeno grupo de proprietários rurais que desde muito cedo se tinha apoderado dos campos férteis das plani­fica. Enquanto Jefferson era um legítimo fiiho das fronteiras, pas­sara a sua mocidade entre os fazendeiros das longínquas montanhas Azuis e quase não tinha tido nenhum contato com a civilização mais artificial do Leste quando entrou para o colégio que o holandês William c sua mulher inglesa fundaram em Williamburg em 1693.

j á no começo do século X V I dizia-se de Erasmo, o grande hu­nmanista, que gostava do modo católico dc viver e do modo lute­rano de pensar. Com igual verdade pode-se dizer de Jefferson, que apreciava o modo de pensar aristocrata e o modo democrático de viver. Washington, combatendo os exércitos do rei da Inglaterra, gostava de ser chamado Excelência e se cercava de uma pompa que aos olhos dos seus numerosos inimigos lembrava singularmente a etiqueta real, que devia encher de desgosto e desprezo os corações dos; \Terdadeiros patriotas.

Muito diferente era Jefferson. Em criança tinha sido conheci­do simplesmente como Tom por seus vizinhos do condado de Albe- niarle. Desprezava inteiramente as comodidades da vida, que os ru­des homens das fronteiras consideravam requintes inúteis, próprios <ías raças fracas e efeminadas. Mas quando se tra tava da indepen­dência moral, mais freqüente entre os que nunca precisaram lutar para obter o pão de cada dia, então Jefferson se mostrava o mais aristocrata dos aristocratas.

Muita gente parece pensar que as revoluções são feitas pelas multidões famintas e miseráveis dos cortiços. N a verdade, essas po­bres, obscuras massas de humanidade subalimentadas têm apenas um papel muito secundário. São chamadas quando se precisa de carne para os canhões. O trabalho real de destruição e construção é feito por homens de origem muito diferente. E à frente das filei­ras dos que arriscaram sua vida e abriram mão de seu egoísmo por um ideal, encontra-se sempre um dêsses aristocratas radicais de que Jefferson era um legítimo e nobre representante.

Como Washington, também Jefferson sofreu amargamente nas

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A Indcpcndcncia

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mãos dos que não o entendiam. Como Washington, cie foi invejado, caluniado, criticado, vilipendiado com um azedume inacreditável pa­ra as gerações modernas. E como Washington (c todos os verdadei­ros grandes homens), aceitou como coisa natural a ingratidão da­queles a quem beneficiara. Êle compreendia e apreciava justamen­te a natureza dos serviços que prestara à sua terra.

Sabia (como hoje também sabemos) que fôra exclusivamente obra sua aquela profissão de fé onde se irmanaram treze rusguen- tas pequenas colônias, e que, aos olhos do mundo, elevou os ameri­canos acima da categoria de simples rebeldes para colocá-los na van­guarda des que, desde tempos imemoriais, pugnaram pelo direito de escolher o homem àqueles a quem prestará obediência política.

Os membros do primeiro Congresso Continental ainda tinham falado muito em “lealdade” . Os poucos radicais que pressentiram inevitável a ruptura com a Metrópole não conseguiram convencer seus companheiros mais conservadores. Depois disso, muita água passou pelo Schuylkill. Os ingleses foram derrotados no primeiro encontro com os patriotas. Mas era mais funda do que nunca a separação entre as “cidades” e o “interior”, e cm muitas províncias houve ameaças de revolta civil ou, pior ainda, de uma explosão de anarquia.

Em tais circunstâncias, só uma medida violenta como o aban­dono da velha forma de governo e a proclamação de uma república independente poderia conciliar as correntes facciosas. Êsse passo arriscado tornaria definitiva e irrevogável a ruptura com a M etró­pole, e daria novo ânimo aos hesitantes e oportunistas, oferecendo- lhes á escolha entre uma morte nobre nos campos de batalha e uma condenação ignominiosa às galés de Sua Majestade.

A sete de junho de 1776, Ricardo Henrique Lee (nascido nò mesmo condado da Virgínia que Washington), depois de prolon­gados debates com os chefes políticos do seu Estado, redigiu a se­guinte proposta:

“Em primeiro lugar, fica assentado que estas Colônias Unidas são, e têm direito de ser, Estados livres e independentes, desligados de qualquer compromisso com a Coroa inglêsa, e que tôdas as re­lações políticas entre elas e o Estado da Grã-Bretanha são, e de­vem ser, totalmente rompidas; em segundo lugar, que é urgente to ­mar medidas eficazes no sentido de formar alianças políticas; em

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terceiro lugar, que um plano de confederação deve ser elaborado e comunicado às respectivas colonias para ser estudado e aprovado.'’

John Adams, de Massachusetts pôs também a sua assinatura na moção, e nomeou-se uma comissão para redigir um documento que explicasse 20 país e ao mundo de que modo e por que intole­ráveis meios o rei da Inglaterra obrigcu súditos leais até então a tomarem essa violenta resolução e a romperem todas as relações çom a Metrópole.

Essa comissão famosa compunha-se de Benjamín Franklin, Ro­gério Sherman, Roberto L. Livingston, John Adams e Thomas J t í - ferscn.

Sherman e Livingston foram escolhidos para granjear as boas graças de Nova York (urna colonia justamente suspeitada de for­tes tendencias legalistas) e não tomaram parte muito saliente nrvs discussões preliminares. Franklin e Adams fizeram algumas suges­tões que modificaram ligeiramente a redação de meia dúzia de íra- ses. A Declaração de Independência, portanto como a conhecemos, foi obra de Thomas Jefferson, e corporif ca não só as suas convicções políticas como também a sua Filosofia da vida em gera!.

Jefferson, contrariamente a Washington, tinha lido muito. Pou­cos autores 0 impressionaram tão profundamente como João Locke, 0 contemporâneo de Spinoza e um dos primeiros campeões na In ­glaterra do novo e revolucionário princípio de que o homem deve reger-se de acordo com as suas próprias convicções. Não sabemos ao certo onde Locke foi buscar essas noções. Mas durante a segun­da metade do século X V II êle estêve exilado na Holanda, uin sé­culo depois dos holandeses se terem declarado independentes da Es­panha num documento onde estabeleciam que “todos os soberanos foram suscitados por Deus para governarem seus súditos como os pastores guardam suas ovelhas”, e, mais ainda, que “os súditos não foram criados para proveito dos reis, e sim, os reis para proveito dos súditos”.

Jefferson, na sua Declaração da Independência, seguiu o mé­todo empregado por seus predecessores holandeses. Antes de mais nada, expôs suas teorias acêrca da vida e dos governos. Em seguida, enumerou as injúrias vexatórias impostas por Sua Majestade o rei George III (vice-Felipe II) aos seus pacientes súditos dos Estados-Uni­dos da América do Norte (vice-Países Baixos). Terminava afir-

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mando que os mencionados súditos não tinham outro meio de reação senão se declararem independentes.

A Declaração foi lida e devidamente discutida no Congresso Continental, algumas alterações ligeiras foram propostas, e tudo is­so tomou tanto tempo que só na noite de quatro de julho pôde a comissão dar por findo o documento, na sua forma definitiva. A cinco de julho algumas cópias foram tiradas c enviadas aos coman­dantes dos exércitos revolucionários. Finalmente, no dia oito a De­claração pôde ser lida ao povo de Filadélfia, reunido para êsse fim em City Hall Square.

Só a dezenove de julho (devido à demora da delegação de Nova York) foi resolvido que se escrevesse a Declaração num grande pergaminho.

A dois de agosto o copista oficial terminou o trabalho, e afinal as assinaturas puderam ser recolhidas. Entre aqueles cujos nomes figuram nesse extraordinário documento, oito tinham nascido fora do país, dezoito eram de origem estrangeira. A outra metade podia reivindicar-se de avós ingleses.

Assim, no dia do seu nascimento, nosso país representou efe­tivamente essa fraternidade que as agruras da vida no deserto im­primiram às massas deserdadas vindas do velho mundo.

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CAPÍTULO XXVI

0 REI GEORGF. III TORNA-SE UM HERÓI POPULAR EM SEU PAIS

Entretanto , o que dizia o povo da mãe-pátria dtsses procedi­mentos escandalosos:

A princípio não disse nada. Todos estavam muito ocupados em se refazerem de um longo período de guerra. T inham pouco tem­po e ainda menos disposição para ouvir as supostas queixas de “uns poucos colonos”.

Mas gradualmente começaram a sentir que se tra tava de algu­ma coisa de mais sério do que uma si nplcs rusga entre gente que morava no mato.

Assim que perceberam os princípics básicos do conflito, come­çaram a se zangar.

Afinal, quem tinha lucrado mais com a derrota dos franceses nc Canadá?

Os americanos.

E quem tinha pago o sustento dos exércitos vitoriosos?

Os ingleses.

Isso era direito?

Certamente não, tanto quanto po liam julgar os honestos in­gleses.

Disseram claramente que na sua opinião os homens da Nova Inglaterra e da Virgínia deviam contribuir ao menos com alguns pennies e libras para os milhões que a guerra tinha custado.

Conheciam muito bem o lema colonial “Sem representação, na­da de impostos”, mas eles próprios er im escassamente representa-

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<dos no Parlamento e nem por isso deixavam de pagar impostos. O que era bom para o povo de Londres devia ser bom para o povo de Boston.

Mas havia ainda mais alguma coisa.

<2uer fossem representados nessa corporação quer não, encara­v am o Parlamento como o baluarte das liberdades inglesas, a fonte ■¿e onde devia emanar tôda a autoridade no Império.

Seus pais e avós tinham sustentado uma longa e sanguinolenta guerra para estabelecer a supremacia do Parlamento sôbre a Coroa. E de repente surge um obscuro Mr. Jefferson, fazendeiro desconhe­cido de algum canto da Virgínia exigindo estultamente que a juris­dição do Parlamento íôsse circunscrita às Ilhas Britânicas, o que tquivalia a dizer que, numa escala um pouco maior, o Parlamento não era mais importante do que a ridícula câmara de deputados co­loniais1, e que as colônias deviam governar a seu bel-prazer, ou se­rem sempre consultadas.

Isso era nada menos do que uma alta traição. Se tais opiniões íôssem toleradas, que seria dos grandes ideais pelos quais Cromweíl € seus irlandeses cambateram em Naseby e Marston Moor?

Quanto mais cedo os colonos entendessem que, como todos os in­glese?, estavam sujeitos à vontade do Parlamento, melhor seria.

Ora, Sua Majestade o Rei George I I I era um homem pouco bri­lhante, mas não era nenhum louco, e partilhava da habilidade polí­tica de seu famoso primo, o Rei Frederico da Prússia. Seu ponto <Ie vista em relação às possessões americanas coincidiam exatamente com as opiniões de seus súditos. Viu nisso tudo um bom meio de fazer da Coroa a defensora dos direitos do Parlamento e ao mesmo tempo de ganhar a boa vontade e o apoio da Assembléia Nacional na sua luta privada com aqueles Whigs tão nocivos. Era uma opor­tunidade única, que só aparece uma vez na vida da maioria dos soberanos, e George tratou de aproveitá-la. Durante os sete anos se­guintes foi comovente a harmonia entre o rei e seus súditos, e eni tudo o que tocava à rebelião americana, o soberano e o povo pensa­vam como um só homem.

E ’ verdade que alguns ministros, principalmente Guilherme Pitt, discutiram os aspectos práticos de algumas das medidas impostas

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Á sombra da poderosa pena de ganso

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2os colonos. Além disso, um membro do Parlamento, por nomc Edmundo Burke, permitiu-se alguns floridos trechos oratorios so­bre os problemáticos direitos dos radicais americanos. Mas Pitt , quando se tra tava de questões de princípio, concordava sinceramen­te com os que sustentavam que o Parlamento era de direito c de­via ser sempre o tribunal de última instancia para todos os assuntos relativos ao govérno do Imperio. Quanto a Burke, nascera em D u ­blim, e portanto era forçosa e naturalmente “contra o govérno”.

Não admira, diante disso, que o povo inglês não fôsse parti­cularmente escrupuloso na escolha dos métodos empregados para dominar os rebeldes. A vida, ou melhor, a existencia era tão áspera no exército ingles naquele tempo, que poucos ingleses desejavam se alistar. Os desordeiros e salteadores, quando lhes ofereciam a es­colha entre o cárcere e o serviço no exército de Sua Majestade, pre­feriam o último. Mas seu número era relativamente pequeno, e foi necessário recorrer aos estrangeiros para perfazer o número necessá­rio de recrutas.

Em primeiro lugar sondou-sc Catarina da Rússia para saber como encararia o empréstimo (mediante urna justa remuneração, bem entendido) de vinte mil cossacos. Sua Majestade, depois de alguns entendimentos, preliminares, recusou o pedido e alguns ano> depois, como o devemos lembrar com reconhecimento, ela mostrou 2 sua simpatia pela nova república emprestando-lhe uns poucos porém bem-vindos rublos ouro.

Havia ainda os pequenos potentados do norte da Alemanha.

Êsses titulares, notadamente os grão-duques de Hesse-Casscl, de Brunswick e de Anhalt-Zerbst, estavam empenhados na empresa ingrata de transformarem suas rústicas residências em outras ta n ­tas imitações da Côrte de Versalhes, e tinham premente necessidade de dinheiro. Ficaram radiantes com essa inesperada oportunida­de de encher as gavetas vazias de seus tesouros, e durante os sete anos seguintes venderam nada menos de trinta mil de seus súditos para a escravidão das legiões estrangeiras. Como essas Sereníssimas Altezas recebiam uma soma extra por cada homem morto ou feri­do, tinham toda a razão de desejar um longo e sanguinário conflito.

Isso quanto aos aliados brancos da Grã-Bretanha.

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Quanto aos seus amigos índios, não foram de grande préstimo. J á os franceses tinham descoberto que êsses pobres selvagens eram muito pouco úteis numa batalha. Quando tudo ia bem, êles m ata­vam e saqueavam como leões, mas, ao mais ligeiro indício de pâni­co, desapareciam e se embrenhavam nos matos. Os ingleses emprega­ram-nos durante a revolução, mas raramente como forças regulares. Todavia, mediante promessas generosas de dinheiro e uísque em re­compensa de conscienciosos escalpameatos, era possível conseguir o entusiasmo de muitos peles-vermelhas, e alguns dos seus massa­cres, principalmente o de Wyoming Valley, no Estado de Nova York em 1778, onde trezentos colonos foram mortos pelos sênecas, eram lembrados pelos americanos com jma amargura que em algu­mas regiões ainda perdura até hoje.

Felizmente para os rebeldes, depois de 1778 a França, a Espa­nha e a Holanda entraram na guerra, e os ingleses não puderam mais concentrar tôda a sua atenção no problema americano. De um modo geral, entretanto, a maioria do povo na Metrópole compreen­dera a importância da luta e, muito antes das notícias da prime;ra série de derrotas ter alcançado Londres, reclamava do governo que todos os esforços fossem feitos para si bjugar a revolta.

A fraqueza da Inglaterra era, porém, devida a muitas causas. Em primeiro lugar, os britânicos lutavam a três mil milhas de suas bases de abastecimento. Em segundo l igar, os seus soldados nunca se familiarizaram bem com os métodos de escaramuças mais apro­priados ao terreno. E, finalmente, empregavam mercenários quando o exército americano era composto de voluntários.

J á se tem dito (com maior ou menor verdade) que os deuses estão sempre do lado do canhão mais poderoso. No caso, porém, de estarem as duas partes bem providas de artilharia, a vitória terá de ir para quem tem um interêsse pessoal no conflito. Os homens de Vermont e Rhode Island que seguiram Washington caminhando pelas estradas enlameadas e cobertas d<; geada de Delaware, sabiam que, se não se batessem como leões, fuas casas seriam queimadr.s pelos inimigos, seu gado roubado, suas mulheres e filhos provavel­mente mandados para o Canadá ou a Nova Escócia.

Os pobres hessianos, ao contrário, engajados por sete libras, cniatro xelins e quatro pennies e meio ( que iam para a carteira de

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seu ilustre soberano) não ganhavam nada mais senão um pote de cerveja e alimento suficiente para viver.

E assim diziam com os seus botões: “W arum sollen wir uns da anstrengen?” ( l ) E assim entravam na peleja com um olho no ini­migo e outro na saída mais próxima.

Quem tiver passado alguns terríveis anos sob o fogo de uma guerra que não o interessasse, poderá atirar-lhes a primeira grana- cía de mão.

Quanto a mim, acho que os hessianos eram homens muito sen­satos.

(1) Eiv- a!c3ião no orig!na\

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CAPÍTULO XXVII

LORD NORTH OBRIGADO A FICAR ACORDADO

Lord Frederico North pertencia a uma família que deu à In ­glaterra um grande número de políticos de nomeada e os sais ds Epsom. Foi o mais amável dos estadistas que jogaram a sorte de um império e perderam. Nunca se exasperava, nunca sc perturbava. No meio do mais veemente debate, acudia com uma pilhéria. E quando era atacado pelas vociferações da leal oposição de Sua M a­jestade, puxava calmamente a peruca sôbre os olhos e ia dormir.

Infelizmente, durante o período compreendido entre 1775 e 177> o nobre Lord quase não pôde mostrar a sua habilidade, e foi fre­quentemente obrigado a ficar acordado muito além da hora habi­tual de se recolher à cama. Porque as coisas não iam nada bem nas colónias distantes, e era ele, o pobre homem, que tinha que arcar com as censuras.

Primeiro foi o fracasso da tentat va de reconquistar a América pelo norte. A cidade de Boston, que devia servir de base de abaste­cimento ao exército de ocupação, foi forçada a se render c tôda a Nova Inglaterra caiu nas mãos dos rebeldes.

Depois de numerosas deliberações (um período de trégua que deu a Washington o que ele mais almejava — tempo para organizar suas tropas xucras), um segundo plano de campanha foi elaborado. Èste era mais ou menos napoleónico pelo arrôjo da agressão, mas a execução foi tão pouco napoleónica que falhou completamente. Pre­tendia nada menos do que dividir a parte norte do território ame­ricano em duas metades, por meio de um cordão militar que se de­via estender em linha quase reta entre Montreal e Nova York. Dois exércitos foram empregados simultaneamente. Um devia dirigir-se do Canadá a Hudson River. O outre iria de Hudson Rivcr ao Ca­nadá.

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Até aí foi tudo bem.A cidade de Nova York, o viveiro dos legalistas, foi tomada

com muita dificuldade, mas Washington e a maior parte de suas íorças puderam escapar. Isso expunha o flanco oeste do exército britânico a um ataque dos rebeldes, como os invasores haviam de aprender à sua custa em Trenton e Princeton.

Acampamento de inverno

Entretanto, uma outra poderosa divisão tinha seguido a velha estrada da fronteira ao longo do lago Champlain e retomara o forte Ticonderoga. Aconteceu, porém, que o delicioso e popular autor João Burgoyne, que era também um dos comandantes, perdeu-se nos desertos no norte de Nova York e, com tôdas as suas tropas e

transportes (os últimos mais proveitosos aos americanos do que as primeiras), foi capturado perto de Saratoga, a conhecida e elegante cidade de águas dos primeiros anos da República.

Praticamente, estava terminada a segunda campanha. Porque, embora os ingleses tivessem tido várias vitórias em outros pontos e

houvessem ocupado Filadélfia, a capital da revolução, seus êxitos não tinham quebrado a resistência dos colonos. Ao contrário, ti­nham comunicado a coragem do desespêro a muitos membros do Congresso Continental, até então hesitantes, e tinham animado es- ea corporação (que, com a aproximação das fardas vermelhas voara na direção de Lancaster, Pa.) a votar uma série de artigos sobre a

Confederação e a União Perpétua, artigos que tornavam o nome

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de “Estados Unidos da América” alguma coisa mais do que um t í ­tulo sonoro e oco. Ao cabo do segundo ano de guerra a perspectiva de urna rápida vitória inglesa estava mais remota do que nunca. E f verdade que Washington e seus homens passaram um duríssimo in­verno na aldeia de Valley Forge, a v.nte e quatro milhas de Fila­délfia. Mas, de uma maneira ou doutra, conseguiram sobreviver à terrível experiência. E dessa vez sofreram tanto com a total indi­ferença e incrcia do Congresso, que a insensibilidade de alguns fa­zendeiros da Pensilvânia, vendendo seus produtos diretamente aos inglêses (cujos bolsos estavam cheios de soberanos de ouro) e dei­xando morrer de inanição os seus patrícios (porque não podiam p a ­gar em dinheiro), representou apenas uma experiência desagradável que deveria ser esquecida apenas terminasse a campanha. Quanto ao comandante cm chefe dessa causa desesperada, a sua conduta durante êsse período de provações foi sublime. Noventa por cento dos homens teriam preferido retirar-se ante a constante campanha difamatória — ante as insinuações malévolas dos democratas d a Nova Inglaterra — que detestavam e tentavam desmoralizar èss; aristocrata da Virgínia — ante as desprezíveis pequenas intrigas e cabalas para entregar o comando em chefe a renegados como Carlos Lee (um sobrevivente do malfadado exército de Braddock que os­tensivamente tomara o partido dos rebeldes e secretamente tentava vender a revolução aos seus compatriotas inglêses) ou a algum ou­tro aventureiro que se jactasse de campanhas no Velho Mundo.

Mas Washington nunca desceu a dar importância a tão peque­nos incidentes. Èlc sabia que o responsabilizavam pela perda de Filadélfia. Sabia que os “novos ingleses” consideravam seu próprio General Gates, o herói de Saratoga, como um estrategista muito mais capaz do que êle. Sabia de tudo isso e não se alterava; exer­citava seus homens quando tinham sapatos e podiam sair, ensina­va-lhes a teoria da guerra quando não tinham sapatos e precisavam ficar nos quartéis improvisados. Mais cedo ou mais tarde, estava convencido disso, aconteceria alguma coisa. O acontecimento se deu no ano seguinte. Veio sob a forma de uma carta informando ao so­litário de Valley Forge que, a vinte e dois de dezembro, seu bom amigo, o Dr. Benjamin Franklin de Filadélfia, Pensilvânia, tinha chegado a Paris e tomado um quarto no agradável e pouco dispen­dioso subúrbio de Passy.

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CAPÍTULO XXVIII

O DR. BENJAMIN FRANKLIN, O CONHECIDO IMPRESSOR DE FILA­DÉLFIA, PA, APELA PARA OS DESCENDENTES DE S. LUIS

Há, em certas classes de nossa sociedade, uma tendência para lamentar os bons velhos dias da República, quando Deus estava no seu Céu — quando os lavradores saudavam respeitosamente todos e trabalhavam dez horas por dia por um dólar de prata — quando as simples virtudes da vida eram praticadas por toda a pa r­te — quando a Arcádia revivia nas margens do Charles River e do Potomac. As pessoas, porém, que pensam assim parecem desdenhar de um pequeno item que efetivamente transformou a idade de ouro da civilização americana na era sublime da independência individual (com a qual não concordam absolutamente).

Onde, oh! onde, na nossa abençoada civilização monótona e estandardizada, aquelas magníficas criaturas que se comprimiam no teatro da grande revolução, há apenas cento e cinqüenta anos?

Que homens maravilhosos e que deliciosa originalidade!Não eram os santarrões que os nossos compêndios de História

costumam pintar. Patrocinavam cervejarias que formariam uma fitmosfera social de calor, conforto e naturalidade. Amavam muito, embora nem sempre ajuizadamente. Tiravam dos seus negócios to ­do o lucro possível. Comumente apostavam grandes somas de di­nheiro nos seus cavalos preferidos. Manejavam o inglês dos reis com elegantes floreios de estilo, liam o latim do Império sem o au­xílio de dicionário, e não se envergonhavam de uma certa predile­ção pelas citações dos autores clássicos da Grécia.

Sabiam odiar ser remissão, mas dariam o seu último vintém para salvar um amigo do asilo da mendicidade ou da falência j u ­diciária.

Mostravam-se freqüentemente vingativos e cruéis, mas tudo o

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que faziam tinha um cunho pessoal e fraco, e quem não gostasse do seu modo de ser, sabia ao menos com quem lidava.

Forçoso é confessar que não eram bons cidadãos no moderno sentido da palavra. Usavam o que lhes agradava, sem ligar à moda. Comiam e bebiam o que lhes aprazia, sem indagar do que comiam e bebiam os vizinhos. Até em assuntos tão importantes, como polí­

tica e religião, tomavam suas co isciências por únicos guias, so- £>eranamente indiferentes às acu- sa< ões de heresia sussurradas pe­los membros mais medíocres da comunidade.

Uma conduta perigosa, qua no^ tempos modernos conduziria à ruína a maioria dos cidadãos, e os tornaria socialmente inad­missíveis.

Mas os homens que cons­truíram nosso país parece não se terem nunca incomodado muito com êsse “êxito prático” de que tanto se falou nos últimos se­tenta anos.

“Jóias e casas, fundos e tí­tulos, cavalos e carruagens” sus­tentavam, “têm um valor muito relativo. Êste mundo é um vale de lágrimas, e são passageiros

todos os bens materiais. Hoje somos ricos, amanhã podemos ser pobres, mas há alguma coisa que nem D tus nem os homens não podem tirar: nossa integridade e essa estranha mistura de caracteres herdados e adquiridos que se chama personalidade. Cultivemos essa rara vir­tude acima de tôdas as coisas, e tudo correrá bem no mundo”.

Algum dia havemos de entender (na verdade, parece que já vamos começando a entender) a maravilhosa e alegre herança dos solenes Pais da Pátria (como ficariam contrariados se ouvissem ês­se título!). No momento jaz enterrad i sob toneladas e toneladas

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<Je sentimentalismo absurdo, e só podemos reconstituir a fisiono­mia dos Fundadores por um ou outro afortunado fragmento que logrou escapar ao ardor patriótico dos professores. E se conhecemos Benjamín Franklin melhor do que os seus contemporâneos, é por­que esse gênio jovial espalha os segredos da sua alma com tan ta liberalidade que sessenta “vidas” oficiais não conseguiram apagar a primeira impressão causada pela franqueza e sinceridade da sua autobiografia.

Franklin não era um aristocrata. Decididamente não era. Ape­sar de ter encontrado mais reis, jantado com mais duques e contado histórias engraçadas a mais duquesas do que qualquer outro homem nascido na costa ocidental do oceano Atlântico, era de origem mui­to modesta.

Era o décimo filho de um pobre imigrante inglês que se mudou <3e Northamptonshire, na Inglaterra, para Middlesex Ccunty, em Massachusetts, durante a última metade do século XVII.

Apenas soube falar, ensinaram-lhe a ler e escrever, e com onze anos começou a trabalhar na fábrica de sabão que seu pai possuía em Boston.

Três anos mais tarde deram-lhe uma ocupação mais adequada na tipografia de um seu meio-irmão, editor do famoso “New En- gland C ourant”.

Dêsse dia até o fim de sua longa vida nunca se afastou muito do componedor. Sabem como é isso — quando entra no sangue o amor da oficina de impressão, a gente só se sente bem nessa atmos­fera carregada, onde ressoa de vez em quando o grito de demônio sujo, reclamando “cópi-i-i-a!”

Boston, entretanto, não guardou o rapaz por muito tempo. Era considerado excessivamente radical e muito abertamente livre-pen- sador para poder viver bem com os beatos que ainda dominavam esta parte do mundo. Assim, aos dezessete anos, arrumou sua trou­xa, foi para Nova York e começou uma carreira de aprendiz errante que, via Nova York e Londres, o devia conduzir à Filadélfia, onde se fixou. Dêsse momento em diante é mais fácil dizer o que êle não fêz do que enumerar as infinitas variedades de profissões que experimentou antes que a Revolução exigisse toda a sua atenção c o tornasse um estadista.

Inventou uma nova espécie de tipos. Fazia constantes experi­

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ências com a tinta empregada na impressão da sua “Pennsylvania Gazette” . Aprendeu sozinho latim, espanhol, francês e italiano. Con­tribuiu para a fundação da Sociedade 'ilosófica Americana. Foi di­retor dos correios das colônias e aperfeiçoou o serviço até que Nova York tivesse três distribuições semanais da correspondência de Fi­ladélfia. Foi o primeiro a se rebelar com êxito contra o “sabbath” puritano, e passava seus domingos aprofundando seus estudos cm vez de ouvir a sabedoria de segunda mão dos pastores. Pesquisou a causa dos terremotos, aperfeiçoou o conhecido fogão Franklin e deu à sua cidade natal um sistema adequado de iluminação das ruas. Recebeu a medalha Copley da Roal Sociedade de Londres pe­la sua curiosa invenção denominada va ra de Franklin, e depois u t i­lizada em todo o mundo como pára-raios. Sob o pseudônimo de Ricardo Saunder, imprimia anualmente; um folheto conhecido por “O Almanaque do Pobre Ricardo”, que figurava obrigatoriamente cm tôdas as mesas no N atal durante a última metade do século X V III . Abriu e dirigiu a primeira biblioteca pública para em­prestar livros. Fez durante treze anos parte da Assembléia Gera! de Pensilvânia. Era em Londres o agente colonial de seu Estado, da Georgia, de Nova Jersey e de Massachusetts. Quando, em sua terra, transportava êle próprio do empório para a tipografia o pa­pel necessário às suas várias publicações, a fim de que seus vizinho* vissem que não se considerava superioi à sua profissão, queria scc simplesmente Ben Franklin, o impressor.

Quando a Metrópole e as colônias entraram em conflito por causa de impostos, procurou a princípio, por todos os meios ao seu alcance, obter uma conciliação. Quando viu que o governo inglês não podia ou não queria entender o ponto de vista dos colonos, tor- ncu-se o desassombrado advogado da resistência armada, apoiando suas opiniões com todos os capitais de que dispunha, ou que pôde arranjar emprestados. Os chefes revolucionários aceitaram-no táci­tamente como o dirigente oficioso da ievolta, e quando se tornou patente (o que logo aconteceu) que os treze Estados-Unidos não poderiam alcançar a vitória sem o auxí io de algum outro país, foi Franklin o encarregado de ir à Europa e ver o que se poderia con­seguir.

A nova República estava em desesperadoras dificuldades finan­ceiras. Mas produzia algumas matérias-primas muito necessárias à

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O víais valioso dos aliados da A m érica : O General Descrío

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Europa. Benjamin Franklin, educado ia escola dos puritanos e dos quacres, podia realizar, com essas bases, um bom negócio. Já pas­sava dos setenta anos. Mas parecia ter descoberto o elixir da longa vida, e, além disso, era o único campeão da liberdade de nome lar­gamente conhecido no Velho Mundo e que, pelo seu prestígio pes­soal, não corria o risco de não ser re.ebido pelos ministros e ban­queiros franceses, espanhóis ou holandeses.

Acompanhado de dois dos seus netos, o velho lutador atraves­sou o oceano e, depois de uma penosa viagem num pequeno navio, o Reprisal, chegou às costas da Franca em dezembro de 1776. As instruções que levava eram muito vagas. O Congresso nem ao me­nos tomara o trabalho de muni-lo de uma carta de crédito.

Mas, por uma sorte extraordinár a, o Reprisal capturara dois navios mercantes ingleses e a vendr. da sua carga de madeiras e brande forneceu ao delegado amer cano bastante dinheiro para viver um mês ou dois.

O Reino da França nesse momento não era muito diferente do Império Romano de quinze séculos atrás. O povo francês (isto é, as classes altas, porque as baixas não contavam) tinha chegado a um grau de civilização que se pode ternar altamente prejudicial ao caráter nacional. Durante séculos a nobreza habitou as melhores casas que os arquitetos conseguiram p anejar, elevadas no centro de lindíssimos jardins desenhados pelos n:ais brilhantes arquitetos pai­sagistas. Seus cozinheiros gozavam de reputação mundial. Sua li­te ratura era imitada por todos os escritores do continente. Sua cor­te era a escola de boas maneiras de todos os jovens das melhores famílias da Europa ocidental, central e nórdica. O nível das conver­sas, mesmo nas mais recônditas aldeias, deixava boquiaberto o visitante estrangeiro. Suas músicas eram tocadas por todos os virtuoses em tôdas as salas de concerto. Em suma, os franceses haviam, durante tan to tempo, tido o melhor de tudo, que a vida perdera para eles o sabor e as emoções comuns tornaram-se-lhes tão insípidas como batatas cozidas de pensão barata; e d iriam tudo por uma sensação nova — por um novo motivo de viver.

Foi nesse momento preciso que o Dr. Franklin apareceu no meio dêles. O velho impressor nunca tinha estudado Psicologia, mas conhecia bem os homens e as mulheres. Se quisesse conquistar a boa vontade dessa nação rica e poderosa, tinha de apelar para o seu

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A revolução americana

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senso do dramático. Sabendo disso, tornou-se ator e representou tão bem o seu papel que dois anos mais tarde a França concluía uma aliança com as colonias rebeldes e declarava guerra à Grã- Bretanha.

Como terá conseguido esse resultado?Pelo mais simples dos expedientes, mostrando-sc tal qual era.Os cortesãos do Reí Luís, formidavelmente caceteados, habitua­

dos às estúpidas formalidades e às afetações do pequeno meio de

Versalhes, acharam-se de repente frente a frente com um divertido velhote, metido num casaco à moda d i 1730, usando ainda chapéu de castor, que lhes falava como se fossem seus netos e que, quando achava que estavam se portanto bem, presenteava-os com uma noz da América ou com uma maçã “do sea pomar”.

Graças a Deus, finalmente viam a guma coisa de novo.A França inteira tomou-se de entUMasmo pelo Filósofo da mata.l:m menos de um mês, não havia ninguém no país que não co­

nhecesse ao menos de vista o velho americano. Os mascates carre­gavam seus retratos gravados ou modelados em gêsso dos Pirenéus ao Meuse.

As caixas de rapé e os estojos de barba, para estarem na moda, deviam ostentar a face sorridente do “Apóstolo da Liberdade” . Damas elegantes usavam pulseiras e anéis com a efígie de Franklin. Toda a população ficou louca por Franklin, e só mesmo um homem de constituição de ferro como o velho impressor poderia digerir a série infindável de banquetes oficiais, merendas e ceias organizados em honra de tão ilustre hóspede, e cont nuar com vida.

Entretanto, o pobre velho embaixador passou por algumas con­trariedades que bastariam para m atar o mais insensível e céptico dos políticos.

Quando chegou na França, descobriu que tinha sido precedido por dois outros delegados americanos. Um dêstes, de nome Silas Deane, um honesto ianque de Connecticut, já tinha estabelecido al­gumas lucrativas relações comerciais entre as colônias e o continente. Tinha percebido que Pedro de Beaumarchais, o músico relojoeiro da corte de Luís XIV, o compositor do popularíssimo “Casamento de Fígaro” e do “Barbeiro de Sevilha” era um grande amigo da Amé- lica, pronto a auxiliar de todos os modos os colonos. Naturalmente, tudo devia ser feito à revelia das autoridades francesas, e assim

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A rcvolugüo americana. I I

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Deane e Beaumarchais trabalharam dentro do seguinte e engenhosa plano.

Apareceu em Paris a firma comercial Rodríguez Hortalez & Cia. associada à Casa Diego Gardoqui de M adrid. Logo começaram a chegar aos portos franceses das índias Ocidentais grandes quantida­des de pólvora, carabinas e uniformes. Por um feliz acaso, as naus portadoras da preciosa carga muitas vezes ancoravam ao lado das embarcações velozes de N ahan t e Prov dence. E duas semanas de­pois, sem ninguém saber como, os mesmos barriletes de pólvora, consignados a algum honesto negociante de Guadalupe ou Haiti, eram descarregados por membros do quartel-general de Washington, e as carabinas com as quais os nativos de Basse Terre deviam ma­tar patos selvagens, eram descobertas nas mãos dos militares da Pensilvânia.

E quando o embaixador de Sua M ajestade Britânica em Paris reclamava sôbre tão ostensivas quebras de neutralidade, o Minis-j tro dos Negócios Estrangeiros da França — parole cPhonneur! — não podia absolutamente informar como isso se dera.

Evidentemente, uma transação tão completamente ilegal como essa, dependia para ser bem sucedida, do mais absoluto segredo. Era impossível ser lançada em registros e contas. Nenhuma nota podia ser trocada, pois significaria que o comércio ilícito era feito com a aquiescência dos governos francês e espanhol. Os contraban­distas deviam cada um confiar na palavra do outro, acreditar na sua completa lealdade.

Enquanto Deane dirigiu as operações, tudo correu bem. Mas quando foi forçado a colaborar com A rthur Lee, o segundo delega­do enviado pelo Comitê de Correspondência Secreta do Congresso, começaram as complicações. Êsse Arthur Lee era irmão de Ricardo Henrique Lee que, como delegado da Virgínia, fêz a proposta que conduziu à Declaração de Independência. T inha as profissões de. médico e advogado, mas faltava-lhe essa serenidade de ânimo in - ; dispensável para o êxito de um médicc ou de um procurador. Via embustes em tôda parte. Todos os homens com quem lidava pare­ciam-lhe velhacos e ladrões. Beaumarchais não estava tentando au­xiliar as colônias porque ficara completamente obcecado pela causa da liberdade! Não, metera-se na empresa por ganância de dinheiro. Deane não era um patriota desinteressado que gastara o último

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Notícias de casa. Benjam in FranTclin cm Versalhes

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vintém de seus rendimentos para servir a causa da Revolução. N ão caía nessa! Era um explorador que vivia luxuosamente em Paris en­quanto seus leais patrícios pereciam de inanição nas miseráveis ca­banas de Valley Forge. E assim por diante; só acreditava na sua própria honestidade.

O Congresso, sempre à cata de um pequeno escândalo, de al­guma investigação oficial que pusesstm em foco os seus membros, tomou na devida consideração as acusações de Lee e chamou Deane a prestar contas. Como poderia Dea ie, que durante anos estivera empenhado em quarenta negócios diferentes, dizer o que fizera de somas que deviam ter passado por suas mãos dez ou catorze meses antes? Mas essa resposta não satisfez a seus juizes. Foi novamente chamado, e, não obstante ter sua inocência (de que Franklin nun­ca duvidou) ficado logo provada, morreu num exílio voluntário na Inglaterra, enquanto Lee vivia para se tornar um dos mais acerbos inimigos da Constituição dos Estados-Unidos, e um constante mo­tivo de desagrado para os que querkrn o bem de sua terra.

Êsse lamentável incidente, somado com muitos outros peque­nos conflitos provocados pela intransigência de Lee, e a sua ha­bitua! falta de tato chamaram a atenção de Franklin quando êle chegou a Paris. Não se deixou abater. Já tinha estado em lutas mais sérias. O quixotesco e generoso Beaumarchais, que, em recompensa de todos os seus trabalhos tinha sido acusado de falsidade e deso­nestidade pela gente por quem tinha feito tão grandes sacrifícios, não estava mais disposto a continuar o seu auxílio voluntário. A massa do povo francês, porém, encantada pela figura do enviado americano, era-lhe abertamente favorável. E a Côrte, ainda magoa­da pela derrota que havia sofrido a geração precedente, estava pronta e entrar em entendimento. Êsse entendimento se precipi­tou, chegando sob a forma de um jovem de Boston que atravessara a tôda pressa o oceano para informar que todo o exército de Bur- goyne fora capturado pelos americanos e que, praticamente, tôda a parte norte do território estava nas mãos dos revolucionários.

Quatro dias depois de ter a boa nova chegado à capital fran­cesa, o Ministro dos Negócios Estra igeiros mandava uma palavra ao Dr. Franklin avisando-o de que gostaria de recebê-lo em dia e

hora que íhe aprouvessem. E dois meses depois, a França reconhecia

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2 independência dos Estados Unidos da América, iniciativa essa que, )he valeu uma declaração de guerra por parte da Inglaterra.

Não estava, porém, terminada a missão de Franklin na Euro­pa. Durante sete longos e ansiosos anos êle continuou por lá, com­prando munições, negociando empréstimos, procurando obter de outras nações alianças políticas ou comerciais, e projetando, pela tua simples presença, um certo destaque sôbre uma causa que ne­cessitava de tôda a glória que pudesse conseguir.

Quanto a si, estava velho e pouco queria. O grande Voltaire c abraçara diante dos mais famosos homens da França.

Para um verdadeiro filósofo, era certamente uma recompensa •uficiente.

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CAPÍTULO XXIX

JEAN JACQUES ROUSSEAU ESCREVE UM LIVRO E O MARQUÊS DE LA FAYETTE VAI ESTUDAR OS ENCANTADORES FILHOS DA

NATUREZA NOS DESERTOS AMERICANOS

Com treze anos, Maria João P ajlo Ivo Gilberto Motier da La F ayette era órfão e possuía um dos mais longos e nobres nomes da França, e tantas riquezas que não sabia o que fazer do dinheiro.

As origens do segundo herói deste capítulo, Jean Jacques Rous- seau, eram um pouco diferentes. Também êle fôra privado dos cui­dados do pai e da mãe antes de sair da infância. Mas tinha obtido os primeiros favores da vida como aprendiz de gravador e lacaio, e, até passar dos cinqüenta anos, nunca teve grande certeza de co­mo faria a próxima refeição.

E, contudo, de modo algum tanto misterioso, as carreiras des­ses dois homens tão profundamente separados pela barreira do nas­cimento, educação e prévias condições servis de um deles, deviam se entrecruzar em benefício de um país ao qual ambos eram estranhos.

Por isso Rousseau tornou-se auto •, profeta e filósofo, vindo a ser o campeão da nova e interessante doutrina que afirma serem más todas as formas modernas de civilização; a verdade só seria encontrada entre os selvagens ainda não contaminados pela dele­téria infuência das raças brancas; a única esperança de salvação da humanidade estava numa volta à natureza.

Tais palavras deviam interessar a uma nação que (como mos­trei algumas páginas atrás) estava tão inteiramente saturada de prazeres que a vida tinha perdido o gôsto e que, não tendo uma necessidade imediata de trabalhar para viver, daria de bom grado três quartos de sua renda líquida em troca de algumas experiências sensacionais. Uma ligeira vista de olhos pelas obras de Jean Jacques era tão excitantes como um vôo num dêsses balões recém-inventados,

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E logo se viu toda a sociedade francesa voltando à simplicida­de dos primeiros antepassados! — a rainha tirando leite de suas queridas vaquinhas — o rei trabalhando na sua oficina de ferreiro— duquesas ocupadas em fazer queijos e manteiga — pintores fa­mosos retratando a santa inocência de meninas segurando carnei- rinhos com fitas cor-de-rosa atadas ao pescoço!

Nada mais natural do que o herdeiro de uma das maiores pro­priedades francesas se deixar voluntariamente empolgar por essa mania de Bondade e Virtude — de doçura e claridade.

Além disso, Paris toda vivia em constante vibração com as pri­meiras histórias da luta americana pela liberdade. Para o comum dos franceses de então (e de hoje), tudo o que se passava fora das fronteiras de sua terra era infinitamente remoto. Estocolmo estava situado nos confins do mundo habitado. O império da escuridão e dos esquimós. Quanto a Filadélfia, era a última parada antes do planeta Marte.

E agora acontecia o inesperado, o incrível, o impossível. Humil­des fazendeiros, habitantes dos longínquos recessos de um continen­te de existência problemática tinham valentemente dado batalha às forças do todo-poderoso monarca das Ilhas Britânicas, e consegui­ram derrotar os garbosos guerreiros que as compunham. Tal coisa nunca teria sucedido se êsses nobres heróis não tivessem, desde a infância, desdenhado dos luxos e prazeres, origem da decadência e da corrupção da Europa.

O povo francês teve a súbita revelação de que existia realmen­te o paraíso descrito com tan ta eloqüência pelo novo filósofo. Esta­va situado nas margens do Susquehanna e do James River e se cha­mava América. Depois disso, só havia uma coisa a fazer: vestir-se à americana, comer pratos feitos à americana, tomar um ar simpló­rio de “paysan de la forêt de Pennsylvanie” .

No jovem La Fayette, desesperadamente enfadado com a ro­tina do seu regimento de dragões, a doença foi mais grave do que nos outros oficiais seus companheiros. Finalmente, as solicitações foram mais fortes do que ele. Desobedeceu às ordens explícitas do rei (que queria retê-lo no país por mais alguns anos) e fugiu para a Espanha, e de lá se dirigiu à Carolina do Sul.

Nesse tempo o seu inglês ainda não era muito perfeito, e a maior parte das pessoas que o encontraram na estrada de Filadélfia

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espantaram-se das estranhas voltas do lestino que conduzira a êssí pedaço de mato, esse moço francês tãc bonito e tão brilhante. O Congresso também ficou ligeiramente admirado. Uma carta de Silas Deane explicava minuciosamente que M. de La Fayette pertencia a uma família datando dos dias de Júlio César, que era um amável e simpático cavalheiro, e que seu nome no bando do General W ash­ington teria uma enorme repercussão não somente na França, mas em todo o Continente.

Isso tudo soava muito bem, mas quase todos os navios chega­dos aos portos americanos traziam uma leva de oficiais europeus famintos que contavam maravilhosas histórias de suas proezas nas batalhas, exibiam condecorações recebidas de doze soberanos dife­rentes, e, escudados nas suas reputações, pediam para serem feitos brigadeiros-generais ou almirantes, com soldos proporcionais a essas patentes.

A princípio o Congresso tinha efetivamente aproveitado alguns dêsses audazes fanfarrões. Mas todos se haviam revelado incapazes. E todo homem chegado à capital nacional com uma espada dada pe­lo Emir de Podolia ou uma caixa de rapé que o imperador de K athay lhe oferecera cm recompensa de seus inestimáveis serviços tornava-se imediatamente suspeito.

O jovem La Fayette, porém, convenceu aos que o hospedavam da pureza de suas intenções. Vinha estritamente como voluntário e não aceitaria um pêni pelos seus serviços. Isso chamou a atenção do Congresso, e, a tr in ta e um de julho de 1777, o Marquês de La Fayette, “em consideração ao seu zêlo, à sua ilustre família e posi­ção”, era feito major-general do exército dos Estados-Unidos. ?i j

No dia seguinte foi apresentado a Washington.No primeiro momento o comandante em chefe ficou embaraça­

do, sem saber o que fazer dêsse major ie dezenove anos. Evidente­mente, não podia pedir aos seus veteranos montanheses que tomas­sem êsse menino a sério. Mas logo começou a apreciar as altas qua­lidades do jovem aristocrata francês, e a perceber que um homem capaz de deixar a mulher, o filho, o país e alguns milhões de francos anuais por um ideal não podia ser urr caráter banal.

Seria absurdo esperar que um segundo-tenente de dragões, ha­bituado a uma pequena guarnição européia, se transformasse do dia para a noite num grande estrategista capaz de conduzir uma cam­

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panha no deserto. Mas isso não era necessário. O grande valor de La Fayette era no terreno moral. Sua presença punha em moda a cau­sa americana. Aos olhos da aristocracia européia (ainda o elemento preponderante em todos os países do velho continente) a Revolu­ção estava “lançada”.

Desde então, outros distintos estrangeiros, militares leais, com longa experiência da arte de guerra, começaram a se preocupar com essa estranha luta desigual que se desenrolava no outro lado do m undo. Um antigo general de Frederico o Grande, o prussiano B a ­rão von Steuben, tornou-se o instrutor das tropas americanas c não lhes deu sossêgo enquanto não deixaram de ser um bando informe para se tornarem um exército.

Um outro alemão, Johann Kalb (mais conhecido como Barão Jean de Kalb), que tinha feito a viagem com La Fayette e tam bém fora feito major-general, prestou valiosíssimos serviços como orga­nizador e pagou com a vida o seu entusiasmo quando as suas tro­pas novatas, desorientadas, debandaram, deixando-o à mercê dos regulares de Cornwallis.

Enquanto isso, Kosciusko e o Conde Pulaski acrescentavam o ímpeto generoso da bravura polonesa às operações em redor de N o ­va York e em frente a de Savannah.

Mais outros valorosos aliados se apressavam a socorrer a boa causa. As curiosas idéias novas de Rousseau, forçadas pelas doutri­nas de liberdade e igualdade reunidas na famosa Enciclopédia dc Diderot e seus amigos, penetravam em todos os cantos da Europa. N a Holanda tinham provocado a fundação de um partido político que pretendia mudar o govêrno oligárquico do país em democracia. Quando o Rei George I I I pediu à República que lhe cedesse dois re­gimentos escoceses que desde os tempos da revolução contra a Es­panha tinham estado a serviço dos flamengos, a oposição combateu tão àsperamente o projeto que os Estados Gerais foram obrigados a recusar o pedido de Sua Majestade.

Um pouco mais tarde, a tradução de um panfleto intitulado Senso Comum, obra de um inglês desconhecido, Tom Paine, escrita para defender os princípios da revolução americana, forçou o minis­tro inglês em Haia a manifestar sua dolorosa surprêsa diante dc tão inequívoca expressão de pró-americanismo.

Foi nesse momento que os agentes do Congresso procuraram

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os comerciantes de Amsterdam, sonda ido-os discretamente sôbre as possibilidades de um empréstimo finsnceiro e de uma aliança co­mercial. Os mercadores aceitaram o p ano em princípio, mas, sendo neutro o seu país, pediram que tôdas as negociações tivessem lugar na Europa e fossem mantidas no mais absoluto segredo. Os ameri­canos concordaram, e em breve os acordos preliminares foram esta­belecidos e enviados para Filadélfia, a fim de serem aprovados. I n ­felizmente, êsse documento altamente comprometedor caiu nas mãos dos ingleses quando capturaram Henrique Laurens que se dirigia a Amsterdam, levando-o juntam ente com um empréstimo de dez mi­lhões de dólares, sem ter tomado a rrenor precaução para resguar­dar do inimigo a sua mala de correspondência diplomática.

Em Londres foi grande o desagr; do causado por êsses lamen­táveis incidentes. Para piorar ainda as coisas, algum tempo antes, já a revolução americana entrara arrogantemente num pôrto holan­dês, quando João Paulo Jones, um antigo marinheiro inglês que se tornara um famoso capitão americano, conduziu a sua prêsa, o Se- raps, até à baía de Texel. Em vez de prender o “pira ta” como su­gerira o ministro inglês em Haia, os ho andeses transformaram-no em herói nacional, e onde quer que se mostrasse com a sua heterogênea tiipulação (dos duzentos e vinte e se:e marinheiros que comanda­va, apenas setenta e nove eram americanos), era recebido com rui­dosas expressões de entusiasmo popular.

A descoberta de entendimentos secretos para um empréstimo aos rebeldes seguindo-se à recusa do govêrno holandês (por pressão dos partidários dos americanos) de devolver o Serapis aos seus ver­dadeiros proprietários, levou a Inglaterra a declarar guerra à Ho­landa.

Nenhuma tropa holandesa atravessou o oceano durante a luta para se jun tar aos americanos e franceses, mas a esquadra holandesa prendeu no mar do Norte boa parte las forças navais inglêsas; e, o que pesou mais no êxito da revoluç ío, as vastas riquezas da ve­lha República foram postas à disposição da sua jovem irmã no mo­mento em que as finanças dos Estados-Unidos estavam num ver­dadeiro caos. A falta de um govêrno central forte tinha tornado im­possível a elaboração de um sistema econômico que permitisse sus­tentar-se a revolução. Dos treze Estados, muitos já haviam feito bancarrota. O dólar não valia o seu pêso em papel. Os soldados vi-

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A emboscada

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viam em constantes ameaças de motins, por falta dos recursos indis­pensáveis à vida. A França prometera montanhas de ouro, mas o seu tesouro estava esgotado e os ministros do Rei Luís, por mais que fizessem, não conseguiam equilibrar as despesas e a receita. As­sim, os empréstimos conseguidos por Franklin e depois por Adams, eram dados sob a forma de ordens para o fornecimento de víveres pelas possessões francesas, mas nunca em dinheiro. Os sete milhões de dólares em moeda levantados na República Holandesa foram por­tanto providenciais.

Os banqueiros que financiaram a transação não foram movi­dos por um generoso devotamento à causa americana. Eram homens de negócio, e como tais acreditavam no sentimentalismo, mas não nos sentimentos. Esperavam que, quando volvesse a paz, seu país tirasse alguns benefícios da passada generosidade e o governo ame­ricano mostrasse a sua gratidão concluindo com a República Holan­desa um vantajoso tra tado comercial. Nesse ponto ficaram amar­gamente desapontados, mas, isso, ninguém o poderia prever. Os carregamentos de ouro enviados diretamente da Holanda ao Gene- gal George Washington, Esq. (e não ao Congresso) atravessaram in­cólumes o oceano e, em várias ocasiões, impediram a volta dessas ameaças de rebeldia tão comuns nos últimos quatro anos, em que a indiferença e a negligência do Congresso faziam às vêzes W ash­ington temer de ter de combater sozinho pela independência.

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CAPÍTULO XXX

A MÃE-PÁTRIA PROCURA TIRAR O MELHOR PARTIDO DE UM MAUNEGOCIO E OS HOMENS DA FRONTEIRA APROVEITAM-SE

DE UMA BOA TRANSAÇÃO

Parecia um xeque-mate. Verdadeiramente o parecia. A Ingla­terra, em guerra com a França, a Holanda, a Espanha (porque a> Espanha se juntara aos aliados esperando recuperar Gibraltar e suas ilhas do M editerrâneo), tinha muito o que fazer na Europa. Sua impossível indiferença pelos direites das nações neutras em alto mar forçara vários dos seus mais podírosos competidores a formar uma aliança protetora, a chamada “reu traüdade arm ada”, e a se fazerem os campeões dêsse vago código moral conhecido como Lei Internacional.

Mas, após três anos de guerra, c mundo começou a perceber que os americanos estavam sendo auxiliados por um aliado que in­variavelmente acarreta desastres quardo toma parte num conflito militar: O Brigadeiro — General Dist incia.

Os romanos, segundo consta, fora n o único povo capaz de lu­tar contra êsse infatigável adversário.

Os chefes militares da Idade Média eram sempre derrotados quando êsse terrível guerreiro, acompanhado de seus impiedosos associados, os famosos capitães Milhas e Quilômetros, entravam em cena. E agora o velho lutador Distârcia tinha-se juntado ao es ta ­do-maior de W ashington. Depois disso, embora os ingleses fizessem os maiores esforços, embora lutassem valentemente, viam-se sempre sobrepujados e dominados nos campos de batalha. Até então, cm tôdas as suas guerras, tinham-se valido de sua marinha. Mas os n a ­vios seriam de pouca utilidade nas montanhas Alleghanys, e nenhum vaso de guerra poderia transpor as “terras submersas” do Illinois*

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O trabalho de infantaria devia ser um fator decisivo nesse conflito; e a marcha a pé, depois de dois ou três anos, vai-se tornando mo­nótona e solapa a disciplina das melhores tropas.

Até o animoso Lord N orth começou a falar em acordo, e su­geriu que a mãe-pátria e seus filhos transviados deviam esquccer o passado e fazer vida nova com bases novas e mais sólidas.

