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Ano 4 • n. 2 • jul./dez. 2004 - 193 ÁGORA FILOSÓFICA As três formas de amizade na ética de Aristóteles Nadir Antonio Pichler 1 Resumo: o artigo investiga sucintamente, no contexto da filosofia prática aristotélica ou do agir moral, restrito ao tratado da Ética a Nicômacos, a virtude da amizade, subdividido em três formas. Além do conceito, abordaremos a amizade na utilidade, comum na maioria dos homens, voltada para os interesse pessoais; a do prazer, centrada na reciprocidade acidental, inclusive temporária. Estas duas formas são consideradas, devido a sua finalidade, de efêmeras. E, posteriormente, a amizade perfeita, a verdadeira, porque pressupõe uma reciprocidade substancial, um compromisso ético, com fim em si mesmo, em busca do bem, gerador de felicidade. Por último, algumas particularidades referentes à philia. Palavras-chave: amizade, utilidade, prazer, bem e felicidade. Abstract: this paper makes a succinct investigation, in the context of Aristotelian practical philosophy or of moral acting and restricted to the treatise of the Ética a Nicômacos, (Nicomachean Ethics) of the virtue of friendship, sub-divided into three forms. Besides the concept, we shall approach friendship in the utility, common in most men, aimed at personal interests; that of pleasure, centered on accidental reciprocity, including temporarily. These two forms are considered as ephemeral, due to their finality. And, afterwards, perfect friendship, the true one, because it pre-supposes a substantial reciprocity, an ethical compromise, as an end in itself, seeking the good, the generator of happiness. Last of all, some particularities with reference to philia. Key-words: friendship, utility, pleasure, good and happiness. Introdução D uas são as razões apresentadas por Aristóteles para justificar a abordagem da amizade: ela é uma virtude e extremamente necessária à vida. Para viver bem, segundo Aristóteles, é essen- cial agir moralmente, isto é, procurar alcançar um equilíbrio nas ações humanas, acompanhado de alguns bens materiais e amigos idôneos, pois, ninguém é feliz sozinho.

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O conceito de amizade em Aristóteles

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Ano 4 • n. 2 • jul./dez. 2004 - 193

ÁGORA FILOSÓFICA

As três formas de amizadena ética de Aristóteles

Nadir Antonio Pichler1

Resumo: o artigo investiga sucintamente, no contexto da filosofia prática aristotélica ou do agir moral, restrito ao tratado da Ética a Nicômacos, a virtude da amizade, subdividido em três formas. Além do conceito, abordaremos a amizade na utilidade, comum na maioria dos homens, voltada para os interesse pessoais; a do prazer, centrada na reciprocidade acidental, inclusive temporária. Estas duas formas são consideradas, devido a sua finalidade, de efêmeras. E, posteriormente, a amizade perfeita, a verdadeira, porque pressupõe uma reciprocidade substancial, um compromisso ético, com fim em si mesmo, em busca do bem, gerador de felicidade. Por último, algumas particularidades referentes à philia. Palavras-chave: amizade, utilidade, prazer, bem e felicidade.

Abstract: this paper makes a succinct investigation, in the context of Aristotelian practical philosophy or of moral acting and restricted to the treatise of the Ética a Nicômacos, (Nicomachean Ethics) of the virtue of friendship, sub-divided into three forms. Besides the concept, we shall approach friendship in the utility, common in most men, aimed at personal interests; that of pleasure, centered on accidental reciprocity, including temporarily. These two forms are considered as ephemeral, due to their finality. And, afterwards, perfect friendship, the true one, because it pre-supposes a substantial reciprocity, an ethical compromise, as an end in itself, seeking the good, the generator of happiness. Last of all, some particularities with reference to philia. Key-words: friendship, utility, pleasure, good and happiness.

Introdução

Duas são as razões apresentadas por Aristóteles para justificar a abordagem da amizade: ela é uma virtude e extremamente

necessária à vida. Para viver bem, segundo Aristóteles, é essen-cial agir moralmente, isto é, procurar alcançar um equilíbrio nas ações humanas, acompanhado de alguns bens materiais e amigos idôneos, pois, ninguém é feliz sozinho.

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A amizade verdadeira só é possível entre amigos que privilegiam a reciprocidade e a lealdade, enfim, entre os amigos bons, em que a convivência tem fim em si mesma (fazer o bem) e não como meio para alcançar riquezas e honras.

Eis algumas razões para refletirmos sobre a virtude da amizade, na concepção de Aristóteles, principalmente, nos dias atuais, tão carentes de valores morais afetivos, caracterizados pela fragmentação da subjetividade, a desagregação familiar e o processo de desinteresse social e político. É cada vez mais acen-tuada a emergência do direito do indivíduo a subjetividade, quer dizer, o “mínimo” de compromisso afetivo, moral e político e o máximo de consumo e ativismo, proporcionando uma crise de sentido à vida. A preocupação de estabelecer parâmetros de con-duta moral e social aos indivíduos e aos cidadãos, por meio da philia, parece continuar pertinente atualmente. Aristóteles nos dá alguns horizontes de reflexão e compreensão.