Devemos confessar — desde que procuramos dizer a verdade— que êsse alvitre não encontrou ouvidos moucos. O povo ameri­cano começava a sentir os efeitos de três anos de estagnação co­mercial. Suas finanças estavam numa desordem desesperadora, e o Congresso era muito fraco ou muito ineficaz para reunir todas a* múltiplas forças da nação, sem as quais seria impossível a vitória definitiva.

Os legalistas (êles ainda formavam uma discreta porém larg.i parte da população) estavam prontos a atender aos doces convites de paz e boa vontade que lhes chegavam da Inglaterra. Em breve, uma onda de derrotismo envolveu a nação. Um general americano foi até tentar um golpe que deveria conduzir a revolução ao seu fim lógico c fazendo do Rei George o salvador da América. Êle pró­prio (mediante rccompensa) seria o herói do movimento. Felizmen­te, o oficial inglês encarregado das negociações caiu nas mãos de um pequeno grupo de voluntários que sentiram confusamente algu­ma coisa de suspeito nos misteriosos papéis encontrados nas botas do prisioneiro, e o entregaram a um oficial do exército regular.

Essa questão, dolorosa e humilhante tornou-se um fator deci­sivo na História dos Estados-Unidos. Foi pouco depois que o Ge­neral Distância começou a fazer sentir seriamente a sua presença, e, em toda a frente, as tropas inglesas de desembarque começaram a marchar lentamente na direção das costas do Atlântico.

Seus progressos, porém, eram retardados pelas imensas levas de fugitivos que os acompanhavam procurando a sua proteção. Os le­galistas começavam a perceber que o jogo estava terminado. Tinham «postado no cavalo mais fraco; ou melhor, numa luta entre uma águia e um leão, tomaram o partido do quadrúpede e o pobre ani­mal estava procurando se esgueirar para a sua toca. Todos os bens que podiam ser transportados, arrumavam-nos em comboios que partiam na direção de Nova Escócia ou Brunswick. Mas deixavam para trás suas casas, seus jardins, suas fazendas e todos os bens vin­

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culados, e isso tudo ia cair nas mãos dos vencedores vindo do oeste do país. Em muitos estados parece que nada menos que a metade dos bens imóveis mudaram de possuidores entre 1775 e 1778. Os novos proprietários (se assim se pode chamar quem adquire rique­zas dessa maneira) pertenciam em sua maioria à classe dos fazen­deiros pobres da fronteira, e a sua súbita fortuna fortaleceu muito o prestígio dos democratas, ao passo que a partida forçada dos lega­listas enfraquecia a causa dos aristocratis.

Mas não foi só assim que os democratas aumentaram seu po­der sôbre a nação. Tinham agora um i oportunidade para discutir a quem deveria pertencer o grande deserto da fronteira oeste. Os franceses partiram, mas suas fortificações caíram em mãos dos in­gleses, o que era também muito ruim. Porque os novos ingleses, os novos yorkinos, os virginianos e os pensilvanianos que tinham diri­gido a revolução pareciam absolutamente indiferentes quanto ao futuro dos agricultores das fronteiras, que tinham sido obrigados a se haver diretamente com as guarnições inglesas. O seu sentimento em relação a esses distantes compatriotas eram semelhantes aos nossos em relação à gente de Idaho e de Wyoming. Quando lemos nos jornais que sofreram uma inundação ou um tremor de terra, ficamos muito pesarosos e dizemos: £ preciso fazer alguma coisa por êsses coitados!” Algumas vêzes chegamos mesmo a enviar-lhes um cheque. Mas vivem tão longe que o seu sofrimento raramente provoca alguma reação mais séria do que um interesse amável e in­teiramente convencional e uma carta de condolências.

Os pioneiros sabiam disso.Até então tinham vivido dominados pelos reais comissários

franceses, pelos padres jesuítas ou pelos oficiais das forças de Sua Majestade. Os comissionários reais e cs jesuítas já os haviam dei­xado. Restavam as tropas do Rei George. Quando a guerra se foi aproximando do fim, os postos avançados foram sendo recolhidos e

afinal o povo da fronteira foi abandonado aos seus próprios recursos.Foi um triste dia para os nativos das regiões selvagens aquê-

le em que se viram sós. Guiados por um obscuro instinto de preser-r vação, êsses índios se tinham pôsto ao lado dos inglêses, e, abarro- tados de aguardente inglêsa, tornaram-se culpados de atrocidades abomináveis contra indefesos fazendeiros americanos.

Agora, chegava o momento do ajuste de contas.

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Uma depois da outra, as diversas tribos de índios, atacadas, eram chacinadas, ou obrigadas a se refugiarem mais para longe, na direção do oeste. Os grupos mais civilizados, que viviam nas m a­tas ao norte de Nova York e haviam constituído um govêrno fe­deral, citado por Franklin no Congresso como um modelo digno de ser imitado pelos Estados-Unidos, esboçaram uma resistência. Mas foram completamente derrotados por uma grande força americana comandada por João Sullivan, de New Hampshire; para tornar de­finitiva a vitória, Sullivan resolveu destruir todas as árvores frutí­feras e tôdas as roças de milho, a fim de que os sobreviventes mor­ressem de fome. M uita gente protestou contra tão bárbara severi­dade, mas o Congresso recebeu Sullivan como um herói e o agraciou com um voto de reconhecimento.

Êsse foi o fim das ameaças dos índios nos Estados-Unidos, e desde êsse momento não houve mais perigo de um ataque da re ta­guarda. Mas, a leste, também os americanos eram bem sucedidos. Soldados franceses, instrutores alemães, voluntários poloneses e di­nheiro holandês auxiliados e animados por nosso velho amigo o Ge­neral Distância estavam gradualmente rechaçando os regimentos veteranos de Sua M ajestade o Rei George.

Em 1781 os inglêses tentaram seu último golpe estratégico. A sua campanha no norte acabara desastrosamente com a evacuação de Boston. Seus esforços para seperar o leste do este pela ocupa­ção do vale do Hudson River terminara com a derrota de Burgoyne em Saratoga. Agora pretendiam reunir suas tropas no sul e depois jogá-las sobre o norte.

Essa expedição teve um fim infeliz com a rendição de Lord Cornwallis e de todo o seu exército em Yorktown, a dezenove de outubro de 1781.

Quando as notícias do desastre chegaram a Londres, o Rei Geor­ge disse que “isso não era nada”, e acrescentou que não permitiria a ninguém na Inglaterra pensar que mesmo o maior dos desastres poderia causar a menor alteração nos princípios de conduta que o haviam guiado no passado. Mas Lord North ficou sério durante o tempo suficiente para murmurar com profunda tristeza que isso era o fim. Em conseqüência, resignou o cargo e deixou ao seu sucessor, o Marquês de Rockingham, e àqueles whigs que havia afastado do

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poder durante seis anos, o trabalho de negociar a cessação das hos­tilidades.

A conferência de paz, aberta em Paris na primavera de 1782, durou cêrca de dois anos e tornou-se um debate geográfico e eco­nômico onde Benjamin Franklin e John Adams se mostraram muito 6uperiores aos seus contendores.

Finalmente, a três de setembro de 1785 o tra tado de paz entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos da América foi assinado com tcdas as formalidades necessárias.

Dois anos depois Adams era nomeado ministro na corte de St. James.

O representante da nova República, no momento de ser apre­sentado ao rei, portou-se com essa desgraciosa rigidez de espírito e de maneiras que na sua terra era conhecida (e respeitada) como uma manifestação de honestidade.

Mas Sua Majestade proferiu uma saudação muito bem feita e oportuna, que merece ser lembrada.

“Sir”, disse ele, “desejo que acrediteis (e espero que minhas pa­lavras sejam repetidas aos vossos compatriotas na América) que nada fiz, durante a última luta, senão aquilo a que me julgava obri­gado pelos deveres que tenho para com o meu povo. Serei muito franco convosco. Fui o último a consentir na separação. M as ten­do-se dado a separação e se havendo tornado irremediável, eu sem­pre disse, como o afirmo agora, que seria o primeiro a procurar a amizade dos Estados-Unidos como potência independente.

Enfim a mãe-pátria havia aceitado o inevitável.

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CAPÍTULO XXXI

O CONVÊNIO QUE SALVA UMA NAÇAO E FUNDA UM IM PÉR IO

A América estava livre, mas, como disse o profundo filósofo empregado a quinze dólares por semana, o notável Rube Goldberg: "Agora que o povo dos Estados Unidos da América obteve a liber­dade, que fará dela”?

Receio que a pergunta não tenha parecido nada engraçada a homens como Adams, que receavam uma explosão de anarquia, ou a Washington, que se viu obrigado a agir como policial, e cuja gran­de influência pessoal salvou sozinha o país do perigo dos levantes.

Porque, como todos sabem, as revoluções são movimentos ne­gativos. Podem ser necessárias. Podem mesmo ser desejáveis. Mas tambóni, pela própria natureza de seus fins, devem ser negativas, como uma operação cirúrgica ou como a destruição de um velho edifício imprestável.

Até então os rebeldes americanos estavam congregados em tor­no de um ideal comum que consistia sobretudo em coisas que não queriam fazer. Por exemplo, não queriam pagar impostos ao go­verno inglês. Não queriam que fôssem nomeados para a América bispos da Igreja oficial. Não queriam obedecer ao rei quando este lhes vedava o acesso a certas regiões do oeste que deviam ser re­servadas aos índios. Não admitiam que o Parlamento taxasse seu chá, seus vidros e suas tintas. Estavam sempre a não querer isto cu aquilo.

Mas agora o período do "não pode” estava terminado.' A era muito menos interessante do “é preciso” começava.

E isso, como os rebeldes vitoriosos deviam logo descobrir, eram coisas muito diferentes.

Em primeiro lugar, tinham deixado de ser súditos de uma co­roa estrangeira. Eram os cidadãos de sua própria República.

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O C aste la

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Mas como devia ser governada essa república — que espécie de república seria — como conseguiria o dinheiro suficiente para manter um exército independente, uma esquadra, um corpo diplo­mático, um serviço postal, um departamento de saúde e como re­solveria alguns milhares de outros problemas?

Até bem pouco tempo atrás os americanos não conheciam a significação da palavra “déficit” . O governo de Sua Majestade se encarregara gentilmente de minúcias, como derrotar os franceses,, manter os índios afastados das pequenas fazendas dos brancos, as­segurar a lei e a ordem e pagar a manutenção das forças armadas. Mas isso se dera num passado que não voltaria. E os americanos começaram (sem grandes demonstrações de ardor) a indagar de si para si e uns aos outros: “Que forma de governo devemos adotar?”

E logo a velha diferença de opiniões entre as cidades e o cam­po, entre o litoral e o interior começou a se fazer sentir.

Em nome dos democratas, Mr. Thomas Pain pugnava por uma “Res Publica” — um verdadeiro “Estado Comum” — um asilo para tôda a humanidade — uma confederação de pequenos Esta­dos soberanos e independentes.

Os aristocratas não apreciavam essa idéia. Uma confederação livre de pequenos estados soberanos e independentes era muito bo­nita no papel. Mas, como podia uma nação se afirmar neste mundo perverso entre todos, sem a fôrça com F maiúsculo? E que signifi­ca Fôrça sem um governo nacional forte? Não estavam as diferen­tes colônias sofrendo ainda da sua incapacidade para fazer os seus direitos respeitados pelo resto do mundo?

Havia o problema das tarifas inglesas. Depois do tratado de Paris, a mãe-pátria começara a tratar seus antigos filhos exatamen­te como tratava o resto do mundo, e exigia que todos os artigos americanos chegados aos seus portos pagassem direitos. Os ameri­canos gostariam de pagar na mesma moeda. Mas como conseguir isso?

Votando treze leis para regularizar as tarifas nos treze peque­nos Estados? Era uma idéia absurda.

Havia a questão daqueles milhões de dólares-papel com que as diferentes legislaturas estaduais inundaram o país, e que em vá­rios pontos causaram uma completa suspensão do crédito e do co­mércio. Podia-se esperar que essas mesmas legislaturas estaduais re-

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■colhessem o papel desvalorizado e vcltassem aos padrões coloniais de ouro e prata? Evidentemente não. Isso iria contra os interesses de muitos politicoides.

Havia os vales do exército, que soldados e oficiais famintos ha­viam assinado premidos pela necessidtde de obter munições, víveres ou roupa. Que fariam com esses pedrços de papel os pobres fazen­deiros e comerciantes? Deviam apresentá-los ao tesouro da Pensil- vânia ou Delaware? Isso na verdade adiantaria muito!

Essas comunidades estavam falidas havia anos e suas notas promissórias eram empregadas como papel de parede ou de rascunho.

Havia as dificuldades intermináveis do comércio interestadual. Podia Nova York lançar um imposto sôbre todos os artigos proce­dentes de Nova Jersey e vice-versa?

Os artigos da Confederação de 1777 ainda mantinham unidos os diferentes Estados numa espécie de Liga, e as potências euro­péias, cujos interêsses assim determinavam, podiam (e algumas vêzes o fizeram) reconhecer essa Liga de Estados Independentes como uma nação organizada. Mas o entusiasmo popular pela causa americana seguira o seu curso normal. A guerra estava terminada e os credores estrangeiros reclamavam o seu capital, ou ao menos os juros dele.

Esperava-se obter algum dinheiio com a venda do vasto terri­tório ocidental que o tratado de Paris pusera à disposição dos ame­ricanos e que (assim se imaginava) poderia ser convertido em no­vos Estados.

Mas quem manejaria êsse dinheiro?

E assim por diante até que mesmo os mais ardentes entusias­tas de uma pura democracia entendessem que algum passo definiti­vo devia ser dado, e dado rapidamente.

Uma primeira convenção, reun da em Anápolis para deliberar sôbre a pendência tarifária entre Maryland e Virgínia, não conse­guiu nada.

Somente cinco Estados tomaram o trabalho de enviar delegados.Após algumas fracas discussões sôbre a necessidade de um go­

verno central forte, cada um foi de novo para sua casa. Mas Ha­milton, antigo auxiliar de Washington e adepto convicto da con­cepção aristocrática de governo, estivera entre os presentes e com

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sua grande inteligência viu que era chegado o momento de uma mudança radical, sem o que tudo estaria perdido.

E assim, alguns discretos cavalheiros se encontraram nos apo­sentos retirados de discretas hospedarias, cartas foram trocadas, e •como resultado, anunciou-se para maio do próximo ano uma Con­venção oficial em Filadélfia.

A princípio apenas sete Estados se fizeram representar, mns de­pois os outros os foram imitando (a exceção de Rhode hland). A primeiro de junho a assembléia pôde afinal ser instalada.

Nessa hora de crise (o país estivera sem governo central du­rante quase doze anos) os diferentes Estados esqueceram-se de suas antigas desavenças e rivalidades e enviaram os seus melhores cida­dãos, sem manietá-los, com muitas instruções.

A convenção discutiu de portas fechadas. Mas pelo relatório do? debates, impresso em 1827, e por várias memórias particulares publicadas depois, podemos saber o que se passou durante êsses qua­tro meses onde se jogaram os destinos da nossa terra. Os democra­tas extremados não estavam presentes, assim como os aristocratas intolerantes. A maioria dos cinqüenta e cinco delegados era com­posta de homens sensatamente moderados, advogados, comercian­tes e soldados que haviam pago o seu tributo durante os anos pe­nosos da revolta, que desejavam uma República sensata e uma sensata forma de governo, e não tinham a menor vontade de fazer novas experiências na arte de governar.

Com bons homens de negócios sabiam que nunca nenhuma comissão fazia nada a não ser que fôsse composta de três membros, dos quais um estivesse doente e outro ausente. Grande parte do trabalho de elaborar as bases indispensáveis foi, portanto, confiada a um certo James Madison de King George County, Virgínia, au­tor de um luminoso panfleto intitulado Os Vícios do Sistema Político dos Estados-Unidos. Êsse Mr. Madison tomara parte proeminente na preparação da convenção de Anápolis e chegara a Filadélfia com um plano tão exeqüível e tão realista de constituição (o chamado Plano da Virgínia), que foi imediatamente combatido como um ini­migo da Democracia pelos representantes dos Estados menores que encaravam tôda sugestão de centralização como um ataque aos seus direitos. Em resposta, êles apresentaram seu próprio plano (o chamado Plano de Nova Jersey), que os representantes dos gran­

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des Estados denunciaram como uma tentativa de escravização das grandes Províncias aos interesses das pequenas.

Uma verdadeira crise se desenhava. Parecia que os delegados dos Estados pequenos iam obstruir a convenção.

Mas Sua Excelência, o General Washington, estava na presi­dência da assembléia, e ninguém ousaria obstruir uma convenção com Sua Excelência, o General Washington, na presidência. Nãol

Isso não era possível!E havia ainda o Dr. Franklin, então um homem muito velho

mas muito judicioso e inteligente, que sorria agradàvelmente quan­do as coisas iam bem, contava histórias engraçadas quando os de­bates se tornavam calorosos demais. I)e vez em quando convidava um deputado mais exaltado para uma conversa na pequena ante- sala que lhe fôra reservada até que o visse disposto a sorrir de no­vo, e assim puderam prosseguir os trabalhos da Constituinte.

De qualquer modo — e isso é o mais importante — a conven­ção não foi interrompida. Foi adotado um acordo proposto pelo delegado de Connecticut, e em setembro de 1787 a Constituição dos Estados Unidos da América estava pronta para ser submetida ao público.

A ratificação pelos diferentes Estados se fêz muito lentamente, acompanhada pelas discussões amargis que a convenção a tanto custo conseguira evitar.

Os “malnascidos” achavam-se prejudicados pelos “bem-nasci­dos” ; diziam que o Presidente da República seria simplesmente um novo monarca; que o Congresso, ideado pela Constituição, se tor­naria um outro Parlamento britânico, que poderia governar o país sem levar em consideração os direitos soberanos dos Estados pe* quenos.

Os “bem-nascidos”, ao contrário, sustentavam que êsses argu­mentos eram banais expressões do espírito de anarquia; achavam que o novo govêrno do país estava tão harmoniosamente equilibra­do que os poderes executivo, legislativo e judiciário não poderiam nunca usurpar atribuições que não lhes pertencessem. E publica­ram uma série de artigos posteriormente reunidos num volume cha­mado Federalista, verdadeiro manual para quem quer estudar a Constituição sem mais preconceitos pessoais do que os indispensá­veis.

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Nos Estados em que fora sempre mais acerba a luta entre de­mocratas e aristocratas, a ratificação deu lugar a novas explosões do velho conflito, e em muitos deles o número dos “sim” foi apenas ligeiramente superior ao dos "não” (187 contra 168, em Massa- chusetts), mas foram, gradativamente, dando a sua aprovação e até Rhode Island, que se tinha recusado a tomar parte na conven­ção, arrependeu-se do que fizera e preferiu ser uma parte dos Es­tados-Unidos a se erigir em nação independente.

Depois desses dias memoráveis, escreveu-se e falou-se tanto so­bre a Constituição, ocuparam-se dela tão doutas pessoas que estou tendo a impressão de ser um menino que quisesse ensinar a Fritz Kreisler a tocar violino. Não se pode, porém, querer publicar um livro sobre a América sem dedicar algumas palavras a esse assunto.

A Constituição, pelo que vejo, é um desses monumentos (como o Fausto de Goethe, a Divina Comédia de Dante ou o Paraíso Per­dido de Milton) que são tanto mais louvados quanto menos lidos.

Todo o mundo diz de vez em quando: “Oh, a Constituição!” Mas muito poucos entre esses entusiastas tomaram o trabalho de )ê-la sèriamente. As crianças das escolas estão naturalmente exce­tuadas. São forçadas a lê-la, e o resultado é que a maior parte a detesta e considera tôda a obra como um tenebroso trecho de prosa, legítimo companheiro dessa vasta literatura que se tornou odiosa porque faz parte das “leituras obrigatórias” dos nossos colégios e escolas superiores.

Mas, na realidade, é um dos mais interessantes documentos dês- ses últimos duzentos anos. Como foi o resultado de um convênio, mostra poucos sinais de ter sido divinamente inspirado. Mas um conjunto de leis do governo que consegue sobreviver às grandes re­viravoltas científicas, econômicas e políticas dos últimos cento e quarenta anos, que é eficiente em 1927 como o era em 1827, um decálogo político de tanta tenacidade de vida não é certamente uma tentativa banal e comum de organização estadual.

As constituições atuais não são nem muito raras nem muito importantes. À exceção da Inglaterra, todos os países possuem ago­ra uma ou várias constituições. Mas creio que somos a única nação favorecida com uma constituição realmente eficaz.

E êsse resultado é devido em primeiro lugar ao profundo bom tenso dos homens que se reuniram em Filadélfia em 1787.

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No momento preciso em que parecia que a Nau do Estado, re­centemente lançada ao mar, ia esbarrar nos rochedos do partidaris­mo e pereccr miseravelmente nas ondas turbulentas da anarquia, Madison e seus colegas vieram em seu auxílio, corrigiram o com­passo e presentearam a tripulação com um excelente conjunto de cartas e instruções para a navegação; o pequeno navio foi salvo da destruição e pôde continuar a sua viagem para os infinitos marc* do futuro com todas as garantias de uma jornada proveitosa.

A quatro de março de 1789, o primeiro Congresso eleito se­gundo as novas leis se reunia cm Nova York. Três semanas depois, na escadaria do Federal Hall, entre o regozijo de todo o país, Sua Excelência, o General George Washington, era proclamado Presiden­te dos Estados Unidos da América.

E ainda algumas semanas mais tarde, o bom Rei Luís de Fran­ça, mostrava-se desconsolado na sala de banquetes do palácio de Versalhes e, em meio ao profundo silêncio de seus leais súditos, pe­dia aos representantes da nação franccsa que salvassem da ruína a pátria comum.

Êste mundo é misterioso, e lança mão de tôda a espécie de meios e de homens para poder caminhar.

Os Adams, os La Fa}*ettes, os Pranklins, os Washingtons, o* Rousseaus, os Hamiltons, os Jeffersons, os Jones e os descendentes de Adhémar de Bourbon, com seus grandes narizes aquilinos, fa­zem suas reverências, precipitam-se sôbre o palco, representam cur­tos papéis e depois somem-se — Clio mete-os na sua velha e se­gura caixa.

Em seguida, essa paciente deusa prepara calmamente a cena para o ato seguinte, e nos apresenta uma comédia, ou, por vêzes, uma tragédia; assistimos ao espetáculo com lágrimas, ou com risos, sempre convencidos de que nunca ninguém vira uma representação tão admirável como a que presenciamos.

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CAPÍTULO XXXII

M R. ALEXANDRE HAM ILTON, DA ILHA DE NEVIS (B. W. I.), PÕE © PAIS EM SÓLIDAS BASES COM ERCIAIS, E GEORGE W ASHINGTON.

ESQ. VOLTA ENVELHEC ID O E T R IST E PARA MOUNT VERNON

A palavra grega “aristos” significa “o melhor”, a palavra grega “kratia” significa “governo”. A aristocracia deve, portanto, ser o predomínio dos melhores”, ou como Alexandre Hamilton exprimiu em termos que soaram agradàvelmente aos seus amigos políticos, “aristocracia quer dizer o governo dos sábios, dos ricos e dos bons’’.

A aristocracia sempre foi um nobre ideal. Na verdade, seria difícil imaginar alguma coisa superior ao “predomínio dos melhores”.

Só há um obstáculo. E ’ freqüentemente árduo descobrir exata­mente quais são os mais sábios e os melhores (os mais ricos encon­tram-se fácilmente) de uma determinada coletividade. Mas em pe­ríodos de grandes aperturas, quando as emoções se tornam selva­gens e a oratoria tolda momentáneamente o raciocinio dos homens mais sensatos, tais máximas ou as que lhes são contrárias, são leva- ta s a sério e fazem parte do código etico e moral da época.

Nós, embora tenhamos aceitado a democracia como o melhor ce todos os regimes políticos, podemos volver os olhos para csse período da nossa Historia sem nos apaixonarmos, e estudar sem to­mar partido os acontecimentos de então. E assim se torna claro que cs homens que fizeram a Constituição, buscaram por todos os meios elaborar um sistema tão semelhante quanto possível a uma monar­quia eletiva, e tomaram tôdas as precauções para que o cargo de soberano temporário não caísse em mãos de pessoas indignas de tão elevada posição.

Além disso, tomaram muito cuidado para impedir que o povo, a quem amavam em teoria mas desprezavam c odiavam na prática*

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pudesse exercer alguma influência na escolha do executivo. Não .fi­zeram nesse sentido nenhuma declaração explícita, mas confiaram a còisa à discreção das diferentes legislaturas estaduais, que deviam procurar meios e modos de conseguir um pequeno número de elei- toreç sem dar muito poder às classes mais baixas. Êsses eleitores, cidajdãos altamente respeitáveis, deviam reunir-se e, sem estarem coibidos por muitas instruções dos seus constituintes, deviam dizèr. “N a! nossa opinião, o honrado Sr. Fulano de Tal, de tal lugar, éi o horrijem mais indicado para a presidência. Por isso pedimos-lhe que se ponha à frente da Nação durante os próximos quatro anos.”

;Em 1789, a escolha foi, naturalmente, unânime. Até as árvor*es e osj arbustos aclamavam o nome de “George Washington”!

:Mas nenhum homem pode atender sozinho a todos os porme­nores da administração de um povo de quase quatro milhões de almás. Precisa de auxiliares.

Washington pôs muito cuidado e critério na escolha de seus ministros, não se deixando influenciar por preferências pessoais. Johr; Adams, eleito vice-presidente, estava fora de questão. Mas Thojnas Jefferson, que discordava de seu vizinho de Fairfaix County cm todos os assuntos, exceto na devoção à pátria comum, voltara ¿e sua missão à França e foi feito Secretário de Estado, enquanto Alexandre Hamilton recebia a pior das heranças deixadas por ura Congresso Continental incompetente, o Tesouro Nacional comple­tamente desorganizado.

Hamilton era o homem indicado para essa situação. Quando, ainda quase menino, o jovem Alexandre ficou encarregado, em St. Croix, onde residia com uns parentes, de dirigir uma próspera em- prêszf comercial durante a ausência temporária do seu patrão, de­sempenhou-se tão bem da missão que chamou a atenção de algumas pessoas caridosas (que não eram seus parentes), e estas lhe forneceram dinheiro para se matricular na Universidade de Colúmbia, em No­va York. Sem essa boa fortuna (boa fortuna trazida por sua capa­cidade) seria difícil dizer o que teria sido feito dêle. Sua mãe, de erigem francesa, casara-se em primeiras núpcias com um agricultor <Ie St. Croix; depois que o deixou, passou a viver maritalmente com um escocês de nome James Hamilton, de St. Christopher, com quem se mudou para a ilha de Nevis, onde nasceram Alexandre e seu ir­mão Tames.

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Comerciante estrangeiro

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Mas, em 1768, sua mãe morreu, seu pai faliu, e o menino, co­mo já dissemos, foi abandonado quase completamente a si mesmo.

Estivera muito pouco tempo na Universidade de Colúmbia quando rebentou a revolução. Ofereceu-se como voluntário, e mos­trou tal aptidão para a vida militar que em breve era feito tenente- coronel do Estado-Maior de Washington, e foi, durante quatro anos, o secretário particular e o principal auxiliar de seu chefe.

Casou-se em 1780 cm uma das velhas famílias holandesas do Estado de Nova York, e começou a trabalhar como advogado e a tentar salvar a sociedade da anarquia organizada, tão cara aos de­mocratas arraigados. Sentia-se muito a gôsto para tomar tal atitu­de, pois era cie próprio um imigrante. Estava portanto livre de compromissos com qualquer terra ou Estado, compromissos que tornavam a maior parte dos seus contemporâneos antes tennesseea- nos ou rhode-islandeses do que americanos.

O que então se chamava “fidelidade instintiva”, cie o deveria sentir por uma pequena ilha vulcânica das índias Ocidentais, que deixara aos quinze anos e só tinha motivos para detestar.

Conseqüentemente, não estava afligido dessa terrível angústia do “patriotismo local”, c era-lhe iacil considerar os Estados-Unidos como uma nação e não como uma vaga associação de mesquinhos principados independentes, cada um dos quais se considerava um pouco superior aos seus vizinhos.

Alem disso, Hamilton já conhecia alguma coisa do mundo. Uma das coisas que o tinham tornado tão útil a Washington era o fato de falar francês correntemente; por muitos anos esteve metido cm ne­gociações internacionais, e portanto sabia que as relações comerciais ião baseadas no rochedo da confiança mútua que se chama crédito.

Os membros das diversas câmaras estaduais, muitos dos quais eram fazendeiros habituados ao comércio primitivo das trocas, es­queciam-se facilmente dêsse fato que não compreendiam bem. Des­de crianças haviam sido habituados a desprezar os usurários das ci­dades que, de um momento para o outro, poderiam executar uma hipoteca e arruinar uma família. Os métodos atuais de lidar com dinheiro, as letras e cheques eram um mistério para êles, alguma coisa de suspeito, uma invenção de satanás. Naturalmente gosta­vam de ter dinheiro, e muito. Mas desde que os francos franceses e os florins holandeses enviados para a América como parte do em­

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préstimo nacional estivessem em sua possessão e com eles pudessem pagar as dívidas do Exército e da Marinha, o seu interesse cessava. E assim (se me posso permitir um trocadilho banal) cessavam tam­bém os interesses que deviam ser pago.1 aos banqueiros estrangeiros; e estes lamentavam eloqüentemente a sua passada “generosidade”, eomo diziam, e choravam lágrimas arrargas diante de tanta ingra­tidão.

Para sermos justos com esses filhos de Mammom, eles tinham tôda a razão de se sentirem assustados e indignados. Quando Ha­milton assumiu a Secretaria da Fazenda, o país devia setenta e sete milhões de dólares, uma soma enorme para o tempo. A maior parte consistia em vales cujos possuidores er;:m cidadãos americanos. Mas, mesmo assim, devíamos doze milhões aos bancos e governos estran­geiros. E os empréstimos estaduais acrescentavam ainda uns vinte milhões a essa quantia já respeitável.

O dinheiro devido aos americanos foi o que mais dificuldades acarretou. Porque êsses credores, quase todos tangidos por grande necessidade de dinheiro em espécie, venderam seus direitos, pela décima ou undécima parte do seu valor, a especuladores ganan­ciosos.

E se o governo resgatasse essas letras (como tinha tenção de fazê-lo), os especuladores ganhariam rios de dinheiro e os primiti­vos proprietários (que tinham confiado suas economias ao Congres­so, levados pelo mais exaltado e generoso patriotismo) ficariam sem nada.

Imediatamente formaram-se dois partidos. Um apoiava o pla­no de Hamilton que consistia na ap opriação completa de tôda a dívida passiva em pendência. O outro, seguindo a orientação de Jefferson, era contra essa política. A inal chegou-se ao acôrdo ine­vitável, depois da não menos inevitável chicara de café seguindo-se a úm copioso jantar. Jefferson consentiu em aprovar o plano de Hamilton sobre as dívidas, e Hamilton prometeu secundar Jefferson no seu projeto de edificar uma nova capital nas margens do Poto­mac, longe do contágio pernicioso do Leste.

Mas Hamilton não se contentou com êsse primeiro triunfo. En­quanto as finanças dos Estados-Unidos não estivessem asseguradas por uma base sólida e a nova nação não firmasse uma operação eco­nômica vantajosa que se pagasse por seus próprios lucros, a Repú-

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bliça não poderia manter a sua independência. Hamilton (mais eu­ropeu do que americano em tais matérias) não podia conceber um pa¡ís sem um banco nacional. Veneza fora o que fôra graças ao Ban­co di Rialto. 0 govêrno britânico, cm épocas de crise, se valera* do Banco da Inglaterra. A Suécia possuíra o Riksbank desde os rúea- dos do século XVII. De todos os tempos, sempre a Holandês fi­zera suas transações por intermédio do Banco de Amsterdam. Mas osj Estados-Unidos não poderiam ter o seu banco — porque os; fa- zehdeiros, que nunca poderiam entender um organismo comercial miais complicado do que um armazém, e a quem repugnava a idéia d© “tanto dinheiro num lugar só”, eram contra êle.

Isso era um indubitável absurdo. Ji E assim em 1792, Hamilton, que era a cabeça e a maior f<?rça

do; gabinete de Washington, conseguiu seu banco, e o instalou cm Filadélfia, com um capital inicial muito modesto, mas suficiente'pa­ra as necessidades imediatas.

| Mas um banco só não era bastante.| Eram indispensáveis fontes regulares de rendimento, pois o ‘go­

verno federal, tendo de sustentar vários serviços outrora confiados aos cuidados do Parlamento de Sua Majestade, vivia em constantes necessidades de numerário.

A idéia de lançar impostos sôbre os produtos estrangeiros não era nova. A origem árabe da palavra tarifa (que queria primitiva­mente dizer “inventário”) mostra que a instituição data do começo da! Idade Média.

•; Hamilton propôs que os Estados-Unidos lançassem mão dessa medida. Levantou-se de novo a tempestade da oposição vinda|doí distritos agrícolas do Sul e do Oeste. Uma tarifa protecionista^ di- ziám os fazendeiros, viria apenas beneficiar os industriais do litoral e Sobrecarregaria ainda mais os lavradores.

i Mas Hamilton venceu e taxou ainda o uísque; foi uma boa me­dida, porque, nas remotas regiões da Pensilvânia, onde recentemen­te; essa bebida substituíra a aguardente e onde se consumia a torto e a direito, o uísque causava grandes arruaças e tiroteios, que só cessaram quando o Presidente Washington mobilizou, para manter a ordem, um exército de quinze mil homens.

Os Estados-Unidos já podiam gabar-se de ser, aos olhos dos “ho­mens eauilibrados” (como eostava de dizer o Presidente Washirur-

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Mount V rmon

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ton), um país decente e respeitável. Mas aqueles que não se in­comodavam de serem chamados “equilibrados” ou “desequilibrados” não podiam ver, sem grandes apreensões pelo seu futuro, essa anti­ga liga de nações independentes tornar-se uma pseudomonarquia altamente centralizada. E mais uma vez a velha querela entre o litoral e a fronteira, entre credores e devedores, entre as cidades e as fazendas, entre aristocratas e democratas campeou violentamente. Apenas, agora, as duas partes se agrupavam em tôrno de programas definidos e usavam novos nomes. Os partidários de Washington, Adams e Hamilton — isto é, os que acreditavam na eficácia do go­verno central fortalecido e conduzido pelos bem-nascidos, bem-ali- mentados e bem-aquinhoados — eram os federalistas. Os adeptos de Thomas Jefferson — os que odiavam a idéia de ver os Estados entreguarem parte dos seus direitos soberanos a um governo federal recentemente estabelecido — que acreditavam nas virtudes Supe- ¡riores dos pequenos, dos humildes, dos deserdados, eram antifede- .ralistas. Mas como os federalistas eram acusados de desejar uma õrjonarquia moderada, os antifederalistas foram mais adiante e pas­taram a se denominar, por oposição, os republicanos.

O conflito entre os dois grupos, que se seguiu à retirada de Jefferson do gabinete cm 1795, tornou muito tristes os últimos anos da vida pública de Washington.

De ambos os lados a luta foi conduzida com absoluto desres­peito da polidez das sociedades civilizadas.

A gente das grandes cidades de Nova York, Filadélfia, Boston, Hartford, Charleston, que esperava ver os Estados-Unidos se tor­narem a primeira potência industrial do mundo, denunciava Jeffer- son como um perigoso demagogo, livre-pensador e partidário do amor-livre, que tinha vivido demais em França e apreciado demais as idéias francesas para ser um sincero patriota americano.

E a gente da fronteira, que odiava tôdas essas supostas pros­peridades do Leste porque lhe recordavam demais a Europa e tudo aquilo a que tinha fugido, revidava com vigor e entusiasmo, apli­cando a Washington e seus conselheiros epítetos tais, que o mais grosseiro dos jornais ilustrados de hoje só ousaria imprimir subli­nhados ou com asteriscos.

Isso tudo era muito triste, mas era só o princípio.Na França, êsses mesmos jovens que, havia apenas alguns anos.

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atravessaram o Atlântico para pôr sua espada à disposição dos re­beldes americanos andavam agora às voltas com uma revolução. Seu, rçi fôra decapitado. Sua monarquia destruída. 0 país se tor- nara, uma República. E dentre eles os que escaparam à morte ha­viam imigrado e tentavam ganhar a vida como professores de fran^ cês, pasteleiros ou mestres de boas maneiras.

. A monarquia britânica vira com p )uca simpatia as crueldades bestiais cometidas por um povo famélico e desprezado contra aque­les que considerava seus carrascos. E Edmundo Burke, o antigo amigo dos colonos americanos, chegara até a pregar uma cruzada, contra êsses monstros que tinham ousado levantar a mão contra seu legítimo soberano e que, com a fôrça do seu novo idealismo, ha­viam expurgado o mundo de tudo o que ainda cheirava a Idade Média e a feudalismo.

. As relações entre os dois países se fizeram tão tensas que a guerra se tornou inevitável. Em 1793, a França e a Inglaterra com­batiam-se abertamente.

Para o comum dos franceses, o dever dos Estados-Unidos era claríssimo. Dez anos antes, num gesto nobre, a França fôra em au­xílio do povo americano oprimido e oferecera seu ouro e seu sangue para a independência dos colonos.

Agora a França estava cercada de inimigos. E, naturalmente» os americanos se apressariam em retribair o auxílio recebido. Mas, infelizmente, os pobres franceses tiveram uma amarga decepção. Nada aconteceu. O único gesto feito em Nova York foi um ligeiro movimento da mão direita do Presidente Washington para assinar uma proclamação determinando aos seus súditos que mantivessem “a mais estrita e absoluta neutralidade'’ durante o conflito entre o Rei George e o Diretório francês, tanto em palavras como em atos.

Tal decisão contrariava abertamente as estipulações do trata­do solene, que não somente declarava a América aliada da França» mas ainda colocava sob a proteção americana as possessões france­sas das índias Ocidentais e abria aos corsários franceses e suas prê- sas os portos americanos, que ficariam na mesma ocasião fechado» aos inimigos da França.

A proclamação de neutralidade (para a maioria dos franceses) estava em contradição com todas as velhas leis de conduta honrada. Mas eram as leis do país, como o povo francês devia saber por in~

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termédio dos relatórios enviados por scu representante diplomático recentemente nomeado para a América.

Esse simpático rapaz, que se chamava Edmundo Carlos Eduar­do Genêt, chegou à América firmemente convencido de que serta uma espécie de segundo Benjamín Franklin e repetiria nas margens tio Hudson as façanhas do famoso tipógrafo nas margens do Sena. Franklin tivera completa liberdade de ir onde quisesse. Tinha po­dido arranjar dinheiro, equipar corsários, dirigir-se diretamente ao povo francês para obter sua simpatia para os seus amigos da Ame­rica.

Genêt, muito mais moço, não podia contar com a considera­ção pessoal a que tinha direito o velho filadelfiano genial. Mas os Estados-Unidos ainda deviam à França milhões de dólares. Êsse dinheiro, como esperava Genêt, seria pôsto à disposição do emissá­rio francês, que o empregaria numa pequena expedição guerreira contra a Inglaterra e a Espanha; a América seria a base de abas­tecimento da França, como dez anos antes a França servira de base de abastecimento aos americanos que combateram em águas euro­péias.

A princípio tudo andou às mil maravilhas.Genêt desembarcara em Charleston, c o povo dessa região, que

sofrera muito nas mãos dos inglêses invasores, foi pródigo de ex­pressões de gratidão e entusiasmo pela França. A sua viagem para Filadélfia foi uma excursão triunfal. Mas assim que desceu na ca­pital provisória da União, os contratempos começaram.

A proclamação de neutralidade não foi retirada. Quando inda­gou do que se havia feito do tratado sagrado entre sua terra e os Estados-Unidos, deram-lhe a entender que o tratado fora feito en­tre os Estados-Unidos e o rei da França, e, portanto, desde que o povo francês achara que devia matar o seu rei, o tratado deixara de existir.

Quando perguntou pelo dinheiro devido à França, que destina­va “às vítimas de uma revolta de escravos nas índias Ocidentais” (na verdade queria armar alguns flibusteiros contra a Inglaterra e a Espanha), Mr. Hamilton recusou-se simplesmente a pagar.

Quando suas fragatas levaram prêsas aos portos americanos, o ministro inglês, com advogados e empenhos, impediu que fossem

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vendidas, e quando, em desespero de causa, Genêt se dirigiu dire­tamente ao Senado e à Câmara dos Representantes (que, aos seus olhos, significava a vontade popular), o Secretário de Estado de­volveu o requerimento com uma carta çrosseira e curta, e se comu­nicou com o Diretório em Paris para q ie fizesse voltar seu enviado.

E isso ainda não era tudo. No ano seguinte, o governo ameri­cano que, segundo as cláusulas do trstado (como os franceses as interpretavam), devia estar em pé de guerra com a Inglaterra, man­dou a Londres o Chefe da Justiça, João Jay, com instruções para concluir um pacto de amizade, comércio e navegação entre os Es­tados-Unidos e a Grã-Bretanha, tornando assim os antigos inimi­gos em amigos seguros.

Quando a notícia foi divulgada pelos jornais europeus, não sò- mente os cafés de Paris foram teatro Je manifestações de desagra­do à República interesseira que colocava os lucros antes da amiza­de, mas também na América houve explosões de ódio semelhantes às dos dias terríveis da Revolução.

A Câmara dos Representantes manifestou a sua oposição pe­dindo vista do documento que diziam rer sido assinado em Londres alguns meses antes, mas foi-lhe respondido que o poder de firmar tratados não lhe competia e que os membros dessa augusta corpo­ração teriam conhecimento dêle quando se tratasse de discutir os créditos para a sua execução, mas nenhum dia antes.

Em vão tentaram Hamilton (que quase tinha sido morto por um bando de cidadãos enfurecidos) e os outros conselheiros do presidente persuadir ao público que o tratado de Jay fora um ato de absoluta necessidade sem o qual aí complicações e ramificações da grande guerra européia desencadear am hostilidades armadas en­tre a Inglaterra e a América. Os republicanos não se satisfizeram com a explicação e a agitação durou até 1796, época de nova eleição.

Washington foi convidado a continuar por mais um quatriênio, mas recusou. Não porque pensasse não ter qualquer cidadão ame­ricano o direito de ser três vêzes consecutivas Presidente dos Esta­dos-Unidos, mas porque estava cansado. Queria poder voltar para sua casa, dormir em sua cama, comer na sua mesa, gozar todos os simples prazeres de quem vive na intimidade da família antes que fôsse tarde demais.

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Tinha então sessenta e quatro anos. Durante os últimos vinte anos não conhecera um momento de repouso. Essas duas décadas haviam sido uma sucessão ininterrupta de campanhas e debates, de conferências, intrigas, mal-entendidos e injúrias.

Antes de deixar a sua famosa carruagem e as suas altas fun­ções, ele dirigiu ao público uma despedida, espécie de testamento político em favor do país que tanto amava e para o qual (na me-

Washíngton

dida das suas capacidades e possibilidades) fizera tão grandes sa­crifícios.

Rogou aos seus amigos que pensassem um pouco menos nos Estados e um pouco mais na pátria comum.

Pediu-lhes que nunca deixassem o partidarismo influir nas suas decisões.

E preveniu-os contra a gente do vasto continente europeu, de quem sempre desconfiara, e da qual não esperava nenhum bem pa­ra o seu país.

“A Europa”, escreveu ele, “tem uma série de interesses primor-

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diais que não nos tocam senão muito remotamente. Portanto é le­vada a freqüentes controvérsias cujas causas nos são essencialmen­te estranhas. Seria diante disso insens; to que nos prendêssemos poi laços artiiiciais às vicissitudes comuns da sua política ou às suai combinações de alianças e inimizades. Será de boa política que nos mantenhamos livres ce compromissos com qualquer porção do mun­do estrangeiro.”

A quatro de março de 1797, John Adams, de Massachusetts, to­mou posse da presidência. Washington dirigiu as cerimônias. Quan­do terminaram, saiu do hall atrás do presidente e do vice-presiden­te, tomou um carro e se dirigiu para Mount Vernon.

Dois anos mais tarde morria suavemente, calmamente, com a mesma fôrya de ânimo com que vivera.

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CAPÍTULO XXXIII

SUA EXCELÊNCIA O PR ESID EN TE ADAMS APREN D E QUE EXISTEM REVOLUÇÕES E REVOLUÇÕES

(

Segundo o conciso dicionário de Oxford, a palavra “revolução” significa: “Mudança completa; virar tudo pelo avesso; revogação die tôdas as condições anteriores; reconstrução fundamental, substi­tuição forçada dos antigos dirigentes pelos adeptos das novas leis.”

Se aceitarmos essa definição (e parece aplicar-se inteiramente ej imparcialmente ao caso), então a América entre 1775 e 1783 e a França entre 1789 e 1795 passaram ambas por revoluções caracte­rísticas. Nos dois países houve uma mudança completa, uma revo­gação de tôdas as condições anteriores, uma reconstrução fundamen­tal e uma substituição forçada dos antigos dirigentes pelos adeptos i!as novas leis.

Nada mais razoável, portanto, do que esperar que as duas re­públicas irmãs se tornassem grandes amigas.

Viviam em duas partes do mundo muito distantes uma da £),utra.

Não eram rivais comerciais no sentido estrito da palavra.E, além disso, a França prestara reais serviços à América

quando esta se revoltara contra a Metrópole.Mas o que se deu foi quase o oposto.E os chefes dos dois lados do oceano aprenderam que uma re­

volução pode ser uma revolução e ser não obstante mais alguma coisa.

No momento dos grandes acontecimentos é difícil ao especta­dor apreender exatamente o que se passa. Os contemporâneos são como soldados no campo de batalha. Em volta dêles reina a con­fusão, há ruídos e fumaça. Se conseguirem sobreviver, poderão ser

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A Revolução Francesa

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informados dos pormenores do fato, muitos anos depois, por algum historiador competente.

Já decorreu quase um século e meio depois de tudo isso. A cau­sa de mal-estar entre a França e os Estados-Unidos, que perturbou a tantos bons franceses e americanos, não nos perturba mais.

Na América, a revolução significou uma mudança de governo, que pôs o predomínio sôbre o novo país nas mãos dos proprietários, dos aristocratas, das classes altas.

Na França, a revolução significou uma mudança de governo que pôs o predomínio sôbre o novo estado nas mãos das massas pobres, dos democratas, das multidões desprezadas dos cortiços.

Na América, o novo governo era composto de cidadãos respei­táveis e bem instalados na existência, como Washington, Adams e Hamilton.

Na França, os homens que dirigiam os negócios públicos eram o fiiho paupérrimo de um tabelião falido, nascido numa ilhota semi­bárbara do Mediterrâneo; um capitão de engenharia sem eira nem beira; um fidalgo arrebentado que degenerara em aventureiro; e alguns outros, políticos sem nenhuma proeminência especial, quer social quer econômica, de todos os menos aproveitáveis. Já na ma­neira por que foram conduzidas as duas revoluções havia espantosas diferenças.

Os americanos eram protegidos dos seus inimigos por três mil milhas de água.

Os franceses viviam porta a porta com os seus.Os americanos, depois de ganharem as primeiras batalhas, fi­

caram com os movimentos livres. Os legalistas, sem armas e sem exército, refugiaram-se em diversos lugares, na Nova Escócia, na Inglaterra, e cessaram quase imediatamente de representar um risco real.

Na França, ao contrário, as conspirações tramadas pela Coroa, pela nobreza, pelo clero e pelos camponeses criaram um ambiente de pânico diante do qual o povo, tomado de um súbito ataque de mêdo desarrazoado, tornou-se culpado das piores atrocidades.

Em suma, os dois países se podiam gabar de terem feito um trabalho completo de limpeza e renovação, mas se tinham afastado tanto um do outro que não lhes era mais possível se entenderem.

O novo govêrno da América se instalou na sala de visitas de

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uma confortável residência colonial, ao passo que os dirigentes fran­ceses, mortos de cansaço e caídos de sono, deliberavam sôbre os ne­gócios do país nos sótãos e nas adegas de um antigo palácio real em ruínas.

Mr. John Adams e sua distinta <;spôsa (née Abigail Smith) tinham o hábito de se ocuparem durante o café da manhã com a leitura das cartas de Mr. Gouverneur Morris, o ministro americano em Paris; e sacudiam tristemente suas cabeças altivas, lamentando que uma nação tão respeitável outrora decaísse tanto e se tornasse tão miserável e desacreditada como a turba de adeptos do motim daquele desprezível capitão Daniel Shays; nem a outra gente se po­deria comparar a população desenfreada de Paris; o ministro ame­ricano contava como tinha falhado na íua tentativa de livrar o rei e a rainha dos malfeitores e apaches dos subúrbios, como o rei e a rainha eras tratados como criminosos conuns pelos seus antigos súdi­tos; como êsses mesmos antigos súditcs, metidos nessas absurdas calças modernas que desciam até o tornozelo, sem cabeleiras, mas com baionetas brilhantes enfiadas nas carabinas, andavam agora a invadir a Europa civilizada, pregando essas monstruosas doutrinas de “igualdade”, das quais tanto falava o pobre Mr. Jefferson (que realmente precisava ter mais juízo), e de “fraternidade”.

No momento, Adams podia apenas balançar a cabeça pesaro­samente; mas um pouco mais tarde, quando se mudou para o pa­lácio presidencial e descobriu que vários milhões de seus concida­dãos eram partidários dêsses ladrões e assassinos que dominavam a pobre, infeliz França, que os republicanos andavam enchendo os jor­nais com arengas sôbre as virtudes superiores da Constituição fran­cesa, a bravura dos soldados franceses e a dedicação das mulheres francesas, ficou firmemente convencido de que o país estava cami­nhando para a guerra civil e que era chegado o momento de agir.

Como deveriam agir, nem o presidente nem os ministros o sa­biam, mas a sorte lhes forneceu um mote que aproveitaram hábil­mente.

O insucesso de Genêt na América e a profunda dedicação de Morris aos Bourbons deixara os dois países sem representação di­plomática. Adams, porém, sabia quanto os Estados-Unidos precisa­vam de sossêgo depois da longa e exaustiva luta pela Independên­cia, e não admitia a hipótese de se envolver em nova guerra. Por

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conseguinte, com um gesto amável — Oh! o passado estava bem passado! — enviou a Paris John Marshall, Elbridge Gerry e Carlos Pinckney numa missão de paz e boa vontade. Não esperava que conseguissem muito, mas uma aparência de relações cordiais seria mais proveitosa aos dois países do que o estado atual de semi-hos- tilidades e picardias disfarçadas.

Os três americanos chegando a Paris encontraram a opinião pú­blica muito deprimida pela perda das forças navais e ainda mais indignada com a hospitalidade dada aos navios de guerra inglêses e às suas prêsas francesas nos portos americanos. Além disso, como cs franceses não deixaram de salientar aos seus visitantes de além- Atlântico, parecia existir uma lei para os inglêses e outra para os franceses. Porque assim que os franceses capturavam um barco mercante americano que se dirigisse para a Inglaterra ou suas colô­nias, as cartas indignadas de Washington choviam em Paris. Mas os inglêses podiam tomar quantos navios quisessem aos americanos, sem que êstes protestassem e nem cessasse a intimidade do ministro americano em Londres com o ministro dos estrangeiros britânico, com o qual era visto freqüentemente tomando chá muito amigavel­mente.

A isso os emissários americanos podiam ter respondido de di­versos modos. Podiam dizer que o govêrno americano, sem esqua­dra, estava mais à mercê dos inglêses do que dos franceses; que o ministro americano ern Londres vivia permanentemente reclaman­do dos atos ilegais praticados em alto mar pela frota inglêsa, mes­mo quando uma vez ou outra jantava com o ministro dos estran­geiros, ou outras coisas dêsse gênero.

Mas já que tinham vindo como precursores da paz, evitaram sabiamente abrir um debate que não conduziria a nenhum resulta­do prático e se acercaram do Diretório com um plano que poderia resolver tôdas as dificuldades.

E teriam sido bem sucedidos se não se tivesse voltado parâ eles, inoportunamente, a atenção do que os franceses chamam a “haute finance”.

Alta finança é alguma coisa de muito diferente da administra­ção de bancos, ou dos empréstimos de dinheiro sobre penhores, e vive quase exclusivamente da guerra. Os governos acham-se de re­pente em necessidade urgente de grandes somas de dinheiro. Um

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verdadeiro exército de velhacos internacionais abate-se sobre suas capitais, cerca seus ministros de extraordinários oferecimentos de auxílio e enleia êsses pobres funcionários numa tal rêde de intrigas que só os que são muito resistentes ou muito espertos escapam sem ficarem suspeitos e salpicados de lama.

Os três delegados americanos se vir am envolvidos por um quar­teto renitente de “altos financistas” que se gabavam de possuir boas informações e se ofereciam para guiá-lo.c — mediante alguma recom­pensa, naturalmente. Mas isso estava dentro das regras do jôgo di­plomático, como se entendia na última metade do século XVIII. Uma gorjeta dada de vez em quando a um rrinistro era coisa comum. To- da gente podia ter uma caixa de rapé nos dias dos punhos de renda, e se acontecesse estar a caixa cheia de ducados de ouro — então se­ria ainda melhor, porque o presenteado poderia assim comprar do melhor rapé de Copenhague e ainda gu trdar alguma coisinha.

Os delegados americanos sabiam disso e parece que andaram com bastante vontade de enfiar alguns dólares nas mãos de M. Bar­ras — um homem muito influente e cujos gostos diziam ser um tan­to dispendiosos. Mas quando, além dêsse presente particular, os membros do Diretório sugeriram que os Estados-Unidos deviam beneficiá-lo com um empréstimo de alguns milhões de dólares, não quiseram saber de mais nada. Tal tramação representaria uma que­bra de neutralidade, faria rebentar a guerra entre a Inglaterra e cs Estados-Unidos.

E, sobretudo, nenhum govêrno digno dêsse nome se deixaria assaltar de modo assim tão grosseiro.

Não sabemos de todos os pormenores do incidente. Mas quan­do a correspondência entre os enviados americanos e os interme­diários franceses foi conhecida em Filadélfia, os chefes federalistas perceberam logo a admirável arma política que o Diretório lhe for­necera graciosamente. Publicaram todas as cartas, omitindo os no­mes reais e substituindo por X, Y e Z as assinaturas dos funcioná­rios franceses implicados no caso. Depois viraram-se para os repu­blicanos dizendo: “Vejam! vejam que espécie de povo os seus ami­gos tanto defendem! São êsses os homens por quem sentem tão pro­funda admiração!”

E ainda foram mais longe. Aproveitando a excitação do mo­mento, fizeram passar uma porção de leis para garantir a nação con-

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tra qualquer futura explosão de descontentamento dos republicanos. A primeira dessas medidas, a chamada Lei dos Estrangeiros, au­mentava o número de anos de estadia no país exigidos para que o estrangeiro se pudesse fazer cidadão americano: de cinco, passavam a catorze. A mesma lei conferia ao presidente o direito de prender ou deportar todo estrangeiro considerado indesejável, e permitia às autoridades federais prender ou exilar qualquer pessoa que perten­cesse a uma nação em guerra com os Estados-Unidos.

A segunda medida, a conhecida Lei das Sedições, considerava crime passível de prisão ou multa, publicar artigos mentirosos, es­candalosos ou maliciosos contra o governo dos Estados-Unidos, o Presidente ou as Casas do Congresso; instigar a oposição contra um ato legal do Congresso ou do Presidente; auxiliar os planos de al­guma potência estrangeira contra os Estados-Unidos.

Essas leis eram em parte justificadas pela campanha desmora­lizante que alguns exilados irlandeses conduziam contra a Inglaterra nos jornais americanos; mas eram severas em demasia e espalharam grande apreensão entre uma larga parte da população. Todo o tra­balho dêsses últimos sete anos para destruir o poder autocrático do govêrno central parecia desmanchado por uma penada dos federa­listas. Os decretos da nova “Star Chamber” eram assinados “John Adams, Presidente”, em vez de “Gcorge Rex”. Era essa a única mundança aparente; contràriamente aos dispositivos constitucionais, os cidadãos da República se viam impedidos de exprimir livremente a sua opinião, e a imprensa perdera a sua tão decantada liberdade.

Quando, aqui e ali, juizes bajuladores começaram a condenar cidadãos inocentes sob pretexto de terem, nalguma incerta reunião política, ousado duvidar da sabedoria infalível do govêrno, e a me­terem na cadeia os editores responsáveis por qualquer publicação que criticasse a conveniência de tal ou qual decreto presidencial, a indignação da parte democrática na nação se manifestou por cla­ras ameaças de revolta. O centro dessa oposição era Thomas Jeffer- son. Desde que renunciara à sua pasta de ministro do gabinete de Washington, êle vivia retirado na sua propriedade perto de Char- loesville, na Virgínia, e com uma austeridade romana se mantinha afastado do seu divertimento predileto, a política.

Entretanto, possuído por essa mania invencível de escrever cartas, características dos filósofos e cientistas do século XVIII, o

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astuto ancião mantinha correspondência diária com todos os mem­bros proeminentes do partido republicano. Nenhuma resolução se tomava sem a sua opinião. Inspirava os editoriais dos jornais re­publicanos, e, quando os chefes do partido não sabiam como agir, iam passar um fim de semana em Morticello, onde, diante de um cálice de vinho do Pôrto (em Mount \ ernon tomava-se Madeira), combinavam meios e modos de subjugar os seus aristocráticos adver­sários.

Portanto, quando as Câmaras Estaduais de Virgínia e Kentucky declararam solenemente nulas e sem efe to as Leis das Sedições por violar os dispositivos da Constituição, reconheceu-se logo, na elo­qüente e insidiosa justificação da nulidade, o dedo hábil de Jeffer­son; muita gente viu nisso um supremo esforço dos republicanos pa­ra livrar o país da sempre crescente tendência para a centralização, tão cara aos federalistas.

Não sabemos ao certo até que ponto essas duas leis e as dis­cussões em tôrno da nulidade influíram nas eleições seguintes. Pa­rece que, no reino da política como nos da natureza e da moda, existem estações. A primavera se segue ao inverno, as saias longas sucedem às curtas, um período de governo pelos ricos cede a vez a um período de governo pelos pobres; e, façam o que fizerem, ne­nhum fazendeiro, costureiro ou político consegue mudar o curso nor­mal dos acontecimentos.

Nas eleições de 1809 os federalistas foram derrotados pelos re­publicanos.

As classes abastadas predisseram urna época de anarquia.Os homens das fronteiras soltaram joguetes para celebrar o fim

“do reinado plutocrático do terror”.E Adams voltou para Boston, enquanto Jefferson arrumava

suas malas e escreveu aos administra lores da conhecida pensão Conrad, na cidade de Washington, perguntando-lhes se lhe poderiam reservar um quarto para março do ano seguinte.

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CAPÍTULO XXXIV

O PR ESID EN TE THOMAS JEFFERSON DOS ESTADOS UNIDOS D* AM ÉRICA E O IM PERADOR NAPOLEÃO REALIZAM UMA

TRANSAÇÃO IM PORTANTE

“O guisado nunca é comido tão quente como quando sai do fogo”, diz um velho provérbio inglês.

Nenhum partido político radical continua tão extremado depois de subir ao poder quanto era nos dias vibrantes da campanha elei­toral.

No ostracismo, Jefferson era contra toda e qualquer interfe­rência oficial nos direitos dos cidadãos ou dos Estados; quando su­biu ao poder, reconheceu logo que nenhum governo se sustenta se não “governar” realmente.

Dirigir-se ao edifício do Capitólio numa carruagem de duas parelhas ou ir a pé levar a sua mensagem ao Congresso, são, afinal, pequenas rugas sem nenhuma significação. Preferir ser chamado “Sua Alteza” ou, mais simplesmente, “Olha aqui, Tom!”, são ques­tões de gôsto pessoal.

Mas quando o Presidente dos Estados-Unidos, falando ex-ca- thedra (se me posso aproveitar da expressão de uma outra insti­tuição democrática um pouco mais velha), quando o Presidente na sua qualidade de presidente diz: “Esta, meus amigos, é a lei do país devidamente elaborada pelos corpos legislativos que elegestes e so­lenemente assinada por mim”, precisa fazer cumprir a sua vontade, ou então desistir do cargo.

Ora, Jefferson era também um dos mais bem-educados dos nos­sos presidentes — um homem profundamente versado na história do passado — um culto estudioso da antiguidade — um filósofo, com grande senso de humor, que conhecia o povo americano tão bem quanto os seus escravos de dentro de casa. E sabia — o que

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L,A aquisição da Lvisiana

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sempre souberam os verdadeiros estadistas desde os dias de Ham- murabi — que é incomparàvelmente melhor ter poucas leis e as cumprir integralmente do que acumular um monte de decretos e regulamentos impraticáveis que passam a ser letra morta desde o momento da sua assinatura e são abertamente desrespeitados pelo público em geral e pelos tribunais.

Um dos primeiros cuidados de Jefferson ao assumir o poder foi revogar tantas leis federalistas e afastar tantos funcionários federalis­tas quanto possível sem correr o risco de desorganizar a vida polí­tica e comercial da nação.

A Lei das Sedições foi naturalmente revogada. A esquadra, de tão diminuída, quase foi reduzida a zero. Os funcionários públi­cos que não fossem absolutamente indispensáveis eram convidados a procurar outra ocupação. Não se poupavam esforços para livrar a nação da dívida nacional.

0 presidente economizava até a sola dos sapatos. Pois não saía da Avenida da Pensilvânia, e quando tinha alguma comunicação a fazer ao Congresso, mandava um moço de recados levar a mensa­gem.

Todas essas medidas, porém, eram tão destrutivas quanto a denúncia do juiz Samuel Chase, um veterano da Declaração da In­dependência que sofria de apoplexia e, em seus acessos de cólera, aproveitara as Leis dos Estrangeiros e das Sedições para transfor­mar a sua vara numa pequena “Star Chamber” particular.

Eram destrutivas, e Jefferson era um espírito muito positivo para se contentar com um programa negativo.

Quando, afinal, começou a sua política de reconstrução, viu-se qüe êsse desajeitado fazendeiro de Albermale County (talvez essa simplicidade excessiva fôsse sem parecê-lo uma atitude para impres­sionar o povo e mostrar-lhe as virtudes da democracia comparadas com as pompas espalhafatosas dos federalistas), que êsse homem do campo tinha percebido uma coisa que escapara até então a todos os outros estadistas do mundo: que não vale a pena cuidar do de­senvolvimento político sem promover o desenvolvimento econômi­co, pois sem êste, aquêle não tem o menor valor.

Tomemos o exemplo da França.Antes da Grande Revolução os nobres rodavam em lindas car­

ruagens. Os camponeses andavam a pé. E nenhum deles achava

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0 negócio com o território Luisiana em 1807

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isso injusto. Os nobres, desde crianças, ouviam de suas avós e da Igreja que era o seu destino na vida andar de carro, c os camponeses, ainda no berço, tinham ouvido suas bisavós (os camponeses geral­mente vivem mais) e a Igreja dizerem que deviam andar a pé des­de o nascimento até a morte.

Depois veio o século que lançou uma dúvida sôbre a sabedoria das avós e dos curas de aldeia.

“Por que”, perguntavam os Voltaires, os Didcrots e os Rous- seaus, “há de uma classe da sociedade andar sempre de carro c a cutra sempre viver se arrastando na lama?”

Os nobres poderiam ter evitado a crise se tivessem sabido tran­sigir — ajudando de vez em quando aos camponeses — deixando-os terem dinheiro bastante para possuírem um carrinho. Mas a nobre­za tinha freqüentado demais a escola das avós e dos conselheiros espirituais para poder aprender alguma coisa nova. Alguns mem­bros mais esclarecidos da classe tentaram prevenir os outros. Mas foram acoimados de “radicais imundos” e ninguém os ouviu. E en­tão aconteceu o inevitável. Veio a revolução. E pela força da lei o camponês tornou-se igual ao fidalgo.

Mas isso lhe permitiu andar de carro?Não, de modo algum.Soube que podia andar dc carro se quisesse, que não havia no

país leis discriminando quem andaria de carro e quem não andaria. Mas para andar de carro é preciso primeiro poder pagá-lo. E o po­bre camponês, com todos os seus direitos teóricos, não possuía os fundos necessários nem para comprar e manter uma simples carro­ça de burro.

Em vez de uma classe da sociedade andar de carro e a outra a pé, ambas patinhavam agora na lama das estradas abandonadas. Uma classe perdeu tudo e a outra não ganhou nada.

O que Jefferson viu e pôs em prática antes de ninguém foi o seguinte: só há um meio de habilitar um homem politicamente livre a gozar da sua nova dignidade, é desenvolver a produção até que haja bastante fartura para que todos possam ter o seu quinhão.

Produção, naturalmente, implica muito trabalho. Mas signifi­ca também que o homem médio terá muito maiores necessidades e maior conforto do que antes.

Jefferson não era um apaixonado da máauina e receava que o

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sistema industrial conduzisse unicamente a uma artificial e perigosa preponderancia das cidades. Acreditava que o futuro do país esta­va na agricultura, que a força real da ração estava no campo.

Podia estar certo ou errado, mas enquanto pôde fazer o que queria e não foi forçado pelas ameaças de guerra a se tornar mais federalista do que os próprios federalistas e a centralizar e fortificar o governo, viveu de acôrdo com as suas convicções e canalizou to­das as fôrças do partido republicano para o desenvolvimento da agricultura. Nisso foi grandemente auxiliado pelas circunstâncias exteriores. Aliás, sempre tinha sido un homem de sorte. Se fôsse

mais firmemente cristão, teria acreditado nas idéias de Cal- vino sôbre a predestinação. Sendo como era, aceitava sim­plesmente as boas coisas que o destino lhe trazia e achava consolo em Marco Aurélio e Dom Quixote.

Se quiséssemos procurar as causas originais (como, se­gundo alguns, os historiado­res devem fazer), deveríamos agora falar do ano de 1100, quando a antiga família dos Bonapartes deixou Florença e começou aquela estranha peregrinação que levaria um

dos seus membros, via Sarzana e Ajácio, à margem do Sena e faria déle o herdeiro das tradições de César e Carlos Magno. Mas assim a história ficaria muito comprida; imagino que todos estejam a par da Revolução Francesa, das suas guerras, e da situação política da Europa em 1803.

Três anos antes, em virtude de uin tratado secreto com o rei da Espanha, Napoleão readquirira a antiga e grande colônia fran­cesa da Luisiana, que, por uma dessas reais e imperiais trocas de terra do século XVIII, havia sido cedida à Espanha. Embora, po­rém, nunca tivesse aprendido a falar sem sotaque a língua de sua

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pátria de adoção, Napoleão era um legítimo francês na sua inca­pacidade de se interessar pelo que se passava além dos limites da França.

Sua prática de ler mapas militares mostrou-lhe sem dúvida que a cidade de Nova Orléans tinha grande valor estratégico; era como um dedo que poderia tapar o grande funil do Mississipi e interrom­per a afluência dos produtos agrícolas vindos do interior. Mas a palavra Luisiana significava tão pouco para êle como a palavra Ca­nadá para os contemporâneos de Luís XIV. E o mesmo homem que, antes do almoço, abolia um império milienar e, entre a meren­da e o jantar, podia alterar três vêzes todo o mapa da Europa, dei­xou passar oito meses antes de preparar definitivamente a ocupa­ção do novo território.

Entretanto, ia transpirando a transação entre Paris e Madrid.Rufus King, persona grata na corte de S. James, ouviu falar

disso em Londres e repetiu os boatos a Madison, Secretário de Es­tado de Jefferson. Madison por sua vez contou-os a Jefferson, e o Presidente ficou muito inquieto. Milhões de jeiras de térra para oeste dos montes Allegahnys eram habitados e explorados por seus amados desbravadores de matas. Para exportarem seus cereais e suas peles, êles dependiam do Mississipi. Enquanto as chaves de Nova Orléans estavam nas mãos de um país fraco como a Espanha, tudo ia bem. Se as coisas se agravassem, os camponeses poderiam marchar sôbre os fortes quase abandonados e expulsar os fidalgos. Mas se esse terrível Napoleão (que vencia tudo e todos) se apode­rasse do local perigoso, todo o Oeste ficaria para sempre engarra­fado. A situação era muito séria e não valia de nada recorrer aos federalistas. Êles não acreditavam no Oeste. Seus verdadeiros in- terêsses estavam de outro lado, e quando se levantasse a questão: “Será desvantajoso que os Estados-Unidos adquiram mais terras a Oeste?”, responderiam certamente que sim.

Naturalmente, como verdadeiro democrata, homem simples, sin­cero e reto, Jefferson não acreditava na diplomacia secreta. Mas essa questão era tão delicada que achou melhor tratá-la com certa discrição. Portanto pediu ao seu amigo James Monroe (também filho de Westmoreland County, na Virgínia) que fosse à Europa e visse o que se poderia fazer, e se a França, que como tôdas as na­ções guerreiras devia precisar de dinheiro, não venderia aos seus

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Explorando o Noroeste

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amigos de Washington as propriedades que possuía na América. Mon- roe aceitou o encargo e partiu.

Mas quando chegou a Paris, o negócio já estava praticamente concluído.

Porque, por acaso, havia surgido um homem talhado para as suas funções.

Roberto Livingston, o ministro americano em Paris era um ne­gociante nato. Começara o movimento em torno da venda de No­va Orléans e dos territórios vizinhos aos Estados-Unidos e aumen­tara as suas possibilidades de êxito murmurando aqui e ali (se se pode chamar de murmúrio o tom indiscreto das conversas nos sa­lões franceses) sobre os perigos de uma nova guerra entre a França e a Inglaterra, e a perda certa das colônias francesas que isso acar­retaria.

“Não seria muito melhor”, insinuava habilmente, “vender algu­mas milhas quadradas de terras incultas e ganhar alguma coisa do que perdê-las em troco de nada?”

Podia também ter deixado perceber que os americanos punham tanto empenho na posse de Nova Orléans que chegavam a pensar numa guerra para obter essa cidade. Os franceses, porém, eram mui­to orgulhosos, e por isso falou das vantagens comerciais da transa­ção sem tocar no seu aspecto militar. Por sorte, o ministro das fi­nanças de Napoleão era filho de um antigo governador da Pensil- vãnia e vivera muito tempo na América.

F.sse alto funcionário, de nome Marbois, andava justamente às voltas com as dificuldades para arranjar dinheiro para a próxima guerra. Quando soube que o navio de Monroe estava à vista e que o plenipotenciário americano trazia um carregamento de dólares ou­ro, foi procurar seu chefe, o Primeiro Cônsul, para lhe expor seus planos. O resultado da conferência foi que Napoleão, no dia ime­diato, encarregou seu ministro dos estrangeiros (que era nada me­nos do que o nosso velho amigo M. de Talleyrand, o Mr. X das jevelaçÕes de Adams) de chamar Livingston e abrir as negociações para a venda da Luisiana.

Livingston, diante disso, foi a Talleyrand e lhe perguntou quan­to queria por Nova Orléans.

M. de Talleyrand respondeu perguntando quanto os america­nos dariam por tôda a Luisiana.

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A oferta era pasmosa, mesmo para um astuto homem de ne­gocios como Livingston. Pediu tempo jara pensar. Nesse interva­lo Monroe chegava a Paris com noticias frescas de Washington. Du­rante um dia inteiro os dois americanos estudaram a sua resolução. Foram jantar e, quando terminava a refeição, Marbois apareceu para tomar café. Ficou encantado de conhecer o distinto Mr. Mon­roe e adiantou que se os americanos quisessem ir ao seu gabinete um pouco mais tarde, poderti lhes dizer alguma coisa muito agra­dável.

Quando chegaram, Marbois contou-lhes que havia passado o dia anterior na corte de St. Cloud com o General Bonaparte, acres­centando que a América poderia ter a Luisiana por cem milhões de francos. Livingston achou demais e ofeieceu menos. Depois de al­gumas discussões a Luisiana foi vendida por sessenta milhões de francos ou $> 15.000,000 — vai — não vai — foi!

Com uma felicidade incrível o Presidente Jefferson havia do­brado o território de seu país com uma despesa de quatro centavos por jeira. O negócio não é mau, nem mesmo para um ianque.

Mas os ianques federalistas fizeran um barulho terrível por causa da transação. O Honorable Timothy Pickering, de Salem, Mas- sachusetts, então senador federal, chegou a falar em secessão, a su­gerir que se fundasse uma nova confedeiação dos Estados da Nova Inglaterra, livres da corrupta e corruptora influência dos democra­tas do Sul, e ofereceu ao Honorable Aarão Burr, Vice-Presidcnte dos Estados-Unidos, a chefia do novo país.

Mas tôda essa agitação deu em nada. Os republicanos tinham aprendido com os seus amigos federalistas a fazer passar medidas impopulares no Congresso, e as observações que Hamilton formu­lou sobre o caráter de Burr (na verdatle um completo bandido e uma triste figura) originaram um duelo no qual Burr atravessou com uma bala o coração de Hamilton e assim assinou êle próprio a sua condenação ao exílio para o resto dos seus dias.

A doze de dezembro de 1803 a bandeira tricolor era solene­mente descida do mastro em Nova Orléans.

Na primavera do ano seguinte, Mcriwether Lewis, de Char- lottesviile, na Virgínia, e William Clark da mesma cidade, ambos profundos conhecedores do deserto, chefiaram uma expedição ao no­vo território que então como nos dias de Colombo trazia nos mapas

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a legenda de Terra incógnita. Exploraram o Missouri, atravessaram as montanhas Rochosas, remaram pela Colúmbia até alcançarem o Pacífico, depois de mais de dois anos de viagem.

Foi uma das expedições mais assombrosas que já se realizaram no mundo. A percentagem de perdas pessoais (um homem por trin­ta e dois, em três anos de perigos contínuos) mostra como êsses ra­pazes de Virgínia conheciam bem o seu ofício. O país reconheceu o valor dos seus serviços e Lewis foi feito governador da parte nor­te do território da Luisiana. Era obrigado a ficar sentado num es­critório assinando papéis, o que fêz com a sua habitual correção no cumprimento do dever, até que não agüentou mais e voltou às ca­çadas com os seus amigos, os índios.

Enquanto Lewis e Clark percorriam o norte dos Estados-Uni­dos, um outro soldado, Zebulon Montgomery Pike, de Nova Jersey, procurava as cabeceiras do Mississipi e lançava uma vista de olhor* sôbre um vasto pedaço de terra que ainda pertencia à Espanha c era considerada “Tierra de Ningum Provecho”, uma região sem valor.

Os homens do campo, companheiros de Jefferson, não eram muito dados a ler histórias de fadas.

Não precisavam fazê-lo.Viviam-nas.

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CAPÍTULO XXXV

A M AE-PÁTRIA FAZ UMA ÚLTIMA VISITA

O General Bonaparte começou logo a gastar como legítimo ita­liano a fortuna inesperada vinda da América. Vivia numa verda­deira orgia de glórias, proclamou-se o sucessor de Carlos Magno, e, com a cooperação forçada e hesitante do Papa Pio VII, se co­roou imperador dos franceses, entre santas fitas, peças de renda de ouro, sedas e plumas como nunca tinham sido vistas numa igreja.

Quando as outras nações da Europa souberam dessas alegres novidades, entraram a tremer. Cada promoção desse homem tão pequeno e tão extraordinário era sempre seguida por uma mortan­dade geral.

Dessa vez as altezas reais e imperiais do Norte e do Oeste re­solveram preparar-se para a defesa. Formaram uma coligação. O imperador dos franceses exprimiu o seu espanto diante disso, e a luta começou.

O governo americano portou-se sabiamente durante o conflito, e o Presidente Jefferson rogou aos seus compatriotas que tivessem cautela e não se aproximassem muito da conflagração. Mas bem cedo a nova nação devia ver que a T?rra é um planeta de quinta grandeza, de dimensões tão reduzidas que o que afeta um país atin­ge necessariamente os outros. O métod ) de neutralidade tornado fa­moso pelo avestruz só pode ser aplicado com proveito quando a luta se restringe a algumas tribos selvagens do deserto de Kalahari. Mas uma guerra em que a França, a Rússia, a Áustria, a Suécia e a Inglaterra tomavam parte ativa não podia deixar de se fazer sen­tir da Nova Zelândia a Hammerfest, da baía de Baffin à cidade do Cabo.

Quanto às declarações solenes de neutralidade e quejandos do-

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cumentos, eram tão úteis como as apólices das companhias de ss- guros durante um incêndio. Os dois gr ípos contendores perseguiam- se ferozmente, e só Deus poderia valer aos pobres marinheiros neu­tros.

No caso a situação ainda se fazia mais embaraçosa pelo fato de terem os inglêses destruído a frota fiancesa em Trafalgar, enquan­to Napoleão destruía os exércitos aliados perto de Austerlitz.

A fábula do leão e do elefante tornava-se verdadeira.A Inglaterra era senhora dos mares e a França dominava o

continente. Dos altos rochedos de Boulogne os marinheiros france­ses podiam ameaçar com os punhos cerrados os penhascos distantes de Dover e do tombadilho do navio capitânia do seu soberano, os lôbos-do-mar britânico podiam fazer raretas para as crianças que brincavam com castelos de areia na praia de Barfleur. Mas nenhum dos contendores conseguia alcançar o outro. Napoleão não podia deixar a terra firme, e os inglêses não conseguiam abordar o terri­tório inimigo. Em tais circunstâncias, foram obrigados a mudar a sua tática de destruição mútua, e, segundo o velho hábito das gran­des nações, fizeram-no sacrificando os direitos dos pequenos países.

Para começar, a Inglaterra declarou, em março de 1806, que toda a metade ocidental da Europa estava sob bloqueio. Napoleão respondeu por um decreto assinado cm novembro do mesmo ano, no qual, por seu lado, declarava em estado de bloqueio as Ilhas Bri­tânicas. Ficaram assim os neutros, como sempre acontece nas gran­des guerras européias, na alternativa de escolher entre o demônio fran­cês e a esquadra inglêsa; se não se sentissem tão completamente desam­parados, teriam sem dúvida exprimido a sua indignação em pala­vras grosseiras e fortes.

Para pôr ainda em maiores dificuldades os marinheiros já irri­tados de todo o mundo, tanto a França quanto a Inglaterra recla­mavam com urgência os produtos do solo americano e se prontifi­cavam a pagar preços incríveis pelos víveres e as munições de guer­ra que lhes chegassem. Afinal, os mercadores americanos eram ape­nas humanos. Sua guerra de independência lhes ensinara a rir dos bloqueios. Um bloqueio duplo era, porém alguma coisa de novo, e por isso agiram com muita prudência. Foi quando a Inglaterra, que não podia alimentar seu povo sem o auxílio da importação, ofe­receu um acôrdo: prometeu que os navios americanos poderiam li­

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vremente levar seus carregamentos à França se tocassem primeiro nos portos ingleses e pagassem uma taxa em troca da licença de negociar com o inimigo.

“Muito bem”, respondeu Napoleão, “mas nesse caso eu serei obrigado a considerar como embarcação hostil todo navio munido dessa licença.”

E as capturas e confiscações continuaram com uma regulari­dade incômoda; milhões de dólares foram perdidos pelos honestos traficantes americanos, e outros tantos milhões pelos desonestos. Al­guns diziam: “É o momento de declarar guerra à Inglaterra.” Ou­tros retrucavam: “São os franceses que precisamos combater.” En­tão foram todos a Washington pedir ao Presidente Jcfferson que fi­zesse alguma coisa.

Mas era a isso justamente que Jefferson queria escapar. Era um homem de paz. A guerra se lhe afigurava um absurdo. Podia ser necessário de vez cm quando fazer uma descarga contra os na­vios piratas de Tripolitânia que tentavam extorquir dinheiro do go­verno americano, mas que nações esclarecidas derramassem o san­gue da fior da sua mocidade em prol de algum louco ideal de glória ou de lucro, isso era um crime! E o presidente, cm vez de se prepa­rar para a guerra, abandonou de tal forma os restos do exército t da esquadra que a França e a Inglaterra deixaram de se preocupar com os Estados-Unidos c começaram a pilhar os seus amigos ame­ricanos com tanta indiferença como se fossem cidadãos de algum pequeno estado escandinavo.

Mas se pensavam que isso não levantaria ressentimentos do outro lado do Atlântico, enganavam-se redondamente. 1 homas Jeí- íerson era um filósofo mas não um pacifista. E, enquanto se recu­sava a guerrear, seu espírito ativo concebia uma nova e original maneira de comerciar com gente tão pouco escrupulosa; se seu pla­no tivesse podido ser levado avante, teria reduzido a suplicantes os dois grupos inimigos.

Até então tôdas as iniciativas haviam sido tomadas pelos in­gleses e pelos franceses. Subitamente, cm 1807, os Estados-Unidos começaram a fazer por sua conta um pequeno bloqueio. Jefferson e seus ministros souberam que tanto a França quanto a Inglaterra tinham premente necessidade dos cereais americanos. Então, em dezembro de 1807, deram ordem para que não saísse mais dos por­

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tos nenhum navio cargueiro, e comunicaram à França e à Inglaterra que nenhuma espiga de trigo e nenhum fardo de algodão iria mais para a Europa enquanto os dois governos não prometessem conter- se e deixar em paz os comerciantes americanos.

, : Desgraçadamente a idéia de Jefferson não pôde ser executada.Os negociantes honestos ficaram logo arruinados. Os outros (a

grande maioria), tornaram-se contrabandistas e ganharam milhões de dólares. A maior parte dêsse dinheiro, porém, ia para os inter­mediários neutros, enquanto os fazendeiros e trabalhadores do oes­te e os marinheiros do litoral atravessavam o período mais duro que já tinham visto.

As reclamações dêsse grande e influente grupo que se via con­denado à falência foram tão furiosas e persistentes que o Ato de Embargo foi revogado e substituído per uma Lei de Abstenção, que proibia o comércio com a França e a Inglaterra mas permitia aos americanos negociarem com tôdas as nações “neutras” da Europa. Mas ainda uma vez o desconhecimento da verdadeira situação eu­ropéia fazia Jefferson dar um passo em falso. Essas chamadas na­ções “neutras” eram soberanas apenas de nome e desde muito tem­po não funcionavam mais como unidades independentes. E assim o comércio americano continuou a ser perturbado e os navios ame­ricanos a serem levados à fôrça para cs portos dos países conflagra­dos e a ficarem detidos; e parecia cada vez mais evidente que tudo isso ia dar em guerra. Em diversas ocasiões, enquanto a paz ainda reinava sôbre as águas, as tripulações de cargueiros americanos se haviam pegado com os navios de guerra franceses ou inglêses, e fôra necessária muita habilidade diplomática para resolver essas difi- cudades dentro dos limites da “neutralidade absoluta”.

Ainda mesmo nesse momento as coisas se poderiam ter harmo­nizado entre a diplomacia dos três países se não fôsse a velha e criminosa instituição inglêsa conhecida por “quadrilha de recruta­mento” . O recrutamento era o nome popular da conscrição feita ao acaso, muito comum no continente europeu até que o nosso ami­go Corso transformasse cada homem nam soldado e cada nação num acampamento.

O soberano (secundo a interpretação medieval da lei) tinha o direito de fazer guerra, e portanto tmha também o direito de se prover do instrumento indispensável para uma campanha triunfante,

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isto é, o Exército. Como a ninguém agrada a idéia de ser morto e todos se recusam a se expor à violência a não ser em caso de defesa pessoal, não era nada fácil conseguir o número necessário de solda­dos. Daí o interessante hábito dos prepostos de Sua Majestade de abrir as portas das prisões, de varejar os cafés e as respeitáveis cer- vejarias e arrastar os freqüentadores para o navio de guerra maii próximo, onde se deviam tornar combatentes e levar uma vida de galcrianos até que voltasse a paz.

Não é preciso dizer que êsses larápios e desocupados (sem falar dos pacatos alfaiates c caixeiros que tinham ido tomar um pouco de ar e se deliciar com um copo de cerveja) não eram marinheiros ideais. Quando aprendiam a diferença entre os estais dos mastros e o amantilho do leme, estavam prontos para serem mortos por uma bala inimiga ou por uma das doenças que os sentenciados levavam para a frota e que transformavam tantos navios em hospitais flu­tuantes. Era portanto preciso lançar mão de alguns marinheiros de verdade, e êsses só podiam ser encontrados nos navios mercantes. Daí a idéia de esperar a volta dos barcos cargueiros e de se apoderar de parte de sua tripulação. E quando os navios mercantes ingleses já tinham sido todos despojados dos seus homens (ao ponto de al­guns não poderem mais içar uma simples vela de mezena), os pre­postos de Sua Majestade começaram a abordar as embarcações es­trangeiras, e sob o pretexto que todos os jovens de bom aspecto eram na realidade inglêses desertores, alistavam-nos (com o auxílio de algemas e correntes) nas forças que combatiam o poder maléfico do despotismo e da autocracia.

Êsse hábito (pois se tornou um hábito) vinha sobretudo pre­judicar os americanos proprietários de navios. Um capitão dinamar­quês ou holandês podia com facilidade mostrar as diferenças entre um inglês e um dos seus patrícios, mas como poderia um coman­dante de Charlottesville provar que John Doe, que trabalhava com êle> nascera em Salem, em Massachusetts, e não em Salem, na Ja­maica? Havia, na verdade, os papéis.

Mas já se viu um marinheiro que se incomodasse com tolices como certidões de nascimento ou passaportes? Não, os comandan­tes americanos nada podiam fazer senão entregar-se à sorte e fugir se o seu navio fosse veloz, ou então submeter-se ao exame quando as balas inglêsas começassem a tirar lascas dos seus gurupés.

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Enquanto a travessia do oceano estava nessas tristes, tristíssi­mas condições, sobreveio para Jeíferson o dia de arrumar suas ba­gagens e deixar a capital do país. ( ’orno Washington, o terceiro presidente dos Estados-Unidos estava mais do que desejoso de de­dicar o resto dos seus dias aos seus cavalos e cachorros. Tinha ses­senta e seis anos de idade e gastara as quatro últimas décadas a serviço da pátria. Poucos homens prestaram tantos serviços à nova nação como esse astuto velho virginiano, e poucos (com exceção tal­vez de Washington) foram tão escandalosamente injuriados por su­postas faltas. Seus amigos ofereceram-lhe um terceiro quatriênio, que recusou. Daí em diante seria apenas um espectador. Voltou para Monticello, dedicou-se à construção da Universidade da Virgí­nia, pregou calmamente a sua doutrin: de bom-senso e independên­cia pessoal e deixou os negócios do Est ido entregues a seu bom airw- go James Madison, que durante oito anos fôra seu Secretário de Estado e devia portanto conhecer como ninguém a situação es­trangeira.

James Madison, o nosso quarto presidente, cra menos idealista do que os seus predecessores, e oito anos como Secretário de Esta­do tinham-lhe destruído tôdas as ilusões sobre a bondade da raça humana. Fôra obrigado a engolir os insultos dos agressivos minis­tros ingleses (o primeiro representante inglês na nova República tora escolhido, com raro tato, entre os filhos de uma família de le­galistas americanos), e ao ouvir no momento seguinte os seus pro­testos de amizade, tinha descoberto as deslealdades dos diplomatas de Napoleão, que lhe falavam de sua ¡morredoura admiração pelo grande Dr. Franklin; sabia que nem uns nem outros ligavam a mínima importância aos direitos do ccmércio americano e não alte­rariam a sua conduta criminosa enquanto não se vissem forçados a isso por um número respeitável de cruzadores americanos.

■ • Os ultimatos no papel não adiantariam nada; vira-o bem no dia fatal em que o navio inglês Leopard, com os seus cinqüenta canhões parara a fragata americana Chesapeake (saída recentemente do an­coradouro e que nem tinha seus canhões em posição); vinte e um homens foram mortos ou feridos, quatro supostos desertores foram presos, e depois o navio inglês juntou-se calmamente à esquadra que estava em Norfolk abastecendo-se de água. O incidente fôra naturalmente comunicado a Londres, e a chancelaria inglêsa pro-

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meteu desculpas formais. Mas a missão de dizer aos americanos quanto os seus amigos ingleses lastimavam essa insultuosa quebra de neutralidade, senão de hospitalidade, foi confiada a um desses emis­sários incapazes que, desde o início da nossa independência foram julgados bastante bons para o posto de Washington e que são mais responsáveis pelo mal-estar entre as duas nações do que todos os exploradores de óleo c carvão habitualmente responsabilizados pe- Jas rivalidades existentes entre as duas grandes democracias.

Êsse período de conferências e surda irritação prolongou-se por mais quatro anos, enquanto as revoltas dos índios (que se acredi­tavam mstigadas pelos agentes ingleses), as batalhas abertas entre os navios americanos e as quadrilhas de recrutamento inglesas, as grandes reviravoltas da política interna que trouxeram à arena um novo e violento partido, o dos “Jovens Republicanos”, faziam com que o govêrno de Madison não fosse exatamente a era de paz e boa vontade sonhada pelos fundadores da República.

E a guerra, que finalmente rebentou entre a antiga Metrópole e sua ex-colônia, fêz passarem momentos desagradáveis aos que ainda ¿e lembravam dos dias altivos de Saratoga e Yorktown.

Havia dolorosas dissensões entre os diferentes Estados. Os no­vos inglêses, de cujo “espírito mercenário” e de cuja “falta de pa­triotismo” Washington se queixara tão amargamente quando assu­miu o comando do exército, mostravam mais uma vez que se con­sideravam um povo à parte. O Ato de Embargo e a Lei de Absten­ção tinham sido letra morta para eles. Desde os tempos da velha colônia de Plymouth tinham-se dado ao contrabando e lhes tinha sido muito fácil burlar as medidas do Congresso que proibiam os negócios com a França e a Inglaterra. Quando, porém, a guerra foi declarada, viram-se obrigados a interromper seu comércio ilegal e a pensar um pouco no país. Então começaram a censurar aberta­mente os seus vizinhos do Sul e do Oeste por se terem empenhado numa guerra sem causa justificada — os jornais começaram a re­clamar que se anulasse a declaração — e os delegados de cinco Es­tados da Nova Inglaterra, reunidos em Flartford, elaboraram um plano completo para a fundação de uma Confederação independente da Nova Inglaterra.

Em tais circunstâncias seria absurdo pensar em qualquer coi­sa que se assemelhasse a uma brilhante vitória militar — a um no*

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vo assalto fulminante à cidadela de Quebec — a uma outra surpresa triunfante cm Montreal.

No mar, onde a marinha mercante americana lutara durante quase doze anos contra inimigos muito mais possantes, os encontros terminaram pelo triunfo dos Estados-Unidos.

Mas em terra um desastre seguia-^e a outro.Foi sem dúvida um dia de exaltação para todos os bons patrio­

tas aquele em que o jovem Henry Clay de Kentucky declarou que a milícia de Kentucky bastaria para conquistar o Canadá em menos de um mês. Mas quando se soube que a milícia, ou se re­cusava a combater, ou não queria sair do seu território para per­seguir o inimigo, ou insistia para ser dissolvida no mesmo dia em que terminasse o seu prazo de alistamento (tôdas essas coisas se deram), então até o ardor dos jovens “Falcões de Guerra” come­çou a esfriar.

Quando valiosas fortalezas americanas se renderam sem dar um tiro (como aconteceu em Detroit em agosto de 1812), quando a capital americana ficou à mercê das tropas invasoras (que incen­diaram a cidade, a Casa Branca e outros edifícios públicos, pretex­tando que “os civis tinham atirado sôbre os soldados”), quando os marinheiros inglêses puderam queimar e saquear à sua vontade no coração de Marvland, houve um tal clamor de indignação contra o infeliz e mal-servido presidente, que nem mesmo a tão celebrada vitória de Perry nos Grandes Lagos póde impedir a queda do seu partido.

E então foi a Europa quem misteriosamente salvou a Repú­blica Americana de maiores humilhações. A coisa se passou assim. As intermináveis guerras napoleónicas haviam esgotado completa­mente a Grã-Bretanha e o país estava na beira da ruína. Final­mente, em outubro de 1813, Napoleãc fôra derrotado em Leipzig e obrigado a um exílio voluntário na ilha de Elba. O govêrno bri­tânico estava com as mãos livres e podia reunir um exército de ve­teranos em Quebec e Montreal para reconquistar as províncias re­beldes da América. Mas no momento preciso em que terminavam os preparativos para a grande campanha, o Monstro Corso fugiu e pisou de novo em terra européia, e a Inglaterra foi chamada a fornecer o seu contingente para os exércitos aliados. Depois da vi­tória de Waterloo e a conclusão do tratado de Paris, havia cm

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média uma pessoa sôbre sete na Inglaterra completamente arruina­da pela guerra, e assim pareceu absurdo e pernicioso continuar um conflito pelo qual ninguém mais se interessava. Além disso, agora que Napoleão estava cm Santa Helena, a maior parte da esquadra britânica se tornara inútil, e não havia mais necessidade de recrutar marinheiros estrangeiros para o serviço de Sua Majestade.

A principal causa de conflito estava portanto removida, e os dois países ansiavam pela paz.

Nesse tempo a cidade de Gand, em Flandres, era o maior cen­tro de interesse diplomático. Ficava bastante perto do canal inglês e não muito afastada da fronteira francesa; permitia assim ao ramo restante da Casa dos Bourbons fugir aos perigos possíveis de um e outro lado com um mínimo de incômodo e um máximo de segu­rança pessoal. Os delegados americanos dirigiram-se portanto a Gand, onde, depois das delongas e deliberações habituais, assina­ram um tratado que não modificava coisa alguma e deixava tudo como era quatro anos antes. Isso aconteceu a 24 de dezembro de 1814. Duas semanas mais tarde, antes que as notícias da conclusão da paz tivessem tido tempo dc atravessar o oceano, as tropas bri­tânicas, que se dirigiam sôbre Nova Orléans, foram completamente destroçadas por um general dc bandoleiros, o velho Hickorv Jack- son, e assim as últimas forças britânicas foram expulsas dos Es­tados do sul.

Êsse encontro não influiu nas decisões finais dos plenipoten­ciários de Gand. Mas depois de quatro anos de uma série quase ininterrupta de derrotas, deu ao país uma sensação de confiança em {.i e de esperança, de que andava muito necessitado.

No entusiasmo do momento ficaram esquecidos os homens que haviam guiado a nação durante a crise perigosa das complicações européias. O imprevisto herói das montanhas de Tennessee era o herói do dia. E isso simbolizava a transformação que se operara na men­talidade americana durante os últimos anos da guerra.

Os homens da velha geração, nascidos e criados como colonos de uma potência européia, nunca perderam o hábito dc pensar cm à maneira da Metrópole. Tinham-se tornado americanos independen­tes como mau grado seu, impelidos a dar êsse passo por força de algumas circunstâncias que nunca entenderam bem.

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Mas a gente que agora ia tomando os primeiros lugares, nada tinha a ver com esse dualismo de lealdades.

Nascera na América, aprendera a ler em escolas americanas, nunca fora à Europa e nem sabia se já tinha visto algum europeu.

Depois, no início de sua carreira, tinha sofrido tôda sorte de di­ficuldades e privações, porque algumas nações européias e um ge­neral francês (ou italiano, isso não importava) haviam escolhido tsse momento para uma luta absurda pelo predomínio da Europa.

Isso convenceu aos jovens que tedos êsses inglêses, franceses e russos, seus reis e imperadores com seu séquito maneiroso dos cor­tesãos eram uma turba desprezível. Mas como no mesmo tempo êsses potentados podiam fazer sentir a sua influência através de três mil milhas de oceano, o desprêzo ostensivo era misturado cie receio íntimo, e da combinação desses sentimentos disparatados nasceu uma desconfiança que se manifestava na determinação ina­balável de não ter mais nada a ver com as coisas do velho c o n t i ­nente — uma espécie de fascismo pr mitivo americano, uma mani­festação do espírito de Sinn Fein.

Ate 1814, pela força do hábito, a América fôra uma colônia emancipada. Depois da última e des istrosa visita da mãe-pátria é que se tornou realmente independente.

Voltou deliberadamente as costas para o Leste, de onde lhe tinham vindo todos os seus aborrecimentos, e com uma coragem re­soluta fitou as risonhas montanhas e planícies do Oeste, que pare­ciam encerrar as promessas de uma iova vida, cujas possibilidades ainda não havia sabido compreender

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CAPÍTULO XXXVI

O PR ESID EN TE JAMES MONROE C UM PRIM ENTA A SANTA ALIANÇA E SIMAO BOLÍVAR IN IC IA A FUNDAÇAO DE UM NOVO MUNDO

Km 1809, poucas semanas após a retirada do Presidente Jeffer- ron, os Estados-Unidos foram visitados por um jovem, portador do jiome melífluo de Simão Bolívar. Natural de Caracas, na Venezue­la, era filho de um homem rico, aos vinte e seis anos já era viúvo, e. acima de tudo, era um curioso.

Durante o seu tempo de estudante em Paris fora testemunha de vista de muitos dos gloriosos e de muitos dos tristes feitos da Revolução. Agora queria observar como funcionava o sistema po­lítico posto em prática pelos rebeldes americanos. Depois tencio­nava voltar para sua terra e ver o que poderia fazer por cia. Havia rumores de descontentamento na colônia onde nascera. Mas havia rumores de descontentamento pelo mundo inteiro depois do dia fa­tídico em que o Rei Luís fora decapitado. Restava saber o que ha­via de realizável nesses discursos sobre independência e governo au­tônomo.

A historia que vou contar é um pouco complicada mas profun­damente interessante. Vem provar a verdade de uma coisa que eu disse no último capítulo: que somos os passageiros de um pequeni­no planêta e que nenhum de nós pode esperar atravessar a vida sem sofrer a influência da sorte dos vizinhos.

Durante o século XVIII, a Espanha, que dominava quase tô- <da a America do Sul, havia-se aliado à França e, indiretamente, fi­zera tudo para auxiliar a causa da liberdade americana.

Tal política lhe valera a inimizade da Inglaterra e pagou, em i. rafalgar, onde Nelson destruiu as esquadras francesa e espanho-

ia, a ajuda prestada aos rebeldes vitoriosos.

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Depois disso, viu-se a Espanha (a não ser por intermédio de um ou outro navio mensageiro) sem nenhuma comunicação com sua» colônias americanas. Mas se os ingleses contavam que os colonos aproveitassem a ocasião para se declararem independentes, ficaram desapontados. A Nova Espanha não era a Nova Inglaterra. Res­peitava lealmente as suas ligações com a Metrópole, e quando Na- poleão tirou do trono o pobre e incapaz Ferdinando VII e o man­dou para Valença fazer coletes de tricô (Sua Majestade era muito hábil nesses trabalhos), os colonos, como um só homem, recusaram- se a reconhecer o novo soberano (um dos irmãos de Napoleão) e, em vez de obedecer aos novos governadores reais (que aos seus olhos representavam José Bonaparte). criaram êles próprios os seus governos e ficaram à espera do dia em que Sua Santa Majestade voltasse do exílio para de novo se proclamarem com orgulho seus muito humildes e devotados súditos.

A presença entre êles do verdadeiro senhor de Portugal, que em 1807 fugira dos seus domínios europeus e estabelecera sua côrte no Rio de Janeiro elevando o Brasil, a princípio de colônia a reino e depois de reino a império, (*) ainda mais concorrera para dar aos povos da América do Sul um sentimento de importância que nunca haviam experimentado nos velhos e sonolentos dias da administra­ção dos vice-reis.

Se a Espanha, depois das guerras napoleônicas, tivesse sido go­vernada por alguém que enxergasse dois dedos adiante do nariz, teria podido conservar as colônias mediante o expediente simplicís­simo de transformá-las cm domínios e governada por alguns dos príncipes Bourbons de menor importância.

Mas se todos os governos tivessem sido sempre sábios, não ha­veria história para escrevermos.

Assim que a Coroa espanhola pode restabelecer suas comunica­ções com as possessões sul-americanas, fêz uma tentativa para vol­tar aos bons tempos do século XVII. Mas então se viu que alguma coisa mudara c que uma nova influência social se fazia sentir nessa parte do mundo que até então parecera tão completa e irrevogàvel- mente submissa quanto Charleston na Carolina do SuL

Refiro-me à questão dos crioulcs.

(1) Pobre Brasil! Nem mesmo os fatos mais im portan tes de rua h istória*ão bem conhecidos... — N. do T.

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A äowtrina de Monroe

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Os crioulos eram descendentes dcs brancos que se haviam es­tabelecido nas colônias muitos anos, e alguns muitos séculos antes. Portanto eram brancos também eles, mas nascidos nas colônias; e esse fato, aos olhos dos oficiais que tinham visto a luz no Velho Mundo, marcava-os com um leve estigma social de que nunca se livrariam. Eram brancos e, diante da lei, iguais de todos os modos aos seus senhores espanhóis vindos de Castela ou Catalunha. Mas, na prática, viam-se excluídos total e absolutamente do governo d;: sua terra. Em resumo, deviam pagar os impostos e agüentar tudo com um sorriso amável, enquanto os governadores, uns após outros, enriqueciam à sua custa.

Não é preciso dizer que não gostavam disso. Mas, não possuin­do nem educação nem organização pol ticas, achando-se divididos em diversos clãs que se odiavam reciproca-nente, nada podiam fazer para melhorar a situação e permaneciam no estado que os nossos amigos ingleses chamam de “colonial”.

O jovem Bolívar pertencia a uma dessas famílias e era o legí­timo representante de tôdas as suas deficiências e qualidades. Era bravo, generoso, afeito a tôdas as fadigas físicas, sempre pronto a recomeçar a luta depois de ter sido batido na véspera. Mas fal­tavam-lhe as qualidades necessárias para conduzir ao triunfo uma re­volta feita em tão difíceis circunstâncias. Além do mais, criado co­mo um filho da aristocracia de província, habituado a mandar em vastos exércitos de índios dóceis e subalimentados, perdera o con­tato com a vida e não era, por conseguinte, o homem ideal para co­mandar uma tropa em campanha.

Na América do Norte, acontecera que os interesses da aristocra­cia rural da Virgínia e das classes comerciais de Boston coincidiam, ao menos até em um certo ponto, com os interêsses da maioria dos lavradores e operários, e por isso Getrge Washington e John Adams (representantes típicos de suas classes respectivas) puderam prestar grandes serviços à causa comum. Mas na América do Sul, onde os oficiais espanhóis, os crioulos, as castas intermediárias e os nativos eram todos figadais inimigos uns dos outros, as idéias de liberdade, igualdade e fraternidade tinham tanta probabilidade de criar raízes quanto uma semente de mostarda na Groenlândia.

Apesar, porém, dessas terríveis dificuldades, Bolívar no norte e San Martin no sul conseguiram cescncadear um movimento em

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Simão Bolívar dcixa Haiti

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prol da independência política que se alastrou por todo o contincn- ce e entregou o govêrno às velhas famílias locais.

Falando de um modo geral, êsse movimento começou em 1311 com um levante na Venezuela, e tern inou em 1823, quando o Mé­xico sacudiu o jugo espanhol.

Durou bastante tempo, e naturalmente o govêrno espanhol não ficou inativo à espera que seus filhos transviados voltassem ao redil. Ao contrário, os Bourbons fizeram o possível para reconquis­tar as províncias revoltadas; mas tinham perdido a maior parte de sua esquadra durante as guerras nap oleônicas; não havia mais um pêso nos cofres da família, e as mortíieras guerrilhas contra os fran­ceses haviam dizimado a população.

Mas nesse momento, quando tud) parecia perdido (até a hon­ra), a salvação surgiu através de uni amigo desconhecido.

A Europa, depois de quase trinta anos de combates ininterruptos estava cansada de sangue e guerra.

"Paz e ordem por qualquer preço” tornou-se o lema da geração que sobreviveu a Napoleão. Ora, a ordem e a paz podem sempre ser obtidas. Via de regra, o seu preço é a perda do govêrno pessoal e a substituição dos políticos profissionais por um parlamento eleito. Quando, porém, o caos é tão grande ( ue paralisa os negócios, encon­tram-se invariavelmente grandes cias-es da sociedade prontas para se sacrificarem. E foi o que acontece _i em 1S15.

Suas Imperiais, Reais e Sereníssimas Altezas continuaram de posse de seus tronos. Os radicais da antevéspera esqueceram-ss de que tinham pendurado retratos de Robespierre nas suas salas de visitas e, pela lealdade exemplar da sua conduta, conseguiram se tornar partes úteis e decorativas da sociedade altamente respeitável e fidalga dos conservadores maneirosos.

Uma situação como essa tem seu ado cômico. E durante a gran­de reação que seguiu a queda de N: poleão foi a Rússia quem for­neceu o indispensável elemento burlcsco.

O “paizinho” que então ornava c trono moscovita era um certo Alexandre, filho de Paulo. Êsse rap iz, desde o dia infeliz em que seu pai fôra assassinado, foi vítima disso que o vulgo chama “uma má consciência” . Por mal dos seus pecados, deixou-se enfeitiçar por uma baronesa teutônica, sentimenta e velhusca, que via espíritos e era adepta do “Novo Pensamento” . O “novo pensamento” de

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O mundo de Simão Bolívar

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1815 não era naturalmente igual ao “novo pensamento” de 1927, mas era bastante vago e obscuro para impressionar profundamente, a mentalidade confusa de um cidadão de segunda ordem como Ale­xandre Romanov. O resultado foi que o autocrata de tôdas as Rús- sias se proclamou o servo da vontade de Deus (revelada nos mo­mentos de transe pela velha Frau Krüdencr) e, na sua mania de salvar o mundo, tornou-se o pai espiritual de uma curiosa institui­ção política conhecida sob o nome de Santa Aliança.

Pelos termos desse eloqüente e solene acordo, os imperadores da Rússia e da Áustria e o rei da Prússia, em vista das bênçãos que a Divina Providência derramara sôbre êsses países que só nela pu­nham a sua confiança, resolveram não somente se guiarem estrita­mente pelos preceitos da Santa Religião isto é, a Justiça, a Caridade Cristã e a Paz, no govêrno de seus povos respectivos, mas também se auxiliarem mutuamente, e tendo-se confessado os pais de seus súditos e exércitos, convidaram tôdas as outras potências para se juntarem a êles para a maior glória da verdadeira Palavra de Vida.

Quando uma confraternização escolar ou um obscuro conclave do Ku-Klux-Klan se permite essa espécie de maluquice, os incon­venientes não são muito grandes. Mas quando o czar de tôdas as Rússias, o comandante em chefe de três milhões de guardas a ca­valo, guardas a pé e guardas de corpo e dos cossacos, começa a falar docemente de fraternidade, é tempo da gente séria preparar suas espingardas.

Mas o único govêrno que no n omento pareceu suspeitar do3 perigos dessa União Imperial foi o inglês. Como os inglêses não são obrigados a obedecer aos parágrafos escritos de uma Constituição (pois não têm Constituição), podem fazer muitas coisas impossíveis para os povos que vivem à mercê de seus decálogos políticos. Por exemplo, podem deixar a direção dos negócios estrangeiros nas mãos de certas famílias com longa prática dêsses árduos terrenos de simu­lação e procrastinação, que se desempenham de suas funções muito melhor do que os amadores que a elas aspiram nos outros países.

Não quer isso dizer que todos os ministros dos estrangeiros in­glêses tenham sido brilhantes estadis:as e diplomatas. Mas embora fossem limitados os seus dotes oratórios ou os seus conhecimentos geográficos, êles sempre entenderam o verdadeiro sentido de meia

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Espreitando a armadilha

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dúzia de princípios domésticos e internacionais sobre os quais, du­rante os últimos quinhentos anos, a Grã-Bretanha alcançou seu fe­nomenal êxito comercial. E nunca (excetuando-se talvez a guerra da Criméia) permitiram que considerações sentimentais interferis­sem na sua habitual caça de libras, xelins e pence.

As altissonantes imbecilidades da Santa Aliança só consegui­ram provocar grande irritação entre a gente sensata que morava em Downing Street. E quando instados para se juntarem a ela, os inglêses enviaram uma carta de desculpas muito polida, assinada pelo Príncipe Regente, onde se informava ao Imperador Alexandre que a Grã-Bretanha, embora inteiramente simpática às máximas sa­gradas de Sua Majestade, preferia manter o seu isolamento.

Ouanro à América, nem se sabe se o czar jamais pensou em man­dar para Washington uma cópia do seu documento. Os americanos, é preciso lembrar, eram rebeldes ou filhos de rebeldes, e soberanos respeitáveis como Alexandre recusavam-se sumàriamente a reconhe- ct-ios como membros da raça humana.

Mas apressemo-nos cm acrescentar que essa atitude era recípro­ca. Talvez alguns americanos tivessem ouvido vagamente falar na Santa Aliança, mas sem sentir por ela mais do que uma curiosidade passageira, considerando-a como mais uma manifestação da tolice e ¿a vaidade dos europeus.

Depois vieram os anos terríveis nos quais as tropas do rei da Espanha, perseguidas em tôda a América do Sul, se viram obriga­das a se refugiarem em meia dúzia de fortalezas do litoral. E para complicar ainda mais as coisas, Sua M ajestade Católica foi, ela pró­pria, expulsa de Madrid por seus súdnos cansados de sofrer. A San­ta Aliança não podia deixar passar sem protesto uma tão abrupta interferência nos hábitos regulares da Divina Providência. O rei da França foi convidado a transpor os Pirenéus e restabelecer o seu

; irmão no trono de seus maiores. E depois de feito isso, devia ainda atravessar os mares e reconquistar as colônias rebeldes das tres Américas.

Êsse pequeno plano já era por si bastante árduo.Mas era somente o comêço.Os russos, que no século X I I se tinham estabelecido no Aiaslca,

principiaram a explorar gradualmente tôda a costa ocidental do

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Pacífico e tornaram as ilhas Farallonas, à direita da baía do S. Francisco, e aí levantaram um pequeno forte que distava apenas algumas milhas da Porta d ’Ouro. Todo êsse território ainda era completamente despovoado, apesar de alguns mapas e atlas o da­rem como fazendo parte do México. Estritamente falando, portan­to, essas tentativas moscovitas de colonização não deviam interes­sar ao governo de Washington, mas quando o czar proibiu a todos os navios estrangeiros (inclusive os americanos) de se aproximarem a mais de oito milhas de suas possessões americanas, muita gente cm Nova York e Filadélfia achou que a brincadeira estava indo muito longe, e que era um desses casos em que só se podia rir ou brigar — de preferência brigar.

Pouco depois as notícias dos jornais mostravam que o povo inglês partilhava dessa opinião. Depois da abertura das hostilidades no Chile e no Peru a Inglaterra tomara o lugar da Espanha no for­necimento de tôdas as coisas indispensáveis à vida. Se os Estados rebeldes, depois de terem içado suas belas bandeiras verdes, ama­relas e vermelhas, voltassem para o poder da Metrópole, os nego­ciantes inglêses teriam um prejuízo sério.

Era portanto de evidente interêsse para a Grã-Bretanha que alguém interpelasse firmemente o fundador da Santa Aliança e o fizesse desistir do seu intento. Razões de Estado, porém, tornavam preferível que êsse aviso não fosse feito diretamente por Londres. Mas a mensagem que George Canning, o Secretário de Estado, se­gredou através do oceano (e a segredou com tanto espalhafato que poderia ser ouvida de todos os cantos) foi a seguinte:

“Tomem a dianteira e façam o que quiserem para impedir a Espanha de reconquistar suas antigas possessões, certos de que os apoiaremos inteiramente com tôdas as nossas fôrças.”

Em conseqüência disso (e depois de consultar devidamente seus ministros), James Monroe, Presidente dos Estados-Unidos, falando oficialmente numa carta dirigida ao Congresso, a dois de dezembro de 1823, avisava as nações européias que estava fechada a estação da caça aos súditos americanos infiéis, e que, se isso estivesse no poder dos Estados-Unidos, continuaria para sempre fechada.

Era um passo arriscado.

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282 II. VAN LOON

Os Estados-Unidos não estavam em situação de fazer respeitar essa violenta proibição.

Se a Rússia ou a França tivessem querido decidir a questão pela fôrça dos canhões, o resultado seria muito problemático.

Mas o Presidente Monroe tinha outras habilitações para o seu alto cargo além das que adquirira como um dos mais prezados te­nentes de Washington e como o “Colonel House” do quatriênio Jef- ferson.

No início ele sua carreira tinha sido obrigado a aprender as vantagens de um bom blefe.

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CAPÍTULO XXXVII

A NOVA F £

Como cronista fiel e metódico, eu devia ter tocado em varios acontecimentos importantes que tiveram lugar nos primeiros doze ;¡nos do século X IX , aos quais, parece, não dei a devida impor­tância.

Devia ter recordado as aventuras dos jovens republicanos, suces-tão útil, e que salvara a União transformando a herança insolúvel da revolução numa nação segura e respeitável; mas durante os anos de pânico que se seguiram à últi­ma guerra inglesa, ele desfez o bem que fizera pugnando pela anula­ção e pelo separatismo.

Devia ter mencionado o no me de John Marshall, da Virgínia, que, como Chefe da Justiça ame­ricana elevou a sua Côrte à digni­dade de uma instituição semidivi- na, nunca hesitando em rasgar as legislações do Congresso que lhe

psrecesscm cm contradição com os sagrados dispositivos da Cons­tituição.

Devia ter falado do triste fim do Partido Federalista, que fôra sores de Thomas Jefferson e seus companheiros, que sobrepujaram os ;;ntigos federalistas no seu entusiasmo por um governo fortemente centralizado. Mas, por motivos diversos, êsses fatos carecem de im­portância comparados com as mudanças fundamentais que se opera­ram no modo de viver e de pensar de todo o país durante os vinte e quatro anos que medearam entre o governo do General Washington € o do General Jackson.

Essas mudanças, todos o sabemos, não se fizeram sentir muito

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intensamente a leste. Ficaram restritas ao sul e a oeste do país, ou»

como dizem os historiadores modernos, eram produtos das fron­teiras.

Em regra, uma vez verificado isso, seguem-se os hinos lauda­torios ao espírito empreendedor dos pioneiros, à sua independência» às suas maneiras bruscas e francas, embora corteses, ao seu senso da igualdade, ao seu desprêzo pelas convenções, ao seu respeito pela liberdade de opinião, ao cavalheirismo com que serviam aos vizi­nhos e amigos.

N ão resta dúvida que todos êsses elogios são em parte mereci­dos. Os sertanejos eram ativos e hospitaleiros. Trabalhavam com ardor, defendiam valentemente suas opiniões sem se incomodarem com o que pensavam os outros. Mas essas qualidades são também características de outros povos que desbravaram desertos, e, entre­tanto, nas outras partes do mundo, não conseguiram formar essa completa filosofia da vida a que podemos dar o nome de “ameri­cana” .

Então, onde está a diferença?Vou lembrar um simples alvitre, que talvez não seja verdadeiro»

Os povoadores inglêses, russos, francesas e holandeses que se aven­turaram pelas regiões desconhecidas da Sibéria, da índia, de Bornéu e da África permaneceram essencialmente inglêses, russos, franceses ou holandeses. Eram os únicos brancos numa sociedade de pretor?, amarelos ou pardos. Os vínculos que os ligavam (embora imperfei­tamente) à Metrópole eram a tábua ce salvação que os livrara do naufrágio num mar de isols.mento e desespêro, e tudo faziam para conservá-los intatos. Porque sabiam que, se os rompessem, estariam perdidos, degenerariam em meros vagabundos praieiros.

O pioneiro americano tivera uma formação social e econômica muito diferente. Os felizes cidadãos de Nova Amsterdam ou Fila­délfia poderiam lastimar a sorte e o isolamento dos pobres sertane­jos. Mas êstes não tinham consciência da dureza da sua vida. Cer­tamente, ela não era nada fácil. O mato era bravo — os mosquitos mais perigosos do que lôbos — havia pedras demais — as vacas e carneiros apanhavam moléstias que nenhum veterinário conseguia curar. Mas quanto ao isolamento — disso nem se lembravam. A solidão, no velho sentido da palavra, (les nem a conheciam, pois a sua sociedade era baseada em alguma coisa que o mundo nunca

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tinha visto e que, à falta de outra expressão melhor, chamarei de “iso­lamento organizado”.

O pioneiro do Oeste estava in- dubitàvelmcntc isolado, na signifi­cação restrita da palavra, que quer dizer: “colocar-se longe do resto do mundo”.

Mas tantos milhares de ho­mens semelhantes a êle tinham fei­to a mesma coisa no mesmo mo­mento: tinham-se também “coloca­do longe do resto do mundo” ti­nham feito com êle a viagem at i além dos montes Apalaches, — que o deserto deixou de ser a solidão irremediável e as matas perderam o terror do seu misterioso silêncio.

E os pioneiros, que não se sen­tiam mais sob o domínio do mêdo, resolveram que poderiam viver sem

os laços culturais que ainda os ligavam à civilização de sua moci­dade. Tomaram de seus machados, cortaram pelo meio os laços, exclamando: “Afinal!” E logo se puseram a procurar um plano de vida que fôsse a expressão perfeita das suas necessidades espirituais e das suas ambições econômicas. Com o correr do tempo, êsse pri­mitivo programa comunal tornou-se a lei que, embora não escrita, regia aquelas vastas extensões de terra que a energia e a perseve­rança dessa guarda avançada da civilização haviam submetido à vontade humana. Se aceitarem essa explicação do desenvolvimento do espírito da fronteira (que acidentalmente se tornou o espírito americano), poderão entender por que uma filosofia da vida, basea­da em virtudes tão positivas, continuava a scr estragada por aque­les estranhos e absurdos preconceitos que já iam desaparecendo ra­pidamente do resto do mundo quando os pioneiros os incorporaram a seu novo código de pensamento e conduta.

Mas êsse é um perigo inevitável na vida de exílio voluntário.Todos os livreiros, todos os editores recebem freqüentemente

manuscritos patéticos vindos de alguma aldeia distante, perdida

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nos campos; parecem ser o resultado dt toda uma vida de trabalho, e contêm informações que teriam sido muito interessantes há du­zentos ou trezentos anos. Em tais casos, o prejuízo real não é mui­to grande. O editor escreve uma cart:i com todo o tato de que é capaz o seu secretário, e, nalgum lugarejo perdido do interior, a três ou quatro dias de viagem das grandes cidades, um pobre autor que esperara àvidamente a glória e a ortuna, prepara o funeral de seus sonhos.

Mas quando os detentores de todo o grão, de tôda a madeira, de todo o cobre, da maior parte do c: rvão e do óleo do mundo se arvoram em profetas de uma nova era e sustentam que as normas de conduta e pensamento, práticas e necessárias nas suas pequenas comunidades, deviam de ora em diante ser aceitas como leis funda­mentais de um mundo que evoluíra de modo completamente diver­so, então a coisa se torna séria.

Os homens das fronteiras que lutaram ao lado de Washington e foram os leais companheiros de Jeff;rson, que ajudaram a reunir as treze pequenas colônias numa nação poderosa, ainda se conside­ravam uma parte da civilização mundial.

Os novos pioneiros dos anos vinte e trinta, como já expliquei algumas páginas atrás, viam-se sob um aspecto muito diferente. Eram muito impetuosos para serem bens e leais cidadãos. Mas que­riam a todo transe ser bons e leais cidadãos, de acôrdo com os ideais o!e “bondade” e “lealdade” que continuavam a prevalecer numa par­te do país que se afastara voluntariamente do resto do universo, que preferia velas de sebo a lâmpadas de óleo.

Acreditavam tão firmemente na superioridade de seu evange­lho, que esperavam poder algum dia evar a boa nova aos seus vi­zinhos do Norte e do Leste.

Nenhuma mensagem nova, porém, pode caminhar sem um após­tolo.

Até então a propaganda da nova fé havia sido abandonada aos cuidados dos profetas menores. Esperava-se o verdadeiro Jeremias da Democracia.

Éste apareceu em 1824.Concorreu à Presidência dos Estados-Unidos com o seu rótulo

de sertanejo, e não era outro senão o nosso velho amigo Andrew Jackson, o herói de Nova Orléans.

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CAPÍTULO XXXVIII

DITADURA

A primeira tentativa de Jackson para alcançar o poder fracas­sou, e fracassou por tão pouco que os discípulos do novo Messias fala­ram em altos brados de traição e impiedade. Porque, desde que o seu candidato era “o escolhido do povo”, e desde que o povo, quando ex­primindo a sua vontade por maioria, é o porta-voz de Jeová, qual­quer medida tendente a contrariar sua decisão era considerada um insulto direto e pessoal à glória do Todo-Poderoso.

As terríveis manifestações de fanatismo e as denúncias que se seguiram à derrota de Jackson em 1824 causaram tan to maior im­pressão quanto mais a política, durante os últimos vinte e cinco anos, tinha feito esforços para se tornar uma profissão respeitável.

Os seis primeiros presidentes dos Estados-Unidos foram cida­dãos altamente respeitáveis, formados em colégios e universidades famosas, versados no tra to das letras e nos usos da sociedade, vete­ranos do velho grupo que fundara a República e erigira a Consti­tuição.

Nenhum deles fora jamais obrigado a sujar as mãos pegando num machado ou numa enxada.

Os gestos pessoais e a formação econômica de alguns deles os levaram a procurar nos fazendeiros o seu apoio político, e outros, a estreitarem a aliança com os negociantes, banqueiros e industriais do litoral. Mas quer representassem os ideais democráticos, quer os aristocráticos, todos eram levados por um desejo de servir honesta e eficientemente, e consideravam o alto cargo a que haviam sido chamados como uma recompensa semi-real que lhes viera às mãos porque os seus patrícios (seja isso dito com espírito de grande hu­mildade) os consideravam os mais capazes para a soberania temporal.

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Alguns eram dados às pompas, cutros erigiam em virtude a rusticidade de vida, mas nisso entravam as necessidades da política tanto quanto os gostos individuais, e eu nem gosto de pensar o que terá acontecido aos jovens e turbulentos aduladores que ousaram dar palmadinhas nas costas do Presidente Jefferson.

Faço essa ligeira digressão pe­lo re no da etiqueta porque, sem um perfeito conhecimento da pro­funda respeitabilidade da vida ofi­cial dos primeiros tempos da Re­pública, seria impossível imaginar o herror com que o Presidente John Quincy Adams (filho do re­volucionário John Adams) previu a chegada do seu sucessor.

Porém, àqueles que tinham ou­vidos políticos para ouvir e olhos sociais para ver, a eleição de Jack-

son parecia absolutamente inevitável. Não somente o centro de interesse econômico estava caminhando de leste para oeste, como tam bém Jackson era o candidato ideal para o partido que estava chegando ao poder. Homem de grande decôro pessoal (foi sem dú­vida o mais cortês dos presidentes), ê e era, por nascimento e edu­cação, um simples filho do campo, e assim continuou a ser, por pre­ferência pessoal, quando foi chamado p 2ra ser o chefe do poder executivo.

Os pais de Jackson mudaram-se da Irlanda para a Carolina do N orte em 1765. Dois anos depois, seu filho Andrew nascia, e ca­torze anos mais tarde o menino já era bastante taludo para se alis­ta r nas hostes revolucionárias, para tomar parte em algumas esca­ramuças e para ser feito prisioneiro des ingleses. A lembrança dêsse tempo perdurou em Jackson até o fim de seus dias, e morreu como vivera, um aberto e feroz inimigo da Grã-Bretanha.

Entretanto , o rapaz decidira escspar do trabalho penoso e in­grato da fazenda do Tennessee. Uma crença ilimitada nas possibi­lidades em potencial de cada criança (menino ou menina) fazia par­te do código do novo Oeste. Convicto disso, o jovem Andrew apro-

ü s abutres

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veitava suas horas de lazer estudando as leis e preparando-se para unia carreira política.

Em 1788 éle recebeu seu primeiro ordenado. Fora nomeado solicitador no distrito oeste da Carolina do N orte . Logo se elevou à categoria de congressista, e foi senador dos Estados-Unidos. D u­rante essa parte de sua carreira não se destacou a não ser por seu ódio de tudo que de longe lhe lembrasse os velhos dias da monar­quia, ódio que se exprimiu por uma oposição violenta à orientação do General Washington e ao apoio que prestou ao caráter duvidoso do Vice-Presidente Aarão Burr.

Mas, uma vez livre de Washington e dos outros guardiães da civilização, viveu uma vida áspera e trabalhosa. Ajudou a elaborar a Constituição no seu Estado de adoção — foi durante vários anos juiz na Côrte Suprema de Tennessee — e foi tido como um dos ho­mens de futuro da República.

Êsses pacatos trabalhos nos terrenos da jurisprudência e da administração não o impediram de ser um cidadão turbulento e de tomar parte num grande número de duelos. Quando e por que ti­veram lugar êsses perigosos encontros, não o sabemos, mas numa sociedade que chegara a um grau extremo de saturação, qualquer palavra podia desencadear uma discussão, e uma discussão em 1800 era invariavelmente seguida por um pedido de “pistolas para dois”.

Nesses encontros aconteceu várias vêzes a Jackson m atar o adversário. Noutras ocasiões não tinha tan ta sorte e um ferimento, recebido em 1806, continuou a atormentá-lo até a morte.

Depois vieram a última guerra inglêsa e a revolta dos índios em Alabama e na Geórgia. Como comandante em chefe de um pe­queno destacamento de milicianos, Jackson perseguiu os selvagens pelo deserto a dentro, e na batalha de Ilorseshoe Bend destroçou-os tão completamente que nunca mais tentaram ameaçar a segurança dos Estados do sul.

O êxito dessa campanha valeu-lhe um põsto no exército regu­lar. Foi mandado para o sul, que conhecia muito bem, ocupou os pontos da Florida onde os inglêses esperavam fazer suas bases de abastecimento e salvou Nova Orléans pela derrota infligida, em Pekenham, às forças expedicionárias inglêsas.

Depois, como governador militar de Nova Orléans, desafiou to­das as leis civis, baniu um juiz federal que lhe queria fazer oposição,

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viu-se envolvido num processo de desrespeito aos tribunais que se arrastou por perto de trin ta anos. Depois veio outra campanha contra os índios. A península da Florida, nominalmente sob a ju ­risdição da Espanha, mas pessimamente administrada e completa­mente abandonada pelos Bourbons, era usada como base de opera­ções por um largo número de nativos e por muitos vagabundos e ladrões. Finalmente, em 1818, uma guerra regular começou entre os seminóles (remanescentes da velha confederação dos crcks) e Os habitantes do sul da Geórgia. Os semi íoles empregaram o seu velho estratagema. Fugiram dos domínios dos Estados-Unidos e foram-sc pôr em território espanhol. Para Jackson, uma linha divisória num mapa não representava nada, a não ser uma desnecessária e irritan- re recordação da diplomacia do Velho M undo. Perseguiu os semi­nóles além das fronteiras espanholas, tomou possessão da Florida (embora os Estados-Unidos c a Espanha estivessem em paz), en­forcou dois negociantes britânicos que acusava de haverem favore­cido a rebelião dos seminóles, e depois se transformou numa verda­deira fúria quando soube que essa invasão de um território amigo não fôra vista com bons olhos em Washington, e que muitos cida­dãos respeitáveis do Leste queriam fazê-lo comparecer perante uma côrte marcial, pelo que chamavam o “assassínio” de Arbuthnot <; Ambrister.

Afinal o negócio deu em nada. .A Espanha vendeu a Florida ao3 Estados-Unidos por cinco milhões de dólares, as denúncias foram retiradas ou esquecidas, e Jackson foi nomeado governador militar do novo território, posição que ainda uma vez (como cm Nova Or- léans) o conduziu a violentas querelas com o poder judiciário e com todos os seus subordinados que ousavam de vez em quando ter opinião própria.

Foi êsse velho valentão que a assembléia geral de Tennessea indicou para presidente em 1822, indicação que teve o apoio de muitos honestos democratas. Jackson obteve a maioria de votos no colégio eleitoral: noventa e nove contra John Quincy Adams coni oitenta e quatro, William Harris Crawford com quarenta e um, e Henry Clay com trin ta e sete.

Para um espírito que aceitasse sem discussões o direito da maioria de governar, oprimir e algumas vêzes ludibriar a minoria, pareceria incompreensível que a Presidência lhe fôsse contestada

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O pioneiro

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por causa de um simples parágrafo nv.m documento de papel. M as como nenhum dos candidatos alcançara maioria absoluta, a decisão final foi entregue à Câmara dos Rep esentantes.

Foi então que Henry Clay pediu aos seus amigos que votassem em Adams, e foi portanto Adams quem foi para a Casa Branca. (3 General Jackson aceitou a derrota, mas deixou Washington firme­mente convencido de que fôra logrado e de que os odiados aristo­cratas do Leste haviam mais uma ve:i esbulhado os direitos do po­vo e despojado o seu representante de um cargo que lhe pertencia pelo direito moral da superioridade numérica, embora isso não fôs- se exatamente de acordo com uma antiquada lei escrita.

Auxiliado e insuflado por políticos hábeis do Leste, que explo­ravam as idéias prestabelecidas do velho lutador e lhe fortifica­vam a crença na corrupção e na maldade dos que não partilhavam <las suas opiniões, Jackson voltou para o seu “Hermitage” e se pre­parou para tornar à carga em 1828.

Nessa eleição êle contava com tedos os Estados ao sul de M a- ryland e a oeste das montanhas Apa aches. Além disso (pela hábil propaganda dos seus cabos eleitorais locais), recebeu os votos da Pensilvânia e a maior parte dos de Nova York; o resultado foi que teve duas vezes mais votos do que Adams e pôde ir para Washington investido do único papel que realmente se enquadrava com o seu temperamento: o de ditador.

A quatro de março de 1S29, o séquito da democracia triunfante marchava para a capital nacional. Mais de quinze mil pessoas vie­ram para ouvir o discurso inaugural do seu chefe, e todos os que puderam entrar, apertaram-se nas salas pequenas da Casa Brànca para testemunhar ao herói popular, com um caloroso aperto de am­bas as mãos, o seu apoio completo e a sua imorredoura estima.

Jackson se houve no novo papil com a sua amabilidade ha­bitual. Sorriu para os seus amigos humildes, permitiu-lhes calcarem aos pés seus móveis e tapetes, mas quando a manifestação terminou e tudo foi pôsto em ordem, assumiu a inteira direção dos negócios e, durante oito anos, governou o país segundo a sua vontade, imi­tando o exemplo de todos os déspotis clássicos e modernos.

Porque no fundo era conservador. Não no sentido em que o entendia a Nova Inglaterra. Mas conservador segundo o verdadei­ro espírito dos homens solitários das fronteiras, que rejeitavam, co­

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O pouso abandonado

mo inúteis e nocivos restos das velhas formas efeminadas de civi- iização, tudo o que não correspondesse a uma necessidade imediata, e que esperavam substituir as regras fortes e resistentes de uma aristocracia habituada a mandar pelos cânones intolerantes de uma democracia nova e inexperiente.

Se alguém esperou que o triunfo de Jackson significasse uma volta aos dias felizes em que os Estados eram superiores à Nação, íicou logo e amargamente desapontado, pois Washington, durante o governo de Andrew Jackson, foi, mais do que nunca, a capital de um império.

Os que predisseram a destruição do capitalismo, estribados no descaso de Jackson pelo Banco dos Estados-Unidos e nos seus de­sastrosos ataques a essa útil instituição viram-se também desmen­tidos, pois as tarifas, embora ligeiramente modificadas, não foram abolidas; os Estados agrícolas que tentaram ver-se livres dessa car­ga indesejável declarando, dentro das suas jurisdições, nulas e vãs as tarifas, foram logo ameaçados de uma intervenção das tropas fe­derais e rapidamente obrigados a usar o sêlo jacksoniano.

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E se havia espíritos bastante simples para acreditarem que uma pura democracia confiaria certamente cs negócios do Estado aos mais capazes, êles receberam o maior choque de tôda a sua vida quando todos os serviços federais foram transformados em sistemas de recompensas políticas, e quando a doutrina “ao vencedor o es­pólio’' (que já tinha aparecido em vários Estados muito antes da eleição de Jackson) foi erigida em norma de conduta do poder exe­cutivo.

Mas todos esses inconvenientes nãc são nada em comparação com os grandes e duradouros serviços que a ditadura jacksoniana podia prestar a todo o mundo americano.

Muitos dos contemporâneos do general falaram, naturalmente, com grande amargura dos métodos brutais e ásperos de seus novos senhores, comparando-os com as maneiras polidas das gerações an­teriores. Sentiam-se inclinados a concordar com o juízo de Thomas Jefferson sobre o famoso herói de N o \a Orléans, segundo o quai êste era, a um tempo, grosseiro, invejoso, astuto e apoucado, e de­nunciavam seus adeptos em termos que os políticos de hoje reser­vam aos seus amigos da longínqua Moscou.

Sentiam-se horrorizados ante a fa l t i de educação desses aven­tureiros que fumavam em plena Casa Branca (um a inovação de- sagradabilíssima) e faziam uma discussão absurda sôbre o passado de uma mulher degenerar numa acirrada luta pessoal que acabou com a retirada da metade do gabinete e causou um desentendimen­to irreparável entre o Presidente e o \ ice-Presidente.

M as tudo isso é apenas uma parte da História, e a menor. A outra metade estava escrita no capítulo do livro do progresso que reza não ser possível nenhum progresso durável que não leve em conta os interêsses de todo o povo e não apenas os de um pequeno grupo ou de uma combinação de grupos.

A emancipação dos pretos, por ter sido acompanhada de uma guerra dispendiosa e sangrenta, tem despertado muita curiosidade» A emancipação dos homens brancos, porém, é freqüentemente igno­rada porque se deu sem interferência nem dos carrascos nem das forças. Mas nesse movimento para libertar o homem dos últimos vestígios de sua antiga servidão, o d it ídor teve uma ação proemi­nente — talvez inconsciente, mas nem por isso menos importante.

O povo da fronteira podia não querer saber da existência da

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Europa, mas a Europa estava começando a ouvir falar dêle, e o éxito dessa grande experiência de govêrno popular na América ani­mou os europeus nos seus esforços para sacudirem um jugo que já se tinha tornado insuportável.

Primeiro na Inglaterra, onde o sistema feudal ainda campeava com um vigor revoltante, depois na França, onde os Bourbons h a ­viam ressuscitado as piores formas do absolutismo medieval, em se­guida na Áustria e na Alemanha, e mesmo na longínqua Rússia, fi­zeram-se tentativas para substituir o sistema usual da autocracia por uma forma representativa de govêrno. N a França c na Ingla­terra os esforços foram coroados de êxito. N a Rússia falharam in­teiramente. Na Áustria e na Alemanha obtiveram um triunfo par­cial. M as em tóda a parte causaram uma renovação das forças da democracia. E parte do seu triunfo foi devida ao fato de existir na América justam ente a forma de govêrno com a qu-al os reformado­res europeus vinham sonhando havia mais de cem anos.

Isso não quer dizer que os novos chefes americanos fossem mo­delos de sabedoria e virtude. Prouvera a Deus que o fossem! O ideal democrático, em mãos de pessoas incapazes, pode fazer mais mal em menos tempo do que qualquer outra forma de govêrno in­ventada pela ingenuidade hum ana. O pior de tudo é que tinha (e tem ainda) uma irresistível tendência para insuflar a mediocridade e para fazer uma virtude da ignorância e da incapacidade.

Por outro lado, dá liberdade a certas energias que são conde­nadas a serem eternamente reprimidas nas autocracias e plutocra­cias, para não falar nas teocracias.

Jackson foi culpado de terríveis desatinos de conduta e julga­mento. Uma vez encolerizado ou desconfiado, deixava-se levar a violências desastrosas, nos seus efeitos, para a felicidade e a pros­peridade do país. Mas, ao mesmo tempo, dava não somente à Amé­rica mas a todo o mundo uma lição de política prática de grande utilidade. Mostrou aos povos do Velho como do Novo Mundo que uma forma de govêrno popular podia manejar um império com ta n ­to êxito quanto a aristocracia mais experimentada. Não tão delica­damente, talvez, nem com tanto decoro, nem tão eficientemente, mas podia manter a administração num bom nível, e podia garantir maior felicidade, maior respeito à independência e à dignidade dos cidadãos do que qualquer outro sistema conhecido.

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Em tais questões é naturalmente impossível chegar a uma con­clusão baseada numa cópia irrefutável de estatísticas e depoimentos. M as a opinião dos visitantes contemporâneos é eloqüente.

‘'E ’ absolutamente insuportável”, disse Mrs. Trollope, lembran­do-se com amargura dos dias penosos em que fôra obrigada a ven­der tamancos e grampos às m atutas desgraciosas de Cincinnati, lem­brança que a impedia de descobrir alguma coisa de bom na grande democracia do Oeste.

Mas o Conde Alexis de Tocqueville, que não via o mundo atra­vés do ângulo desconfortável de uma prisão por dívidas e de uma pensão barata em Bruges, pensava de modo diverso. “H á alguma coisa nessa estranha experiência política”, confiou aos seus amigos. E tinha razão.

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CAPÍTULO XXXIX

RABISCADORES FRÍVOLOS E IN Ú TEIS TOCADORES D E FLAUTA

Pobres rabiscadores!Não tiveram uma vida muito alegre, e, para falar a verdade,

não eram muito interessantes.Seus contemporâneos tratavam-nos com pouca consideração,

e os que vieram depois miravam suas obras volumosas, davam de ombros e murmuravam: “M uito interessantes como documentos do desenvolvimento intelectual de nossa terra, mas que bagatelas! Pu­ra literatice!”

Para apreciarmos, porém, com inteira justiça, o estado das ar­tes e das letras na nova República, precisamos recuar mais de tre­zentos anos.

N um outro livro, eu comparei as grandes transformações sociais e espirituais a pedras arremessadas pela Providência na tranqüila lagoa da humanidade. Essas quedas produzem ondas agitadas que se alargam em todos os sentidos e alcançam os menores recantos da lagoa. Tornam-se mais fracas à medida que se afastam do centro, mas nunca se desfazem completamente. Podem, aparentemente, não causar grande rebuliço, mas mudam o aspecto plácido das águas, embora de maneira quase imperceptível.

A Renascença, que fêz os homens desviar os olhos das alegrias problemáticas de um problemático Céu e os voltar para as possibi­lidades imediatas de felicidade na terra tangível, originou sérias al­terações.

Nasceu na I tá lia . Depois atravessou os Alpes e alargou sua j esfera de influência por todos os países do Velho Continente, espa­

lhando por tôda a parte o novo evangelho da Divindade do Homem.A Inglaterra, separada do resto do continente pelo mar do Nor-

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te e pe!o canal da Mancha, foi a últirra a lhe sentir os efeitos. E de­pois, justamente quando as coisas i a n tão bem, quando os poetas, músicos, comediógrafos, atores e pintores da boa Rainha Elisabeth transformavam essa ilha isolada num remanso de alegria, o Dr. M ar- tinho Lutero e o Dr. João Calvino apareceram, jogaram uma tone­lada de controvérsias no bonançoso lago da Nova Humanidade e cau­saram uma revolução que perdura aié hoje.

Em resumo, antes que a Renasccnça tivesse podido conquistar inteiramente as ilhas Britânicas, a grande poderosa vaga da Refor­ma repeliu-a para longe, e mais uma vez fêz passar as alegrias du­vidosas de estar morto antes da satisiação mais positiva de se sen­tir vivo.

E, por um estranho capricho da História, a classe que tinha ficado mais impermeável aos novos ideais de uma “humanidade glo­riosa”, e que posteriormente mais se deixara empolgar pela Refor­ma, foi a que imigrou para o Novo M undo; como era natural, t ra ­tou logo de impor o seu código ético e suas normas de gôsto e con­duta a tôda a sociedade da América t o Norte.

Devem lembrar-se todos de um pequeno incidente da Revolu­ção Francesa. Os terroristas se haviam apoderado de Lavoisier, o íamoso químico, e o queriam levar à guilhotina. Seus amigos, de­monstrando uma coragem rara, pediram ao Presidente do Tribunal que poupasse a vida de um homem que era o maior químico do tempo.

“Ora bolas!” respondeu o dignitá io, “a República não precisa de cientistas. Cortem-lhe a cabeça!”

Os pastores calvinistas que governaram com mãos de ferro o Estado puritano tiveram uma atitude semelhante para com aque­les que se devotavam às inutilidades cas artes e não ganhavam sua vida trabalhando num escritório ou n im a indústria como faziam os cidadãos respeitáveis, tementes a Deus. %

Não decapitaram todos os pintores, escultores e escritores. Não tiveram necessidade de fazê-lo.

Êsses pobres diabos se isolavam por sua própria vontade, e, na esfera das artes, a Nova Inglaterra foi tão estéril como aquela ve­lha e nua terra da Judéia, o ideal dos undadores da Sião de Massa­chusetts, ideal que lhes enchia os coraoões do único entusiasmo cue não consideravam sinal de leviandade de espírito e fraqueza de alma.

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Reform a versus Renascença

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Devemos abrir uma exceção para alguns artífices. Os humil­des carpinteiros e pedreiros continuavam a trabalhar com amor em obras de primeira ordem. A arquitetura sempre fôra bem vista pe­los preconceitos calvinistas. Pois Salomão não tinha construído um templo cuja fama alcançara até a longínqua Abissínia? N ão estava o livro do Êxodo cheio de indicações sôbre colunas e madeiras, por­tas e trancas? Diante disso, davam completa liberdade aos esculto­res de madeira, e os poucos artífices de cobre e pra ta que ainda restavam nada perderam da habilidadi que os havia distinguido no Velho Mundo.

M as isso não era tudo.

A literatura, no mais amplo sentido da palavra, se tornara su­pérflua para um povo que via na Bíbl a a última palavra em m a­téria de beleza literária.

A Música, por sua vez, estava muito intimamente ligada aos prazeres mundanos do Teatro e da Dança para ser tolerada um só instante.

A arte de pintar nunca penetrara ias casas modestas de onde haviam vindo quase todos os imigrantes, mas as histórias de ateliers, ouvidas durante sua longa estadia nos Países-Baixos, os haviam convencido de que pincéis e palhetas eram invenções do diabo, das quais se deviam guardar tão cuidadosamente como dos baralhos e dos presentes de Natal.

Restava o palco. Mas o palco serrpre fôra objeto de um ódio particular por parte dos que pretendiam preservar suas almas de qualquer impureza. Faziam gestos de desdém à simples menção ds Shakespeare, e, quanto aos outos grandes teatrólogos elisabetheanos, nem lhes pronunciavam os nomes. Naturalmente, uma vida de tra ­balho sem uma única satisfação dessa necessidade de beleza que existe em todos os homens era muito tri>te. Mas as tenebrosas exor­tações das manhãs dos “sabbaths”, q u m d o as mulheres soluçavam e as crianças berravam diante das magníficas descrições do “grande e glorioso Além-Túmulo”, ofereciam u n a válvula às emoções artís­ticas do comum dos homens. De vez em quando uma orgia de fa­natismo, com o seu cortejo de frenesi e alucinações sádicas, vinha satisfazer os membros da comunidade que exigiam sensações mais fortes do que as imprecações contra Sodoma e Gomorra.

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Um escrevinliddor inútil

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A exceção de algumas coleções de salmos familiares, âs carti­lhas e das inevitáveis antologias de horríveis sermões religiosos, a contribuição americana para a arte dos séculos X V II e X V II I foi praticamente nula.

Tal estado de coisas não se podia prolongar indefinidamente.

Foi relativamente fácil expurgar a Comunidade dos Santos de todos os elementos perniciosos, enforcando os quacres e jogando os atores nas masmorras das aldeias. Mas quando a própria mocidade do país começou a se rebelar, a brincadeira teve de cessar e os an­tigos ditadores das consciências lançaram mão dessa destruidora guerra de retaguarda que ainda não terminou.

Infelizmente, no momento em que se dava essa emancipação das almas, o centro da nossa civilização começava a se deslocar de leste para oeste, e os pioneiros, que se haviam voluntariamente apartado de uma civilização que não lhes satisfazia os ideais de liberdade e independência, não podiam deixar de considerar as ar­tes como inúteis sobrevivências dos dias em que o mundo era go­vernado pelas mãos macias dos desocupados e das lindas damas ves­tidas de cetins e brocados.

Correram portanto muitos anos sntes que aqueles que tivessem alguma coisa a dizer ousassem exprimir seus pensamentos em livros e revistas, e a maioria dos autores dessa época remota tinha uma consciência muito clara de sua posição inferior na sociedade para criarem um estilo próprio, e (pelo menos no reino das letras) con­tentavam-se em ser inglêses transplantados. Algumas vêzes intro­duziam elementos americanos nas suas novelas, mas escreviam co­mo se não fossem em nada diferentes daquilo que ainda considera­vam “a mãe-pátria” . Com todos os seus infindáveis apelos para um patriotismo puro e impoluto, estavam muito menos conscientes da sua herança americana do que os ruiles homens das fronteiras, cu­jas virtudes puríssimas celebravam em seus poemas, mas cuja pre­sença nas cidades e na Câmara os er chiam de tristes agouros sôbre o futuro.

Alguns admiráveis trechos de p osa foram porém escritos du­rante êsse período. A Declaração de Independência foi inegavel­mente obra de um homem que conhecia o verdadeiro sentido e o valor das palavras, enquanto os autores do Federalista m ostraram

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<que não tinham aprendido a sua língua apenas na imprensa da No­va Inglaterra.

Êsses documentos, entretanto, eram sobretudo expressões de talento político e não um esforço para contribuir com alguma coisa de novo para o tesouro da Literatura; só a geração seguinte, com Irving, Hawthorne, Lowell e Longfellow se esforçou para dar uma jesposta altiva à ironia desdenhosa de Sydney Smith: “Quem lê os £vros americanos?”

Ainda então era impossível a um homem que não dispusesse <]e meios viver da pena. O respeito que cercava Lowell, Irving e Cooper era devido tan to à sua excelente posição social e econômica quanto à admiração pela obra que tentavam realizar. Quando, afinal, apareceu um artista de primeira classe (um homem isolado pela sua originalidade e pelo seu trabalho consciencioso), o simples fato de Poe ser um temperamento fantástico, um sujeito de hábitos extravagantes, foi suficiente para condená-lo a uma vida triste e tão desamparada que nem nos terríveis fastos de Grub Street é fá- Cil encontrar coisa que se lhe assemelhe.

Naturalmente, nenhuma raça provida de tantos talentos ori­ginais poderia viver para sempre sem alguma válvula onde expan­disse suas reservas inaproveitadas de entusiasmos artísticos e inte­lectuais. Muitos rapazes encontraram nas aventuras do Oeste um ¡meio de se afirmarem. Outros puseram a alma na construção de estradas de ferro ou no desenvolvimento dos negócios paternos. M as quando não tinham êsses respeitáveis modos de expansão, da­vam invariavelmente na única forma de profissão literária que não era unicamente exercida pelos desclassificados da época.

Refiro-me, naturalmente, ao jornalismo.

Que grandes e gloriosas coisas o mundo esperou do jornalismo desde o aparecimento dos Fatos Diários de César — como haveria de instruir as massas — como se alargariam as fronteiras quando cada homem, mulher e criança se tornasse cidadão de uma enorme pátria comum — como a democracia poderia assim triunfar das for­ças obscuras da ignorância e dos preconceitosl Sem dúvida, êsses sonhos generosos não se realizaram.

Inesperadamente, muitas das novas folhas não foram mais do

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que instrumentos da grande exploração intelectual das massas, e se tornaram abertos e poderosos inimigos da discussão calma e beai argumentada.

Mas antes disso acontecer (as desencantadas linhas acima fo­ram escritas, é bom lembrar, no ano 1927), os jornais prestaram al­guns bons serviços como abrigo aos que tinham alguma coisa a di­zer e não poderiam sem êles apresentar suas opiniões à consideração dos vizinhos.

Finalmente, já que com a literatura pura e simples não se po­diam obter meios de viver, havia uma outra maneira pela qual al­guns rapazes puderam evitar os bancos e os escritórios, dedicando- se a uma das formas de vida criadora.

Era o magistério.

As escolas ordinárias estavam ainda num estado muito rudi­mentar, e os colégios mantinham o seu cunho de origem, que os destinava a serem escolas de Teologia.

As pobres criaturas que traziam a desgraça de um espírito in­dependente não eram propriamente os professores ideais para as cadeiras de ensino oficial, como o Rev. Dr. Emerson e alguns dos seus mais distintos contemporâneos puderam atestar depois de amar­ga experiência.

N ão é possível pintar-se com côres risonhas o estado das artes e das letras nos tempos da colônia e do início da República. A vida era dura e má para os que sonhavam com coisas que o dinheiro não pode comprar, que davam mais valor a uma idéia do que ao pão nosso de cada dia. Mas essas árduas condições eram uma bênção disfarçada.

Quase todos os que podiam pedir, tomar emprestado, ou roubar o dinheiro necessário para uma viagem transoceânica, voavam pa­ra outras partes do mundo onde entravam em contato com formas de civilização que não tinham sido contaminadas pela geada resse- cante do calvinismo.

Muitos dêsses exilados voluntários voltavam tangidos pela sau­dade da pátria, e uma vez de novo no redil dos fiéis, continuavam a sua boa campanha, lutavam pelo direito de pensar, falar e escre­ver como entendessem, desafiavam a tirania dos fanáticos clericais

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e empenhavam todos os esforços para tornarem o seu próspero país uma terra digna de gente civilizada. Como era de esperar, a maior parte dêsses excelentes homens e mulheres foi tr istemente recom­pensada de seu trabalho generoso, e o isolamento intelectual em que viviam levou muitos dêles à loucura da embriaguez ou do suicídio. Só os mais fortes sobreviveram. E não foram os menos úteis dos pioneiros.

N a verdade, nunca puseram abaixo uma só árvore nem des­bravaram uma única légua de terra virgem.

Mas fizeram pequenas idéias brotar num solo ingrato que até então estivera coberto do pedregulho estéril dos preconceitos teoló­gicos e da arrogância dogmática.

E isso, por si só, já era um notável empreendimento.

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CAPÍTULO XL

O PR E SID EN TE SANTANA DO M ÉXICO VERIFICA QUE A NATUREZA TEM MESM O HORROR AO VÁCUO

Eis um simples problema de aritmética histórica.Sc o país A possui 50 000 000 de jciras de terras de que não

sabe o que fazer e o país B, seu vizinho, precisa justamente de mai* 50 000 000 de jciras; se o país A fôr fraco e o país B muito forte, quanto tempo se passará antes que o país B se apodere do terri­tório do país A?

A solução está na campanha do México.Um estranho episódio do desenvo vimento de nossa terra!A população do Norte se envergonhou tan to dclc, que mais

uma vez tentou se separar da União.A do Sul considerou-a uma cruza Ja santa.Quanto aos mexicanos, creio que a maior parte dtles nunca

ouviu falar nisso. Podem ter reparado na passagem de alguns ban­dos de homens armados. Mas isso não tinha nada de anormal. Um tiroteio mais ou menos era coisa hab itra l nesse pobre país. Porque se houve jamais uma anomalia entre as nações tão diversas da terra, foi certamente a boa terra do México. Outras colônias européias haviam sucessivamente proclamado sua independência por estarem desgostosas com as metrópoles. Mas o México, não. Os crioulos mexicanos fizeram algumas tímidas tentativas de libertação quando San M artin e Bolívar atacaram os governos espanhóis na América do Sul. Mas essas rebeliões mexicanas nunca tiveram grande im­portância e foram facilmente vencidas.

Depois, cm 1814, o Rei Ferdina ido VII, que era meio tolo, entendeu, apenas voltou da França, restabelecer a Inquisição e mandar m atar todos os que tinham sido contra êle; mas foi forçado por uma revolta de seus súditos a lhes restituir a Constituição de que os havia privado sete anos antes. A notícia dêsse feito chegou com uma surpresa desagradável aos oficiais de Sua Majestade no

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México e aos clérigos que se haviam apoderado de quase todos os bens de raiz mexicanos. O liberalismo sempre significou anticleri- calismo, hostilidade aberta contra a burocracia do Estado e a into­lerância religiosa (*). Na esperança de manter o sistema de reação e opressão que até então provara bem na Metrópole, as classes diri­gentes do México, de acordo com os chefes eclesiásticos, declararam

o país independente, e depois de algumas discussões sôbre a forma de governo, outorgaram a Coroa a um jovem crioulo, Agostinho de Iturbide, que em 1822 foi proclamado Imperador do México e com­partilhou do destino de todos os chefes de governo mexicanos, sendo fuzilado dois anos depois.

Tudo isso, porém, pouco tem a ver com a nossa História. O México, depois da revolução reacionária, tornou-se um país inde­pendente, herdeiro de algumas possessões espanholas que começavam perto do mar das Caraíbas e terminavam, ninguém sabia onde, entre as planícies e as montanhas do oeste remoto. Quanto ao número dos habitantes, também êsse era objeto de conjeturas.

De qualquer modo, aí estava um enorme pedaço de terra riquís­sima abandonada aos índios e aos mamelucos, e, pertinho dele, do outro lado do rio vermelho, os turbulentos e inquietos domínios da nova República cujo povo estava firmemente convencido de que a Constituição garantia a cada cidadão um pedaço de terra que real­mente lhe pertencesse.

(1) £ interessante notar que o ?nticlerica!ismo se liga hoje ao antiüberalismo. A Igreja, representante na terra da Ordem Suprema, é sempre visada pelas explo­sões de anarquia, sejam quais forem os seus rótulos. N. do T.

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Mesmo que o governo mexicano tivesse tentado expulsar os ame­ricanos de seu território, tê-lo-ia conseguido dificilmente, diante das contínuas desordens e do número d minuto dos guardas de suas fronteiras. M as os mexicanos não tinham a menor veleidade de se meterem nesse caminho. Ao contrário, recebiam de braços abertos os imigrantes, distribuindo largos pedaços de terra a todos os que prometiam trazer um certo número de povoadores.

Durante uns doze anos tudo correu bem. Depois o governo mexicano descobriu de repente que es’ava a braços com o problema de um Estado no Estado. Tal situação leva sempre a interminá­veis e delicadas negociações diplomáticas, e o General Antônio Lopez de Santana não era homem para resolver a crise. Tomado de pânico, decretou uma série de medidas destinadas a conter a torrente da infiltração americana, mas que não melhoraram a situação. Foram canceladas todas as antigas doações de terras, proibida a entrada de novos imigrantes e abolida a escravidão. A consternação foi grande entre os colonos americanos. O embargo sôbre os utensílios da lavoura e o cancelamento das doações vinha ferir os interêsses dos imigrantes em perspectiva a quem Moses Austin, ianque, havia persuadido que deviam vender suas fazendas a leste para preparar a viagem para as regiões longínquas do Sul. E o dacreto contra a escravidão foi um terrível baque para os proprietários do Sul, que esperavam ver, mais tarde ou mais cedo, todo êsse imenso território incorporado à União e reforçando o grupo dos escravocratas na Câmara e no Senado.

N ão sabendo exatamente o que fazer, êsses fazendeiros fizeram o que todos os americanos sempre fazem em circunstâncias idênticas: tra ta ram de se organizar.

Organizaram-se e em seguida, lrmbrando-se das histórias ou­vidas quando crianças, adotaram um certo número de medidas, for­mularam a sua Declaração de Indeperulência e chamaram voluntários.

Entretanto , dez mil faces ansiosas espiavam para a outra m ar­gem, indagando quando poderiam atravessar o rio das Sabinas e ir juntar-se aos seus companheiros. C< m mil outros homens sonha­vam com o futuro próximo em que possuiriam um sítio risonho no Texas, e dez milhões de cidadãos mais ou menos pacíficos, plan­tadores de fumo e manufatores de algodão, liam os jornais cuidado-

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O explorador e a terra de ninguém

ramente e apostavam nos méritos respectivos de Jim Bowie e Davie Crockett.

Alguns meses mais tarde, ambos esses heróis estavam mortos com uma dúzia de baionetas atravessadas no peito. T inham sido assassinados juntam ente com uma centena de outros americanos. Foram assassinados a sangue frio imediatamente após a captura de Santo Antônio pelas tropas de Santana, e a carnificina teve graves conseqüências. O povo, profundamente impressionado, reclamava vingança em altos brados. Pedia a guerra.

Mesmo então nada foi feito oficialmente, e os homens da fron-

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teira tiveram de resolver por si as driculdades. Sob o comando de Sam Houston, um sertanejo extraordinário, ex-governador de Ten- nessee e membro proeminente da tribo dos cherokees, derrotaram o exército mexicano, capturaram Santana e proclamaram a República Independente de Texas. Depois pediram para se tornar (o que já eram em tudo a não ser no nome) parte integrante dos Estados Unidos da América do Norte. O Su recebeu-os de braços aber to^ mas o Norte, temendo a perspectiva de mais um estado escravo­crata, combateu violentamente a idéia, e os Estados da Nova Ingla­terra recusaram-se firmemente a ratificar o tra tado até o ano dc? 1845, quando o Presidente Tyler assinou afinal a incorporação de Texas à União.

Com essa resolução, o governo americano tomava natural­mente a si todas as questões pendentes entre a República do México e a antiga República de Texas; e essas questões eram muito numerosas,

Êsse desagradável estado de coisas era em parte devido a u m i certa concepção errada das distâncias, muito comum 110 “far-west” - A gente de lá nunca se preocupa com quantidades miseráveis de terra como cinqüenta ou quinhentas jeiras. A sua unidade é cin­qüenta mil. E como o território vizinho do Rio Grande ainda não fora, a não ser em alguns pequenos trechos, percorrido pelos agri­mensores, era muito difícil dizer quais eram as terras de cada um» como e por que lhe pertenciam. Alas a ditadura de Jackson e a continuação de seus princípios pelo Presidente Van Burcn deram aos habitantes dos Estados ocidentais um sentimento de fôrça e independência que os tornava sempre prontos (e talvez mais do que isso) a combater os que se opusessem aos sagrados direitos que têm todos os bons americanos de levar suas leis benéficas a todos os recantos do continente, ou em linguagem vulgar, de se apoderarem do que lhes apetece.

Os que não compartilhavam dêsse ponto de vista (e eram nume­rosos a leste), denunciavam tôda essa agitação para aumentar o Texas como um mero ardil político, destinado a beneficiar os escra­vocratas e seus representantes no Congresso e no Senado. Mas, para a gente simples da fronteira, a coisa tinha um aspecto diferente: tôda essa terra que não era aproveitada por ninguém, fora explorada em primeiro lugar pelos americanos; os americanos eram os únicos que tinham tido coragem bastante para ir viver lá quando ainda era

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A emboscada

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um deserto; diante disso, em nome de que poderia ser negada sua posse aos americanos? Do seu porto de vista, êsses argumentos eram bons e valiosos.

Finalmente, como era inevitável, dados os temperamentos das duas partes, a anexação do Texas evou à guerra com o México. Essa guerra, embora prolongada desnecessariamente pela má von* í 2 de da milícia em se engajar por mais de um têrmo, foi ganha pelos Estados-Unidos. Terminou quando a México (em troca de alguns milhões de dólares) cedeu uma f a i o de terra quase tão grande como a Luisiana, que vai do Rio Grande ao Oceano Pacífico.

Mais ou menos no mesmo terrpo nossas possessões no oeste foram aumentadas pela conquista pacífica das distantes regiões conhecidas por Oregon. Assim, depcis do tra tado de Paz de Gua- dalupe-Hidalgo, o mapa dos Estadcs-Unidos tornou-se duas vezes mais vultoso do que era em 1845, e a América (no tocante ao terri­tório) teve de ser reconhecida como uma das mais importantes na­ções do mundo.

Imagino que os oradores dos anos quarenta, com as suas eternas referências ao “grande destino da raça americana” devam ter dado nos nervos dos seus contemporâneos. Assim sucedeu há alguns anos com os alemães e seu insuportável estribilho sobre “um lugar ao sol”. No fundo, uns como outros falavam da mesma coisa — cobi­çavam o que pertencia a outrem.

Nesse particular, porém, os americanos tiveram muito mais sorte do que os pobres prussianos. Nossos antepassados começaram sua procura de novas terras quando ainda existia um grande vácuo geográfico que pedia para ser preenchido. Os teutÕes, ao contrário, começaram a sua carreira de expansão (ladroeira, apropriação indé­bita, dêem-lhe o nome que quiserem) quando todos os recantos aproveitáveis da América, da Ásia, da África e da Austrália já estavam há muito ocupados pelas grandes potências e não sobrava nada para os recém-vindos.

Portanto a América triunfou e a Alemanha fracassou.Porque no mundo da política não importa o que fazemos, mas

quando o fazemos. E neese terreno nosso país sempre se deu bem seguindo êsse simples mas prático conselho: “Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje”.

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CAPÍTULO XLI

“ TIO SAM” e “ PAI JOÃO”

A distância sempre foi inimiga dos impérios.Nos séculos passados, a distância só era vencida por estradas

e canais. Portanto, apenas foi o país estabelecido em bases firmes e mais ou menos duráveis, o governo voltou sua atenção para o problema das comunicações diretas e baratas e começou a construir estradas e abrir canais na medida em que o permitia um tesouro fraco.

Por muitos anos, porém, a maioria dessas rodovias oficiais pare­ciam-se com a famosa esplanada de Ambrósio Bierce, que começava como um nobre bulevar e terminava com uma cauda de esquilo trepado numa árvore. Quando atingia êsse ponto (a cauda do es­quilo), o peregrino era abandonado à sua própria iniciativa e con­tinuava sua viagem como melhor lhe parecia.

Mesmo hoje, com a dinamite e todos os instrumentos de aço capazes de engolir de uma vez toneladas e toneladas de pedra, a construção de estradas é dispendiosa e complicada. O que era há um século, poderão imaginá-lo os que já tentaram abrir um talho entre a estrada de rodagem e a sua porta.

Por muito tempo, portanto, os imigrantes que se destinavam às fazendas longínquas do Oeste seguiam de perto os rios e os vales, evitando cuidadosamente tudo o que mesmo de longe se assemelhasse a um morro. Mas quando aumentou o número dos viajantes, quando o caminho por Hudson e Mohawk se tornou longo demais e cheio de voltas inúteis, a necessidade cavou um trilho na montanha, seguindo os atalhos por onde os índios, desde séculos, passavam quando iam de leste para oeste em busca de caça e vice-versa. Uma vez atravessados os montes Alleghanys, o imigrante que ainda pos­suísse alguns dólares estava salvo. Arranjava uma passagem numa das chatas de mercadoria, e chegava suavemente ao seu destino.

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Isso se descesse a corrente; se tivesse de subi-la, estava mal, porque tinha de caminhar pela margem.

A leste do país, o problema era menos complicado porque aí todos os Estados tinham a mania dos canais e empregavam milhões de dólares na construção de caminhos aquáticos. Mas o comum dos imigrantes desdenhava o leste e que ria ir para oeste dos montes Apalaches o mais breve possível. As dificuldades não foram resol­vidas enquanto James W att não olhcu para a chaleira de sua avó, dizendo: “Tenho uma idéia.”

Seria sem dúvida mais científico falar das invenções de Ilero, Thomaz Saver5r, Delia Porta e Diniz Papin. Mas, em primeiro lugar, ninguém entende menos de mecânica c o que eu, e, em segundo lugar, foi James W att quem aperfeiçoou a máquina a vapor até dar-lhe um valor prático e comercial; assim sendo, podemos nos curvar de pas­sagem ante os seus famosos predecessores, mas proclamando James o homem que fêz mais pelo desenvolvimento definitivo do país do que todos os estadistas, generais, bar queirós e valentões da última metade do scculo X V II I e da primeira do século X IX .

A princípio W att trabalhara exc usivamente para os proprietá­rios de uma mina inglesa que necessitavam urgentemente de uma máquina que lhes movesse as bombas menos dispendiosamente do que os cavalos. O século X V III foi uma época de grandes invenções. E apenas um engenho chegava à sua forma definitiva, logo em todos os países começava-se a experimentar e adaptar o complicado organismo a um carro ou a um bote' para torná-lo capaz de fazer o trabalho até então confiado aos homens e mulheres ou aos animais de carga. Como sempre acontece, rruitas pessoas achavam a ten­tativa impossível, mas outras apostariam até o último vintém como dentro em breve os “cavalos de ferro’ 011 os botes a vapor poderiam ser utilizados como meios de transporte. Alguns desses otimistas, como João Fiske de Connecticut, não acabaram bem. Reviraram botes e maqumismos até conseguirerr alguma coisa que flutuasse e conseguisse afrontar a corrente do escuário de Delaware. Mas con­trariavam com isso os interesses da navegação à vela, e como os negociantes que empregavam as embarcações à vela eram pratica­mente todo-poderosos a leste, os bancos não quiseram fornecer aos perigosos entusiastas o dinheiro para explorar uma coisa tão tôla como os barcos a vapor; os pobres inventores, ou foram cuidar de

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__ _______________________________O barco a vapor

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outra atividade, ou, como o infeliz Fiske, ficaram desesperados e se suicidaram.

Outros, como Roberto R. Livingston (cuja fama datava da Declaração de Independência), pensaram que não era bom p ô r ¡os carros adiante dos bois (ou da máquina, no caso), e pediram privi­légios para a exploração dos vapores em alguns rios c lagos, esperando mais ou menos pacientemente o dia cm que o negócio se tornasse comercialmente vantajoso.

O dia longamente esper ido pareceu chegar quando Carlota Dundas, um vaporzinho escocês, conduziu sua primeira carregação de carvão através de um canal da Escócia em 1802. Mas, com grande surprêsa dos construto es de Carlota Dundas, nada acôn- teceu, e o fato não despertou a menor atenção.

É difícil compreender essa indiferença do público e dos empfe- sários. Talvez fosse devida ao geral e profundo desapontamento causado pelos balões.

Quando José e Jacques Montgolíier embarcaram uma ovelha, um galo e um pato na primeira de suas viagens náuticas, os avós reuniram gravemente os netos e lhes disseram: “O momento é solene. Estamos na véspera de grandes coisas.” Alguns anos mais tarde, em janeiro de 1785, quando o americano Dr. João Jeffries e o francês Blanchard atravessaram o canal da M ancha no seu “nâvio aéreo’' recém-descoberto, o povo da Europa predisse esperançoso o fim das guerras e o advento da confraternização humana.

“Porque agora”, assim pensavam, r:a sua candura, “seremos todos vizinhos próximos e queridos uns des outros; as fronteiras desa­parecerão e os exércitos e esquadras se tornarão inúteis.”

A resposta dêsse voto veio sob a forma de duas décadas de ininterrupto derramamento de sangue. E o balão, depois de te r servido como posto de observação móvel para os exércitos da Revo­lução, degenerou em divertimento popular para os dias feriados.

Depois dessa experiência o público em geral ficara muito céptico no tocante às novidades científicas e era preciso coisa de muito maior vulto do que um naviozinho enfumaçado no canal de Clvde para cojn- vencê-lo de que uma embarcação mu lida de um motor e de uma hélice poderia realmente mover-se serr o auxílio d velas.

Houve um homem, porém, que tomou a sério a Carlota Dundas. Chamava-se Roberto Fulton e era u ; i pobre irlandês que morava

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em Nova York. Fulton começara a vida como vendedor de jóias. Depois tornou-se pintor de retratos (e muito mau p intor), mas en» 1787 já possuía algumas economias e estava em Londres estudando, com Benjamin West, um dos poucos quacres da Pensilvánia que se dedicaram à arte.

N a Inglaterra Fulton trabalhou também em mecânica, e quando por fim foi para Paris levando um ■panorama (alguém ainda se lem­bra o que era isso?) para presentear a cidade, levava também um plano de máquina submarina que devia tornar a França senhora dos mares.

Infelizmente para Fulton (e felizmente para a Inglaterra), N a- poleão era, no fundo, um condottiere medieval. Compreendia tão pouco os métodos modernos de guerra como o contemporâneo Lord Kitchner. Com a infantaria tinha ganho seus lauréis, e o torpedo sub­marino com que Fulton afundou um pequeno navio no pôrto de Brest não o interessou mais do que o barco a vapor que o inventor exibiu pouco depois no Sena.

O imperador nada percebeu das duas invenções. Devolveu a Monsieur Fulton seus planos e cálculos e graciosamente lhe per­mitiu que voltasse para sua casa em Hudson.

De volta à sua terra, Fulton a princípio repetiu as experiên­cias do Continente. O govêrno dos Estados-Unidos, a quem primeiro se dirigiu, não se interessou pelas suas idéias. Procurou então um apoio particular, entrou em contato com Roberto Livingston e ss pôs a trabalhar seriamente.

Construiu na América o casco do seu navio. 0 motor, porém, encomendou-o à firma Boulton & WTatt de Birmingham, na Ingla­terra. Era um valente motorzinho e deu tão bons resultados que o Clcrmont (o nome do primeiro vapor de Hudson Rivcr) teve um grande êxito comercial e em menos de um ano era pequeno para o número de passageiros que queriam ir de Nova York para Albany no tempo incrivelmente curto de trinta e seis horas.

Os longos anos de hostilidades entre os Estados-Unidos e a Inglaterra, seguindo-se imediatamente ao lançamento do Clermont e de seu companheiro o Fenix, prejudicaram sensivelmente o desen­volvimento da navegação a vapor. Mas em 1811, o Nova Orléans, construído em Pittsburgo, apareceu no Mississipi, e cm 1818 o Walk- irdhc-zvatcr roncava orgulhosamente no lago Erie.

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Depois de 1815, a viagem para Oeste teria sido muito facilitada se os vapores tivessem sido adotados nos grandes rios da região recentemente civilizada. Porque não somente bateriam as chatas des­cendo a corrente, mas ainda poderiarr subi-la com uma velocidade de quatro milhas por hora, coisa que as chatas nunca poderiam fazer.

Mas a navegação a vapor levou muito tempo para ser divulgada. Porque, nos primeiros anos, as companhias de vapores cuidaram muito mais de conseguir privilégios e monopólios dos caminhos aquáticos <lo que de desenvolver o seu negócio. Foi só em meados do século X I X que o tráfego dos vapores atingiu um desenvolvimento nor­mal e se tornou um dos fatores mais importantes do progresso do Oeste.

Enquanto isso, um outro antídoto para a distância fora descoberto.A locomotiva a vapor.Ela era contemporânea da navegação a vapor. N a verdade,

era mais velha, pois 110 Natal de 1801 uma máquina construída por Ricardo Trevitchick conduzira, deslizando sôbre patins, os primeiros passageiros pelas estradas de Cornualha, e três anos depois uma outra semelhante mas posta sôbre r^das, levara um pesado trem de carvão para Pen-y-darran no Paí de Gales. Depois, em 1813, outro engenheiro inglês, Guilherme Hedley, divertira o mundo com a sua Puffing Billy, e um ano mais tarde Jorge Stephenson sobre­pujou a Puffing Billy com um monstro de ferro ligeiramente mais aperfeiçoado que tinha o nome respeitável de M y Lord.

Depois disso, as locomotivas a vapor tornaram-se de uso geral nas regiões carboníferas da Inglaterra, e, finalmente, em 1825, o mesmo Stephenson convenceu os concessionários de uma linha de diligências que 0 vapor era melhor e nais barato do que os cavalos, e presenteou o mundo com a primeira estrada de ferro em condições de ser utilizada diariamente.

Êsses esforços para diminuir as distâncias entre as cidades com o auxílio das “máquinas de viagem” encontraram algum eco no Novo Mundo. Aqui e ali pequenos trechos de estradas de ferro foram construídos. Mas só podiam ser usadas com sol, porque as máquinas então começavam a patinhar assim que havia umidade nos trilhos, e, receando os horários incertos, os diretores voltaram a usar os cavalos e venderam as máquinas corro ferro-velho.

F.m 1828, porém, a construção Je linhas regulares dc estradas

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¿e ferro começou a ser feita seriamente. A quatro de julho dêsse ano, Carlos Carrol de Carrolton, o último sobrevivente dos signa­tários da Declaração de Independencia, pôs a primeira pedra na estrada de ferro de Baltimore a Ohio. Dez anos depois o país possuía rr.ais de duas mil milhas de estradas de ferro e vinte anos mais tarde a comunicação problemática entre leste e oeste estava definitivamente organizada.

James W att triunfara, e o mais humilde dos imigrantes podia agora fazer a viagem em tais condições de luxo e conforto que muita gente comodista, que até então preferira ficar onde estava, tomou ânimo, vendeu as terras rochosas da Nova Inglaterra e foi ao encon­tro dos parentes corajosos que, uma geração antes, haviam procurado a liberdade das matas e dos campos com um saco nas costas e uma espingarda ao ombro.

Mas agora que o problema do transporte rápido e barato de homens e animais estava resolvido, restava a questão igualmente importante de saber como se poderiam transportar idéias de um íugar para outro sem grande perda de tempo.

Curiosamente, foi outro pintor (mas agora um bom pintor) que empreendeu enfrentar a dificuldade, e a venceu.

Samuel Morse fôra educado em Yale, e durante o seu tempo de colégio se interessara muito pela eletricidade. Mas, embora filho de um pastor Congrecional, o apêlo da arte foi muito forte e fugiu para a Europa para estudar na França e na Inglaterra. Quando aprendeu sua arte, voltou para a América e auxiliou a fundação da Academia Nacional de Desenho. E, em 1822, quando ia pela se­gunda vez à Europa, uma observação feita ao acaso na sala de fuman­tes do navio deu-lhe a idéia de que era possível “transmitir instan­táneamente o pensamento com o auxílio da eletricidade”. Concebeu logo um plano capaz de realizar isso, mas doze anos se deviam passar antes que alguém desse atenção ao seu aparelho elétrico para “escre­ver à distância”. Mesmo então foi de decepção em decepção. Tentou por todos os modos interessar o Congresso, e o Congresso nomeou de fato uma comissão para estudar o assunto, e depois calmamente o foi sempre adiando. Diante disso falou aos banqueiros, mas êstes lhe mostraram as graves responsabilidades que pesam sôbre os om­bros de quem lida com dinheiro aiheio, e não lhe deram um vintém. Em seguida resolveu tentar a sorte em Londres, e só conseguiu que rissem à sua custa. Foi para Paris, pediu uma patente que foi

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recusada, e apenas partiu, descobriu que o governo francês estav>a se aproveitando de suas idéias sem lhe querer dar um cêntimo.

M as finalmente, após anos de incertezas e pobreza, logrou a boa vontade de um fabricante de arame de Nova Jersey, de nome Vail, e de um quacre de Nova York, Cornell (que deu ao mundo uma estação telegráfica e uma universidade), e a dois de setem­bro de 1827 conseguiu enviar uma men;agem dc uma sala para outra da Universidade de Nova York, através de 1700 pés de fio de cobre.

O resto era fácil.O Congresso, com rapidez desusada, votou o crédito necessário

para Morse construir uma linha telegráfica entre Washington e Bal- timore, e em 1843 (apenas cinco anos depois do pedido de fundos) Morse superintendia as obras dos primeiros telégrafos registradores eletromagnéticos, que em breve fariam Filadélfia vizinha de São Fran­cisco e Londres um subúrbio de Nova York.

Uma grande vitória para nossa te ira na guerra com a distância.Mas restava um outro inimigo, um traidor que seguira os

passos da humanidade desde o dia memorável em que o homem foi condenado a ganhar o pão com o suor cie seu rosto; seu nome é Fome.

Os que acreditam que a História é apenas a luta do homem pelo pão cotidiano com um pouco de manteiga e de geléia, devem lamentar que tan to a Declaração de Independência como a Cons­tituição tenham dado tão pouca importância a êsse espírito econó­mico que segundo êles domina tôdas as fases da evolução humana. E pretendem que isso foi devido ao fato de ter sido a revolução americana, sob muitos aspectos, uma revolução de homens ricos; dizem que os fundadores da pátria pertenciam quase exclusivamente às classes ociosas e quiseram libertar seus concidadãos para assim se apoderarem da “propriedade” e pôr o govêrno da República nas mãos “dos bons e dos instruídos” .

Tal opinião, porém, é unilateral e muito injusta para com os homens que andaram vagando pelos treze Estados durante a grande guerra da Independência. É verdade que em muitos Estados só os que possuíam uma determinada q u ar t ia (que variava de cinco mil dólares em Massachusetts a cinqüenta mil na Carolina do Sul) podiam exercer uma função pública, e só votavam os que pagavam impostos, mas não se pode querer que uma classe se suicide em benefício de outra, e a propriedade existindo no mundo desde os dias de N a- bucodonosor, não seria razoável esperar que alguns agricultores da

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Virgínia ou negociantes da Nova Inglaterra possuíssem virtudes que até em Moisés, o fundador da nossa lei moral, foram ligeiramentedeficientes.

Os Washingtons, os Hamiltons, os Adams e os Jeffersons eram todos representantes da escola econômica que prevaleceu na última metade do século X V III . Tinham sido criados na convicção de que nenhum governo estável seria possível se os que não tinham nada a perder tivessem os mesmos direitos e privilégios dos que arrisca­vam seu dinheiro, e agiram de acordo com esses princípios.

Além do que aprenderam no colégio, devemos lembrar em seu favor que pertenciam a uma geração que não era obrigada a pensar tan to em perdas e ganhos como o fazemos hoje. A vida em 1780 era relativamente simples, não se embaraçava com as mesmas com­plicações de 1880 (não querendo falar em 1927). Cada casa era uma unidade econômica independente. Cada um era seu próprio padeiro, açougueiro e fabricante de velas. As necessidades eram poucas e o luxo e os prazeres pràticamente desconhecidos. Os fazen­deiros do Oeste eram quase todos credores dos banqueiros por causa da compra das terras, dos bois, cavalos e carroças que levaram consigo quando disseram adeus à civilização e se embrenharam no deserto. Desde os primeiros dias da nossa existência colonial até agora sempre houve uma distinta barreira social entre a classe dos devedores e a dos credores, e as duas freqüentemente se injuriavam. M as o país era ainda tão rico que havia alimento bastante para todos nos campos, nas florestas e nos mares, de modo que poucos foram os rapazes que, no dizer de Thomas Jefferson (um dos cria­dores da teoria sobre as “fábricas vermelhas” e as “fazendas verdes” ), foram obrigados a se contentar com os caprichos e vicissitudes do comércio para poder viver.

Gradativamente, porém, o país começou a se encher, e o excesso de população foi obrigado a se alugar aos vizinhos que podiam sus­ten ta r um ou vários dêsses dispendiosos instrumentos da nova época mecânica conhecidos como engenhos, e que eram tão populares entre as massas como uma granada de mão numa trincheira recém-cons- truída.

Êsse foi o comêço do estranho círculo vicioso que logo envolveu o novo mundo e que tan to tem atrapalhado os filósofos dos últimos cem anos.

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O rendimento desses instrumento«? complicados era enorme. A gente que até então vivera numa simplicidade quase pré-histórica (um a casa de madeira com chaminé de pedra, alguma roupa, alimen­tos frugais e uns poucos móveis primitivos) começou a gozar de coisas que antigamente só apareciam nas casas e nas mesas dos monarcas opulentos. Logo se habituaram a êsse luxo desconhecido e reclamaram mais. Mas quanto mais conforto tinham, mais duramen­te eram obrigados a trabalhar, e mais crescia o número de moinhos e oficinas necessárias para suprir as enccmendas sempre crescentes.

En tre tan to os poucos homens ricos, proprietários dos maqumis­mos modernos e dos engenhos, precisavam, para manter os seus ope­rários em atividade durante o ano todo e para conseguir rendas con­tínuas, andar sempre à cata de novos mercados; procuravam colocar os seus produtos na China, na África e na Ásia, empregavam tôdas as artimanhas políticas para resguardar suas indústrias de prejuízos temporários. A súbita transformação do simples sistema agrícola da Idade Média, que prevalecera até dez anos depois da fundação da República num sistema altamente complicado de economia inter­nacional que se estendia rapidamente por todo o globo, causou uma profunda revolução nos hábitos e costumes de todos os países. No Norte e no Oeste da nossa terra, onde a sociedade se compunha quase exclusivamente de brancos, na maioria fazendeiros, a revo­lução se operou mansamente. Fêz-se lenta e gradativamente. Fot aceita como alguma coisa de inevitável. Houve naturalmente alguns atritos, mas raramente sanguinolentos, e a nova organização não destruiu uma civilização na qual, ao contrário, se foi integrando.

Mas não se pode dizer o mesmo do Sul, onde os homens proemi­nentes tentaram por todos os meios escapar às nefastas conseqüências do temível sistema industrial mantendo à distância todos os melho­ramentos mecânicos. 0 Sul era inteiramente agrícola. E a aristo­cracia rural, que dominava os Estados de Virgínia, Tennessee, Ken- tucky e as Carolinas, queria que continuasse a sê-lo. Os ianque« que poluíssem o ar com o bafo de suas máquinas resfolegantes. Quanto a êles, pretendiam continuar a viver como “gentlemen” e, à exceção de um ou outro engenho para beneficiar o algodão, não tolerariam a invasão industrial em terras que haviam governado desde os princípios do século X V II.

Mas, desgraçadamente, é preciso muito dinheiro para viver

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senhorilmente. E como tudo estava cada vez mais caro (com os salários sempre crescentes e o preço cada vez mais alto das ma­térias-primas), os fidalgos do Sul precisavam de muito mais dinheiro do que antes. Isso significa que tinham de plantar mais algodão e fumo do que antes. E que precisavam de maior número de braços para a lavoura. E que portanto necessitavam de mais escravos.

Mais uma vez o círculo vicioso do qual ninguém consegue esca­par ia decidir da sorte da nação. Mas, no caso, era um círculo vicioso de uma côr muito especial. T inha uma parte branca, uma preta, e uma côr de chocolate.

Como já disse, o historiador não se deve tornar moralista senão quando fôr absolutamente inevitável. Mas, por favor, deixem os que nasceram nas regiões da aurora boreal de erguer as mãos aos céus, num santo horror pelos terríveis sulistas que tinham escravo;;, pois o mundo sempre teve escravos. Com nomes diferentes sempre existiram desde que o homem soube se manter dc pé.

A doce serva dos Dez M andamentos era na verdade uma escrava. Os gregos sitiando Tróia lutavam pela pojsc de uma escrava par­ticularmente bela e sedutora. César, de uma feita, vendeu nada menos do que sessenta e três mil teutões como escravos. São Paulo considerava a escravidão como uma instituição indispensável. A Magna C arta reconhecia a existência dos servos. Em resumo, toda gente, em todos os tempos e lugares, sempre possuiu escravos. G ra­dualmente, a oeste da Europa e a leste da América essa instituição íoi sendo abolida, parcialmente porque o mundo foi obedecendo mais aos preceitos de Jesus do que aos dos teólogos, e parcialmente porque a escravidão se tornara menos lucrativa. Desgraçadamente, os industriais e os negros nunca puderam cooperar harmoniosamente, e na terra do “Tio Sam”, o “Pai João” sempre foi considerado um intruso indesejável e tra tado como um pária.

O sistema econômico que se fazia cada vez mais anacrônico no resto do mundo continuava a existir nos Estados abaixo da linha de Mason e Dixon, e teimava em não se alterar.

“M as”, poderão objetar, “os governos do Sul não entendiam o perigo que representava essa obstinação? Não sabiam que a escra­vidão estava condenada desde séculos por todos os homens c mulheres bem-intencionados — e que aos poucos iria arruinando a sua pros­peridade?”

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Evidentemente sabiam de tudo í s í o .Alguns sulistas mais ignorantes, como Andrew Jackson, podiam

ver na escravidão uma instituição semidivina, mas os verdadeiros dirigentes do pensamento do Sul abominavam-na. Apenas julgavam inútil dizer o que pensavam. Podiam insistir em que não se escre­vessem na Constituição as palavras “escravo” e “escravidão”, para que os seus vizinhos do Norte não os acusassem de ser escravocratas. Mas, no resto, achavam melhor nem pensar, pois o problema era tão intrincado, tão fundamente misturado com tôda a sua organizaçãó social que parecia impossível tocar nêle sem causar a queda da civilização que tanto amavam. E teriam continuado nessa atitude prudente se não se tivessem embaraçado com certas leis econômicas que nem conheciam direito mas cujo alcance era tão grande em Dixie como em Vermont. Porque do mesmo modo que os industriais do Norte se viam na contingência de fazer rodar suas fábricas, em­bora, com prejuízo, para bater os concorrentes e dar trabalho aos operários, sem o que teriam de abrir falência, os fazendeiros eram obrigados pelas circunstâncias a plantar o mais possível para ocupar os escravos. Assim, colhiam algodão e fumo, e mais fumo, e mais algodão, e ainda fumo, e outra vez algodão. Até que tivessem tan to algodão e tan to fumo que se vissem a braços com a superprodução.

Então procuravam cultivar ou tra i coisas: arroz, cereais, beter-^ raba açucareira, Deus sabe mais o que, e tinham de recorrer aos banqueiros a fim de arranjar dinheiro para financiar essas plantações da primavera.

Mas os banqueiros não lhes quer am fornecer empréstimos.Não poderiam conservar a confisnça dos que lhes entregavam

suas economias se não garantissem aos seus clientes absoluta se­gurança. Para isso precisavam conhecer bem a cultura a que forne­ciam crédito. Entendiam bem de algodão e tabaco. Avaliavam com muita aproximação o rendimento provável de uma plantação de fumo ou algodão. Mas arroz, cereais e beterraba significavam expe­riências — e talvez experiências desastrosas. E assim os lavradores tinham de voltar ao algodão e ao tabaco, plantando o suficiente para dar trabalho aos seus pobres escravos que não podiam ficar parados — porque escravos parados (ao contrário de tôdas as máquinas bem reguladas) continuam a comer e a reclamar roupa, chapéus e teto.

Êsse estado de coisas já era desconcertante e quase desespera-

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dor, mas a completa ignorancia do Norte em relação às condições do Sul ainda o piorava. As boas famílias da Virgínia e das Caro­linas tinham o hábito de mandarem seus filhos se educar em Yale, H arvard e Princeton. Mas poucos novos-inglêses atravessavam a linha pela qual os astrônomos ingleses Carlos Masón e Jeremias Dixon marcaram a separação entre os bens da Casa dos Pcnn e os da Casa dos Baltimore, e que se tornara a fronteira entre os Estados tscravagistas e os abolicionistas.

As informações que lhes chegavam deviam ser incrivelmente adulteradas. Algumas eram inteiramente falsas. Então seguiam-se os artigos cheios de censura dos jornais e revistas de Charleston e Springfield, até que um dia, a questão resvalou para os domínios deleitáveis da Literatura; uma mulher bein-intencionada mas cheia dé preconceitos puritanos traçou um quadro tão monstruoso das supostas condições de vida nos Estados escravocratas que todo o Norte pareceu disposto a combater e exterminar de uma vez a raça covarde de Simão Legrees e dos outros algozes de escravos.

Mas não preciso continuar.Assim pode parecer que assumo o papel de defensor de uma

instituição que detesto e abomino tão enérgicamente como o mais convicto dos abolicionistas.

O meu objetivo era diferente.O Norte acusava o Sul por ter escravos.N a sua sêde de justiça e direitura, a gente do Norte não viü

um fato muito importante — que os senhores de escravos eram êles próprios escravos de um sistema que os forçara a manter os escravos.

No momento em que as condições se tornaram tão desesperada­mente turvas que já ninguém via uma saída, pareceu que só havia uma solução.

Nos anos vindouros, quando compreendermos muito melhor do que hoje uma porção de assuntos importantes, poderemos curar esses males com os meios pacíficos da persuasão e do raciocínio.

Agora, para todas as doenças da raça humana (individuais ou coletivas), parece só haver um remédio. Sendo numa pessoa, cha­mamos a isso uma operação. Mas no caso de uma nação toma o nome terrível de Guerra.

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CAPÍTULO XLII

UM CONTRATO PENOSO

Se me perguntassem no que a história dos Estados-Unidos diferí da de todos os outros países, eu responderia: “N a influência exercida pela arte da oratoria no desenvolvimento político e social da nos­sa terra.”

O sistema republicano estava muito desmoralizado quando os americanos decidiram guiar-se por suas próprias luzes. A forma de governo representativo que os fundadores de nosso país escolheram de preferência a urna pura democracia ara tão velha como as colinas

de Roma. E as repúblicas fede­rativas existiam havia quase mil aros quando os delegados de treze pequenos Estados inde­pendentes formaram entre si uma união defensiva. Mas com exceção talvez das fugazes re­públicas da Grecia, nenhum povo nunca tomara a sério a oratoria. Ao contrário, partici­pavam da conhecida prevenção de Hamlet e desconfiavam pro­fundamente dos que tentavam resolver as dificuldades mundiais ccm “palavras, palavras, pala- vi as”.

Havia, porém, um motivo muito justo para êsse desenvolvi« mento unilateral dos interêsses culturais na América. Os antigos judeus ganharam, há dois mil anos, um grande renome como autores, porque a Literatura era a única forma de arte em que se podiam

Um advogado de província em Illinois

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exprimir. Jerusalém era uma cidadezinha de província, de décima ordem, que não se podia comparar com as gloriosas cidades do Leste e do Oeste. O portentoso templo de Salomão era tão pouco harmonioso que nenhum autor clássico notável jamais o mencionou; e aquelas esplêndidas descrições do seu interior que se encontram no Velho Testamento mostram-nos com dolorosa evidência que tudo dentro das muralhas sagradas fôra sacrificado ao fausto e ao brilho; por isso os gregos com o seu claro senso da harmonia c o seu amor às linhas simples desprezaram êsse famoso edifício e foram buscar inspiração em Tebas e Mênfis.

Sem dúvida, David foi musicista e tocou harpa. Mas esse sonoro instrumento de três cordas não era próprio para os homens de inspiração criadora; cm segundo lugar, como os preceitos ances­trais os proibiam de pintar retratos, só um campo dc criação artística restava aos judeus, o da palavra escrita.

Os puritanos que dominaram o início da civilização na América imnginaram-se os sucessores espirituais dos antigos hebreus c con­seguiram imitá-los. Viviam, comiam, aravam, ceifavam, governa­vam suas mulheres e filhos, manejavam com mãos de ferro os seus vizinhos índios, segundo os melhores exemplos do Deuteronómio e do Livro dos Juizes.

Daí o seu profundo dcsprêzo por tódas as manifestações mais graciosas do espírito, que criam de origem pagã. Daí a sua com­pleta descrença ( já mencionada) nos pintores, atores, músicos e tôda essa gente inútil que procurava acrescentar alguma coisa à felicidade exterior e à beleza interior da existência contemporânea.

A arte da oratória foi a única exceção dessa rígida lei. Em primeiro lugar, era dc genuína origem hebréia c portanto acima de qualquer censura. Em segundo lugar, cra uma das armas mais poderosas de que dispunha o clero para manter seu prestígio sóbre o grosso do povo.

Uma congregação privada dos solos de Bach e Iiaendel encontra logo um grande consolo nas longas arengas verbais sobre o inferno e a danação que lhe prodigalizam a todo o propósito e até sem propósito algum. A oratória tornou-se assim a forma favorita dos colonos americanos para exprimirem as suas emoções; quando s2

mudaram para Oeste, ela os seguiu ao deserto; tornando-se indepen­dente, substituíram os pregadores teólogos pelos políticos. Enquanto

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rôdas as outras repúblicas precedentes haviam sido governadas com um mínimo de verbosidade, enquanto Veneza e a Islândia, a Holanda e a Suíça se regeram, a si e as suas colônias, sem nenhuma eloqüência patriótica, a nova república americana celebrava todos os aconte­cimentos (embora sem importância) com uma brilhante exposição de fogos de artifício verbais. Os fundadores, como bons aristocratas, não tomavam parte saliente nessas explosões de retórica. Ouviam pacientemente (porque era de boa política escutar com paciência os seus apaixonados colegas das m atas), mas quando se viam a sás consigo (como, por exemplo, quando elaboraram a Declaração de Independência, a Constituição e alguns outros documentos de real valor), abandonavam as digressões e iam direito aos fatos.

Quando, porém, os campos e as florestas venceram as cidades c a forma de govêrno dos Estados-Unidos foi m udada de república representativa em pura democracia (a calamidade temida entije tôdas pelos fundadores, e contra a qual tomaram tôdas as precaií- ções possíveis), então a torrente de frases eloqüentes dos primeiros tempos cresceu em cataratas e catadupas — que, freqüentemente, ameaçaram com a sua violência fazer ir a pique o pequeno b a r o que Washington, Jefferson, Franklin e Adams haviam conseguido com tan to esforço equilibrar no occano turbulento da política in­ternacional.

E depois nasceu uma nefasta ilusão que se devia tornar perigo­samente pop^ular durante os dias da ditadura jacksoniana: a co&- vicção (sustentada por milhões de pessoas) de que o dom da pala­vra habilitava os homens a conduzir os negócios do Estado.

Nesse tempo já iam rapidamente desaparecendo os contem- potâneos da revolução. Seus filhos, bcm-alimentados, cuidadosa­mente instruídos e cheios de espírito filosófico, tentaram continuàr as normas de conduta elaboradas por seus pais. M as os adminis­tradores austeros não eram mais do gôsto da República. A capa­cidade metodicamente adquirida para uma carreira, durante longos anos de preparação, era considerada como um sinal evidente e desa­gradável de pedantismo e condenava fatalmente o candidato ao fracasso.

A aristocracia que governara a República durante os t r in t i primeiros anos de sua existência tivera, é verdade, várias deficiências. Êsses impertigados senhores eram absolutamente cegos às possívei»

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virtudes dos homens que conseguiam vencer partindo de baixo, e, no seu receio da democracia, tomaram muitas medidas que só benc- fjciavam a sua classe, e prestaram escassa atenção à felicidade do povo.

Mas muitos deles possuíam uma alta noção do dever. Sua integridade (com muito poucas exceções) estava acima de qual­quer suspeita. Venceram a tirania do fanatismo religioso. Tinham urn espírito muito mais largo do que a maioria de seus compatriotas e, com uma profunda e céptica desconfiança pelas palavras, pre­feriam falar pouco e agir muito.

A nova classe de chefes políticos vinha de uma parte diferente c!o mundo tanto geográfico como social. Logo descobriram que, ape­lando apenas para a vaidade dos que se orgulhavam de fazer parte das massas e a quem a lisonja era tão indispensável como o ar, ou talvez mais, podiam fazer da política um negócio lucrativo, ganhan­do ao mesmo tempo a reputação de salvadores da pátria.

Tudo isso serve apenas de introdução para a observação (em r a d a original) de que o período compreendido entre a eleição de Andrew Jackson e a de Abraham Lincoln não pode ser considerado uma época feliz na nossa História.

Em primeiro lugar foi esquecido o sensato conselho do primeiro dos nossos presidentes que queria que evitássemos qualquer compli­cação com o estrangeiro. A nova escola de políticos considerava o imperialismo como um bom elemento de política nacional e soltara as asas da águia norte-americana até que, num acesso de histeria aquilina ela começasse a bicar e unhar tudo e todos, e com isso também se ferisse.

Nas duas décadas que se seguiram à eleição de Van Buren (o herdeiro e continuador de Jackson), os Estados-Unidos interferiram à força nos negócios dos outros povos em média uma vez por ano.

A doutrina de Monroe não somente estipulava que “A América pertencia exclusivamente aos americanos”, como também traduzia cm termos enfáticos o propósito dos Estados-Unidos de não terem nem quererem ter nenhum conflito com todas as outras colônias de todas as partes do continente, de viverem em paz e amizade com todos os vizinhos, tan to internos como externos.

Mas essa atitude de “viver e deixar viver” pareceu por demais límida àqueles que no primeiro ímpeto do entusiasmo jacksoniano esperavam derramar as bênçãos de uma pura democracia sôbre tôdas

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as outras nações do mundo. Como resultado, os navios de guerra americanos rumaram para as mais distantes partes da terra para entrar em contato com a China, as ilhas de Havaí, o Japão e todos êsses reinos exóticos que, por motivos particulares, sempre prefe­riram manter os brancos à distância.

Logo se seguiu um desembarque cm território inimigo, quando alguns diplomatas americanos, reunidos em torno das mesas de jôgo de Ostende, redigiram um eloqüente manifesto onde diziam que, de maneira misteriosa, a ilha de Cuba estava predestinada a fazer parta dos Estados-Unidos e que, se a Espanha não estivesse disposta a vender essa antiga e valiosa possessãc, a América teria de tomá-la pela fôrça das armas. Como êsse documento fora obra de um homem que tinha sido nomeado ministro em Madrid para ser afastado da América, onde era indesejável (um a desastrosa inovação diplomá­tica que nos foi legada pelos admiradores de Jackson), era possíveí desmanchar as desagradáveis conseqüências dêsse desatino fazendo Sua Excelência voltar para sua casa em Luisiana e explicando que tinha havido um pequeno engano. A agressividade gratuita, porém, e a injuriosa falta de ta to que caracterizava a nossa orientação nos negócios exteriores não era nada comparada com a violência com que os dois partidos adversários se atacavam m utuamente no interior.

Porque existiam dois partidos hostis com ideais e lemas dife­rentes; e tôdas as palavras bonitas do mundo não poderiam enco­brir que a introdução do vapor — a famosa revolução econômica dos nossos economistas — causara um irremediável choque de in­teresses entre os Estados que “fabricavam” os seus produtos e aqueles que deixavam aos cuidados de Deus e dos escravos fazer “crescer" os seus. Havia o Norte, cujo sustento dependia do número sempre crescente de fábricas onde trabalhavam homens e mulheres tecni­camente livres.

E havia o Sul, que tirava a sua prosperidade (e precisava continuar a fazê-lo) dos produtos do solo cultivados pelos esforços de antigos potentados africanos. Havia o Norte, que exigia o mono­pólio dos mercados americanos e a completa exclusão dos artigos estrangeiros.

Havia o Sul, que necessitava do livre câmbio para vender na Europa o seu excesso de algodão, tabaco e arroz.

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Os voluntários

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Havia o Norte, que sonhava transformar as florestas e os cam­pos do “far-west” em municípios mar ufatureiros.

Havia o Su!, que esperava obter o apoio dos distritos da fron­teira tornando-os agrícolas e escravocratas.

Ambos os lados discutiam e argumentavam mostrando um gene­roso patriotismo. M as ambos os lados sabiam que só havia uma solução, mais moral do que econômica, e que seu nome era escravidão.

Durante os terríveis períodos de desilusão que quase sempre se seguem às explosões de entusiasmo humano, há invariàvelmente muita gente para dizer que o progresso não existe — que a civili­zação é apenas superficial — que no fundo somos selvagens e tão indiferentes ao bem-estar dos vizinhos como os nossos antepassados da idade da pedra.

E entretanto — entretanto — a linha do progresso acusa um avanço seguro. Não concordo, sem uns recuos temporários. Não !,em longos anos de decadência apare ite. Não sem violentas explo­sões que removem subitamente o centro da cultura e do pensa­mento de um canto para o outro do mundo.

“M as”, como Galileu nunca disse (mas podia ter d ito), “a velha Terra se move da mesma maneira!”

E durante a primeira metade do século X I X a consciência cole­tiva da humanidade (se ta! coisa existe, como eu creio) chegara a um ponto em que foi decidido que a riqueza da escravidão devia desaparecer da face da terra. Vinte ou trinta anos antes os funda­dores da República ainda tinham podido ladear a questão. Mas já então sentiam no fundo dos seus corações que a escravidão era condenada. E se fossem um pouco mais jovens quando assumiram o comando da revolução e não se tivessem esgotado tan to com a.s lutas dos sete terríveis anos, êles teriam achado uma solução ao mesmo tempo inteligente e honesta para êsse difícil problema.

Nas mãos grosseiras de seus sucessores, estadistas provincianos, de barbas espêssas e reputação ex; gerada, filhos de notáveis de aldeia e favoritos das paróquias, qu( tra tavam todos os problemas como se fôssem fenômenos independentes sem relação com o resto da humanidade, tal conflito de opi íiões só podia conduzir a um desastre.

Uma a uma, entre 1788 e 1S64, as outras nações da Europa e

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da América aboliram a escravidão, e embora em muitos países os escravos representassem enormes empregos de capital, a mudança se fez sem derramamento de uma só gôta de sangue. Houve mur­múrios e protestos, procuraram-se cuidadosamente no Velho Testa­mento textos que emprestassem à revoltante escravidão dos negros um aspecto eterno e semidivino. Mas era impossível conter a onda nascente da justiça ou fazer calar os que sustentavam que Deus era Pai de todos os homens e estendia a sua misericódia a todos os £eus filhos sem se incomodar com suas pigmentações respectivas.

Muitos desses modernos cruzados, no seu santo zelo, desrespei­taram tôdas as leis das controvérsias polidas mostrando tan ta es­treiteza de espírito e fanatismo como os piores dos seus contendores; coisa lamentável, porém inevitável, pois a agitação atingira até as profundezas do subconsciente, e, quando isso acontece, a razão é sacrificada à emoção.

E tôdas essas discussões sôbre “Estados livres” e “Estados es­cravos”, as disputas a respeito das diferenças exatas entre “livre” e “escravo”, todo esse barulho em tôrno da “soberania indevida” e outros entendimentos parciais que não trouxeram entendimento ne­nhum — tôdas essas infindáveis palavras, palavras e palavras não conseguiram mudar uma vírgula na lei inexorável que estipulava que a escravidão, preta, branca, parda e amarela devia ser varrida da íace da terra.

O perigo verdadeiro, porém, não veio nem dos escravocratas furiosos nem dos abolicionistas igualmente furiosos. A pior ameaça estava no número sempre crescente de cidadãos que consideravam a República como uma confortável hospedaria, cuja ambição não ia além do desejo impio de fazer o máximo possível do dinheiro no mais curto espaço de tempo, e que portanto punham a paz e a segurança acima da honra nacional.

A introdução dos indelicados métodos jacksonianos lhes for­necera um pretexto para se alhearem de qualquer participação na vida nacional. As centenas de milhões de dólares empregados nos rebanhos humanos fizeram com que temessem que, bolindo-se com essa instituição, se pudesse causar um pânico desastroso para a regulari­dade dos seus lucros. E finalmente, seja dito em desculpa da sua indiferença, não houve nem um só entre a turba dos exaltados de ambos os lados que procurasse chamar a sua atenção para o pro­

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blema, que apelasse para os seus sentimentos e a sua imaginação, que lhes soubesse explicar claramente a questão.

E assim a guerra de injúrias mútu.is continuou por longos anos, e houve gente no norte que falou em dissolver a União, e gente no sul que falou em formar uma República federativa independente, sem que nenhum lado tivesse coragem para tomar uma iniciativa tão violenta.

E parecia que nunca se havia de azer nada.

Mas aí N ancy Hanks, a mulher da Thomas Lincoln, deu à lur. um filho, pedindo a Deus que o menino saísse à família dela e não fôsse condenado a passar o resto dos seus dias ajudando seu incom­petente pai a ganhar a vida numa fazenda que não rendia bastante nem para sustentar unia vaca.

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CAPÍTULO XLIII

UM OBSCURO ADVOGADO DE IL L IN O IS ... OFERECE-SE PARA TOMAR A QUESTÃO

“Pensamos conduzir, e somos nós os conduzidos.” E ainda: “Não pretendo ter dirigido os acontecimentos, mas confesso francamente que os acontecimentos me dirigiram.”

Os homens que, próximos do fim dos seus dias, resumiam nes­sas curtas mas significativas sentenças a sua filosofia da vida, eram contemporâneos, mas viviam em pólos opostos, tanto sociais como geográficos.

Um era filho de um pai rico e ambicioso que esperava ganhar íama duradoura com a carreira brilhante de seu precoce rebento. O outro vira a pálida luz do dia no lar miserável de um camponês sem eira nem beira, carpinteiro de terceira classe e fazendeiro nas horas vagas, que apenas sabia soletrar com dificuldade o seu nome.

Ao primeiro foram dispensadas tôdas as vantagens que o dinhei­ro pode trazer: professores particulares, universidades, livros e via­gens no estrangeiro.

O segundo fôra obrigado a procurar, êle mesmo, com grande esforço, tudo o que aprendeu, e passara, num frio e inóspito canto de deserto que nem estradas tinha, a maior parte de sua meninice.

Que par diferente!Mas o gênio — graças sejam dadas a Alá! — não depende da

filiação, e, tocando meigamente nas testas de Abraão Lincoln e de Johann Wolfgang Goethe, dispensou a essas duas crianças privilegia­das a maior honra que podem alcançar os filhos dos homens — deu- lhes vida eterna e os tornou os símbolos duradouros das mais no­bres aspirações de seus países.

Quanto ao mais jovem dos dois (Lincoln tinha vinte e três

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A Guerra Civil — I

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A M E R I C Aanos quando Goethe morreu), sua história é tão repetida que se tornou (como deve ser) familiar a todas as crianças nascidas à som­bra de seu nome tutelar.

Os Lincoln eram de estirpe inglesa. Vieram para a América na primeira metade do século XVII, quando se mudaram de Hing- ham, em Norfolk, para Hingham, na Nova Inglaterra. Uma vez no Novo Mundo, deixaram-se contaminar pelo ânimo errante da cpoca, e de Massachusetts ganharam a Pensilvânia, de lá foram pa­ra Kentucky, e depois, quando já Abraão Lincoln tinha quatro anos, mais uma vez largaram tudo, deixaram a fazenda estéril de Hardin County e foram à procura da terra rica e escura da Indiana.

Foi aí que o menino de nove anos aplainou as tábuas de ma­deira para o caixão de sua mãe e ficou a olhar espantado quando a levaram e a enterraram, enterrando também o seu segredo.

Porque Nancy Ilanks não parecia ser da mesma massa desses honestos tecelões e mineiros, desses esforçados e medíocres fazen­deiros entre os quais passara os seus dias num triste e pobre trecho de fronteira. Inconscientemente aspirava as coisas que deviam ter sido suas por direito de herança, coisas de um mundo longínquo de cuja existência nem suspeitava.

E não aspirava sem razão — porque cinqüenta anos mais tar­de seu filho governaria na Casa Branca.

Como se poderá saber quais os anos decisivos para o futuro de um homem?

Os anos corriam normalmente. E o futuro, entretanto, parecia problemático, para não dizer hostil.

Como todos os outros meninos de Spcncer County, o jovem Abraão Lincoln trabalhava na lavoura.

Aprendeu a ler, a escrever e um pouco de cálculo. Sarah Bush, sua madrasta, dirigiu a sua educação e lhe explicou as belezas do inundo das letras, de Burns, de Foe e Shakespeare.

Tudo isso era muito agradável, mas o velho ainda estava vivo, dirigindo a propriedade tão mal como sempre, dando de má von­tade abrigo e alimento ao filho em troca de longas e duras horas de trabalho. A perspectiva de passar seus dias como empregado do

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pai não sorria a Abraão. Deixou a casa e se pôs a correr o país, ganhando a vida como podia.

Empregou-se na tripulação das chatas — cantava — falava com todos — acolhia amàvelmente a todos os que recorriam aos seus fracos préstimos — contava histórias — ouvia — sorria. Depois foi caixeiro em várias lojas de tôda a e;pécie, e em geral da pior es­pécie.

Sobrevieram guerrilhas com os índios, e ele se alistou. Mas os pobres selvagens fugiram antes que o Capitão Lincoln aparecesse em cena e, em falta de inimigos, ele abandonou as roupas marciais e voltou ao comércio. Abriu um armizém. A nova iniciativa ainda lhe foi menos favorável do que a caireira das armas. Os fregueses não vinham — um sócio sem nenhum préstimo bebeu todo o esto­que líquido — o negócio foi um desascre tal que Lincoln levou quin­ze anos para pagar as dívidas.

Tudo isso, bem o sei, parece foi a do seu lugar numa história onde se trata de um dos nossos heróis nacionais. Parece tão fútil. Toca às raias do grotesco. Mas até êsse episódio da falência tem sua utilidade. Serviu-lhe de curso Ce humanidades cotidianas. E como estudo prático da natureza humana, deu bons frutos.

O jovem já ia pelos vinte anos quando conseguiu ir vencendo as desvantagens da sua origem e do seu meio, quando outras influ­ências começaram a se fazer sentir, outras qualidades a se afirma­rem.

Êsse gigante cômico, êsse palhaço ambulante, parecia possuir uma grande inteligência. Uma inteligência estranha — original — cheia de sutilezas imprevistas — com veredas caprichosas que pa­reciam conduzir com inexplicável indiferença tanto ao burlesco co­mo ao sublime — mas uma inteligência!

E como êsse instrumento é muito raro, teve logo digno acolhi­mento e, como o seu possuidor, foi quase arrebatado para um escri­tório de advogado, do escritório de íidvogado subiu à Magistratura Estadual, foi depois promovido à Câmara dos Representantes na longínqua Washington, e foi-lhe permitido funcionar num tempo em que o simples fato de pensar era bastante para tornar um homem suspeito de alta traição e covardia.

Lincoln chegou à capital durante a guerra do México.Não lhe agradou essa guerra.

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A M 11I C A 311E disse a sua opinião.Depois se enrolou confortavelmente na pesaJa capa que tinha

cc-mprado para a grande viagem para a Metrópole e esperou.Outra tempestade vinha vindo.E dessa vez queria estar pronto.

O país afundava rapidamente na guerra civil e na anarquia. A escravidão e a não escravidão tinham dividido os velhos partidos políticos em vários grupos de composição estranha — santos e sal­teadores — políticos matreiros e idiotas sentimentais — que não obedeciam a nenhum chefe, não tinham nenhum programa, e cuja união só era devida a alguns preconceitos e convicções comuns.

Os escravocratas do Sul ainda se reuniam em tôrno da bandeira do partido conhecido como Democrático, enquanto seus adversários formavam um grupo que denominavam orgulhosamente partido Re­publicano, defendendo os princípios da integridade da União e da liberdade de todos os homens.

Foi então que o passado de Lincoln lhe permitiu representar tim papel de grande utilidade e se tornar uina figura de projeção na­cional.

Tinha passado muitos anos nos Estados onde havia escravos, vivera também nos Estados livres. Conhecia os horrores da escra­vidão e detestava lembrar-se dos dias em que seu barco se enchia de pobres sêres algemados. Por outro lado, sabia por observação própria que todo o sistema econômico de um povo não pode ser s u ­bitamente mudado pela vontade de alguns homens bem intencio­nados. Portanto aconselhou moderação. A escravidão tinha de aca­bar. Não podia existir entre um povo civilizado. O único problema que o país tinha de resolver era êste: podia a mudança se efetuar tem destruir a nação e, se isso não fôsse possível, deveria a nação ser sacrificada a um ideal abstrato de justiça?

O pobre maníaco John Brown esbravejou: “Não! Nada se po­de fazer sem verter sangue!” E levantou a bandeira da rebeldia, que alguns dias depois era piedosamente enrolada em tôrno do seu caixão.

Mas a Carolina do Sul respondeu polidamente: “Como quei­ram.” E calmamente, sem dar satisfações, escorregou para fora da

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MEXICO

A Guerra Civil — I I

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União proclamando-se solenemente uma das “livres e independentes nações da terra.”

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Isso sucedeu cm dezembro de I860.Três meses mais tarde, Abraão Lincoln, Presidente dos Esta­

dos-Unidos por obra e graça do Partido Republicano, mais uma vez viajava para Washington e levou sua mala de tapeçaria para êsse grande edifício branco que se ergue 110 fim da avenida da Pensil- vãnia.

Dois dias depois prestou juramento e, erguendo-se desajeitada­mente em toda a sua enorme estatura, disse aos seus correligionárias reunidos o que pretendia fazer. Era o seu duro dever proteger, pre­servar e defender a União. E um grande número de seus compa­triotas estava tentando destruir essa União que tinha o dever de defender, proteger e preservar.

Haviam-se lançado numa empresa louca. Deus sabia que não os odiava. Só queria o seu bem. Estava pronto a ouvir tôdas as sugestões razoáveis. Todos os seus esforços seriam para uma solu­ção rápida e pacífica. Mas havia jurado proteger, preservar e de­fender a União, e haveria de protegè-la, preservá-la e defendê-la.

Suas palavras foram muito simples. Tão simples, na verdad«, que a maioria de seus amados concidadãos não as entendeu.

Então, cutucavam-se uns aos outros, rindo e perguntando: <;Vo- cê viu que chapéu esquisito 0 dêle?”

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CAPÍTULO XLIV

O CASO É SUBM ETIDO AO JÚ R I

Foi curioso que fôssem os Estalos do Sul que quebrassem o pacto solene de 1787 e se separassem da União.

Até então o perigo viera da Nova Inglaterra.Mas o seu tão falado desejo de “anular” (uni termo respeitá­

vel inventado pelos estadistas que querem fazer de um tratado um farrapo de papel) era o resultado da convicção íntima de que o po­vo de Massachusetts e seus vizinhos íram bons demais para a socie­dade em que viviam e fariam melhor em se estabelecerem por sua conta de modo a não serem incomDdados pelas constantes inter­rupções de certos cidadãos grosseiros que viviam para além dos Berkshires e de Connecticut River.

A questão de 1860, porém, era de natureza diferente e muito mais séria.

Para dizer a verdade crua, descie os dias do General Jackson, o Sul vivia ameaçando o resto dos Estados-Unidos. Sozinho não teria conseguido fazer isso, mas explorando habilmente os ingênuos porém sinceros entusiasmos do Oeste tratava o Norte e o Leste da República como uma sua dependên:ia política, uma pequena Re- pública-irmã que se devia comportar melhor o u . . .

“Ou o quê?” perguntou o esquisito e magro antigo embarcadi­ço que estava engraxando as botinaí no porão da Casa Branca.

“Ou não brincaremos mais com vocês!” gritaram os jovens atre­vidos de Charleston, Nova Orléans, Savannah e Richmond.

E foram aos seus alfaiates encomendar elegantes uniformes, bem diferentes dos usados pelos solda Jos do exército federal, des­filaram diante de uma nova bandeira muito diversa da velha flâ­mula de estréias e riscas, rindo-se às gargalhadas quando se lcmbra-

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ra m da boa peça pregada aos danados dos ianques que, com certe­za, estariam muito ocupados em dirigir seus moinhos, seus bancos e seus armazéns para pegar numa espingarda e lutar.

Nisso, como logo o haviam de descobrir, enganavam-se redon­damente.

Antigamente, quando os homens iam para a guerra, iam sem se incomodar com mais coisa alguma. Podiam dizer que a vitória final fora devida à interferência de Jeová, ou à proteção de Baal ou ao auxílio de Júpiter, mas não tentavam envolver a questão numa auréola de clemência divina ou de paciência sôbre-humana.

Enfureciam-se por qualquer motivo c se matavam uns aos ou­tros até saciarem os corações, vendiam como escravos as mulheres e filhos dos inimigos e voltavam carregando todos os despojos que podiam.

Isso era baixo, bestial e selvagem, mas ao menos era um modo franco e honesto de conduzir uma ação condenada pela sua própria íiatureza a ser baixa, bestial e selvagem.

A invenção da arte de escrever (sem falar da fatal introdução : do telefone e do telégrafo) mudou tudo. Durante os dois últimos séculos, apenas as hostilidades começavam, os beligerantes recorriam áos professores de História para compor uma exposição dos antece­dentes dêsse lamentável mal-entendido, a fim de que o resto do mun­do pudesse julgar da completa e total inocência da parte A (ou da parte B) que fôra injustamente atacada pela parte B (ou pela parte A) e posta assim na triste obrigação de declarar uma mobili­zação parcial para “defender seus direitos contra uma agressão bru­tal.”

No caso da Guerra Civil, o período de discussões preliminares e alibis oficiais durou mais ou menos cinco meses.

A vinte de dezembro de 1860, a Carolina do Sul se separou da : União. Em janeiro do ano seguinte, o Mississipi, a Florida, a Geór­gia, a Luisiana, a Alabama e a Carolina do Norte fizeram o mesmo, e em fevereiro o Estado de Texas seguia o seu exemplo e dizia adeus à patria comum.

A quatro de fevereiro de 1861 os representantes dêsses Estados se encontraram na cidade de Montgomery, na Alabama. Fundaram

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«ma República independente, chamada os Estados Confederados ¿a América, e elegeram Jefferson Davis seu presidente.

Como Lincoln, Davis era de Kentuck)'. Fóra Ministro da Guer­ra r,a presidencia de Pierce e reorganizara completamente o Exér­cito. Quando começou a rebelião dos Estados do Sul, ele represen- lava o Estado de Mississipi no Senado Federal. Era sem dúvida um homem de convicções sinceras e de alguma habilidade. Mas fal- tava-lhe uma qualidade importante, que tanto concorrera para o fenomenal éxito de Lincoln. O presidente dos Estados Confedera­dos não possuía aquele admirável espírito analista que permitia ao presidente dos Estados-Unidos ir direito ao âmago de uma questão sem se deixar perturbar pela massa dos detalhes secundários. Como resultado (porque em conflitos dessa natureza a vitória do espírito analista pode scr predita quase com certeza matemática), os Esta­dos-Unidos sobreviveram e vivem até hoje, enquanto os Estados Confederados foram relegados ao museu das curiosidades históricas.

Mas, voltando ao movimento da secessão, a Virgínia, o Ten- ressee e o Arkansas logo se juntaram aos Estados dissidentes, e as Cuas Repúblicas começaram uma série dc discussões, ou, mais pre­cisamente, o Presidente Davis sugeriu um acordo segundo o qual a manutenção ou a abolição da escravidão nos Estados seria assunto ce competência local.

Mas seus rivais em Washington nem quiseram ouvir a propos­ta antes que os Estados Confederados voltasem para a União.

Depois fizeram um esforço para salvar a situação acrescentan­do à Constituição um dispositivo que regulasse o poder do Congres­so sobre a escravidão. Mas o Norte combateu êsse plano que não resolveria coisa alguma e ataria as mãos do Govêrno Federal dei­xando os escravocratas livres de fazerem o que bem entendessem. Portanto a emenda foi rejeitada e o inevitável pôde acontecer sem mais gastos de tinta e papel.

Durante todos esses meses haviam-se dado constantes e nume­rosas deserções na Marinha e no Exército, por parte dos oficiais ori­ginários do Sul. Muitos dêles foram oferecer seus serviços a Jeffer­son Davis e, com esmeradas fardas cinzentas, começaram a instruir e conduzir os recrutas confederados, ao passo que a Norte nem pen­sava em se armar. Por fim, porém, vendo o rumo que levavam as coisas, o govêrno de Washington se decidiu não sem relutância a

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0 incidente diplomático

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tomar algumas contra-medidas e a se preparar para um estado dc guerra que tanto poderia durar seis semanas como quatro meses.

Um dos pontos estratégicos do território ao Sul que ainda es­tava em poder dos Estados-Unidos era um velho forte no pôrto dc Charleston. Tinha o nome de Thomas Sumter, o último sobrevi­vente dos generais de Washington. Estava situado numa pequena ilha e era uma das três praças fortes que dominavam o acesso de Ashley e Cooper Rivers. O Major Anderson, seu comandante, era um homem pacífico que estava se tornando também um homem es­faimado, pois baixavam sensivelmente as suas reservas dc víveres e o esforço feito em princípio de janeiro para lhe levar feijão e tou­cinho fracassara quando o vapor americano Star of tlie West fóra obrigado por uma bateria da Carolina do Sul a voltar do caminho. Mas em fins de março o simpático major foi informado de que uma outra expedição estava sendo preparada no arsenal naval de Brooklyn e que a sua espera não seria mais muito longa. Essa segunda expedi­ção devia ser feita num segrêdo absoluto, mas tôda gente falava dela e, naturalmente, o govêrno confederado, que tinha no norte um grande número de ardentes admiradores, teve conhecimento de tudo e esperava com impaciência belicosa pelo Pozuhatan. Mas quando tiveram de chegar à abertura franca das hostilidades, os dois partidos hesitaram e tiveram tal receio de assumir a responsa­bilidade do inevitável ato decisivo que a partida do pequeno navio foi comunicada oficialmente pelo Ministério da Guerra Federal ao Ministério da Guerra Confederado, e Washington explicou que o PozoJmtan não iria reforçar a guarnição do Sumter mas apenas le­var-lhe comida e remédios.

Por que os confederados esperaram êsse momento para forçar a situação é ainda um mistério. Sem dúvida, essa decisão resultou mais de motivos psicológicos do que políticos. Os sulistas haviam durante tantos anos governado o país que se lhes devia ter tornado impossível verem suas decisões obstruídas por um advogado matuto que nem sabia encomendar um jantar e que, além disso, tinha a re­putação de ser o mais infame de todos os infames republicanos.

Agindo num momento de pânico mental, arrastados pelo receio secreto de que Abe Lincoln estivesse de má fé, os confederados te­legrafaram ao General Beauregard (antigo U. S. A. que se tornara

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C. S. A.), que se achava em Charleston, para atacar o forte de Sumter caso o achasse necessário.

Algumas horas depois, em seu gibinete, Davis se arrependia do seu arrojo. Mas não podia voltar atrás e, embora Anderson ti­vesse avisado que só tinha comida paia dois dias e depois teria de se render ou morrer de fome, as baterias confederadas romperam fogo contra ele na manhã de doze de ibril de 1861 e depois de um bombardeio de vinte e quatro horas o ardor dos assaltantes foi com­pensado pela rendição da guarnição do forte federal, cuja valentia fora das mais duvidosas.

Apesar de ter havido muito barulho e muita fumaça, os danos reais foram muito ligeiros.

Entre os soldados federais não houve uma só morte nem um só ferimento. Quanto aos confederados, tinham levado a coisa co­mo uma festa e atirado garbosamente entre os aplausos das moças bonitas de Charleston.

Tudo isso era uma brincadeira inofensiva.Mas os alegres soldados que tomaram parte nela esqueceram-

se de um fato muito importante.E ’ que o primeiro tiro fôra dado.Foram eles que fizeram arrear a bandeiar dos Estados-Unidos.Em suma, foram eles que cometeram o ato decisivo que abriu

as hostilidades.Procedendo assim, haviam dado ao seu arguto adversário da

Casa Branca a coisa que ele mais implorara a Deus e desejara: uma nação fiel, pronta a secundá-lo em todas as medidas que julgasse necessárias.

A quinze de abril de 1861, Lincoln pedia setenta e cinco mil voluntários.

No dia seguinte os primeiros regimentos ianques começaram 2 se encaminhar para Washington.

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CAPÍTULO XLV

O CASO FICA D EC ID ID O PARA SEM PRE

Seria sem dúvida muito agradável se pudéssemos viver com in­teira independência, cada um no seu pequeno planêta. Mas como as coisas são, e foram durante os últimos bilhões de anos (e provavel­mente continuarão a ser durante os próximos bilhões de anos), fa­zemos parte de um mundo que se diz civilizado, e tudo o que faze­mos se reflete sôbre os nossos vizinhos, como tudo o que os nossos vizinhos fazem influi diretamente na nossa felicidade e prosperidade.

Os Estados-Unidos, segundo o ponto de vista do Norte, assumi­ram a tarefa triste porém necessária de reprimir uma rebelião.

Segundo o Sul, alguns Estados soberanos lutavam para manter sua independência.

Segundo a Europa, uma guerra rompera no continente ameri­cano entre duas pequenas nações independentes e êsse conflito iria acarretar a queda e a destruição de uma República até então forte t temida.

Deixem-me recordar que no código das relações internacionais não se conhece a palavra afeição. Se procurarem cuidadosamente nas páginas dos curiosos volumes dedicados a êsse misterioso assun­to, poderão encontrar “respeito’’ e “admiração” e, algumas vêzes, "gratidão” . Mas a expressão “amor entre as nações” pertence ex­clusivamente ao vocabulário dos propagandistas profissionais e não faz parte do glossário sóbrio e mais brutal (portanto menos deso­nesto) dos historiadores e jornalistas.

Ao menos oficialmente, a Inglaterra aceitara a revolta das suas antigas colônias que se haviam erigido numa República livre. A guerra de 1812 fôra muito pouco gloriosa para os dois lados para ser conservada na memória popular. E na década de sessenta do

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século X IX havia muita gente na IngI iterra que se dera de corpa e alma à causa dos abolicionistas e que tudo fazia para auxiliar o triunfo do Norte.

Mas muitos ingleses encaravam — e com razão — a América como a mais perigosa das ameaças à ini iterrupta supremacia comer­cial do Império Britânico. Nunca ous;.riam pegar em armas para destruir êsse incômodo rival. Mas se a guém quisesse fazê-lo, acha­riam muito bom. E se pudessem auxiliar êsse aliado imprevisto com a venda de espingardas, navios de guerra e barris de pólvora, estariam prontos a fazê-lo. Só esperavam pelas ordens dos noves amigos (acompanhadas de cheques) para servi-los o mais breve pos­sível, desejando que não se esquecessem déles na hora da vitória.

Depois havia o aspecto social do c iso, muito importante. Para as classes altas da velha Europa (e a s ja influência era muito mais forte do que o imaginamos) a luta entre o Norte e o Sul era a con­tinuação da antiga guerra entre o rei e o parlamento, entre o país e a côrte, entre puritanos e realistas. Nessa peleja o lado dos bur­gueses era representado pelos negociantes e industriais do Norte, ao passo que os fazendeiros do Sul, como verdadeiros “gentlemen’* da velha escola inglêsa, tinham puxado as espadas em defesa dos ideais pelos quais os cavalheiros seus antepassados haviam derra­mado o seu sangue nos campos de Marston Moor e Naseby.

Mas a Inglaterra não era a única potência inimiga da União. Havia o Imperador Napoleão. Não, naturalmente, o grande Napo- leão, que agora jazia sob um pedaço do pórfiro vermelho dos Invá­lidos, mas um seu sobrinho — rapaz esquisito que falava com forte sotaque germânico a língua dos seus súditos e que atrelara o seu pequeno carro à estrêla do tio, dando tão brilhantes mostras de in­teligência bonapartista que conseguira iludir oito milhões de seus contemporâneos, que o elegeram chefe do Executivo. Seu trono re­cente não era, entretanto, muito seguro, e êle andava pensando se­riamente em dar aos seus súditos uma pequena distração sob a for­ma de uma guerra. E como a nação que governava vivia amea­çando a paz da Europa por umas miragens de “honra ' e “glória”, o resto do mundo andava num constante e irritante sobressalto.

É verdade que no momento a França e os Estados-Unidos ti­nham relações amigáveis. Mas quem poderia saber quando a beata mulher dêsse homem sombrio e doente julgaria necessário pregar

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*jma cruzada contra a terra de seus avós? E o que a imperatriz e seus amigos queriam, Napoleão queria; e o que Napoleão queria era logo, num momento, apresentado por urna imprensa subvencio­nada como “a vontade de toda a nação francesa”; e quando isso se desse, mais meio milhão de homens seriam acrescentados às fôrças que a Inglaterra se preparava para mandar para o Canadá.

Tudo isso nos pode parecer fantástico no ano da graça de 1927. Mas era uma triste realidade no primeiro ano da administração de Lincoln, e causou-lhe, a ele e ao seu gabinete, quase tanta preocupa­ção como a série ininterrupta de vitórias dos exércitos confederados.

No ano de 1861, a Nova Fé das fronteiras, de que falei num capítulo anterior, tinha sido aceita como verdade evangélica pela maior parte do povo dos Estados-Unidos. E havia dos dogmas dos cuais ninguém ousava duvidar, sob pena de incorrer no desagrado social e econômico dos vizinhos.

O primeiro estatuía que qualquer homem de sólido bom-senso poderia desempenhar qualquer função, com a exceção única das que requeriam preparo técnico especializado, como a prática da Me­dicina ou os trabalhos dos laboratórios químicos.

O segundo era uma inabalável confiança no espírito guerreiro de todos os livres cidadãos americanos — a crença, quase sempre expressa em termos de autobajulação, de que de um momento parao outro um milhão de americanos correriam em defesa da justa cau­sa da democracia e, armados apenas de ramos de giesta e pés de milho, arrasariam estrangeiros cinco ou cinqüenta vêzes mais nu­merosos do que eles.

Deixem-me tratar primeiro do segundo dogma. O sistema de voluntários nunca tinha dado bons resultados. As cartas de Was­hington estão cheias de queixas da incompetência e indiferença da maioria de suas milícias que muitas vêzes o privaram de uma vitó­ria certa pela sua covardia, sua falta de disciplina e seu completo desrespeito pelo que o general chamava “as primeiras obrigações dos verdadeiros patriotas” . Se não fôssem certas vantagens de na­tureza geográfica, o valiosíssimo apoio das tropas regulares france­sas e dos instrutores alemães teria sido muito difícil aos Estados- Unidos conquistarem a sua independência.

Durante a guerra de 1812 a conduta das milícias fôra um es­cândalo público. Regimentos inteiros do Estado de Nova York re­

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cusaram-se a combater fora dos iimites do U. S. A., o que era muito bom para os canadenses mas nada agradável para os americanos das fronteiras, que ficaram abandonados à mercê dos inglêses e do* índios. Em muitas ocasiões as milícias fugiram dos campos de ba­talha sem nenhum motivo aparente. Chamados a protegerem a ca­pital nacional contra a invasão e a destruição, êsses patriotas por­fiaram valentemente em ficar na retaguarda — fato celebrado no nosso folclore como a “corrida de Bradenburgo” — e deixaram a verdadeira batalha entregue a um punhado de marinheiros alemães.

Na guerra mexicana, sete dos onze regimentos do General Scotc informaram ao comandante em chefe que se tinham alistado por um ano e não por toda a duração da guerra, abandonaram seu che­fe a quatro dias de distância da cidade do México, adiando assim por quase meio ano a tomada dessa importante praça forte.

Quando o Presidente Lincoln respondeu ao bombardeio do forte de Sumter pedindo 75 000 voluntários, seu apêlo encontrou pronta aquiescência por parte daqueles que tinham bastante certeza do resultado da guerra para sustentarem com a própria vida as suas opiniões. Mas logo, como sempre acontece, êsse entusiasmo se des­vaneceu. Portanto, gratificações de um a dois mil dólares foram oferecidas aos que se alistassem, e espertos negocistas, sabendo dis­so, foram para a Europa, carregaram navios e navios de imigrantes polacos, belgas e inglêses que, apenas chegados no nosso solo livre, iam para as casernas e repartiam suas gratificações com os empre­sários! Êsse negócio lucrativo continuou até que o govêrno inglê.í reclamasse em têrmos tão violentos que as autoridades em Washing­ton foram obrigadas a tomar providências para proibir futuros alis­tamentos de “soldados contratados”. Em poucos meses essa situa­ção mostrou a todo o Norte que o exército da União só poderia ficar completo se se fizesse a conscrição. Uma Lei de Recrutamento foi logo votada, e cada Estado se viu na ol rigação de fornecer ao exér­cito federal um determinado número de soldados. Se êsse número pudesse ser conseguido com voluntários, tanto melhor. Mas no ca­so de os voluntários não serem suficientes, o déficit devia ser cober­to fazendo-se uso da lei. Ninguém gostava da idéia da conscrição, que era tida como antiamericana, mas < ra o único modo de vencer as fôrças de conscritos da Confederação, e, portanto, o sistema foi levado avante. Uma exceção foi feita para os rapazes cuja presença

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fósse, por eles próprios julgada indispensável no interior dos Esta­dos e cujas vidas preciosas não deviam correr os riscos de uma ba­talha. Êsses foram autorizados a enviar um substituto se achassem slgum pobre diabo disposto a perder a cabeça por uma certa quan­tia. Os que não pudessem pagar, eram obrigados a ir, por bem ou por mal, e quando os irlandeses de Boston e Nova York mostraram relutância em tomar parte num conflito que não os interessava absolutamente, houve sérias rixas nas quais os soldados regulares atiraram sobre o povo e mataram bastantes populares para dispor os outros a obedecer à lei.

Tudo isso era muito triste, mas, então como agora, era impos­sível fazer guerra sem fazer sofrer muita gente, e, então como agora, êsse fato pareceu causar uma dolorosa surpresa àqueles que se mos­travam mais violentos no seu ódio contra o inimigo c que pareciam os mais ardentes campeões do que gostavam de chamar “a guerra civilizada” — uma expressão sempre acolhida com estranha hilari­dade pelos familiarizados com as trincheiras ou pelos encarregados das peças de artilharia.

1 ais eram as condições materiais do conflito. Agora ocupar- me-ei do dogma n.° 1 — a famosa teoria dos pioneiros segundo a qual qualquer cidadão ou cidadã razoavelmente inteligente podia exercer com êxito qualquer cargo. Infelizmente, ainda aí grandes desilusões esperavam tanto a gente do Norte como a do Sul.

Nem Jefferson Davis nem Abraão Lincoln eram homens para a situação que encontraram cm 1861. Iinham de aprender desde os fundamentos a sua nova profissão. Era indiscutivelmente aceito que o presidente do Norte, dotado de uma mentalidade muito mais po­derosa do que o seu vizinho de além-Potomac, devia vencer o rival e conduzir à vitória o seu país. Mas três terríveis anos se haveriam de passar antes que Lincoln conhecesse os rudimentos de seu ofício. E em nenhum terreno êle encontrou maiores dificuldades do que no diplomático — uma nobre arte sutil desprezada por todos os bons democratas — uma espécie de festa à fantasia que podia agradar aos maneirosos aristocratas do afetado continente europeu, mas que não era feito para homens enérgicos e para suas não menos enérgicas mulheres.

Algumas honrosas exceções deviam ter convencido o país que um diplomata hábil e conhecedor de seu ofício valia mais na corte

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Fugindo ao bloqueio

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de uma nação contraria do que dez avisados e profundos políticos no interior. Mas o povo não podia compreender isso e ambos os presidentes viram-se em sérias dificuldades com o resto do mundo logo nos primeiros meses de governo.

Para começar, o Presidente Lincoln, depois de seu apêlo aos voluntários, lançara uma proclamação declarando sob bloqueio a costa da América, da Virgínia até o Texas, e avisando que todos os navios que tentassem penetrar nos portos dos Estados dissidentes correriam o risco de serem aprisionados pelos vasos de guerra da União. Infelizmente, agindo dessa maneira, o governo de Washing­ton reconhecia tácitamente o “estado de guerra” entre os Estados Unidos da América do Norte e os Estados Confederados da Amé­rica. E com isso se colocava em posição desagradável. De um lado denunciava os sulistas como rebeldes e traidores e do outro falava esn “beligerância” dos Estados Confederados; e um “beligerante”, na linguagem de Noah Webster, é “uma nação, um grupo ou uma pessoa mantendo uma guerra regular, reconhecida pela lei das na-ÇOCS .

Os legistas ingleses, quando leram êsse documento, ficaram admiradíssimos e explicaram que, embora o lamentassem profunda­mente, tinham de obedecer os acordos e tratados internacionais em vigor. Não podiam (ao menos oficialmente) tomar conhecimento de que a palavra “beligerância” usada pelo presidente americano na sua proclamação de dezenove de abril de 1861 era empregada num sentido mais próximo de “revolução” do que de “guerra”. Assim, com muitos “considerandos”, avisaram claramente a todos os ingle­ses que, “considerando que as hostilidades haviam infelizmente co­meçado entre os Estados Unidos da América e certos Estados que se intitulavam Estados Confederados da América, e considerando que a Grã-Bretanha pretendia manter estrita e imparcial neutrali­dade, os súditos ingleses não deviam ter nenhum contato com os exércitos ou as esquadras dos beligerantes, nem auxiliar, fora ou dentro do país, a construção, equipamento ou lançamento de qual­quer navio que pudesse ser usado como transporte, corsário ou vaso de guerra”, e assim por diante. A habitual proclamação de neutrali­dade.

Êsse ucasse foi feito por uma questão de rotina. Entretanto, quando foi publicado pelos jornais americanos, tôda gente ficou con-

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vencida de que a Inglaterra havia reconhecido a “independência” dos Estados Confederados. Mas a Inglaterra não tinha feito nada disso. O govêrno inglês apenas reconhecera a sua beligerância, o que era coisa muito diferente. Mas quando tôda uma nação se acha em estado de pânico, é inútil convidá-la a estudar a termino­logia das leis internacionais.

As autoridades de Washington, porém, tinham de tomar uma providência. Na frente, tudo ia mal. A primeira tentativa feita pelas forças do Norte para entrar nc território da Confederação terminara por uma derrota. A vinte e um de julho de 1861 os nor­tistas foram tão duramente batidos perto de Buli Run Creek, na Virgínia, que não poderiam esperar recomeçar a campanha antes da primavera do próximo ano. Quando as notícias dêsse desastre (porque as coisas ficaram mesmo pretas) chegaram à Europa, hou­ve grande satisfação entre os numerosos inimigos dos Estados-Uni- dos e os amigos da Confederação predisseram que em breve Lee poderia fazer flutuar a sua bandeira sobre o Capitólio, em Washing­ton. A situação era extremamente desagradável. E depois, para pio­rá-la ainda mais, sobrevem um dêsses ligeiros incidentes interna­cionais, insignificantes em si, mas que freqüentemente causam a abertura das hostilidades entre nações sensíveis.

No princípio de novembro de 1861, o navio U. S. A. San Jacinto, depois de um cruzeiro pela costa da África para impedir o tráfico dos escravos, vinha de volta quando parou em Iíavana. Aí o Capi­tão Carlos Wilkes, o herói de uma famosa expedição científica ao5 mares do Sul, conseguiu alguns jorna:s americanos nos quais leu que James M. Mason e João Slidell, representantes diplomáticos dos Estados Confederados, estavam de viagem para a Europa e deviam- sair de Havana no vapor inglês Trent.

O Capitão W7ilkes (um homem cuja carreira foi uma estranha sucessão de medalhas de ouro e cortes marciais) decidiu distinguir-se por um feito destemido e inesperado. Deixou Havana, esperou pelo Trent, ameaçou usar os canhões se o pacífico barco não entregasse os rebeldes, e levou triunfalmente para a América o seu “contra­bando de guerra.”

Durante o primeiro momento de excitação, o Congresso votou uma medalha de ouro ao intrépido capitão, mas o povo inglês pen­sou de modo diverso e os jornais londrinos falaram com tanto ódio

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dês se terrível, dêsse insuportável insulto a um livre navio inglês, que um estadista menos céptico e experimentado do que Lord Pal­merston teria sido arrastado à guerra. Ainda assim, o Lord foi for­çado a mandar que o representante de Sua Majestade em Washing­ton exigisse a libertação imediata dos dois prisioneiros e, em caso de recusa, pedisse o seu passaporte e deixasse o país.

A conselho do Príncipe Consorte, a carta de Lord Palmerston foi tão conciliatória quanto possível, mas a situação era considera­da extremamente séria e as tropas já começavam a se pôr em mo­vimento em direção ao Canadá, e os estaleiros do mar do Norte de­senvolviam uma atividade desusada.

Os nortistas poderiam ter discutido, dizendo que, não havendo os Estados-Unidos reconhecido a independência da Confederação, Mason e Slidell continuavam a ser cidadãos americanos e o Capi­tão Wilkes fizera apenas o mesmo que os oficiais inglêses haviam feito milhares de vêzes durante o último século, quando abordavam os navios neutros levando todos aquêles que suspeitavam de serem inglêses. Mas Lincoln, que estudava com afinco seu novo ofício, viu que o momento não era para discussões. Ordenou que Mason e Sli­dell fôssem postos a bordo de um outro paquête inglês e continuas­sem em paz a sua viagem sob a proteção da bandeira inglêsa; assim

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terminou o episódio, sem deixar maiores ressentimentos entre os dois países.

Nem bem, porém, esse ponto fôra decidido, surgiu logo outra dificuldade. Tendo sido considerados beligerantes, os confederados podiam livremente ccmprar pólvora, cinhões e tôda sorte de ma­terial bélico. E trataram de fazê-lo logo. Haviam-se gabado de, com o seu monopólio de algodão, mostrar quem era o verdadeiro donô da América do Norte, e queriam agora trocar algodão por mosque­

tes e peças de artilharia nos mer­ca 3os de Paris e Londres. Se isso se tivesse dado e os mos­quetes e os canhões tivessem eido enviados para Savannah ou Charleston, o govêrno dos Estados-Unidos não poderia re­clamar. Ou esses objetos che­gariam sem embargo ao seu des­tino, ou seriam interceptados por algum vaso de guerra da União e confiscados. Mas agora o Pre­sidente Davis ameaçava fazer u n a coisa que nunca se tinha visto. Queria transformar as Ilhas Britânicas em base naval da Confederação. Encomendou cri zadores aos estaleiros ingle­ses Armou-os com canhões in- glê;es. A tripulação dêsses cru­

zadores era recrutada nos domínios de Sua Majestade, e êles ti­nham ordem de sair de Glasgow ou Southampton para perseguir o comércio da União, devendo voltar aos portos inglêses quando neces­sitassem de reparações ou de munições.

Tudo isso, naturalmente, veio ao conhecimento de Lincoln e do seu gabinete; esses dignos homens cofiavam as barbas dizendo: “Isto não está direito.” Daí uma série de protestos. Mas não é na­da fácil verificar onde a venda de material bélico a um beligerante deixa de ser um comércio lícito para se tornar uma quebra de neu­tralidade. Se, de acôrdo com a lei inteinacional, fõr permitido ven-

Gecrgia

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Por ter salvo a Bandeira

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der uma dúzia de obuzes a um beligerante, é permitido também vender-lhe dez mil. Mas se um governo pode gastar cinco milhões de dólares para comprar munições, por que não os pode gastar adqui­rindo e equipando alguns cruzadores?

Felizmente, enquanto se discutia êsse problema, os trabalhadores das fábricas de tecidos de algodão de L incashire e Cheschire, que es­tavam na miséria porque o trabalho fôra suspenso por falta de maté­ria-prima, vieram inesperadamente em auxílio do governo dos Esta­dos-Unidos; endereçaram ao Parlamento uma petição no sentido de impedir o governo de Sua Majestade ce reconhecer ou prestar mais apoio a um governo que punha em condições desesperadas três mi­lhões de homens; e ameaçavam rebelar-se caso não fôssem atendi- dides. E, para nosso bem, a União era então representada em Lon­dres por um homem que não se envergonhava de sua terra e per­manecia fiel aos interêsscs de seu povo, embora muitas grandes da­mas o riscassem da sua lista de convi\ as e o tratassem com verda­deira acrimonia. Carlos Francisco Adams era filho dc um presidente dos Estados-Unidos e neto de outro. Não era precisamente o que se chama um homem emotivo. E talvez isso tivesse sido muito bom. Permitiu-lhe manter uma atitude calma mesmo depois da derrota de Fredericksburgo, quando realmente parecia que o Norte estava perdido; e mesmo depois do oportuno e hábil discurso de William Ewart Gladstone (o eminente teóloge), onde êsse membro oficial do govêrno de Sua Majestade sugeriu que o govêrno inglês devia reconhecer “a nação que o grande estadista Jefferson Davis fundara com tanto êxito do outro lado do oceano”, Adams não perdeu o do­mínio sôbre si. Ao contrário, foi êsse domínio que o conduziu ao momento sublime de sua carreira, relaxando-se apenas o suficiente para lhe permitir avisar, com tôda a calma, ao Secretário de Estado britânico que essa história de equipar e abrigar continuamente cru­zadores confederados nos portos inglêsos só podia levar a um resul­tado, e êsse resultado, como Sua Excelência sem dúvida já sabia, soletrava-se G-U-E-R-R-A.

Essa gélida informação pareceu clarear a atmosfera. Nunca se chegou a hostilidades francas. Em pr meiro lugar, havia na Ingla­terra muita gente que detestava a escravidão e que preferiria ser prêsa a combater os abolicionistas do Norte. Em segundo lugar, a Inglaterra nunca estava inteiramente tranqüila por causa de um

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vizinho incômodo, o Imperador Napoleão. Em terceiro lugar, ela tinha de contar com a Rússia, que fôra tão duramente vencida na Criméia alguns anos antes e que concentrara tôda a sua frota ncs portos de S. Francisco e Nova York, não por entranhado amor à democracia americana, mas porque esperava, no caso de conflito com a Grã-Bretanha, poder usar êsses portos como bases navais contra a Inglaterra.

Mas tôdas essas considerações eram secundárias. E a causa real da mudança que se foi operando na atitude do governo de Sua Majestade não foi tampouco um súbito entusiasmo pelos ideais de Abraão Lincoln. Veio da reviravolta da sorte nos exércitos ameri­canos. Veio por causa dos esforços vitoriosos de um obscuro ex- oficial do exército regular, antigo empregado de um curtume em Galena, Illinois, um homem a quem sempre tudo correra mal, e que se chamava Ulisses S. Grant. Quando a guerra rebentou entre o Sul e o Norte, pareceu a todos que a carreira desse jovem oficial autrora brilhante havia chegado ao fim, e tôdas as senhoras da W. C. T. U. local, balançavam as cabeças tristemente, lamentando: "Ve­jam só êsse pobre Ulisses!”, e prediziam para breve um funeral que feria uma lição contra os perigos de fumar muito e beber ainda mais. Ficaram horrorizadas quando êsse desmoralizado capitão foi feito comandante de um regimento do Illinois, e encarregado de condu­zir ao fogo os seus preciosos e imaculados rebentos.

Quanto a Grant, nunca fôra homem de muitas palavras; por isso pegou tôdas as tropas confiadas aos seus cuidados e calmamen­te, mas eficientemente, esmagou a frente ocidental da Confederação; depois, invadindo o Tennessec, obrigou Lee a retirar do Norte mui­tas das suas melhores tropas para proteger as fronteiras ocidentais e meridionais do território de que tinha a guarda.

Isso fôra um bom princípio. Seguiu-se-lhe imediatamente uma cutra vitória inesperada de importância ainda maior.

O bloqueio do Norte imobilizava completamente o Sul. De que servia colhêr anualmente cinco milhões de sacas» de algodão se não era possível exportá-las? De vez em quando conseguia-se meter al­gumas mil sacas num vapor rápido que tentava escapar ao bloqueio, indo dar numa das possessões inglêsas, espanholas, holandesas ou dinamarquesas das índias Ocidentais. Mas quantias tão pequenas

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não chegavam para nada, e era urgente descobrir um meio de furar o muro de ferro dos navios da União.

Os confederados não possuíam os recursos industriais tão co­muns no Norte. Mas seus engenheiros tinham ouvido falar nos na­vios blindados que tôdas as nações eurt péias usavam desde a guer­ra da Criméia e procuraram desse ladc a solução das suas dificul­dades. Não sei quem desenhou o plano do primeiro navio blindado da Confederação, mas um dos ministros de Davis fizera parte, du­rante vários anos, da comissão de negócios navais do Senado, e de­via portanto conhecer tôdas as novidades referentes à proteção dos navios. Os confederados não dispunham de muito material, mas, construindo um revestimento de ferro sòbre o casco meio queimado de um velho vaso de guerra da União, conseguiram um dreadnought em miniatura que podia percorrer sete milhas por hora e era abso­lutamente invencível numa luta com um navio comum, de madeira, Essa esquisita máquina, antiga U. S. S Merrimac, foi crismada C, S. S. Virgínia, e no ,primeiro encontro a undou dois vasos de guerra da União.

Isso era apenas um começo, mas se Stephen Mallory tivesse podido construir mais uma dúzia de Virginias, o caminho de Char- leston para Londres estaria aberto para o comércio confederado, e seu algodão se teria revelado mais pode oso do que as espadas.

Mas, infelizmente, enquanto os confederados serravam o topo do velho Merrimac e pregavam fôlhas de ferro no seu casco, um sueco, John Ericsson, de Langbanshyttan em Wermland, ex-capi- tão do exército sueco e fértil inventor, estava trabalhando nalguns planos que iriam desmanchar todos os sonhos de supremacia ma­rítima dos confederados, desfazendo-os em madeira incendiada e pedaços de ferro.

Ericsson, que na Inglaterra construíra locomotivas para com­petir com a Rocket de Stephenson, e inventara o famoso propulsor espiralado para uso dos navios de guerra, tivera agora a idéia de munir os navios blindados com canhões colocados em tôrres móveis. Levou sua invenção para a França. Mas o terceiro Napoleão se in­teressou tão pouco pelo navio de Ericsson quanto o primeiro havia feito pelo que Fulton exibira para ele nas águas barrentas do Sena e não deu ao sueco o menor apoio. Nesse momento chegaram à Eu­ropa os rumores da construção pelos confederados do seu novo vaso

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de guerra e Ericsson foi para Washington para submeter seus pla­nos aos engenheiros dos Estados-Unidos. Êstes estavam em tal per­plexidade que, por uma vez, consentiram em ouvir um estrangeiro e um civil, e Ericsson foi autorizado a construir o seu Monitor se­gundo as suas idéias ousadas, nas quais ninguém se meteu.

Trabalhou com tanto ardor que o navio ficou pronto cm menos de seis meses. Um mar furioso impediu-o de sair para o Sul com tempo de suster a terminação do Virgínia. Mas um pequeno encon- tro a nove de março de 1862 demonstrou a completa superioridade- do Monitor como instrumento de destruição, e assim findou a últi­ma esperança dos confederados de quebrar o bloqueio.

Com o auxílio de mais alguns Monitores e navios blindados, o bloqueio do Norte foi reforçado com grande vigor, e o algodão su­lista apodrecia nos depósitos de Mobile e Norfolk, ao passo que as potências européias, que já não podiam mais esperar a vitória do Sul, faziam-se surdas a todos os apelos de crédito ou reconhecimento.

As tropas de Lee e Jackson lutavam desesperadamente paia pôr em xeque os seus adversários. Não o conseguiram, e, além dis­so, o seu inimigo lançou mão de um estratagema que reputaram um golpe traiçoeiro, pelas costas. Por proclamação do Presidente Lin­coln, todos os escravos ainda existentes no território ocupado pelo exército confederado podiam considerar-se livres a partir de primei­ro de janeiro de 1863. A lei, porém, não extinguia a escravidão nos Estados da União que permaneciam fiéis ao Norte. Era pura e sim­plesmente uma medida de guerra, destinada a ganhar o apoio dos abolicionistas de dentro e de fora, que, desde êsse momento, tinham de considerar a guerra como uma cruzada para a libertação do ho­mem, e não mais como um conflito impio por causa de rivalidades de Estado. Mas não resolvia a questão da escravidão (que era uma das causas embora das menores da Guerra Civil) c só em 1865 uma nova emenda constitucional (a décima-terceira) acabou com essa “instituição peculiar” e baniu para sempre a servidão forçada do território dos Estados-Unidos.

A respeito da guerra em si, posso ser breve. Desde que o co­mando em chefe foi confiado a um só homem, o antigo sapateiro de Galena, Illinois, o problema pôde ser resolvido com a rapidez de uma partida de xadrez. O vale do Mississipi estava ocupado. O Almirante Farragut forçara o caminho para Nova Orléans. Lee

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quase destruiu em Gettysburgo um exército nortista e só lhe falta­ram dez minutos e cinco mil homens para tornar decisiva a vitória. Sherman percorreu tôda a Geórgia operando tais milagres em ma­téria de destruição desenfreada que alguns nortistas conscienciosos se sentiram ligeiramente envergonhados dessa ostentação salutar mas algum tanto exagerada de ferocidade. E em seguida, depois dos con­federados terem inutilmente procurado obter a paz sugerindo uma expedição das forças do Norte e do Sul contra o México, a cidade de Richmond, a capital sulista, foi sitiada, bombardeada e tomada, enquanto Jeff Davis errava pelos desertos da Geórgia, tentando va­gamente evitar essa amarga macieira que as tropas ianques haviam de antemão celebrado com tanto ardor nesses últimos quatro anos, e que lhe devia ser fatal.

Depois do desastre nada restava a fazer senão render-se com dignidade e aceitar com grande humildade de espírito essa rendição; íoi o que fizeram Grant e Lee depois do seu encontro perto do Tri­bunal de Justiça de Appomattox.

E afinal — quando o caso ficou resolvido para sempre — quan­do se decidiu que os direitos da pátria comum deviam sempre ser superiores aos de cada Estado, chegou o momento de reparar os prejuízos causados por quatro anos de destruição.

Algumas pessoas do Norte estavam prontas a estender uma mão compassiva aos seus antigos inirrigos. Outros, da raça dos ver­dadeiros macabeus, mostravam-se tã? implacáveis na hora da vi­tória como tinham sido desanimados nos tempos das derrotas. Mais do que nunca a sorte da República parecia depender do homem pa­tético e solitário que durante quatro terríveis e solitários anos ha­via aprendido a lutar sem odiar. Na manhã de quatro de março de 1865, Abraão Lincoln, eleito pela segunda vez para a presidência dos Estados-Unidos, reunia as suas idéias para uma filosofia da vi­da prática e fácil de ser cumprida — um pequeno evangelho ameri­cano de bondade e caridade — um apêlo à justiça e à paciência — uma advertência bem-humorada para todos serem generosos e não abrigarem inveja nem ressentimentos.

Seis semanas mais tarde, êle casa morto com a cabeça varada por uma bala.

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CAPÍTULO XLVI

O CLTIM O DOS CONQUISTADORES VOLTA PARA CASA NUM CAIXAO

Pobre coitado — devia saber que acabaria mal.Era uma boa alma, um príncipe amável, pintava quadros en­

cantadores, tocava piano e conhecia muito bem Botânica. Mas não tinha muita barba — isso não tinha.

Por isso, como todos os Habsburgos, usava engraçadas suíças e tentava parecer feroz, e falando em voz cavernosa de Deus, da Pá­tria, do dever e de tôdas as coisas solenes. Até nesses momentos era ligeiramente ridículo. Só de uma feita pôde atingir a estatura de teus antepassados.

Não soubera viver muito bem.Mas morreu magnificamente.E por isso muito lhe deve ser perdoado.Êsse infeliz príncipe, que devia ser o último dos conquistado­

res, nasceu no palácio imperial de Schõnbrunn em 1832. Seu pai era um grão-duque austríaco, seu irmão era imperador da Áustria, seu sogro rei dos belgas, e podia chamar de primos metade dos sobera­nos da Europa. Porque sabia ler, escrever e contar, os outros Habs­burgos o consideravam um gênio, fizeram-no vice-rei da Itália e comandante em chefe dos exércitos austríacos. Mas, no fim de tudo, ele os logrou. Porque êle era realmente uma boa cabeça e um va­lente trabalhador que fêz o que os seus parentes nunca tinham con­seguido; lia muito e estudava com o auxílio de planos e mapas e foi logo tido como uma autoridade em assuntos navais. Quando a esquadra austríaca foi reorganizada, teve carta branca, construiu navios com as proteções de ferro recém-descobertas, os quais, até a última guerra, deram à Áustria a supremacia no Adriático e na metade orientai do Mediterrâneo. Como vice-rei da Lombardia, advo-

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gou reformas tão inteligentes e libera s que poderiam ter conser­vado a Áustria para os Habsburgos. Mas como ninguém parecia entender o que ele queria, ficou desgostoso e renunciou ao governo; construiu uma linda casa perto de Trieste onde colecionava leques e tocava as sonatas de Schubert. Preparou-se para passar o resto de seus dias como um honesto grão-d ique austríaco, alegre e fol­gazão, sem ter nada com que se preocupar, possuindo uma mulher bonita, um cozinheiro excelente e tudo o que quisesse.

Entretanto, nas longínquas montanhas de Oajaca, numa velha fortaleza asteca, vivia um índio que se chamava Benito Pablo Juarez. Começara a vida numa cabana de adôbe.

Um bom frade, tendo descoberto nele qualidades aproveitáveis, protegeu-o e o fez formar-se em Direito. Meteu-se depois em al­gumas campanhas, pois queria entrar para a política. Foi governa­dor da sua província, e finalmente, em 1861, foi eleito para a presi­dência do México. Vai uma grande distancia de Schõnbrunn a Ixtlán. Mas nos domínios da História o impossível é sempre o mais lógico, e podemos assim introduzir uma terce ra pessoa na nossa pequena tragédia.

A avó de Napoleão III fora uma crioula da Martinica. Seu pai (se dermos crédito às melhores autoridades contemporâneas) era um almirante holandês. Seu progenitor oficial, porém, era um irmão do grande Napoleão, e sua mulher, a neta de um americano de nome Kirkpatrick, que fora cônsul Jos Estados Unidos em Má- laga, a terra do excelente vinho que tanto conhecemos. No momen­to em que preciso dêle na minha História, êle acabava de comuni­car à Europa que o seu recente império tinha aprendido a soletrar a palavra p-a-z e que êle próprio andava procurando novos conti­nentes para conquistar. E agora voltemos ao nosso amigo índio.

Juarez era essa coisa rara, um devotado patriota mexicano. Acreditava sinceramente no futuro da sua raça, se os outros a dei­xassem se desenvolver livremente. A f m de livrar por algum tem­po o seu país da eterna pressão dos seus múltiplos credores e fazer face às despesas correntes, êle suspend< u por dois anos o pagamen­to de juros das dívidas estrangeiras. Isso causou uma grande cons­ternação naquelas escuras e pitorescas ruelas de Madrid, Paris e Londres, geralmente conhecidas como ‘círculos financeiros”, e, sem mais demora, os cruzadores espanhóis, franceses e inglêses zarparam

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para Vera Cruz para exigir uma reparação e defender os “direitos” dos desolados usurários europeus.

0 governo inglês, com o seu tradicional respeito pelas realida­des da vida, logo entendeu que êsse humilde índio era uma pessoa direita e pagaria cada libra de aborrecimento momentâneo com uma libra e meia de valores reais. Os navios inglêses foram portan­to retirados e os espanhóis, compreendendo a situação, logo os se­guiram. Mas Napoleão, que enchera a imprensa paga com sonoros artigos sôbre a supremacia do gênio gaulês dominando mais uma vez o mundo, não podia desistir dessa triste emprêsa sem perder grande parte do seu prestígio. Muito contra a sua vontade, teve de continuar, e os seus soldados que não tinham morrido de febre ama­rela marcharam para a cidade do México e fizeram fugir para o deserto o Presidente Juarez.; Depois ficou sem saber o que havia de fazer.

O Imperador Napoleão era um completo “parvenu” entre as cabeças coroadas da Europa. Muitos dos seus colegas monarcas ha­viam recusado tratá-lo de “caro irmão; então imaginou um plano tão fantástico quanto astuto. Ofereceria o trono do México a um membro da orgulhosa Casa dos Ilabsburgos. Assim haveria um ou­tro imperador improvisado no mundo, e quando o imperador da Áus­tria quisesse humilhar o da França, lembrando-lhe as suas origens modestas, êste poderia retorquir, dizendo: “Seu irmão também não nasceu no trono do México!”

Os Habsburgos (como já disse não eram muito brilhantes co­mo príncipes, mas possuíam uma certa agudeza instintiva para a política. Nem de outro modo teria podido se manter por tanto tem­po no seu trono vacilante. E, desde o princípio, Francisco José opôs- se firmemente à idéia que o embaixador francês tentava expor-lhe de modo convincente.

Maximiliano, ao contrário, achou admirável o plano. Era um fruto da escola romântica em arte e literatura. Já se via num sim­ples porém elegante uniforme de imperador, apoiado a uma coluna partida de um velho palácio asteca, enquanto a lua brilhava ilumi­nando o longínquo Popocatepelt e milhares de pequenos súditos bronzeados tocavam Beethoven nas guitarras, celebrando em cân­ticos harmoniosos o seu amor pelo seu bom rei.

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O último dos con juisiadores

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Para encurtar o mais possível essa triste história, vamos direito aos fatos. Êle aceitou o oferecimento.

Acreditou na lenda de um plebiscito entre os mexicanos, que o leriam unanimemente aclamado o sucessor de Montezuma. Por in­sinuação de seu prosaico porém prático irmão, êle renunciou a to­dos os seus direitos ao trono da Áustria e partiu para Vera Cruz.

Êsses projetos mirabolantes do grande charlatão francês não tinham passado desapercebidos das autoridades de Washington, e muitos ministros americanos junto das côrtes européias indagaram polidamente se as referidas côrtes haviam jamais ouvido falar de uma certa mensagem que um certo presidente Monroe havia envia­do ao Congresso muitos anos antes. Suas Majestades e suas Exce­lências responderam que sim; mas as circunstâncias mudam tudo: Monroe falara em nome de todos os Estados-Unidos, e agora já não existiam Estados-Unidos e sim duas republiquetas empenhadas numa dura luta onde provàvelmente se destruiriam reciprocamente.

Em 1863 isso parecia a própria evidência.Mas dentro de um ano a Confederação já não existia, e os Es­

tados-Unidos, livres de qualquer impedimento interior, podiam, com seu Exército e sua Marinha, ir em socorro de seu leal vizinho Be­nito.

Começaram a campanha procurando agir sôbre o Imperador Napoleão. Mostraram-lhe nos jornais as notícias de importantes vitórias alcançadas por um país de nome Prússia sôbre o vizinho Estado da Dinamarca; falaram de um homem chamado Bismarck que parecia sonhar com a ressurreição do antigo Império Germâ­nico, em detrimento da França.

Napoleão foi forçado a confessar que tudo isso era verdade, verdade inegável. E, sem o menor remorso, talvez sem consciência do que fazia, retirou sumariamente as suas tropas do México, dei­xando o pobre Imperador sintético entregue a si próprio.

Maximiliano, se só pensasse em si, poderia ter fugido enquanto as estradas para as costas ainda estavam abertas. Mas era, no fun­do, um homem de bem com um alto senso do dever e se sentiu na obrigação de defender os que o tinham auxiliado na sua luta para subir ao trono.

Quando viu tudo perdido, procurou a morte nos campos de ba­talha. Mas desgraçadamente nenhuma bala se compadeceu dêle c

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o inevitável sucedeu. Um dos seus subordinados mexicanos o ven­deu a Juárez e Juárez o condenou a ser fuzilado. Maximiliano não pediu misericórdia para si, mas tudo fêz para conseguir uma comu­tação de pena para os generais que lhe tinham sido fiéis até o fim.

Quando a notícia da senteça chegou à Europa, o mundo in­teiro se revoltou com a idéia de ver um príncipe imperial da Áustria «xecutado por ordem de um sanguinário índio mexicano. Até o Pre­sidente dos Estados-Unidos dirigiu-sc ao seu bom amigo de além- Rio Grande pedindo-lhe que se mostrasse clemente. Mas Juárez respondeu que não podia interferir no caso. Não era ele quem con­denara à morte o imperador. Era a Lei do país.

Depois disso nada mais se podir; fazer.Maximiliano foi executado a dezenove de junho de 1867.Seis meses depois um navio de guerra austríaco com nome ita-

iiano e ostentando a bandeira de Sua Majestade Apostólica Real e Imperial entrava sem alarde no porto de Vera Cruz.

E no dia seguinte o último dos conquistadores voltava para casa num caixão.

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CAPÍTULO XLVII

O PREGO DE OURO DE UTA

Dois caroços de ervilha são dois caroços de ervilha, e dois ele­fantes são dois elefantes.

Mas embora ambos sejam “dois”, e portanto iguais numérica­mente, dois caroços de ervilha não são a mesma coisa que dois ele­fantes.

Êsse pequeno problema de aritmética é tão evidente que não exige maiores elucidações. Infelizmente, há muita gente que fica ofuscada pelo têrmo “dois” e não entende mais nada do resto da equação. Para ela, “dois” são, foram e serão “dois”, e os caroços de ervilha e os elefantes não têm a menor importância.

Ora, quando acabou a guerra civil e se desvaneceu o fantasma da invasão estrangeira pelo México, soou a hora de um completo e

i minucioso exame das dificuldades econômicas e sociais suscitadaspela reconstrução das regiões devastadas do Sul.

A intransigência dos puritanos — um traço dominante na civi­lização do Norte — com a sua eterna insistência para sobrepor a justiça à caridade, tornou árdua e delicada essa tarefa.

Para os nortistas que tinham perdido na peleja mais de trezen­tos e cinqüenta mil jovens, e dos melhores, o Sul continuava a ser vilão e criminoso.

Fora o Sul quem quisera forçar a União a aceitar o seu ponto de vista em relação aos escravos.

Vendo que não conseguia isso, preferira separar-se.E não podendo separar-se sem verter sangue, foi ainda êle quem

deu o primeiro tiro. E tudo isso por uma absurda crença sulista de que os brancos eram por direito divino superiores aos pretos.

Não, nisso os bons nortistas não podiam seguir os rebeldes.

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Para eles, dois eram dois.Um prêto era simplesmente um br inco com a pele um pouc^

mais escura, e dois negros da zona algodoeira do Mississipi eram tão bons como dois Robert E. Lee da Virgínia. Uma perigosa con­fusão e um êrro grave, porque antes que o Norte descobrisse que

A ligação do Oeste e do Leste

as leis da Lógica não governam as relações humanas, todo um po­vo chegara a um grau extremo de exasperação e dez anos de paz haviam custado muito mais do que cinco anos de guerra.

Se Lincoln fosse v ivo! . . .Mas Lincoln se fora, e seu lugar à 'rente da Nação estava ocu­

pado por um homem incapaz de exercê-lo. Fôra eleito vice-presi­dente porque era um dos poucos políticos sulistas fiéis à causa da União, e os dirigentes do partido de Lincoln esperavam agradar aos Estados das fronteiras dando a um democrata de Tennessee um lugar proeminente numa chapa republicana.

A pistola assassina de Booth elevara à presidência esse pobre

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aprendiz de alfaiate. E agora esse discípulo de Andrew Jackson, ês- çe lenhador do sertão, devia guiar o país durante o período mais di­fícil da sua existência. E êle, que no íntimo achava que o Sul so­frera uma grande injustiça e não merecera tão ignominiosa derrota, se viu obrigado a fazer causa comum com um grupo de novos-in- glêses que consideravam o Norte ofendido e pensavam que os an­tigos confederados ainda se deviam dar por muito felizes de pode­rem viver.

A completa e declarada hostilidade entre êsses dois pontos de vista divergentes causou por fim o impedimento do presidente de­pois de uma série de experiências que não provaram nada e adian­taram ainda menos. Para o Sul, cuja vida econômica estava desda muito paralisada, essa desastrosa querela entre o Executivo e o Le­gislativo foi mesmo um desastre. Significava que os “cento por cen­to” de então, os virtuosos profligadores do crime inenarrável da es­cravização do homem, podiam agora dar completa expansão à sua fúria de vingança e opressão.

Significava um mundo de pernas para o ar, onde os negros (apoiados nas baionetas dos regimentos nortistas) oprimiam com sublime ignorância e imprudência os seus antigos senhores brancos. Causou a ruína de um sistema social que, com todos os seus erros, havia produzido muitos homens de capacidades extraordinárias e tivera a parte principal na fundação da República independente dos Estados-Unidos.

Finalmente, tornou tão difícil a volta a condições econômicaj normais, que foram necessárias duas gerações para que o Sul vol­tasse a si dêsse golpe quase mortal ao seu orgulho e à sua prosperi­dade.

E depois, como sempre na vida, aconteceu o que ninguém es­perava. O Norte e o Sul haviam disputado a primazia da União, e a vitória coube ao Oeste.

O que até então fôra um vago fundo de quadro tornou-se su­bitamente o centro da cena, e a velha fé das fronteiras foi definiti­vamente adotada como uma nova religião pela população do litoraj.

Indiretamente, as vicissitudes políticas e militares dos primei­ros anos de sessenta haviam influído muito nessa mudança. Fôra de grande importância para os Estados-Unidos não somente man­ter a amizade dos Estados vizinhos do Oeste próximo, como ainda

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O prego de (yuro de ü tâ

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conquistar a fidelidade dos americanos que viviam ao longo das costas do Pacífico. Infelizmente, êstes viviam separados do leste do país! por duas mil milhas de montanhas e planicies, e urna carta levava no mínimo seis semanas para ir de Nova York ao Sacra­mento, passando pelo istmo de Panamá. Mas em 1860 foi inaugu­rad^ o célebre “Pony Express” entre S. Francisco e S. José, Missouri. Os que quisessem pagar cinco dólares por onça de correspondencia podiam fazer chegar em oito ou nove dias as suas cartas de leste para oeste.

iDepois veio a construção das linhas telegráficas sobre as pla­nícies.

iMas restava ainda um grande inconveniente, porque não se podja mandar soldados por telegrama nem pelo “Pony Express” . Além disso, todos sabiam — aliás já o sabiam desde os dias de Le- wis :e Clark — que essas terras intermediárias eram de grande va­lor, ium verdadeiro paraíso agrícola, rico de todas as espécies de ma­térias-primas.

Um governo eficiente e cuidadoso não podia deixar inculto ês- se tçrritório. Já no tempo de Jefferson, o simples boato de que Aarão Burr estava planejando fundar um império independente no vale do Mississipi causara um verdadeiro pânico entre o povo do Leste. E agora o país estava em guerra. Os franceses estavam no México. Regimentos de guardas ingleses ocupavam os fortes de Halifax. N a­turalmente o Norte esperava vencer, mas não se podia ter a certeza dissó, e seria quase um suicídio permitir esse vácuo mais tempo do que o que fôsse absolutamente inevitável.

Por algum tempo a guerra impediu toda tentativa seguida de povoamento. Os que eram bastante fortes para manejar enxadas e pás eram obrigados a empunhar carabinas, e os cavalos de uns pe­quenos regimentos de cavalaria eram os únicos a quebrarem o si­lencio sem fim dos campos. Logo, porém, que se fêz a paz, a tarefa de ligar o Oeste a Leste foi encarada sèriamente.

Até então os construtores de caminhos de ferro haviam seguido os pioneiros. Agora era o construtor que se tornava pioneiro. Não esperava mais que houvesse um determinado número de habitan­tes numa parte da União para ver se valia a pena construir uma es­trada de ferro. Agora começava por prover com meios decentes de comunicação um território deserto e depois convidava os fazendei-

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A s montanhas Boohosas

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t o s do Leste e os imigrantes europeus a se estabelecerem a urna dis­tancia razoável das estações e a empregar a estrada como meio de transporte do gado e dos produtos da lavoura. Os concessionários trabalharam com tanto afinco e rapidez que em breve toda a ba­cia do Mississipi era urna complicada rede de trilhos e a instalação da primeira estrada transcontinental urna simples questão de tempo.

A dez de março de 1869, no Promontory Point, em Utá, um prego de ouro foi cravado nos últimos quatro pés de trilhos.

Leste e Oeste estavam reunidos e terminada com êxito a pri­meira parte do programa.

A segunda era mais difícil.O número de pessoas com recursos suficientes para comprar

ierras no Oeste e se mudarem para lá com toda a familia era rela­tivamente pequeño.

Os outros estavam cheios de boa vontade, mas faltavam-lhes <os quinhentos ou seiscentos dólares necessários para se instalarem nas fazendas recém-adquiridas. A fim de facilitar a imigração des­ea vasta classe de cidadãos, o Congresso votou uma lei de proprie­dades, segundo a qual todo cidadão de boa conduta poderia se apos­sar de cento e sessenta jeiras de terras da União a oeste e usar delas enquanto as explorasse honestamente.

Essa medida auxiliou enormemente o povoamento das regiões do “far-west” . Só um outro país, a Rússia, tomara a si uma em­presa de igual vulto. Mas enquanto na Sibéria (refiro-me à Sibé­ria dos exploradores e não àquela parte mais conhecida porém me­nos importante da Sibéria do norte que foi usada como colônia cor- recional) o governo era obrigado a empurrar à fôrça o camponês para as pingues campinas da Tartária, as autoridades americanas se viam continuamente na contingência de procurar conter o entu­siasmo desenfreado dos povoadores em perspectiva. Alguns anos de exploração intensa do Oeste mostraram definitivamente que o Rei do Algodão do Sul era um soberano fraco em comparação com A Im­perial Majestade dos Cereais e do Gado que agora reinava sôbre milhões de férteis jeiras no Texas e em Dacota. Não se podia con­ter os grupos de exploradores ávidos que queriam obter o seu qui­nhão antes que fôsse tarde demais. Nessa corrida louca para as no­vas pastagens e os novos trigais, os últimos índios restantes (a quem êsse território fôra dado em compensação das suas possessões an-

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cestrais que os Estados-Unidos ocuparam a leste) eram rudemente postos para fora ou engaiolados em campos de concentração onde podiam vegetar, degenerando lentamente em meros espécimes curio­sos da primitiva fauna local.

Mas ésses incidentes cruéis parecem ser uma conseqüência ine­vitável da civilização branca na sua expansão pela face do globo. Teoricamente, os europeus e os americanos reconhecem os pretos, os amarelos e os vermelhos como criaturas que têm direito de viver. Na prática, porém, preferem que essas criaturas “conheçam o seu lugar” e lhes engraxem as botas ou lhes lavem a roupa. Quando uma dessas raças que parecem colocadas entre os “faces-pálidas” e os lucros imediatos se declara muito altiva para só fornecer engra­xates ou lavadores de pratos, o ariano não sabe o que fazer dela. Posto diante de tal dilema, fica nervcso, começa a brincar com o revólver, e, em nove casos sôbre dez, acontece que a arma dispara. E se a pobre reclamante se encontra por acaso no trajeto da bala— tanto pior para ela. Por que, em nome de Deus, não prestou mais atenção? Mas desde que, de qualquer maneira, estava morta, o melhor é enterrá-la e não pensar mais nisso.

Êsse capítulo de nossa História não é muito elogioso para nós. Em cada página encontramos só rapacidade e crueldade ou trata­dos desfeitos, e todo o episódio se estriba no contrabando de aguar­dente para os famosos “saloons” das aldeias. Mas que valem os princípios éticos contra as leis da natureza? Dois milhões ou mais de milhas quadradas de montanhas e olanícies que os Estados-Uni­dos conseguiram dos franceses, dos mexicanos e dos inglêses por compra, troca ou conquista, que conti íham algumas das mais ricas minas de ouro, prata, chumbo, cobre e óleo com que o mundo ja­mais sonhara, estavam ocupadas por uma raça fraca que lutava com arco e flechas, e eram cobiçadas por uma raça forte que possuía canhões e carabinas.

Um estadista alemão, com a falta de tato que seu povo cha­ma de honestidade, disse que “êste irundo é governado pela força e não pelo direito”.

Nós, nas nossas alegres escolas caiadas de branco e nas nossas lindas igrejinhas alvas de Idaho, Wyoming, Montana e Nebraska, cantamos hinos em louvor do Céu misericordioso por não nos ter feito semelhantes a êsses estrangeiros brutais que confessam pübli-

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camente que os fortes possuirão a terra e tudo o que ela contém, enquanto os fracos serão despojados até do pouco que lhes couber.1 . Abominamos essa idéia. Gritamos indignadamente que não, que is­so pode ser verdade para os outros povos, mas que nós nunca nos tornaremos culpados de tão feia ação.

Espero que meus bisnetos possam falar assim sem se revelarem grandes mentirosos. No momento, porém, vendo-me rodeado de um mundo que ou come ou é comido — ou destrói ou é destruído — acei­to a vida como a encontrei e me curvo aos ditames de um poder que reconheço como infinitamente mais forte do que a vontade humana.

Entretanto a sombra de Carlyle, com um meneio de profunda, dolorosa tristeza, murmura sombriamente: “E faz muito bem!”

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CAPÍTULO XLVIII

DECADÊNCIA E QUEDA DO T ER C E IR O CICLO DA CIVILIZAÇÃO

AM ERICANA

Já ouvimos as pessoas mais velhas se queixarem de que a nossa época é a época do jazz, de que vivemos depressa demais, de que a nossa civilização está poluída pelo demônio da velocidade.

Mas como gente velha vive sempre a se lamentar e a fazer com­parações, os moços respondem polidamente: “Sim senhor”, e não prestam maior atenção a êsses elogios do passado.

Amanhã certamente o avô encontrará outras coisas para se in­comodar, e teremos de ouvir uma sér e de censuras à “falta de res­peito das jovens gerações” ou “às representações imorais dos tea­tros de Nova York”.

Entretanto (embora me custe fazer essa confissão), parece que o modo de vida foi muito influenciado pela introdução recente do vapor e da eletricidade, e que a civilização ocidental (ou a civiliza­ção branca, ou a civilização cristã, chamem-na como quiserem) está indo para a frente (ou para trás: é difícil saber a sua verdadeira direção) numa velocidade totalmen e desconhecida há cinqüenta ou mesmo cinco séculos.

Voltemos por um momento aos dias dos egípcios, dos babilô­nios, dos gregos, dos cretas e dos romanos. Um pequeno grupo de pessoas, mais inteligentes ou mais enérgicas do que seus vizinhos, se assenhoreava de um pedaço de teira que oferecia vantagens eco­nômicas. Seguia-se um longo período de desenvolvimento, lento e seguro, durante o qual os recém-vindos se esforçavam por aprender os rudimentos de uma vida civilizada.

Depois disso vinha ordinariamente a chamada “idade de ouro”, quando a nação, sob a direção de meia dúzia de grandes homens,

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se afirmava nos campos de batalha — dominava o comércio — era celebrada por músicos e poetas — estudava os céus — explorava os mares distantes — investigava o funcionamento do corpo huma­no — tirava admiráveis estátuas dos blocos de mármore — cons­truía templos e pirâmides — tingia de púrpura brilhante as túnicas de lã — e levava aos mais distantes recantos da terra os benefícios de sua cultura.

Essas idades de ouro, porém, nunca duravam muito. Desper­diçavam loucamente a energia humana. A chama do entusiasmo e da alegria ardia com brilho excessivo. Logo vinha a fadiga. Logo gerações fracas e indolentes entravam a viver do capital acumulado.

A decadência começava e o resto era apenas uma questão de tempo. Se os antepassados tivessem roubado bastante riquezas (co­mo geralmente o faziam), se tivessem edificado cuidadosamente a sua estrutura social (como os romanos o fizeram), levariam uns mil a mil e quinhentos anos para se poder escrever a palavra “fim”.

Mesmo então, a herança espiritual dessas nações intelectual­mente privilegiadas podia, passando para mãos estrangeiras, prolon­gar-se por mais cinco ou seis séculos e dar a ilusão de que o orga­nismo primitivo ainda não morrera.

Do nosso lado do oceano tal regra não parece ter prevalecido. Fazemos em quarenta ou cinqüenta anos o que os outros faziam em quatro ou cinco séculos. Quando os homens brancos chegaram ao norte do continente americano, encontraram um grande número de civilizações nativas, dos índios, sendo algumas muito rudimentais, mas outras já em grau bastante adiantado. Mas a gente que pri­meiro aqui chegou não era capaz de se interessar por esses proble­mas. Trucidou, estraçalhou, queimou, fuzilou, enforcou e destruiu tão depressa quanto pôde tudo o que os nativos haviam feito. De vez em quando aprendia alguma coisa com as suas vítimas, e foi is­so que lhe permitiu viver e se manter nestas plagas inóspitas quan­do não teve mais onde pilhar. Mas os europeus estavam muito con­vencidos da sua superioridade e da santidade de sua missão para darem importância a êsse lado da questão. Mataram os índios, to­maram-lhes a terra, e a civilização nativa da América foi relegada para as lojas de quinquilharias de Albuquerque e para os laborató­rios de selvagens de Hollywood.

Então o homem branco se instalou a seu gosto, e começou o se-

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A cidade mo lem a

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gundo ciclo da civilização americana, o dos colonos. Avaliando por alto, durou dos começos do século XVII à segunda metade do XVIII. No campo das artes e das ciências, a sua cintribuição foi praticamente nula. O domínio das letras internacionais foi enrique­cido por alguns sermões detestáveis e alguns diários de viagem mui­to interessantes, obras de jesuítas missionários do Canadá. Mas es­ses pequenos grupos de europeus, abandonados aos seus próprios re­cursos nos confins de desertos imensos, podiam fazer alguma coisa de original em matéria de govêrno, e, efetivamente, com o correr dos tempos, descobriram umas idéias novas em política, idéias que poderiam ter sido do mais alto interêsse e de grande valor para o resto do mundo.

Mas a Revolução acabou com essas famosas experiências.E começou o terceiro ciclo da civilização americana, o ciclo

da República. Durou de 1776 a 1865, do comêço da revolta contra a Metrópole ao fim da Guerra Civil. Durante êsse período, os ame­ricanos separaram-se voluntária e conscientemente de seus amigos e parentes da Europa, voltaram as costas para leste, e se entrega­ram de corpo e alma à tarefa de criar uma cultura própria, um mo­do de viver e pensar que fôsse a incarnação serena de seus ideais de liberdade e igualdade recentemente adquiridos. É muito fácil iir dessa nova orientação, pois os primeiros frutos foram realmente mesquinhos. Lugares-comuns, sonoras repetições de sonhos bucóli- c g s que o resto do mundo renegara havia meio século. Apesar disso, o período não foi de estagnação. Houve conflitos. Houve vida. Pela primeira vez na história da América ouviu-se a voz de um profeta. Havia gente iluminada, gente que ousava defender seus ideais, lutar por êles, até, sofrer ipor êles. Não, não podemos desprezar essa era jeffersoniana e jacksoniana; não foi apenas um período de móveis sem gôsto, de cromos horríveis, de estadistas “websterianos” de barba raspada e incríveis chapéus altos, que faziam sôbre assuntos inesgo­táveis discursos igualmente inesgotáveis, pelos quais ninguém dá mais nem dois vinténs.

Durante êsses noventa anos, houve um inegável anseio por al­guma coisa de mais alto do que o mundo produzira até então — um esforço para resolver ao menos parcialmente os nossos proble­mas, dando ao comum dos homens maiores possibilidades do que antes — uma tentativa para chegar a um certo nível de felicidade

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Imigração

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econômica, franqueando a todos, estradas que nunca tinham sido aber­tas ao público. E tudo isso foi feito em nome da América. A hu­manidade não foi esquecida, mas era a América quem ia libertar o mundo — era a América quem devia conduzir os homens para fora do deserto — era a América quem devia dar ao nosso planeta al­guns sistemas práticos de grande valor espiritual.

Foi uma das mais interessantes experiências humanas dos úl­timos cinco séculos. E é muito triste que tenha tido um fim tão deplorável.

Por que aconteceu isso?Não o sei.A ciência da Historia está ainda na infância. E nunca estuda­

mos os seus problemas com o mesmo cuidado que dispensamos ao gorgulho ou à praga das batatas. Mas, como sempre acontece, fo­ram muitas as causas dessa decadência súbita da última e mais típica das formas de civilização puramente americanas. Umas das principais foi a destruição dos melhores elementos das novas gera­ções. Os chefes militares da Guerra Civil foram horríveis carniceiros. Os pobres diabos que não eram mortos nas batalhas sucumbiam às doenças ou eram vítimas de uma das muitas formas de negligência que os fornecedores de material bélico e seus comparsas políticos di­zem ser “inevitáveis” num período de lutas internas.

Fôsse como fôsse, morreram e não poderiam voltar.E quem os iria substituir?Os medrosos, os que esperavam até serem obrigados a marchar,

os “indispensáveis”, ricaços exploradores que compravam alguém para ir matar e morrer por êles, enquanto ficavam cómodamente a salvo. Num conflito em tôrno de ideais, os idealistas sofreram ne­cessariamente mais do que os outros, e os rapazes c moças de espí­rito apenas prático foram os que sobreviveram.

Em 1865, portanto, tanto o Norte quando o Sul dos Estados- Unidos se viram privados dos que melhor poderiam continuar sua forma peculiar de civilização. E isso aconteceu justamente no mo­mento cm que o domínio do mundo pelos membros da raça humana (homo sapiens) estava sendo ameaçado pela rivalidade de um com­petidor inanimado que se chamava homem de ferro ou máquina.

A Europa, que deixara as suas guerras a cargo de pequenos grupos de profissionais, pôde resistir mais um pouco.

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Mas a América, privada de sua valiosa linha de defesa, rendeu- se quase imediatamente.

E assim nosso país ganhou imensas riquezas.Mas ao mesmo tempo perdeu alguma coisa que não pôde mais

readquirir — o fecundo apoio da jovem geração.A mocidade é generosa.Mas pode um rapaz sadio se interessar pelo que faz quando

passa os dias inteiros numa jaula de erro contando o dinheiro dos outros, ou sai para vender aos seus vizinhos coisas que eles prova­velmente não desejam comprar, e de que certamente não precisam?.

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O domínio das coisas

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CAPÍTULO XLIX

OS “ CENTO POR C EN TO ” E OS NOVOS IM IG RANTES

Henry Adams era neto de um presidente dos Estados-Unidos e bisneto de outro. Seu pai fôra ministro junto à côrte de S. James durante os anos espinhosos da administração de Lincoln. Se jamais uni homem teve direito de se dizer americano, foi o velho sábio de Lafayette Square.

Porém, a respeito do período que se seguiu à Guerra Civil, eis o que ele escreveu:

“As conseqüências dessa grande revolução sobre um sobrevi­vente dos anos de cinqüenta se assemelham à ação de um terremoto; em vão êle procura de todos os lados o seu ponto de partida; não cncontra mais a própria pista; vê-se perdido; é o destroço de um naufrágio, a carga lançada ao mar na hora do perigo. Nenhum ju­deu de Varsóvia ou da Cracóvia possui, porém, um instinto mais aguçado, uma energia mais intensa e um ânimo mais corajoso do que êsse americano entre os americanos, que conta sabe Deus quan- i o s puritanos e patriotas atrás de si.”

Grito de desespero inútil — saudade estéril de alguma coisa que não podia recomeçar — tristeza tão velha quanto as faldas do Monte Ararat.

Porque exisitiram Henry Adams na Babilônia e em Tebas, em Cnosso e Damasco. E isso sem falar de Roma. Lamentações de tô- (la a espécie foram as formas mais comuns de expressão literária <3urante os séculos IV e V da nossa era.

Que acontecera, então?- A coisa foi muito simples.

Um pequeno grupo de indivíduos de extraordinária iniciativa, vivendo em condições sociais e eccnôrmcas muito favoraveis, iun-

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daram um país e ocuparam um trecho de terra em desproporção com o seu número. Gastaram as suas forças nas lutas e na ex­ploração. Enriqueceram. Sacrificaram toda a doçura da existência à avidez de lucro. Quando afinal conseguiram os meios para ter uma vida confortável, já não sabiam viver.

Em suma, já não sentiam o contato da terra, o único que nos dá fôrça duradoura. E agora eram semores de léguas e léguas de terras.

Possuíam mais montanhas, lagos, rios, minas, campos de cereais e pastagens do que todos os outros monais antes dêles.

Mas rios e florestas, campos e minas não valem nada se não houver quem os cultive — quem desenterre os seus tesouros — quem explore as suas margens — quem ceife as colheitas.

E quem iria fazer tudo isso?“Nossos filhos”, responderam os pioneiros.Mas a flor de seus filhos jazia morta nos campos de Gettys-

burgo e Antietam. E os sobreviventes, por razões ignoradas, pare­ciam incapazes ou pouco desejosos de continuar a obra dos pais.

E’ triste confessar que a antiga estirpe já não podia dirigir as atividades das fazendas e dos engenhos

Ficou em segundo plano, como uma classe de fazendeiros pro­fissionais, vassalos de uma nova idade econômica.

E pedia trabalhadores mais fortes, servos e ajudantes, qualquer pessoa ou qualquer coisa que possuísse braços possantes e dispostos.

O número de candidatos locais era insuficiente.Os despojos eram tão abundantes e tão pequeno o número dos

que os dividiram entre si que só os rruito preguiçosos não obtive­ram o seu quinhão.

Em suma, é a velhíssima história de uma classe governante sem ninguém para ser governado.

Nessas circunstâncias, os americanos fizeram o que já haviam feito os babilônios e os egípcios três mil anos antes — o que os ro­manos fizeram durante os dois prime ros séculos da nossa era — abriram as portas aos estrangeiros — puseram abaixo tôdas as bar­reiras — espalharam convites por toda a humanidade para vir e se instalar como em sua própria casa.

A princípio, essa política parece sempre inofensiva. Os bárba­ros, com sua língua esquisita, suas roupas pobres, sua grosseria*.

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A fenda (estilo antigo)

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suas modestas aspirações econômicas, rão parecem concorrentes pe­rigosos.

Dão-lhes choças para viverem. Abrem escolas para ensinar aos seiis rebentos o respeito pelas instituições dos proprietários. Podem servir seus deuses enquanto se comprometerem a mantê-los longe das vistas das divindades nativas. E contanto que “conheçam o seu lu­g a r ’ e se saibam ligeiramente inferiores às classes dominantes (se-' jam estas os babilônios, os americano?, os egípcios ou os chineses), são tratados com alguma consideração e podem comer tão mais à vontade do que antes que nem pensam em se revoltar. Ao contrá­rio, mostram-se pacientes, dóceis e obedientes, e veneram seus se­nhores como homens bons e poderoscs, dignos de toda a sua fide­lidade.

Mas assim que são suficientemente alimentados para readqui­rirem o uso de sua inteligência lenta, começam a fazer perguntas.

Haviam-lhes repetido sem cessar que se deviam considerar mui­to felizes por terem podido entrar r a terra maravilhosa dos cida­dãos romanos (ou americanos, ou gregos), por viverem numa casa de pedra e cal em lugar de uma cabana de palha, por comerem car­ne sete vêzes por semana em vez de uma — por terem sapatos em vez de andarem descalços — em suma, por participarem de tôdas as vantagens de uma civilização nova e rica. E, ligeiramente ofus­cados pela novidade de tudo o que os cercava, haviam concordado, e se convencido de que tinham realmente muita sorte. Isso dura até a hora fatal em que a serpente entra no seu pequeno paraíso e murmura: “Quem está enriquecendo à vossa custa? De quem são as estradas que construís? A quem pertence o cobre e o carvão que tirais do solo? E os trilhos que assentais? E as casas que edificais? E os caminhos subterrâneos para os quais arrebentais rochas duras?’*

Então começam as dificuldades.Geralmente isso não acontece na primeira geração. Educada

numa filosofia da vida que lhe ensinara a obediência e a disciplina e lhe avisara que gente pobre não deve fazer muitas perguntas, a primeira geração fica de chapéu na mão, é profundamente grata por tantos benefícios até então desconhecidos e se confessa voluntaria­mente inferior à aristocracia nativa.

A segunda geração, porém, não compartilha dos preconceitos de seus pais. Êsses jovens e essas jovens nunca viram as terras lon­

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gínquas donde vieram seus ascendentes. Só conhcccm o presente. E o presente não os satisfaz.

Continuamente jogam-lhe cm rosto que são párias — filhos de tribos selvagens — que seus pais e mães tiveram licença de entrar no recinto sagrado do império como colonos ou servos, como lenha­dores ou carregadores de água, gente humilde que nunca poderia esperar ser posta em pé de igualdade com a velha nobreza do lugar.

Mas tudo o que os rodeia desmente essa explicação.Durante os primeiros oitenta anos, os pioneiros, os primitivos

senhores, haviam podido manter a sua posição. Tinham filhos e ne­tos que os ajudavam nesse trabalho de repressão social. Mas após os anos de setenta do último século começaram a andar para trás.

Foram obrigados a fazer lugar para os recém-vindos. O que era pior, tiveram de lhes dar algumas posições de comando, porque eram mais jovens, mais fortes, e mais inteligentes do que muitos dos nativos.

E isso, no tocante à hegemonia dos pioneiros, foi o princípio dofim.

Se me acharem muito pessimista, leiam o que aconteceu r i

Ásia ocidental, no norte da África, no Mediterrâneo e nas encostas dos montes Urais, há cem ou mil anos.

Na América onde todos os problemas são envolvidos na bruma : da retórica — nas palavras dulçurosas sobre a fraternidade — na crença vaga nas possibilidades iguais de todos os homens — na Amé­rica c muito mais difícil seguir as fases desse movimento do que em Roma ou na Síria, na Grécia ou na Rússia.

Mas as leis misteriosas que presidem ao desenvolvimento his­tórico da raça humana se fazem obedecer sempre em todos os luga­res e em tôdas as épocas.

Os descendentes daqueles que, dois séculos antes, aportaram em Plymouth Rock, baseando suas exigências no direito divino de terem chegado primeiro, pediam para serem considerados os legíti­mos possuidores do novo império. Achavam que sua língua devia ser a língua do país, que seu Deus devia ser o Deus de todos os fiéis, que seus ideais em Moral deviam ser aceitos como regras de conduta por todos aquêies que mais tarde viessem a se estabelecer nos «eus domínios.

Mas “o governo c a força”, e tôdas as frases bonitas do mundo

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A M E R I C A 395não poderão alterar essa lei. O governo é a fôrça. Não necessaria­mente no sentido da fôrça brutal, de cossacos e fôrcas e masmorras secretas, mas uma fôrça inteligente e razoável capaz de se impor — que dirija os outros com a firmeza do comandante de navio que, se­nhor de seu ofício, tem a certeza de que lhe obedecerão porque isso é que de melhor têm a fazer. E quando uma minoria em de­cadência perde esse dom delicado de comandar e se contenta em ficar para trás gozando das suas regalias e deixando os outros faze­rem todo o trabalho, então êsse pequeno grupo de herdeiros profis­sionais cedem mais tarde ou mais cedo o poder àqueles que há muito pouco tempo cavavam os seus fossos ou abriam seus túneis.

D urante a última metade do século X IX , os mexicanos apren­deram a velha lição de que a Natureza tem horror ao vácuo e que, havendo uma raça fraca de posse de uma terra rica e uma forte na­ção vizinha com grande necessidade de solo fértil, a raça forte inevi- tàvelmente expulsa a fraca e toma para si as terras ricas.

Durante a segunda metade do século X IX , os vencedores de Santana tiveram uma prova dêsse dogma biológico. Não impor­ta que tenham êles mesmos lançado mão da imigração em grande « scala para apressar a ocupação das novas terras •— e que o tenham íeito no seu próprio interêsse. Sem dúvida foi um êrro, mas é um erro tão velho quanto o Nilo — ou mais.

Na última hora alguns esforços apressados foram feitos para salvar o que ainda podia ser salvo.

As brechas nos muros foram tapadas mal ou bem.Uma poderosa cidadela foi construída no caminho das hordas

invasoras dos “bárbaros’.Mas o mundo todo estava juncado dos remanescentes de anti­

gas “Ellis Islands!”As ruínas da grande muralha chinesa testemunham da inocui­

dade dessa energia de última hora.A ponte estreita que une Deshima à terra do Japão narra a his­

tória do isolamento impôsto por um povo a si mesmo, isolamento que terminou numa ruína econômica e na completa destruição de toda ordem anterior; e há pouca esperança que no nosso país as coisas se passem de modo diferente.

A “hospedaria poliglota”, de que o Presidente Roosevelt falava com tan ta amargura, vai certamente tornar-se permanente.

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Com o corrcr dos tempos se fará um pouco menos poliglota, mas isso não muda nada na afirmação de que os dias dos anglo-sa- xões como classe dirigente estão contados. Para alguns de nós isso pode parccer um terrível desastre.

Para os romanos do ano 500 o aparecimento dos gôdos e dos vândalos foi uma calamidade.

Éles sabiam que a vitória dos bárbiros era devida unicamente à sua inércia — à covardia de seus filhos — mas estarem conven­cidos disso não lhes tornava menos dura a derrota.

Predisseram a decadência do Império, a falência da raça huma­na, o fim do mundo. E eis que, uns mil anos depois, a união do Oci­dente e do Oriente fez nascer uma n o \a forma de civilização, su­perior em todos os aspetos à cultura estreita dos velhos dias im­periais.

Os moinhos dos deuses moem lentamente.M as talvez tivesse sido melhor se os tivéssemos deixado moer

um pouco mais, porque, em regra, moem melhor do que nós.

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CAPÍTULO L

O p r e d o m í n i o d a s c o is a s

Segundo a crença popular que conta ainda milhões de adep­tos, não havia governo organizado nos dias felizes de Adão e Eva. Cada família formava uma unidade independente, e reis e príncipes e imperadores eram desconhecidos.

M as quanto mais densa se fazia a população do mundo, mais difícil se tornava a existência dos fracos. Reuniram-se, portanto, em pequenos grupos e elegeram homens fortes para seus chefes.

Com o correr dos tempos, êsses chefes se tornaram completos potentados, dispondo de um poder quase absoluto e governando as tribos como sua propriedade privada. Isso, porém, não altera a na ­tureza do princípio básico segundo o qual o governo, qualquer que seja a sua forma, emana de um contrato soberano entre o rei e os súditos; por êsse contrato o rei se compromete a a tuar como um “servo” do povo enquanto êste o desejar, e os súditos têm o direito de demitir o monarca quando êste não lhes convier mais. Era e6sa a teoria ainda geralmente aceita entre as classes educadas do tempo de Washington e Jefferson. Mas os estudos realizados nos últimos cinqüenta anos no vasto campo das pesquisas sociais modificaram a idéia de que o govêrno veio do povo, e mostraram que os poten­tados foram inventados muito mais tarde, para benefício daquele.

E ’ verdade que em alguns períodos felizes da História, muitos súditos chegaram a possuir tais riquezas que puderam manter exér­citos e assim impor sua vontade aos soberanos. Algumas vêzes, com o auxílio de canhões e mosquetes, conseguiram a assinatura de um documento no qual Sua Majestade se confessava o primeiro servi­dor do Estado e obrigado a obedecer a um certo número de leis, devidamente enumeradas no contrato sagrado.

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Carvão

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Era, originariamente, o método de fundação dos países, foi exa­tamente o oposto dêsse processo descrito por Mr. Rousseau e aceito como verdade evangélica por seus numerosos discípulos.

Não foi o povo que se reuniu para fundar um grupo ou uma nação, dizendo em seguida: “Agora vamos escolher um homem for­te, enérgico e inteligente para nos governar.”

Foi um homem forte, enérgico e inteligente que se tornou chefe de um pequeno clã de bandidos ambiciosos, fez dêles sua guarda de corpo, saiu depois para conquistar tôdas as aldeias, cidades e países que pudesse administrar com o auxílio de seus fiéis apaniguados, formando assim, graças aos seus clavinotes, um pequeno estado com­pacto.

Poderia depois reunir os anciãos das aldeias e lhes dirigir as seguintes palavras: “Vilões e covardes, eis o vosso amo! E se tendes amor à vida, lembrai-vos que de ora em diante sois meus vassalos. Perguntais-me por quê? Porque eu comando um bando de jovens valentes e aguerridos que obedecem a um gesto meu e vos esfolarão vivos se murmurardes diante de qualquer ordem minha. Sou, po­rém, um homem razoável. Quero viver bem. Exijo bom trato para mim, para os meus fiéis cavaleiros, para meus cavalos, minhas mu- iheres, minhas vacas e minhas ovelhas. Como tudo isso custa di­nheiro, espero que me fornecereis anualmente uma certa quantia sob forma de impostos. Mas atentai bem nas vantagens que vos advirão dêsse sistema! Em troca do pequeno sacrifício que lastimo . er obrigado a exigir de vós, prometo solenemente vos proteger con­tra os vossos inimigos. Não somente pelo grande amor que vos tenho, mas também porque é êsse o meu interêsse direto. Porque quanto mais ricos fordes, mais poderei exigir de vós. Tenho dito”.

Com o correr dos tempos, iam-se abrandando consideràvelmen- ?e as durezas dessa combinação. Logo os sacerdotes vinham em au­xílio do soberano e, por um acordo tácito, os representantes do po­der espiritual e o detentor do poder temporal prometiam ajudar-se mutuamente em tudo o que afetasse seus interêsses comuns, e isso facilitava tudo. Desde então o rei se tornava pessoa sagrada e in­violável, filho predileto dos Céus. E o clero superior tinha assegu­rada a boa vontade real (e a proteção dos seus homens de armas), no caso de conflito com as suas congregações.

E, naturalmente, todos aquêles que tinham bens a defender re-

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conheciam logo as vantagens de um plano que lhes oferecia muito mais segurança do que tinham antes; não saíam do palácio, sentin­do-se muito honrados quando lhes era dado encher a taça real ou segurar o real estribo quando o soberano ia à caça.

Infelizmente, quando se tra ta de raça humana, o imprevisto lo­go intervém. Acontecia que o rei e o clero se desavinham, ou sobre­vinha uma luta entre o rei e os burgueses ricos, luta na qual o clero pendia para o partido cuja vitória parecia mais provável. Mas, via de regra, com a exceção de curtos períedos de desentendimento en­tre os grupos dominantes (quase sempre por interesses pecuniários), as classes privilegiadas( o rei, o clero e d s mercadores) eram amigas fiéis umas das outras, e por uma políti:a de inteligente cooperação se mantinham à frente da comunidade que a previsão e o engenho de seus antepassados haviam fundado tn tre as tribos fracas e des­protegidas. Sempre foi assim, em tôdas as partes do mundo.

Essa teoria destrói o aspecto bucólico e sentimental com que se apresentava o problema no tempo das revoluções francesa e ame­ricana.

Pode ser triste, mas é verdade. Enquanto o mundo fôr compos­to de indivíduos dotados de graus diferentes de inteligência e co­ragem, haverá governantes e governados. As classes dominantes podem ter interêsse em ocultar êsse fato. A democracia, mais do que qualquer outra forma de govêrno, depende para se poder m an­ter, de todo um sistema complicado de elogios. E ’-lhe conveniente fazer com que o grosso da população acredite ser a fonte do poder, imagine que houve “contratos sociais’* desde o comêço dos tempos, e que a expressão “o povo soberano” significa mais alguma coisa do que uma frase feita e polida, empregada no comêço de alguns documentos oficiais. Como já disse, pode convir às classes domi­nantes contar êsse conto de fadas. Mas a História não tem nada a ver com as histórias de fadas, e portanto podemos, escudados nas crônicas antigas dignas de fé, dizer sem rodeios que todos os perío­dos de todos os países tiveram sempre uma classe mais ou menos claramente definida de senhores e uma cu tra de súditos — e que as leis que regulam as relações entre senhores e súditos são hoje, nas margens do Potomac e do Rio Vermelho, tão prementes como Há quatro mil anos no vale do Indo ou do Eufrates.

M as descobrimos alguns aspectos das relações entre governan-

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tes e governados, aspectos esses que são de máxima importância pa­ra a compreensão do que se está passando em torno de nós. O prin­cipal é um parágrafo do código social-biológico que explica essa estranha idolatria moderna pelos bens inanimados; é o seguinte:

“Os que têm o poder tentam sempre fazer de seus interêsses materiais os ideais espirituais dos que não estão no poder.”

Ou, traduzindo em palavras mais simples: “Os que estão em cima farão sempre tudo para convencer os que estão em baixo que as leis, embora favoreçam os habitantes dos palácios e dos templos, são o código moral de todo o país, e que obedecer a esse código se- grado é obedecer à vontade revelada dos deuses.”

Isso está parecendo muito complicado, e é melhor dar alguns exemplos.

Tomemos o caso do Egito.

No Egito, a felicidade do faraó, de sua côrte e de seus sacerdo- íes dependia da estreita cooperação entre um rio e alguns milhões oe homenzinhos bronzeados. Tudo tinha de ser previsto. A negli­gência de uma aldeia podia trazer a desgraça para cem outras. Quan­do o rio começava a subir, a água devia ser levada para os canais de irrigação num momento preciso, nem um dia antes nem depois. Isso determinou uma forma de disciplina que fazia do faraó uma espécie de capitão de navio, um tirano cujos desejos deviam ser cumpridos sem um segundo de hesitação. E determinou também a crença generalizada entre o povo e mantida pelos sacerdotes de que a satisfação imediata dos mais absurdos caprichos do monarca era crdenada pela lei divina e que a adoração da pessoa real (o capitão do navio) era agradável aos deuses que governavam os mares das águas vivificadoras.

Mas todas essas disposições tinham um fim cívico. O civismo estava na agricultura. Porque o Egito gozava de relativa seguran­ça; era difícil ser atacado. Dos dois lados dêsse estreito vale fértil estendiam-se largos trechos de deserto e poucos inimigos ousariam atravessar essas regiões quentes e mal-assombradas, cheias de ca­veiras humanas e de camelos mortos. Logo, as virtudes militares não eram necessárias e a casta dos guerreiros era tida em pequena conta.

A vida do Egito dependia, portanto, exclusivamente dos lavra-

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Mais pesado no tôpo do quo na base.

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dores. O soldado estava colocado no último degrau da escada so­cial.

Atravessemos agora o Mediterrâneo, passando do Egito para E sparta . Aí, ao contrário, a existência da pequena cidade, toda ro­deada de terras estranhas, dependia da fôrça de seus exércitos. N in­guém dava importância às virtudes rurais. Mas desde cedo as crian­ças eram habituadas a considerar as virtudes “espartanas” de disci­plina e coragem física como as mais agradáveis aos deuses.

Agora, pelas planícies da Síria cheguemos a um pequeno país chamado Judeia. O Estado da Judéia se concentrava em uma úni­ca cidade, e essa cidade perderia a sua razão de existir se deixasse de ser o centro da vida religiosa muito ativa de uma população ra­refeita, e o lugar santo de todos os que reconheciam a Jeová por seu Deus. Muito fracos para se manterem pela fôrça das armas, sem nenhuma possibilidade de se afirmarem pelo comércio ou pela agricultura, os sacerdotes que governavam Jerusalém, para sobre­viverem, tiveram de fazer da piedade a primeira virtude de seus sú­ditos. Os judeus podiam ser soldados medíocres e ninguém se im­portava de saber como cultivavam o seu árido torrão. Mas eram obrigados a uma severa obediência às leis religiosas, porque sem es­sa fidelidade o país não poderia viver.

Portanto, todos os jovens judeus aprendiam que a freqüência ao Templo e a obediência cega aos desejos do sumo sacerdote eram as principais qualidades de todos os bons meninos e meninas. E uma virtude que no Egito e em Esparta era tida como secundária foi a pedra de toque do civismo em Jerusalém.

Depois, caminhando um pouco mais em direção ao ocidente, encontramos um país chamado Fenícia. Aí tudo dependia do bom andamento do comércio. Tiro e Sídon eram repúblicas comerciais. Não precisavam de lavradores, eram bastante ricas para alugarem mercenários quando precisavam de soldados, e a religião tinha para elas um valor relativamente muito pequeno. Viviam do comércio, pelo comércio e para o comércio. Por isso os ricos mercadores (que governavam a cidade) pregavam a astúcia e a diplomacia como as mais altas virtudes a que podiam aspirar os cidadãos, desprezando deliberadamente o corpo e a alma que tinham tan ta importância pa* ra os espartanos e para os judeus, respectivamente.

Agora estou certo de que todos entenderam o que quero dizer.

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Roma transformou todo o mundo ocidental num vasto império co­lonial. Para explorar com proveito essas possessões, era necessário que um grande número de cidadãos romanos conhecessem os segre­des da administração e os rudimentos da jurisprudencia. O patricio írio e cauteloso e o soldado solitário na sua tenda isolada, rápido nas suas decisões, sempre pronto a se sacrificar, a si e aos seus coman­dados, pelo bem da República, eram os homens apresentados às crianças romanas como o ideal a que deviam atingir se quisessem fazer alguma coisa no mundo.

No decurso dos séculos, Roma deixou de ser o centro do m un­do político e se tornou o centro do universo espiritual. Então hou­ve uma mudança de ideais. Os novos dirigentes precisavam de clé­rigos competentes. A instrução e os dons de persuasão substituíram as virtudes mais ásperas dos soldados e dos administradores que haviam sido tidas em tão alta conta durante a República e o Im ­pério.

Na América, durante a primeira metade do século depois do estabelecimento da República independente, havia tan ta terra de­socupada que milhões de pessoas puderam viver feliz e fartamente sem dependerem de nenhum senhor

Êsses pequenos intervalos, durante os quais existe uma quase igualdade econômica, apareceram de vez em quando na História durante os últimos cinqüenta séculos, n a s nunca por muito tempo. E, em meados do século X IX , o mundo de Jefferson e do pri­meiro Adams estava tão morto como o de Assurbanipal. As condi­ções estavam voltando à normalidade, o que significa que os homens recomeçaram a se dividir em duas classes distintas, uma pequena que fornecia o crédito e uma outra, rrais numerosa, que precisava de crédito. Logo que isso aconteceu, a antiga lei a que me referi algumas páginas atrás mais uma vez entrou em vigor e os dirigen­tes, inconscientemente, mas com tan ta precisão como se estivessem agindo de caso pensado, estabeleceram algumas normas de conduta para serem seguidas por todos os bons cidadãos como o ideal pelo qual deviam lutar, êles, seus filhos e seus netos.

Neste caso o ideal consistiu na adoração do dinheiro. Isso, evi­dentemente, não era novo. Florença e Veneza, Augsburgo e Nov- gorod já tinham sido repúblicas comerciais muito antes do desco­brimento da América, e seus cidadãos já haviam sido habituados a

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Humando para o Ocidente

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considerar a conquista de riquezas como a maior (senão a maÍ3

útil) de todas as virtudes cívicas. Mas nunca, na historia de toda a humanidade, se viu tan ta facilidade em adquirir tantos bens ern tão pouco tempo, como a que se apresentou aos felizardos que vie­ram para a América do Norte antes da metade do último século.

Em conseqüência disso, o mundo puramente físico adquiriu um prestigio que até então fôra inteiramente reservado aos bens espi­rituais da Igreja medieval.

Depois da Guerra Civil, e tendo-se visto livres de Maximilia­no, os Estados-Unidos estavam a salvo de qualquer ataque de fora. Uma esquadra pequena porém bem muiiciada era mais que sufi­ciente para a nossa defesa, e quando havia algum trabalho militar a ser feito (como em 1898, quando as contínuas intromissões da Espanha em Cuba forçaram os Estados-Unidos a dar a essa infeliz ilha um govêrno independente), podia *er entregue aos marinhei­ros e a uns poucos regimentos do Exército. Falando, porém, de uma maneira geral, as virtudes militares não i;ram mais indispensáveis à segurança da nação, e por conseguinte, deciíram rapidamente. O mes­mo se deu com essas qualidades características de confiança em si e independência que haviam sido inerentes à vida nas fronteiras do Oeste. T inham ainda um valor sentimental, e portanto ocupa­vam um lugar proeminente nos livros elementares de História « Educação Cívica. Ninguém, porém, as tomava a sério, porque im­plicavam uma certa liberdade econômica e espiritual desastrosa pa­ra gente que dependia, para ganhar a vida, da boa vontade dos ban­queiros e dos patrões.

Não, o novo código não sabia o que fazer das antigas virtudes dos sertanejos altivos, e os novos senhores da terra procuravam àvi­damente novas leis. E o resultado foi que começaram a explorar o mundo em nome da propriedade. Proclamaram a natureza sacros­santa das coisas inanimadas. E finalmerte criaram uma nova di­vindade, que devia de ora em diante governar a República, e que se chama “Êxito”.

Mas isso ainda não era tudo.Os ideais de “vida regalada” postos em prática pelos alegres

aventureiros das fronteiras foram d e s p e a d o s por inúteis e pouco rendosos.

O novo evangelho proclamava a frugalidade, a economia, o*

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horários certos, os hábitos regulares, as ideias sensatas, o respeito aos patrões, a submissão à vontade da maioria, a obediência passi­va às opiniões populares como as mais altas virtudes cívicas. ;

Isso foi feito tão hábil e mansamente, que em breve o velho lema “Sê sincero contigo mesmo e serás feliz” foi completamente vencido pelo novo provérbio: “Esquece-te de que tens personalidade e serás rico”.

Essa nova filosofia da vida refletiu-se logo no desenvolvimento político do país. Durante a primeira metade do século X IX ds presidentes dos Estados-Unidos tinham sido todos homens de per­sonalidades marcadas. Nem todos tinham grande erudição, nem eram profundamente versados na arte de governar. Mas cada um era, a seu modo, uma individualidade definida. Alguns déles, como Polk, Pierce e Fillmore, foram homens medíocres. Mas mesmo êsses pro­fetas menores representavam algumas idéias definidas. Haviam veri- cido lutando. Eram homens dispostos. Os sentimentos que inspira­vam eram bem definidos: estima ou ódio. Mesmo os seus piorCs inimigos não os poderiam acusar de serem amorfos.

E quando os meninos chegavam à idade das perguntas, diziam- lhes que se trabalhassem muito e estudassem com afinco poderiam aspirar a qualquer lugar na sua terra — poderiam esperar acabarem seus dias como presidentes dos Estados-Unidos, o pôsto mais emi­nente de todo o mundo.

M as tudo isso foi mudado na segunda metade do século X IX . j i

Ninguém mais apontou aos meninos a Casa Branca como obje­tivo de sua carreira. Ensinavam-lhes que a paciência e a confoí- midade os tornariam ricos. Faziam brilhar-lhes diante dos olhos os objetos inanimados e lhes acenavam com as recompensas que espe­ravam os que sabiam acumular muitos bens.

Os homens que iam para o Congresso não representavam maía ideias, como antigamente, idéias que podiam ser boas, ou más, oiu de pequeno alcance, mas que eram idéias. Não; iam para Washing­ton como plenipotenciários de um grupo qualquer de interêsses pai> ticulares. Representavam a “madeira”, o “carvão” ou a “aguardeá- te sintética” . Recebiam ordens de um corpo de acionistas. Pensa­vam no país como se fôsse uma fábrica. E o país revidava só o? considerandos pelo seu êxito material.

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Os pioneiros que haviam ido para os confins do Oeste, que ins­talaram as fazendas de Wisconsin e Kansas, de Wyoming e Dacota, e que ainda não tinham perdido uns restos da velha altivez das fronteiras, tentaram várias vêzes romper essa barreira das coisas inanimadas e freqüentemente deram ao seu descontentamento a for­ma de um novo partido político. Mas nunca conseguiram nada. Punham-nos, entre gargalhadas, fora de combate. Ou, se o ridículo não era suficiente, consideravam-nos fora da lei como inimigos da nova ordem, oprimindo-os, perseguindo-os até que se submetessem.

E, sem cessar, os moinhos dos deuses continuavam a trabalhar.Carvão, ferro, couro, fôrça hidráulica, óleo, prata, ouro, uma

sucessão imensa de objetos inanimados iam sendo aproveitados e

incorporados à riqueza nacional.Milhões de imigrantes, atraídos pela gigantesca máquina de

progresso, vinham dar às nossas costas e eram imediatamente pos­tos a serviço da maior glória do Deus do Êxito.

Até que o homem se viu completamente escravizado ao mons­tro de aço que construíra para auxiiiá-lo nos seus trabalhos, tornan­do-se assim um escravo do seu próprio escravo.

Só uma vez, durante todo esse tempo, uma voz se levantou contra êsse processo desmoralizante de desumanização geral. Um homem chamado acidentalmente a exercer as altas funções de pre­sidente, lutou denodadamente para mostrar aos seus concidadãos a loucura dessa orientação que empobrecia a alma humana ao mesmo tempo que enchia as burras. Mas, ou a tarefa estava acima das suas forças, ou Teodoro Roosevelt não teve tempo para realizar os seus ideais. Porque apenas foi eliminado, tudo continuou como dan­tes e a República voltou a ser o que ele chamara com revolta “Uma hospedaria poliglota, uma usina poliglota, uma Caixa Econômica poliglota e sem alma”.

Mesmo o gênio, a mais independente das manifestações men­tais, aceitou a ditadura do Inanimado e se pôs à disposição das no­vas divindades nacionais sem uma palavra sequer de protesto.

Em tais circunstâncias, a única esperança de salvação estava nos cimos do mundo das letras. Em regra, a sátira é mais poderosa do que sua rival, a reforma política, e a velha pena tão poderosa como todo um batalhão de metralhadoras. Nesse caso, porém, a Literatura foi completamente derrotada. Alguns dos mais impor-

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tantes críticos do sistema social reinante foram reduzidos ao silên­cio. Os que se recusaram a obedecer à nova ditadura das Coisas íoram esmagados. Os outros, amedrontados, resolveram-se a can­ta r hosanas.

Foi essa a situação até há uns deze anos. Afastado do resto do mundo, protegido tan to a leste como a oeste por enormes exten­sões de água, o país era praticamente invencível. Podia impor sua vontade aos seus vizinhos do Sul sem o menor receio de conseqüên­cias desagradáveis, e freqüentemente usou dessa agradável prerro­gativa.

Podia ditar as leis a todos os que se achavam ao alcance de seus navios de guerra, e quando isso lhe pareceu conveniente, não hesitou em intervir com uma violência c quase sempre desnecessária demonstração de força.

E depois, súbita e inexplicàvelmenre, o Destino se apresentou e íêz uma pergunta absurda.

"Vós”, observou essa deidade (a quem não falta o “humour” ), “vós haveis acumulado maiores riquezas do que qualquer outro po­vo antes de vós. Construístes fábricas tí.o grandes como nunca hou­ve, e trens mais velozes do que todos os outros, e prédios como nun­ca se viram tão alto?, os depósitos de -vossos bancos contam-se por milhões, e vossa riqueza nacional, "per capita”, é maior do que a de todos os outros países desde os dias de Moloch. Aias agora que conseguistes isso tudo, “que”, como indagou um dos vossos mais argutos compatriotas, “que pretendeis fazer de tudo isso?”

E, pensando bem, pelas nossas vidas podemos jurar que não o íabemosl

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CAPÍTULO LI

PRECISA-SE DE M ATÉRIAS-PRIM AS BARATAS E ABUNDANTES

Já foi explicada num capítulo anterior uma das razões que obrigaram a comunidade dos puritanos a deixar Leyden e Amster- dam e a ir para a América.

Pouco tempo antes dos dissidentes ingleses chegarem ao Países Baixos fora concluída uma trégua de doze anos entre os holandeses e os hespanhóis.

Essa trégua terminou em 1621, ficando os jovens puritanos não somente correndo o risco de serem chamados para o serviço militar, como expostos aos mesmos perigos que os holandeses. Diante disso partiram antes da reabertura das hostilidades, abandonando à sua sorte os seus irmãos da Europa.

A guerra, que principiou em 1621 e durou até 1648, fez parte da grande conflagração européia conhecida como Guerra dos Trin ta Anos.

A Guerra dos Trin ta Anos foi uma conseqüência direta das ino­vações de M artinho Lutero. A revolta religiosa que promoveu, divi­diu a Alemanha em dois grupos irreconciliáveis. Depois de 1517 os alemães deixaram de sentir como alemães. Eram antes de nada pro­testantes ou católicos, e a tênue ligação da pátria comum foi com­pletamente apagada. A guerra dos Trin ta Anos, que decorreu dessa deplorável situação, destruiu o Império, reduziu a população a um quarto do que fôra, e retardou de dois séculos pelo menos o pro­gresso do país. E teve conseqüências importantíssimas, como vere­mos no presente capítulo.

Durante o grande período histórico em que os grupos raciais mais poderosos da Europa dividiram entre si as terras desocupadas do mundo, a Alemanha estava muito fraca para exigir o seu quinhão.

A Espanha lutou com Portugal, Portugal com a Holanda, a Holanda com a França, e a Inglaterra com todos por causa das

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possessões na África, na Ásia e na América; quando passou essa época de efervescência, todos se acharam senhores de tantas terras quantas lhes permitiam os seus recursos em homens e dinheiro.

Mas no século X IX , um gigante, de nome Otto von Bis- marck, um duro filho da fronteira prussiana, tornou-se o sustentá­culo da Casa dos Hohenzollern e arraste u seus compatriotas atônitos à fundação de um império unificado e poderoso.

Do ponto de vista dos outros eurepeus e dos americanos, essa obra considerável tinha um grande d:feito: vinha tarde demais; estava atrasada de duzentos anos. Tôdas as reservas de ferro, carvão e óleo já estavam havia muito divididas e ninguém, a não ser uns pobres índios e negros, se levantara para contestar os direitos dos homens brancos. Mas agora, tôdas as terras ricas em carvão, ferro ou óleo pertenciam a nações bem armadas, que precisavam delas para se manterem, e as defenderiam <!e ataques estrangeiros com tôdas as suas fôrças.

Portanto, se a Alemanha pretendia realmente (como dizia) apoderar-se de uma parte dessas matéri:is-primas, a guerra seria ine­vitável, e a guerra era o que mais temiam os países europeus crivados de dívidas.

Mais uma vez, porém, a sabedoria dos políticos foi vencida pelas misteriosas fôrças econômicas que caminham a despeito de imperadores e presidentes, de limitações de armamentos e sociedades para a paz.

A adoração das Coisas Inanimadas não ficou restrita ao conti­nente americano. Todos os outros países foram vitimados pelos novos deuses. A máquina imperou em tôda a parte. M as a máquina é uma criatura voraz. Não somente precisava ser alimentada a todo momento, mas também, sendo muito esquisita em matéria de dieta, exige, para trabalhar, enormes quantidades de carvão e ferro, de

cobre e couro, e muitos outros ingredientes igualmente indigestos, E quando a maior parte de uma nação chega a depender da máquina para o seu sustento diário, o govêrno se vê obrigado a conseguir de qualquer modo êsses produtos indispensáveis, ou o povo perecerá quase imediatamente de miséria e fom':. Isso foi exatamente o que sucedeu com o Império Alemão depois ca sua ressurreição. Apareceu em cena com dois séculos de atraso e tratou de recuperar o tempo perdido com tão arrogante energia que tôdas as outras nações come­

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çaram a pressentir algum vago perigo futuro e a tomar medidas para se protegerem, a si e as colônias que haviam recebido de seus antepassados.

Diante do que acontecera nos três séculos anteriores, era de esperar que a oposição ao plano alemão partisse de Londres, como efetivamente partiu. Um depois do outro, a Inglaterra destruíra todos os seus rivais na dominação do mundo. A Espanha, Portugal, a Holanda e a França haviam sido forçadas a entregar ao Império Britânico parte de suas colônias.

Não posso entender como e por que os alemães esperaram sair vitoriosos dêsse duelo de morte, quando sabiam o que acontecera com todos os inimigos da Grã-Bretanha. É verdade que nunca foram muito hábeis em política e que, sempre enterrados nos livros, não podiam entender os homens.

Por outro lado, não é difícil achar a explicação da sucessão ininterrupta de vitórias da Inglaterra em todas as guerras e empre­endimentos coloniais.

A direção dos negócios estrangeiros na Inglaterra é hoje (como sempre foi) inteiramente entregue a um pequeno grupo muito res­tr ito e de grande independência de ação. Tal sistema tem uma enorme superioridade. No campo da política internacional, a Ingla­terra é o único país que sabe realmente o que quer e anos a fio trabalha para obtê-lo com uma unidade de objetivo que falta às outras nações.

Tudo isso a Alemanha o percebeu com grande consternação no ano da graça de 1914.

Os fatos foram, naturalmente, tão propositadamente embara­lhados pelos casuístas de ambos os lados, que os mais absurdos rumores logo correram sobre a causa original do conflito. Mas a guerra não foi determinada pelo assassínio de um grão-üuque aus­tríaco, ou pela violação de um tratado solene, ou pela solicitude da França, da Rússia e da Inglaterra pelos direitos dos países pequenos. Muitos grão-duques austríacos já haviam sido mortos sem que nada sucedesse. Os tratados eram violados regularmente uma ou duas vêzes por ano sem que ninguém se incomodasse. E quanto ao amor da França, da Inglaterra e da Rússia pelos pequenos países — falar dêle é de um cômico que toca às raias do cinismo.

Não, a guerra era inevitável e os historiadores inteligentes já

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a tinham previsto desde o dia memorável em que nos salões do palácio de Versalhes reboaram os primeiros hurras ao Império Ger­mânico recentemente restabelecido.

O pretexto imediato seria qualquer um — uma concessão de pesca na Groenlândia — a tarifa dos porcos na Sérvia — uma mina de carvão de terceira classe no vale do Mosa.

A causa real e oculta foi a tardia tentativa dos infelizes teutões para obterem o seu quinhão nos espólios do mundo, para acharem uma reserva abundante e barata de matérias-primas que não esti­vesse fiscalizada por outra nação.

E porque os Estados Unidos da América tinham maiores quan­tidades de ferro e carvão do que qualquer outro país, era inevitável que o povo americano fosse arrastado à tormenta.

Êle não pegou em armas enquarto os rivais europeus da Ale­manha não se viram na beira da ruína e da derrota. Até êsse mo­mento, as palavras eloqüentes dos oradores entusiastas da guerra, tôdas as narrações das piores atrocidaces, todos os livros azuis, verdes e vermelhos explicando a nobreza e a santidade das diversas causas nacionais haviam interessado muito superficialmente à grande maioria da população.

Mas chegou um momento em que o comum dos homens come­çou a sentir, no seu subconsciente que o perigo estava próximo. “A coisa está se tornando séria para nós”, pensavam, confusamente, os americanos. “Se os alemães saírem \itoriosos e vencerem a França e a Inglaterra como já venceram a Rússia, Rumânia e a Itália e todos os outros inimigos, a nossa vez virá certamente em seguida; e como possuímos muitas das matérias-primas de que os alemães necessitam para suas máquinas, êles tentarão tomá-las e nós não poderemos mais sustentar nossos monstros de ferro.” Do instante em que o povo americano percebeu o futuro que o esperava, e aos seus filhos, se a Alemanha rompesse c cordão das potências européias que a cercavam, achou-se pronto a entrar em guerra ao lado dos aliados, e desde então ficou decidida a sorte da Alemanha.

Porque não se tra tava mais de uma luta entre homens, como nas guerras anteriores. Era o choq ie das Coisas Inanimadas.

Era uma peleja cujo resultado jod ia ser previsto com bastante aproximação por qualquer pessoa competente em estatística. E a América, que durante os últimos sessenta anos se concentrara num

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único fito — o da produção em série de Coisas — agora jogava 03

produtos de suas incontáveis oficinas sôbre a grande conflagração européia, e o fazia com a precisão de um artilheiro experimentado que dispusesse de munições ilimitadas — cujos colegas houvessem circunscrito o fogo a um único quarteirão — e que pudesse agir e visar a área marcada com calma, absolui amente certo da vitória final.

Em seis de abril de 1914, 0 Pres dente Wilson reuniu os pri­meiros maquinismos. Algumas semanas depois eles apareciam pela primeira vez no solo da Europa. E poucos meses mais tarde estavam prontos para entrar em combate. Depois disso seu número cresceu continuamente. Incessantemente arremessavam toneladas de m a­terial destruidor sôbre o coração em chamas do Velho Continente. Dentro em pouco começaram a ruir as muralhas da Alemanha e da Áustria.

Com um estrondo horrível, o telhado veio abaixo.Dois anos depois, o incêndio ter ninava.Os maquinismos voltaram para sua terra.Mas então o govêrno do Presidente Wilson se revelou menos

eficaz do que os corpos de bombeiros das grandes cidades.Depois de um incêndio, embora pequeno, um bombeiro fica

encarregado de vigiar os destroços durante alguns dias, ou às vêzes durante algumas semanas.

Isso pode parecer uma precaução desnecessária.Mas qualquer agente de seguros pode dizer por que é tomada.O fogo por si só já é muito maléfico.Mas nas ruínas fumegantes escondem-se perigos muito maiores,Êsses montes de cinza têm um aspecto inocente. Todo perigo

parece afastado. Mas é nesse momento que pedaços de carvão incan­descente se desprendem do entulho e evam o fogo a alguma adega vizinha. Antes que se compreenda o que aconteceu, a praga verme­lha está espalhada por todos os lados e infesta zonas da cidade que se julgavam a salvo.

Um bombeiro solitário, que durante vários dias ou semanas não faz aparentemente mais nada do que estalar os dedos ou ler revistas ilustradas, pode parecer um desperdício de dinheiro e energia. M as no final pode resultar num bom einprêgo de capital. Com um sim­ples balde d’água consegue impedir a repetição de um desastre que de outro modo talvez destruísse tôda a cidade.

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CAPÍTULO LII

UM MUNDO IM PREV ISTO

Colombo atravessou o oceano para procurar um caminho mais curto para as índias e deu num continente de cuja existência nin­guém suspeitava.

Quatrocentos e vinte e cinco anos depois a América pagou a visita e foi à Europa para salvar o que era considerado vagamente uma antiga e respeitável forma de civilização; e descobriu em lugar dela uma complexa estrutura social que nada tinha a ver com os sonoros ideais pregados tão eloqüentemente pelos profetas de guerra dos diversos grupos de beligerantes.

Quando eu digo isso, peço que se recordem de uma coisa: os homens, em geral, não compreendem o sentido da História. Espe­cialmente entre nós, em quem o domínio das Coisas milita contra o desenvolvimento livre e normal das idéias, a consciência da fatali­dade histórica das experiências humanas é considerada, desfavora­velmente, como uma perda de tempo e uma manifestação dêsse cepticismo a que os guardas de “Ellis Island” vedam a entrada nos limites da República.

O conhecimento profundo e bem orientado de alguns assuntos habilita a perceber todos os lados dos problemas. E isso, por sua vez, determina uma certa hesitação no momento de agir e produz uma grande modéstia de espírito. Ambas essas qualidades, como qualquer sargento-instrutor o poderá dizer, são nocivas ao moral do exército; e já que o propósito confessado dos que dominam a vida americana é arregimentar a população num luzido exército civil de indústria e comércio, tudo o que possa prejudicar a disciplina mental é visto com maus olhos e, sendo possível, removido dos programa* das escolas e universidades.

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Essa orientação traz algumas vantagens incontestáveis. A jovem geração não fica embaraçada com um lastro pesado de conhecimentos inúteis. Mas, por outro lado, também não fica preparada para qual­quer papel que eventualmente possa ser chamada a desempenhar.

Quando os moços de nossa terra sc alistaram para a guerra — generosamente, entusiásticamente — iam cheios de um levantado ideal de servir a humanidade.

O que na realidade era um conflito entre duas nações pode­rosas por causa de matérias-primas paieceu uma luta de demônio,i contra anjos. De um lado, a M agna Car:a, Joana d'Arc e La Fayette e a Democracia, do outro, a “Schrecklic hkeit” (*) e Nietzsche (em ­bora ninguém soubesse ao certo quem fôra êle) e o despotismo de um tirano demente.

N a verdade, as causas pareciam tão simples e tão claramente definidas que ninguém julgou necessáiio pedir explicações porme­norizadas ou exigir um programa para resolver as futuras dificul­dades. Quando um honesto cidadão vê um malfeitor atacar uns menino, derrubá-lo e roubar-lhe o seu dinheirinho, êle não pára para discutir os antecedentes do caso. Entra na briga e abate o bruto. Essa imagem foi tão insistentemente evocada diante da jovem Amé­rica, que milhões de homens atravessaram o mar para cumprir o que reputavam um dever sagrado.

No momento em que pisaram em terra, as desilusões começaram^ e logo descobriram que a Europa era uma terra estranha, habitada por gente estranha — um universo em si e para si — que nunca fôra explorado com êxito por uma mentalidade americana.

E quando a guerra acabou, quando meia dúzia de impérios desa­pareceram da noite para o dia da superfície da terra, quando a* formas exteriores da civilização européia, com as quais os americano» estavam mais ou menos familiarizados, foram subitamente destruída» pelas massas dos esfaimados e dos deserdados, o brilhante entusiasme* de 1917 cedeu o lugar ao desalento de 1918.

Durante a administração de James Monroe uma mensagem pre­sidencial avisara a todos os estrangeiros que não se deviam intro­meter nos negócios do Novo Mundo.

(1) Em alemão no original.

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A M É R I C A ■no

O qvo hcrdantos do pastado

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Durante a última metade da presidencia de Woodrow Wilson, a grande maioria do povo americano, mais que saturada das dificul­dades em que se vira envolvida, acrescentou uma emenda à doutrina de Monroe e decidiu que de ora em diante nenhum americano se imiscuiria nos negócios da Europa.

Urna vez bastara, e nunca mais!Porque a Europa até então desconhecida — a Europa dos peque­

ños países rusguentos e dos grandes grupos de nações despóticas — não era absolutamente do gosto dos que, inconscientemente, só haviam aprendido a pensar ao modo do cont nente.

A súbita compreensão desse fato — o despertar gradual de algu­mas antigas tradições dos dias em que a América significava um estado de espirito mais do que urna forma proveitosa de exploração econô­mica — isso tudo produziu um choque mental e espiritual que, ao menos por um momento, nos levou a rever todos os credos correntes e a pesquisar os mais remotos recessos da alma nacional.

N a vida de quase todos os grandes homens há uma crise — um momento em que qualquer acontecimento exterior os obriga a encarar sua carreira sob a luz brutal do completo conhecimento do próprio eu.

Até 1916, caminhamos descuidados pela larga estrada da pros­peridade sem pensar no dia seguinte. Os “homens de ferro” que trabalhavam para nós cumpriam sus tarefa mansa e satisfatoria­mente. Todos nós nos sentíamos satisfeitos. Se nos preocupávamos com alguma coisa, era com novos regulamentos para a supressão das tarifas rurais ou com a mania dos habitantes de Haiti (ou de Chicago) de se matarem uns aos outros — minúcias sem impor­tância que poderiam ser resolvidas num momento se quiséssemos pensar seriamente nelas.

Depois surgiu a grande reviravolta que destruiu as velhas for­mas da civilização européia e desbaratou as riquezas acumuladas de todo um continente.

Subitamente surgiu diante de nós a realidade da situação.Tam bém a Europa se prosternara diante de falsos altares.Tam bém a Europa fizera da conquista das Coisas Inanimadas

a mais alta das virtudes cívicas.E o resultado foi — o que vimo>.Caos.

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O p a g a m e n t o d a v i s i t a

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Caos completo e absoluto.Assim acabou a primeira e única participação da América em

guerras européias, e o que começara como uma grande e gloriosa cruzada deu numa dolorosa e desoladora viagem de descoberta.

Lvidentemente, havia alguma coisa errada no mundo. Por uma maldita mudança da sorte o povo americano foi chamado para cor­rigir o erro.

Por uma maldita mudança da sorte ou por uma graça de Deus misericordioso. Podemos escolher à vontade.

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CAPÍTULO LUI

NOVOS RUMOS PARA OS ESTADOS-UNIDOS

Quando veio o fim da primeira guirra mundial, ainda não com­preendíamos — nem sequer suspeitávamos — que aquela data signi­ficava também o fim da existência despreocupada e feliz dos Es­tados-Unidos como “nação celibatária” se assim nos podemos expri­mir. Com a terminação do conflito desapareceu a nossa indepen­dência e liberdade de ação. Não quero insinuar que tivéssemos ido ao ponto de nos comprometermos oficialmente, trocando anéis nupciais com uma de nossas aliadas da véspera e passando a freqüentar-lhe regularmente a casa. Ricos como éranos, não regateamos os dons da nossa generosidade a todos aquêles que combateram ao nosso lado, nem mesmo os nossos ex-inimigos. Não se podia dizer, portanto, que de nossa parte estivéssemos empenhados por alguma promessa, mas também já não éramos o povo feliz e descuidoso que tínhamos sido durante o primeiro século e meio de existência, e essa perda da nossa liberdade foi, ao meu ver, talves o mais importante resultado da Grande Guerra no que nos diz respeito.

Escreverei, pois, o presente capítulo final, dêsse ponto de vista. Superficialmente, não se haviam veri icado grandes transformações e a maior parte do nosso povo com certeza não chegou a dar-se conta do que ocorrera. Regozijaram-se ao ver que a aborrecida inter­rupção das suas ocupações cotidianas havia findado. A campanha da França, que começara como uma nobre cruzada, dera em droga (se me posso permitir uma expressão desabonatória dêste jaez, com referência a uma causa tão ju s ta ) , cc nvertendo-se numa deplorável contenda cheia de recriminações mú:uas. Os mesmos “pracinhas” que alguns meses atrás haviam embarcado para a Europa com tão nobres propósitos de vingar uma tremenda injustiça e assegurar a

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posição da Democracia no mundo, voltaram manquejando e inbuídos de sentimentos muito pouco benévolos para com os seus recentes com­panheiros. “Mademoiselle de Armentières” não correspondera em absoluto à expectativa. Usava uma saia de lã esfarrapada, tinha os tamancos encrostados de estrume de vaca e não se exprimia com clareza sobre assunto algum, fora as suas finanças particulares. Os "maires” e os mercieiros das aldeias em que se aboletaram os soldados deram mostras de uma decidida ganância nas inevitáveis transações com esses milhares de rapagões transplantados das fazendas de Iowa e Arkansas para as êrmas povoações da Auvergne e do Pas de Calais e cheios de um sadio apetite de frangas novas e “vin du pays” . As próprias autoridades superiores pareciam muito mais interessadas nos lucros extraordinários a auferir dos negócios oficiais com “les américains” do que no problema mais imediato de conquistar a ami­zade dos seus generosos salvadores.

Por fortuna, a barreira do idioma desconhecido resguardara os americanos de compreenderem com muita clareza os insultos a que tram constantemente expostos; mas no caso dos seus outros aliados, cs ingleses, não existia essa válvula de segurança. Tratando-se de ingleses, cada uma das partes sabia perfeitamente bem o que queria significar a outra quando se referia aos antecedentes duvidosos do cavalheiro com o qual estava discutindo os méritos e deméritos da forma republicana de governo em face da monarquia e vice-versa. E essa unidade de línguas, ao invés de contribuir para um melhor entendimento entre os aliados (sonho delicioso de todos aqueles que confiavam no advento da Paz Universal como fruto do esperanto ou do volapuk), conduzira muitas vezes a desagradáveis e sangrentas refregas entre os mais humildes súditos do Rei e os concidadãos do Presidente.

O que ainda mais agravou a situação foi que, após o colapso dos exércitos imperiais e a fuga do “Oberste Kriegherr” ( 1) para a Holanda, coube às tropas americanas o encargo de ocuparem grande parte do território germânico. As pacíficas aldeias do Reno e do Mosela, com suas ruas e casas asseadas, suas crianças bem educadas, suas “Gretchens” sorridentes, seus módicos hoteleiros e seus obse­quiosos burgomestres (procurando jeitosamente ganhar as boas graças dos vencedores) formavam, no espírito simples dos rapazes de aquém

(1) Senhor Supremo da Guerra.

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Atlântico, t i o grande contraste com a gente gaulesa, que a opinião que êles tinham sobre o conflito em geral começou a deslocar-se da sua verdadeira perspectiva.

“Êstes alemães do Velho Continente escreviam às suas famílias, “são iguaisinhos àqueles velhos barbudos que cantavam nas festas dos “Sangvereins” quando éramos garo:os, suas Fraus nos tra tam com tôda a gentileza, suas filhas são moças decentes que ajudam as mamães nos trabalhos da cozinha. Qi e histórias são essas que rros andaram contando sôbre atrocidades e hunos selvagens? Sabem que no domingo comemos torta de maçã? E na França, que é que nos davam?”

E assim por diante. Esqueciam (e a maior parte mesmo não sabia) que os alegres habitantes da mais rica região vinícola do mundo, os joviais e despreocupados remnos, são outra raça que não as arrogantes e prepotentes criaturas fixadas nos ermos arenosos da Prússia e as quais, sendo de estirpe mais eslava do que alemã, sempre constituíram um elemento a l tanen te emotivo da nacionali­dade, pronto para explodir a qualquer me mento e ensurdecer o mundo com clamores de morte e devastação.

Já que os Aliados tinham cometido o grave êrro de não ocuparem Berlim (uma cincada que iriam pagar bem caro, mais ta rde ) , os nossos rapazes não travaram conhecimento senão com aquelas partes do Reich cuja população carrega nas veias uma dose considerável de sangue gaulês e, confundindo-a com o verdadeiro tipo germânico do Leste e do Norte, chegaram natura mente a uma conclusão tão afastada da verdade como se tivessem querido julgar os japoneses modernos pelo estudo das encantadoras paisagens do Horusai ou Korin,

Não admira que ao regressarem estivessem completamente de­sorientados — que o seu modo de encarar muitas questões já não fôsse o mesmo que tinha sido quande pisaram pela primeira vez em solo europeu e que estivessem muito dispostos a largar de mão o Velho Continente, como um caso peidido, uma deplorável salada de pequenas nacionalidades ridículas, tocias elas incuravelmente egoís­tas e tão ciosas dos seus supostos direitos e privilégios que jamais conseguiriam assentar uma base comum para qualquer espécie de cooperação espiritual ou econômica.

Com milhões de americanos nessa disposição de espírito, era bem de prever que o Presidente Wilson não encontraria ambiente propício

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aos seus planos de uma Liga das Nações em que os Estados-Unidos representassem um papel imediato e da mais alta importância. De- Vemos recordar aqui um detalhe raramente salientado pelos nossos

' historiadores — o de que Woodrovv Wilson, historiador e pedagogo que era, sempre se interessou mais pelos aspectos teóricos dessa guerra do que pela luta concreta. A esse respeito era ele a perfeita antítese do seu sucessor que presidiu aos nossos destinos durante a segunda guerra mundial. Sim, porque Franklin Delano Roosevelt continua tão interessado em navios, marinheiros e soldados como no tempo em que desempenhava as funções de subsecretário da Marinha no governo de Wilson e, ao lermos a sua Carta do Atlântico, temos a impressão de que êle e Mr. Churchill compuseram esse documento porque era o que o mundo esperava de dois estadistas que não deviam estar apenas empenhados em ganhar uma guerra mas também em fazer alguns preparativos para o mundo de amanhã, mantendo os alemães debaixo de um rigoroso controle militar. Mas ninguém que se tenha dado o trabalho de estudar os Catorze Pontos de Wilson pode alimentar a menor dúvida sôbre a absoluta sinceridade desse homem e a sua profunda solicitude por um futuro estado de coisas em que as guerras mundiais já não seriam possíveis porque a cons­ciência despertada da humanidade saberia tomar as medidas neces­sárias para impedi-las e estaria capacitada a fazê-lo mediante um apêlo às nossas convicções morais, sem que se fizesse preciso outro meio qualquer.

Já que a humanidade, desde o começo da história escrita, nunca se inquietou muito com a consciência quando estavam em jogo as suas emoções e interêsses, era mesmo necessário um professor para traçar tão nobre programa de ação futura e confiar na sua eficácia. Infelizmente, a grande maioria dos nossos “pracinhas” não eram a bem dizer professores — têrmo êste que os faria arregaçar as mangas, prontos para brigar, se fôsse aplicado a um déles. Logo que che­garam em casa, apressaram-se a informar a família e os vizinhos de que todas essas tolices bombásticas a respeito de Justiça e Igualdade representavam simplesmente uma perda de tempo e dinheiro para os americanos, e quanto mais depressa nós, do lado de cá, cortássemos toda relação com a mixórdia européia, melhor seria para todos nós.

Entretanto, o Presidente Wilson não só era um homem de es­tudos mas também tinha sido Reitor de Universidade, e os Reitores

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de Universidades não estão habituados a que os contradigam. A opo­sição aos seus planos irrita-os, especialmente quando têm a convicção sincera de estarem lutando do lado dos deuses. E quem já traçou planos mais cuidadosos para a futura felicidade da raça humana do que Thomas Woodrow Wilson, memoro da igreja presbiteriana e vigésimo-oitavo presidente dos Estados Unidos da América do Norte? Ninguém, por certo — e atrapalhar o seu projeto grandioso era um perfeito sacrilégio.

— Ah! é? — retrucaram os veteranos desabusados, preparan­do-se para sepultar os Catorze Pontos e o seu ex-comandante su­premo debaixo de uma montanha de vitupérios tão grande que nunca mais se ouviria falar nêles. Se a Europa queria uma Liga das Nações, que arranjasse uma para si, e bom proveito aos polacos, tchecos, albaneses, lituanos, húngaros, rumenos, búlgaros, espanhóis, portu- guêses, e até aos alemães, se os outros quisessem admiti-los, o que parecia muito duvidoso. Mas quanto aos americanos livres e inde­pendentes, que tomassem cuidado e se conservassem 20 largo, ou haviam de ver, para seu eterno arrependimento, que os outros lhes montavam 110 cachaço e os deixavam de tanga, bem como, no tempo da guerra, quando lhes tinham cobrado aluguel até das trincheiras onde êles faziam frente às investidas dos “hunos” .

Menciono aqui a velha e conhecida anedota sobre o aluguel co­brado pelas trincheiras porque ela é característica da nossa atitude de após-guerra para com os nossos ex-aliados. Embora não fosse verídica, quase tôda gente acreditava nela; e, em história, o que mais importa não é a verdade, mas o que a maioria supõe ser a verdade. O estudo dos métodos emp egados por Adolf Hitler no-lo revela como igual em tudo aos mais eminentes assassinos de multidões dos últimos cinqüenta anos. Mas, enquanto dezenas de milhões de alemães o considerarem como a encarnação de tôdas as virtudes teutónicas, firmemente convictos de que êle foi enviado por Deus Todo-Poderoso para conduzir o seu povo à Terra Prometida da hegemonia mundial, esta última opiniío será a que teremos de levar em conta, ao passo que a primeira pode ser desdenhada sem incon­veniente, pois ela não alterará o modo de pensar de um único cauda­tário nazista. Embalde se argumentaria, portanto, que uma Liga das Nações era, do ponto de vista idea , exatamente o que o mundo precisava para evitar uma nova catástrofe. A maioria do nosso povo

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não a desejava por motivos que, na ocasião, lhes pareciam perfeita­mente razoáveis e adequados, e eis aí por que o Presidente Wilson estava predestinado a sofrer uma terrível decepção. O fracasso daquilt> que êle prezava sôbre todas as demais coisas dêste mundo levou de vencida a sua resistência física. Sofreu um ataque e durante o último mês da sua gestão presidencial foi a ruína de um homem. Não soubera ler com acêrto o pensamento dos seus compatriotas e son-

A Liga das Nações era, talvez, um magnífico edifício, n:as era demasiadamer.it fxá- tico fara agradar à maioria dos americanos.

dar-lhes a desconfiança ante tudo que é “estrangeiro” ; em resultado, uma das mais nobres carreiras da nossa vida política teve um fim solitário e triste, porque um homem colocado em posição de alta responsabilidade não chegara a compreender que a mais elevada sabedoria, em política, consiste em fazer “o que é factível”.

Quanto ao povo americano, ou lamentou o líder que tivera tal fim, ou — aqueles que pertenciam às fileiras dos irreconciliáveis rejubilou-se da maneira mais indecorosa com o destino do homem

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que poucos anos atrás era considerado o salvador da raça humana. Mas, com exceção de alguns pequenos grupos de pessoas bastante perspicazes para compreenderem que os modernos meios de comuni­cação tinham convertido os Estados-Unidos em parte integrante do mundo, os nossos compatriotas voltaram à sua ocupação favorita de acumular a maior soma de bens materiais no menor tempo possível e de estabelecer um padrão de vida que prometia garantir a cada cidadão duas galinhas em cada panela e dois automóveis em cada garagem, e isso sem que fosse preciso dedicar um só pensamento ¿o resto do mundo. Aqui e além, algumas pessoas malvistas murmu­ravam sinistras advertências, declarando que uma tal orgia de gastos é especulações indiscriminadas só podia terminar numa catástrofe. Mas não tardaram a descobrir que não se pode lutar contra urh milhão de dólares, e como toda gente menos êles) tinha pelo menos um milhão de dólares, êsses jeremias importunos foram rudemente espezinhados e a alegre procissão continuou a correr, cheia de alvo­roço, rumo do asilo de indigentes.

Sim, porque os pessimistas (como já tan tas vêzes tem sucedido na história) compreenderam a situação melhor do que os otimistas. Ouviram-se ruídos suspeitos no vigamento da Bolsa de Títulos, mas ninguém prestou atenção. Em seguida começaram a cair pedaços de reboco. Depois apareceram fendas assustadoras nas paredes e finalmente, com um estrondo de trovoada, todo esse edifício de auto- ilusão, de aparências e de insensatez desabou sobre uma multidão que de nenhum modo se apercebera para enfrentar uma tal catás­trofe. Então, e somente então, compreendeu o povo americano o que havia acontecido durante êsses anos todos em que cada um dêles tra tara exclusivamente dos seus interêsses, deixando o resto do mundo entregue à sua sorte. E compreenderam o que até êsse dia só fora evidente para alguns escritores impopulares e outros obser­vadores profissionais: que os Estados-I nidos fazem parte do resto, do mundo como qualquer edifício, numa uibe moderna, faz parte do resto da cidade. Se tôdas as casas dentro de algumas milhas em roda caírem em escombros, até o mais solido dos arranha-céus há de mostrar sinais de avaria. >

Eis aí por que não é possível comoreender a história da América durante êstes últimos vinte anos se não se levar em conta o que «imultâneamente ocorria nas demais partes do planêta. E, como

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compete a um repórter consciencioso, vou fazer agora um pequeno resumo dos acontecimentos da Rússia, Turquia, Grécia, Alemanha,» Líbia e Etiópia, a fim de que o leitor me possa acompanhar quando eu adicionar todos êsses infelizes incidentes e chegar à conclusão, de que, por fôrça da lógica, eles tinham de nos dar um total de "menos zero”.

Desde a origem dos tempos, a história e a doença têm apresen-- tado esta feição em comum: ninguém pode prever-lhes com exatidão

De repente sentiram um grande desejo de construir alguma coisa de acôrdo conta sua tradição.

o resultado, que é sempre algo inteiramente diverso do que imaginam os mais argutos comentadores quando, com eloqüência persuasiva, tentam prefigurar a forma das coisas futuras.

No tempo dos nossos tataravós dançava-se entusiásticamente em redor da Árvore da Liberdade, com a convicção de que a Grande Revolução Francesa não tardaria a levar o princípio da Liberdade,

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Igualdade e Fraternidade a todos os recantos do Velho e do Novo Continente. Vinte anos de escravidão sob a férula de um pequeno bandido corso mal-educado mostraram os perigos de fazer prognós­ticos tão precipitados. Ao invés de conduzir ao governo pelo povo, as revoluções liberais que estalaram por tôda a Europa na década de 1840 não fizeram mais que abrir ciminho às forças reacionárias de Hohenzollerns e Habsburgos e tornar possível a instalação de um terceiro Napoleão no carcomido trono de seu famoso tio, o pri­meiro dos Bonapartes. E quando a Grande Guerra, que fora come­çada com o fito de garantir a posição da Democracia do mundo (em outras palavras, para manter o status quo das velhas organizações imperialistas), quando a Grande Guerra chega ao fim, quem é que surge no tôpo? Confessemo-lo! Foi um desconhecido revolucionário russo, um sujeito obscuro chamado Nikolai Lenin (nome êste que nem mesmo era o seu verdadeiro, po s êle tinha nascido Vladimir Uliànov), foi êsse homem quem carregou com os louros da vitória, uma vez que garantiu a posição do socialismo marxista na sexta parte do mundo, de todas as coisas possíveis aquela que as velhas democracias menos esperavam e mencs desejavam que acontecesse.

Assim foi sempre e assim continuará provavelmente a ser, até que o homem se torne um animal lógico, o que por ora não parece estar reservado para um futuro muito próximo. Por isso, quando leio livros e artigos sôbre o mundo depois da guerra e escuto dis­cursos sobre os nossos preparativos para a paz — e até quando me convidam a ler a solene Carta do Atlântico — sinto-me inclinado a erguer suavemente a voz numa advertência aos ardentes entusias­tas que me asseguram que desta vez os nossos rapazes estão mor­rendo para pôr um ponto final nessas guerras absurdas. Prestem bem atenção: o atual conflito será indubitavelmente seguido de muitos outros e, a despeito de todos os tratados solenes, a humanidade con­tinuará dando por paus e por pedras até que finalmente apareça algum gênio que nos ensine a administrar uma nação como uma bem organizada emprêsa de negócios, dirigida por pessoas com­petentes e honestas, ao invés de uma organização política dominada por indivíduos cuja única qualificação para os altos postos consiste em possuírem um bom par de cordas vocais.

Desde o tempo em que os gregcs iniciaram o seu memorável experimento de autogoverno, o mundo sabe que a oratória tem sido o

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mais perigoso inimigo da democracia. Porque o gênio retórico é parente próximo do gênio musical e não há mais razão para supor que uma prima donna ou um primo attore do palco político seja capaz de administrar um complexo estado moderno do que para esperar semelhante milagre de algum grande tenor da Metropolitan Opera, ou do pianista ou rabequista que atrai multidões ao Carnegie Hall. Mas ainda nos achamos sob a fascinação de Demóstenes, cuja

Seria melhor para os gregos se Demóstenes se tivesse limitado a fazer discursospara o mar.

magnifícente verborragia, sem fundamento em qualquer plano con­creto de ação, persuadiu os seus compatriotas a adotarem uma política que conduziu à eliminação definitiva da Grécia como nação inde­pendente.

Entretanto, como estamos hoje em dia sob o sortilégio da palavra Democracia, tanto quanto as gentes da Idade-Média o estavam sob o da palavra Igreja, parece-me que infelizmente nada se pode fazer para sanar êsse mal. Tivemos o ensejo de observar Demóstenes

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em ação quando assistimos ao deplorável espetáculo do nosso William Jennings Bryan tentando qualificar-se como estadista. Foi êle o orador sem par dos últimos cinqüenta anos, o homem cuja voz retumbante enfeitiçou um país inteiro durante o espaço de quase duas gerações-, e no entanto, assim que lhe foi dado um cargo de responsabilidade, como um dos dirigentes práticos da nação, não só nos arrastou para a beira do desastre mas também para as raias do ridículo, o que pode revelar-se ainda mais fatal ao prestígio de um estado poderoso. E foi preciso largá-lo de mão, porque até nós, o mais paciente, o mais tolerante e o mais bem-intencionado dos povos congregados neste planêta, tivemos de chegar à conclusão de que uma garganta lírica não é habilitação suficiente para a tare a de governar uma complexa sociedade industrial do século XX.

Qual o motivo desta excursão no domínio da política teórica? É que, no capítulo final de uma história da América, vem muito a pêlo ensaiar um pequeno trabalho construtivo. Um dia esta guerra terminará e então, se deixarmos o rest ibelecimento da paz entregue às mãos da mesma espécie de gente que se tem dedicado a isso durante os últimos cento e cinqüenta anos, ver-nos-emos às voltas com uma nova trapalhada antes que ten ia secado a tinta do documen­to. Os Pais da Pátria, esses astutos e judiciosos discípulos do libe­ralismo setecentista, sabiam o que faziam quando tentaram delegar a escolha do presidente e do vice-presic ente da União a um pequeno colégio independente de eleitores cuid idosamente selecionados, que não fôssem capazes de se deixar empolgar por frases sonoras a enco­brir argumentos ocos. Mas tão depressa êles baixaram à sepultura, as forças destrutivas reapareceram em cena e desfizeram todo o trabalho dos Washington, dos Jefferson e dos Madison encerrando de novo a política naquele saco de gr tos em que o mais vigoroso “miau” é considerado prova de capacidade para a liderança. E desde então, é nesse terreno que se têm decidi'lo os destinos da humanidade. Resultado: o mundo quase não conheceu um dia de paz desde que os Grandes Oradores começaram a fazer-se valer — até que afinal surgiu um, dotado de tão monstruosa habilidade para influenciar os seus semelhantes com a simples torrente de palavras, que pôs em movimento sessenta milhões de pessoas, convenceu-as a que seguis­sem o seu mando sem olhar as conseqüências e acabou por lançar o

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mundo civilizado num inferno de ódio, crueldade, morte e desespero do qual esperamos, pelo menos, que ele possa um dia libertar-se.

Mas não sejamos muito soberbos na condenação de Hitler. Foi só por muita sorte (embora me repugne denominar “sorte” a um assassinato) que escapamos de cair nas mãos do nosso pequeno Hitler em potência, mas duma próxima vez podemos ser menos afortunados, pois nunca teremos a possibilidade de organizar o mundo sôbre fatos científicos, sôbre a razão e o senso-comum (um a meta altamente desejável) enquanto os nossos parlamentos não proscreverem a ora­tória nos seus debates, assim como a retórica foi há muito tempo banida das assembléias de cientistas que procuram descobrir um novo meio de salvar vidas humanas.

Mas quer me parecer que me deixei afastar da trilha dos meus argumentos por êste inesperado mas muito grato ensejo de com­prazer-me na minha mama favorita. São horas de voltar ao ponto cie partida. Ia, pois, fazer uma exposição abreviada das circunstân­cias vigentes no Velho Mundo, donde resultaram acontecimentos quase catastróficos, donde por sua vez resultou o têrmos, aqui na América, dois gatos vadios em cada garagem ao invés das duas limusines prometidas.

Sôbre a Rússia já falei. Se as nações aliadas houvessem com­preendido a verdadeira natureza da onda de descontentamento que se alastrou pelas terras eslavas, talvez pudessem ter salvo o império czarista daquele colapso completo que possibilitou a ascensão dos bolchevistas. Aqui, como em quase todos os casos subseqüentes de incompreensão, coube a culpa primariamente aos diplomatas. Esses cavalheiros da Brigada Extraterritorial são uma gente engraçada. Outros funcionários, quando cometem uma cincada grave, têm de prestar contas rigorosas e vão parar no ôlho da rua, às vêzes até lhes é imposta a morte como punição da sua falta de perspicácia e de previdência. Por outro lado os diplomatas, quando a sua crassa incompetência provocou um desastre, recebem uma escolta especial, um trem especial, buquês de flores na estação, e são conduzidos à fronteira entre as zumbaias e rapapés de seus colegas do país agora hostil. Após isso voltam para a pátria, negam-se a dar explicações dos seus erros de apreciação ( “o Departamento de Estado nos impõe Oigilo” ), fazem uma visita de cortesia aos seus superiores (sem dúvida para lhes falar das caçadas nas reservas de Herr Goering; e contar-lhes

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o que é feito da simpática condessinha la Podólia, outrora urna Miss Brown de Detroit) e dissolvem-se no espaço, a menos que prefiram escrever as suas memórias, das quais se utilizam, com napoleónica finura, para encobrir as suas próprias burradas e mostrar os seus adversários sob a luz mais desfavorávtl que podem.

Reconheçamos-lhes os méritos, no entanto. No decurso dos vinte anos que se seguiram à guerra, cs diplomatas andaram muito atarefados, mas continuavam a proceder como se nada houvesse acon­tecido desde o tempo em que M etternich governava o mundo graças a urna vasta rede de intrigas internacionais. Não perceberam que uma grande transformação se operara na Europa depois dos dias de Santa Aliança e que o método das conferencias intermináveis, coroado de êxito no período da Grande Reação, não podia continuar cm uso numa época em que o rádio e as máquinas de voar aniqui­laram o tempo e o espaço, em que a população de um país já não consiste em pequenos camponeses devotos e obedientes, mas em t ra ­balhadores industriais cujo adestrameníD profissional lhes dá grande proficiência no manejo de uma metralhadora.

E, enquanto os estadistas de Versalhes procuravam fazer res­suscitar um mundo que havia muito ,e transformara em peça de museu (e não das mais interessantes, p )r sinal), Hitler ia ganhando terreno, e era exatamente como se aqueles estimáveis fósseis estives­sem legislando para o planêta Marte. Ainda encaravam o mundo com > um grande truste financeiro administrado por uma diretoria — a qual era constituída por êles próprios.

Para começar, resolveram introduzi ■ a ordem na Rússia e subsi­diaram diversas expedições comandadas por ex-generais czaristas, na esperança de que êsses bandos indisciplinados e irresponsáveis de coridottieri expulsariam prontamente díli os perversos bolcheviques. Até os Estados-Unidos, num momento de má inspiração, decidiram tomar parte nessa fútil tentativa de atrasar os ponteiros do relógio e impor novamente ao infeliz povo russo as belezas do regime czarista de cem ou mais anos atrás.

Depois que os chefes dessas expe lições foram fuzilados pelo-} exércitos comunistas vitoriosos, os provictos estadistas (e seus cole­gas mais jovens das margens do Potomac) resolveram abster-se de novas intervenções armadas nos negócios internes ela Rússia. T en ­tariam agora formar uma espécie de cordão sanitário — um bloqueio

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econômico que em pouco tempo obrigaria os perversos bolcheviques a dobrar o joelho. Como isso tampouco alcançasse o fim colimado, lem­braram-se de certos serviços que o recém-restaurado estado poIonSs podia prestar à causa da civilização. José Pilsudski, ex-agitador socialista e um dos chefes do movimento autonomista polonês, foi incitado a fazer guerra contra os seus irmãos eslavos de Leste. O sonho de um império polonês que se estendesse do Vístula ao Dniepcr dispôs todos os poloneses para o Grande Sacrifício. Ajudados por um estado-maior de brilhantes oficiais franceses sob as ordens do ge­neral Weygand, os poloneses lançaram uma campanha vitoriosa con­tra os russos, e é certo que — por um breve lapso de tempo ao menos— conseguiram impedir que os comunistas contaminassem a Europa Ocidental. Mas no final nada se saiu ganhando com isso, pois os poloneses, que tinham avançado até as margens do Dnieper, foram forçados a recuar de novo para as margens do Vístula. 0 único resultado concreto foi revelar a incapacidade da Polônia para gover­nar-se com uma democracia moderna. O velho Pilsudski era muito astuto para se tornar ditador do novo estado. N a aparência foram mantidas as formas do governo democrático, mas os Estados-Unidos— pelo muito que se interessavam nisso — deram de ombros, m ur­muraram “A mesma história de sempre!” e alhearam-se ainda mais daquela confusão européia de países atrasados e políticos egoístas e irresponsáveis.

Quanto à Rússia, os métodos terroristas e sanguinários postos em prática pelos comunistas para implantar a sua ideologia naquela parte do mundo causaram tamanha repulsa ao afável e bonachão americano médio que êle ficou mais que nunca decidido a não se envolver com êsses bandidos que trovejavam máximas marxistas enquanto descarregavam metralhadoras Maxim nas costas dos atre­vidos que tinham ousado opor-se à marcha triunfante do Partido Comunista e estavam sendo exterminados agora com a mesma vio­lência eficaz com que um oficial da higiene pública extermina os micróbios da febre tifóide. . ;

Entrementes, estranhos rumores nos vinham do outro lado dos Alpes. Na Itália, que fizera terríveis sacrifícios na guerra e que em Versalhes não tinha ganho praticamente nada, verificara-se um grande surto de idéias comunistas. Como o parlamento italiano pare­cesse incapaz de controlar a situação, sucedeu o inevitável. Uma

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coisa que país nenhum pode suportar é a desordem crônica. Todo o comércio e toda a industria ficararr paralisados. A nação inteira converteu-se numa vasta sociedade de debates. Mas antes que a Itália soçobrasse nesse mar de oratória inútil surgiu um homem com um plano definido de reconstrução e restabelecimento da lei e da ordem.

A maioria dos italianos não depositava confiança nesse ex-agi­tador socialista que, até o irromper da Grande Guerra, passara boa parte dos seus dias numa cadeia ou noutra. Mas, como tinham de escolher entre uma existência ordeira sob a ditadura de Benito Mus- soiini e as condições caóticas provocadas pelos líderes da classe operá­ria, preferiram Mussolini como o menor dos dois males. E, quando a Itália se tornou um estado puramente fascista, ninguém se surpre­endeu muito com isso nem mostrou simis de grande indignação.

Quanto à grande maioria dos nossos concidadãos, pouco se lhes dava. Os turistas que voltavam de excursões pelo Mediterrâneo contavam que os mendigos haviam desaparecido por completo das ruas de Nápoles, que na Itália o viajante solitário corria muito menos perigo do que nas ruas de Chicago, que os trens observavam religiosa­mente os horários e os bancos já não furtavam dos clientes que se apresentavam com cartas de crédito. A América exprimiu a opinião de que um sujeito capaz de operar tão grande milagre devia ter os seus méritos e foi t ra ta r da sua vida, contemplando de tempos em tenipos, com admiração e respeito, os magníficos navios italianos que começaram a visitar os nossos portos e que, em matéria de serviço e conforto, eram infinitamente superiores aos nossos, com os seus camaroteiros ineptos e os seus marinhei-os arrogantes e mal-educados.

O fato de ser êsse govêrno fascista uma estrutura completa­mente reacionária é urr detalhe que parece te r escapado à nossa atenção. Alguns americanos aprovavam calorosamente o desejo mus- soliniano de fazer voltar as mulheres à posição que ocupavam, não havia muito ainda, nos países mediterrâneos — a posição de cria­doras de filhos, de donas de casa e obedientes servidoras de seus amos e senhores, mal disfarçados sob o título de maridos. O próprio Na- poleão (que desprezava as mulheres quase tanto quanto Mussolini) não podia ter sido mais eficiente no empenho de rebaixar as mulheres ao plano ignominioso que elas vieram a ocupar na Itália Fascista. Nem podia o usurpador francês levar-lhe a palma na maneira por

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que as universidades foram convertidas em simples escolas de pro­paganda das opiniões políticas predominantes.

Quanto à imprensa, deixou de ser o veículo da opinião pública para se tornar um mesquinho porta-voz do governo. No parlamento, nem é bom falar. É verdade que o Parlamento Italiano deixara, havia muito, de ter qualquer influência na vida nacional. Tinha-se convertido, como já referi, numa simples sociedade de debates em que políticos da espécie mais ordinária invectivavam uns aos outros sem dedicar (com poucas e honrosas exceções) um só pensamento ao país em conjunto, e restringindo cada um o seu inteièsse à aldeia ou povoação que S. Excia. representava. Mas também aí nos pareceu que não tínhamos nada que ver com o caso e os nossos homens dc negócios rejubilaram-se com a idéia de que, pelos menos num país do mundo, os trabalhadores tinham sido postos no seu lugar. De modo que ficamos de braços cruzados e o Duce recebeu o nosso cordial beneplácito, com a permissão de continuar como bem enten­desse, contanto que desse de quando em quando aos capitais ameri­canos um ensejo de participar nos rendosos contratos que até então costumavam ser privilégio dos nossos rivais britânicos.

Havia também a França. Pobre França! Os melhores de seus filhos jaziam mortos nos campos de batalha. Os manobristas parla­mentares que se haviam apoderado do governo eram uma das corjas mais desprezíveis que já foram distinguidas com o nome de “esta­distas”. Deixavam a França resvalar de crise em crise. Pilhavam c país, pilhavam-se uns aos outros, e acabaram por comprar o poder judiciário. M as os turistas americanos, que recebiam mancheias de francos em troca dos seus dólares, voltavam descrevendo cm cores fúlgidas a vida livre dêsse venturoso país de realistas, e a América não fazia caso.

Eu poderia passar por alto as demais nações européias. Os países escandinavos, a Suíça, a Holanda e a Finlândia constituíam outros tantos exemplos de como um país pode ser governado em proveito de todos os seus cidadãos quando a política se torna parte de uma ciência metódica do govêrno e a razão toma o lugar do sentimento e da tradição. M as os governantes dêsses países eram conhecidos como socialistas e tudo que cheirava a socialismo era altamente sus­peito aos olhos da maioria dos americanos. Louvávamos dos dentes para fora os progressos sociais e econômicos dessas comunidades

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socialistas, mas tínhamos o maior cuidado em não lhes seguir o exemplo nem deixar que o nosso entusiasmo fôsse além do Smõr- gasbord, a lauta mesa de frios com que os gentis suecos costumavam obsequiar as comissões parlamentares que iam ao país do sol da meia-noite averiguar como conseguiam aqueles escandinavos rea­lizar tantas coisas completamente inexequíveis para nós — e isso sem disparar um só tiro nem despertar, de maneira perceptível, o menor sentimento de animosidade.

Q uin to aos países balcânicos, esquecemo-nos déles muito opor­tunamente, exceto quando éramos honrados com a visita de um dos seus reais governantes — e nessas ocasiões costumávamos ser postos a par de grossos escândalos que bem nos poderiam ter convencido (mas não convenceram) de que todo ciinheiro invertido nesses países estava perdido no instante em que deixava as nossas plagas.

Restavam os nossos ex-inimigos, o totalmente derrotado povo da Alemanha. Fomos, para com eles. de urna clemencia surpreen­dente. Reconhecem-se vencidos? Pois bem, demos-lhes uma opor­tunidade de se porem outra vez em pé e desempenhar a sua parte no trabalho de reabilitação universal. Que os grandes financistas alemães nada tivessem aprendido ccm a sua recente experiencia nem se sentissem minimamente humilhados com a derrota, mas con­tinuassem tão rapaces como dantes, foram coisas a que fizemos vista grossa enquanto lhes confiávamos centenas de milhões de dólares ( a maior parte dêles em pura perda), que êsses homens reclama­vam como indispensáveis para que a Alemanha pudesse atingir Utn certo grau de prosperidade — pois só então estaria capacitada para começar a pagar uma parte das astronômicas reparações que os Velhos de Versalhes tinham empilhado sôbre as costas do povo alemão.

A maior psr te dos que lerem isto, sem se lembrarem dos excniciantes detalhes, não hão de ter esquecido que as tais repara­ções constituíam um .prato infalível que os jornais nos serviam co­tidianamente à mesa. Poucos dentre nós podiam fazer uma idéia, mesmo longínqua, das quantias fabulosas que estavam em jôgo, e ainda menor era o número dos que supunham que mais de uma milé­sima parte desses bilhões viesse um dia a dar entrada nos cofres fran­ceses e ingleses. Para nós, cá na América, tôdas essas negociações pareciam bastante ridículas e agradecíamos aos céus o ter-nos salvo de tomar parte nessa famosa Liga das Nações, menina dos olhos do

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nosso grande Presidente do tempo da guerra, e a nossa gratidão aumentava ainda mais ao vermos que toda aquela indecisão européia não conduzia a resultado de espécie alguma e só conseguia tornar o caos ainda mais caótico, se é que tal coisa é possível.

Veio então a época das grandes conferências. Cento e vinte anos atrás, Metternich mantivera a Europa no sta tu quo por meio das suas conferências sem fim. Os diplomatas, com o seu exemplo diante dos olhos, decidiram fazer o mesmo. Pensando bem, acho melhor não importunar o leitor com a lista pormenorizada dêsses encontros que, já para o fim, eram realizados quase todos os seis meses em que legiões de peritos discutiam “soluções” predestinadas ao fracasso antes mesmo de serem incorporadas a um “protocolo” for­mal e que não traziam proveito a ninguém, salvo aos hoteleiros da terra e às companhias ferroviárias.

Durante êsse período das grandes conferências os Estado9-Unidos eram informados do que sucedia na Europa por urna equipe de correspondentes jornalísticos jamais igualados na inteligência e na dedicação com que enfrentavam a difícil tarefa de apresentar acs nossos olhos um quadro tão compreensivo da situação que cada hemem ou mulher desta livre democracia ficasse capacitado para for­mular a sua opinião sobre as questões em debate. Por desgraça, todos êsses acontecimentos ocorriam numa ocasião em que estávamos todos, do lado de cá, tão ocupados em amontoar milhões de papel-moeda, que não nos sobrava tempo para mais nada, e muito menos para cuidar do nosso próprio futuro. Para o americano médio a Europa se achava quase tão longe quanto a lua. Tínhamos a impressão de que, fôsse qual fosse o resultado daquelas intermináveis disputas, nós, de nossa parte, não corríamos qualquer perigo. O oceano ainda •era largo de três mil milhas, apenas uma meia dúzia de subma­rinos alemães tinham podido aproximar-se das nossas costas durante a última guerra e um homem que conseguisse atravessar o Atlântico de avião era um portento a quem se apresentavam, de regresso, as chaves da cidade e que a multidão entusiástica aclamava de uma ponta à outra da Broadway.

No que toca à Ásia, era uma entidade ainda mais remota do que a Europa, e quando um escritor (que sabia o que estava di­zendo) publicou um livro profetizando um ataque do Japão aos Estados-Unidos em futuro não muito distante, foi jovialmente vaiado

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e tra tado com tanto desprezo quanto aquêle general que previu que dentro de uma dúzia de anos as nossas cidades teriam de tomar me­didas de proteção contra as incursões dos bombardeiros alemães.

Aqui e ali, algumas organizações de patriotas honestos, de am­bos os sexos, tentavam fazer compreender ao povo americano que êle passara a ser parte integrante do mundo, mas a influência dessa gente não foi muito longe. O cidadão médio contentava-se em confiar na largura do oceano e naquda bondosa Providência que

t

\

A Europa andava muito cheia de esquisitas botas militares, e isso nãoos agradava.

passava por amar e proteger as democracias, encarregando-se dí> fazer com que o Direito prevalecesse sempre contra a Fôrça. Por isso, quando o Japão de repente se pôs em pé de guerra, violou todos os tratados, atacou a China e ocupou a Manchúria, ninguém se preocupou seriamente com o caso. É verdade que o nosso De­partamento de Estado procurou convencer o Ministério das Relações Exteriores de Londres a adotar uma linha de ação conjunta e obrigar o Japão a cumprir os compromissos assumidos. Mas quando o»

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Conservadores, que então presidiam aos destinos do Império Bri­tánico e só temiam um inimigo (os perversos revolucionários do Kremlin) — quando os Conservadores recusaram redondamente to ­mar parte em tal medida, ninguém dêste lado do oceano levou o assunto muito a sério. Que os chineses c japoneses lá se arranjassem. Devíamos antes t ra ta r de fazer dinheiro vendendo aos engraçados nipônicos todo o ferro velho de que precisassem. £les acabariam por usá-lo contra os bolcheviques, o que reverteria cm nosso bene­fício. Assim, deixamos a Europa e a Ásia entregues à sua sorte e continuamos a acumular lucros até aquele dia nefasto em que nos entrou pelos olhos, repentinamente, o nosso enorme erro. Havíamo- nos deixado levar longe demais pelos nossos agradáveis devaneios e, como a Europa e a Ásia tinham desmoronado, nós também nos vimos à beira da ruína. Nesse dia informamos Hitler de que era chegada a hora de ten tar o seu golpe. Decorreram ainda vários anos antes de estalar a segunda conflagração mundial, mas, por não termos compreendido que éramos todos companheiros de viagem neste pequeno planeta e que a fortuna ou a desgraça de cada indi­víduo influíam nas dos outros, favorecemos os panos de Adolf Hitler, êsse estranho megalomaníaco inspirado por uma única am­bição — tornar os alemães senhores do mundo inteiro.

O leitor acha que estas páginas têm mais aparência de ensaio filosófico que de uma discussão séria de fatos históricos? Se assim é, lamento-o, mas numa emergência como a presente, cm que cada um de nós luta pela sua vida e pela sua liberdade, o filósofo está muito mais em condições de explicar a inevitável concatenação dos acontecimentos do que o historiador, pois êle os considera do ponto de vista da eternidade e êsse é o único ponto de vista capaz de nos dar o discernimento de que teremos mister para levar esta guerra a um têrmo vitorioso. E diga-se para a glória eterna dêsses filósofos,, muitos dêles disfarçados como simples jornalistas: êles fizeram o possível para abrir os olhos do nosso povo aos perigos que o aguardavam.

Os nossos diplomatas pareciam sofrer da mesma espécie de dal­tonismo que os seus colegas britânicos e os homens da alta finança em ambos os países, que diziam estar o mundo inteiro tingido de vermelho, não percebendo que havia tan to pardo e prêto quanto vermelho ou rosado — talvez mesmo mais.

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É verdade que a catástrofe económica no interior, onde a co­munidade inteira havia abandonado o velho e consagrado sistema de pagar à vista pelo método mais fácil, mas infinitamente mais perigoso, de viver a crédito — a miséria generalizada que privava milhões de nossos concidadãos das mais indispensáveis comodidades da existencia, condenando-os a viver como párias na selva indiana— isso também não permitia que dedicássemos toda a nossa a ten­ção à terrível tarefa de nos p repa ram os para a defesa de nossas costas contra o iminente assalto que a qualquer instante podia vir da banda dos nazistas cu dos japoneses, ou ainda de ambas ao mesmo tempo.

E foi êsse o comêço da tragédia e n que agora nos debatemos. T ão grandes eram as exigencias do momento que os Estados-Unidos ainda estavam demasiadamente ocupan os com os seus próprios as­suntos e não lhes sobrava tempo para ocuparem-se com os assuntos d-j um mundo a que êles preferiam não pertencer. Washington trans- íermara-se numa colmeia de atividades sociais e econômicas. Não se podia permitir que centenas de milhares de pessoas continuassem dormindo em desvãos de escadas e em bancos de praça. Urgia fazer alguma coisa em prol de milhões de jovens que, no mais rigoroso sentido do termo, haviam sido lançados às costas da comunidade. E o país inteiro, conquanto educado nas máximas estritas do “esforço individual'’, começou a suspeitar que havia passado o tempo em que se podia continuar tranqüilamente a cuidar dos seus negócios particulares, deixando os que tombavam à beira da estrada (não por cu 'pa sua), ou que estivessem velhos demais para trabalhar, à mercê dos asilos de indigência ou de uma proverbial caridade. Em resultado disso, surgiram diversas instituições federais que nunca tinham sido toleradas até então (consideradas que eram como diame­tralmente opostas ao espírito americano), mas que melhoraram con­sideravelmente a sorte do cidadão médio libertando-o do mais ter­rível dos seus pesadelos — o to rturan te receio do futuro.

Tudo isso, está claro, não se rea izou sem forte oposição da­quelas classes da sociedade que até então haviam auferido abun­dantes proveitos da velha ordem de coisas — “cada um por si e Deus por todos” — e que começaram a temer o colapso e a queda imediata da República. Mas, como os anos fôssem passando e nada de sério acontecia — como a maioria do povo continuasse a viver

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mais ou menos como sempre vivera, isto é, comendo três vêzes por <tiia, usando sapatos e colarinhos e indo ao cinema nos seus pequenos automóveis — essas modificações não provocaram a revolução ansio­samente prevista por muitos inimigos do “New Deal” e incorpora- xam-se tão bem à contextura das nossas leis que nunca mais poderão ser abolidas. E teríamos continuado tranqüilamente na pacífica senda do progresso se não fossem os eternos rumores que nos vinham do outro lado do oceano, sinal de que as nuvens de trovoada se estavam amontoando e a qualquer momento poderia desencadear-se a tempestade.

Mais uma vez, porém, não prestamos ao caso a atenção devida. Êsses acontecimentos pareciam muito distantes e todas as infelizes recordações da última guerra começaram de novo a povoar-nos os pensamentos. E todos os elementos raciais que, por um motivo ou outro, ainda não estavam bem amalgamados nem tinham alquirido um modo de sentir genuinamente americano procuraram aproveitar esse deplorável ensejo para pescar em águas turvas e ajustar velhas diferenças, sem levar muito em conta (receio eu) o bem-estar do país em conjunto. Resultou daí o sermos vítimas da mais perigosa fraqueza inerente à forma democrática de governo, perdendo mais •uma vez um tempo precioso ( justamente quando cada hora podia dignificar a vida ou a morte para milhares de moços americanos) tm debates, discussões, achincaihamentos, desaforos e, em nome da "liberdade de palavra” , permitindo que grande número de nossos cidadãos, que não se distinguiam pelo talento de pensarem com iógica, de maneira construtiva ou mesmo patriótica, impedissem os preparativos indispensáveis para que o nosso país pudesse enfrentar a catástrofe.

Isso, até aquela fatídica manhã de domingo em que as traiçoeiras » ombas japonêsas fizeram ir pelos ares todas as esperanças de paz que ainda restavam e nos obrigaram a dar-nos conta de que, bom ou mau grado nosso, os Estados-Unidos faziam parte integrante do resto do mundo.

E êsse, me parece, é o fato mais importante da história do riosso país nos últimos vinte anos. Estávamos lutando contra o inevitável. Tínhamos vivido em maré de rosas durante o primeiro scculo e meio de nossa existência nacional; herdáramos as riquezas de ium continente virgem e estávamos protegidos contra os ataques do

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exterior por dois vastos oceanos. Chegamos, assim a aceitar essa situação privilegiada como direito nosso, como algo que nos fôra adjudicado pela própria Providência, e esquecemos a maior de tôdas as lições da história — que a liberdade de pensamento e de ação não é fruto de uma oratória magniloqüente nem de auto-ilusões, mas só pode ser conquistada por quem está disposto a lutar por eta, trabalhar por ela, viver para ela e, se necessário, morrer por ela; e, finalmente, que essa liberdade só pode ser conservada por quem é capaz de zelar por ela ciosamente, com infatigável vigilância, como o maior dos bens a que um ser humano civilizado pode aspirar durante a sua breve residência neste pequenino planêta que é a nossa morada.

Eis aí a lição que os Estados-Unidos estão aprendendo en­quanto este livro é composto. Cometemos muitos erros graves no de­curso dos últimos vinte anos e teremos de pagá-los tão caro quanto qualquer pessoa que cometa um êrro de julgamento. Mas, agora que nos demos conta da situação em que nos encontramos, decidimos enfrentá-la metodicamente e, como somos um povo que gosta de levar as suas tarefas a têrmo, quando se convence de que elas valem a pena, não pode haver dúvida quanto ao resultado do conflito. Não é possível viver-se num mundo em cue uma das partes é habitada por gente de boa vontade, com pelo menos uma aparência de res­peito aos ensinamentos do grande profeta nazareno, e o resto é po­voado por selvagens que superaram a lei das selvas decretando que nem mesmo as criancinhas de colo sejam poupadas ao assassínio e à execução cm massa.

Mas a nossa grande oportunidade virá no dia em que houver terminado esta guerra e o horrível flagelo do nazismo estiver aniqui­lado, assim como aniquilamos a cólera, a varíola e outras epidemias hediondas. Porque será então a América que terá de apontar ao resto do mundo o caminho de uma forma de civilização nova e mais feliz, em que todos nós (cada um na medida de suas capa­cidades) cooperaremos verdadeiramer te com os melhores dentre os nossos concidadãos para o bem de uma nação que é o nosso mais nobre legado e motivo do nosso ma:or orgulho, a livre e indepen­dente República dos Estados-Unidos da América.

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A grande dificuldade do historiador está em que, se disser a verdade, provocará o descontentamento dos homens; mas se escrever falsidades, será desagradável a Deus, que distingue, nos seus julga­mentos, a Yerdade da Adulação.

O Venerável Be de

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Éste livro foi composto e impresso nas oficinas grcficcs da Livraria do Globo S. A. em Porto Alegre Filiais: Santa M aria, Pelotas e Rio Grande

EDIÇAO 694 — P ar» pedidos telegrá icos dêste livro, basta indicar o número 694, antepondo a êsse núme o a quantidade desejada. Por exemplo, para pedir 5 exemplares, baeta telegrafar assim : Dicionário — Pôrto Alegre — 5694.

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fundamental da pintura, da arqui­

tetura, da música, da escultura e

das chamadas artes menores, via­

jamos do antigo Egito e da histó­

rica Pérsia à Atenas de Péricles,

da grandeza de Roma à Holanda

de R em brandt à Viena de Beetho-

ven e aos tempos modernos. As

torres cobertas de nuvens, os pa­

lácios magníficos, os templos sole­

nes, o próprio globo terrestre, tudo

isso entrevemos. Testemunhamos

os mais nobres sonhos e criações

da humanidade. Miguel Ângelo,

Johan Strauss, Sebastian Bach, Ri-

chard Wagner e dezenas de outros

soberanos das artes iluminam a

nossa peregrinação com o poder e

a glória de seu g ê n io . . . Nesta ca­

valgada das artes caminhamos lado

a lado com os trovadores, com os

menestréis da Idade Média e com

os guerreiros, com os mestres cons­

trutores e com os humildes artí­

fices.

Publicação da

E D I T Ô R A G L O B O

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