O artigo investiga sucintamente, no contexto do pensa-mento aristotélico, a virtude da amizade, as três espécies de ami-zade, ou seja, a amizade na utilidade, a amizade no prazer e a amizade perfeita, e algumas particularidades referentes a philia.

1 A amizade no contexto da divisão das ciências aristotélicas

O tema da amizade abordado por Aristóteles insere-se na área do conhecimento das ciências práticas, constituídas pela Éti-ca e pela Política. O fim dessas ciências é buscar o saber em fun-ção de uma conduta moral apropriada para o indivíduo, enquanto sujeito moral e membro da comunidade política, da pólis grega. O objeto de investigação da “filosofia das coisas humanas”2, são os “fatos da vida”, ou seja, o ethos local, o costume, o comportamen-to moral historicamente dado pela tradição helênica. Essa condu-ta ética atualiza-se no homem agindo de acordo com as virtudes (arete), e, de modo equilibrado via mediania (mesotes), em busca do bem supremo (a eudaimonia), conforme a finalidade (telos) da natureza humana, sempre orientada pela sabedoria prática (phro-nesis). As ciências práticas analisam a realidade contingente, mu-

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tável, do devir moral e são hierarquicamente inferiores às ciências teoréticas3. A Ética e a Política visam à preparação do indivíduo para o agir moral em busca da perfeição, baseado na prática das virtudes (temperança, coragem, liberalidade, justiça, prudência) e na vida boa na pólis, como partícipe das decisões políticas da cidade.

2 Conceito de amizade

Aristóteles dedica os Livros VIII e IX da Ética a Nicô-macos à amizade4. Segundo Giovanni Reale, três seriam as razões. Primeiramente, a philia é estruturalmente intrínseca à virtude e à felicidade, portanto um dos problemas centrais da Ética. Em se-gundo lugar, Sócrates e Platão já haviam analisado filosoficamen-te tal tema5. E terceiro, a sociedade grega dava à amizade uma im-portância mais significativa, diferente das sociedades modernas6.

José Arthur Gianotti destaca os aspectos da benevolên-cia, da reciprocidade e do bem querer, plenamente sublinhados por Aristóteles na Ética a Nicômacos7. A benevolência quer o bem para o outro, somente o bem. Seguindo essa característica vem a reciprocidade, o desejo de ser bem correspondido nas re-lações afetivas. Escreve Aristóteles: “Para que as pessoas sejam amigas, deve-se constatar que elas têm boa vontade recíproca e se desejam bem reciprocamente”8.

Finalmente, o bem querer, a busca do bem em si mesmo, não como meio, mas como fim. O que fundamenta a amizade é o bem querer: “E, quando duas pessoas se amam, elas desejam bem uma à outra referindo-se a qualidade [amor mútuo] que funda-menta a sua amizade”9.

Parece que, nessa frase, Aristóteles procura definir a amizade10.

Aristóteles, ao analisar a natureza da amizade, enuncia que ela é uma excelência moral ou virtude, tornando-se uma ati-vidade filosófica e extremamente necessária à vida. Assim:

A philia tem o caráter de um hábito; ela é a expres-são de uma determinada atitude moral e intelectual

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que visa ao amor recíproco entre amigos, baseado numa decisão livre da vontade, em que cada um de-seja o bem para o outro11.

Ninguém gostaria de passar a vida sem amigos, mesmo possuindo todos os bens12. A amizade também ajuda os jovens a encontrarem mais sentido à existência e a se afastarem dos vícios. E, aos mais velhos, ajuda-os a ocuparem melhor o seu tempo. Ela também parece manter unidos os Estados.

Em seguida, o estagirita conclui dizendo que a amizade é mais que necessária, é nobilitante. E uma das coisas mais nobres é ter amigos, sendo que a amizade e a bondade se encontram nos mesmos homens13. Assim, para a amizade ser verdadeira, requer-se desejo e intimidade, mas sempre orientada pela razão, que for-nece aos desejos o equilíbrio necessário.

3 As três espécies de amizade

E, ao tecer considerações acerca do caráter e dos sen-timentos dos homens, Aristóteles investiga três questões: Se a amizade pode manifestar-se entre quaisquer pessoas? Se pessoas más podem ser amigas? E se há somente uma espécie de amizade ou mais de uma?14

É em função do bem querer que se distinguem três es-pécies de amizade. Três também são os valores que se buscam, ou seja, as coisas que os homens amam e pelas quais desenvol-vem as formas de amizade: pelo útil, pelo prazer e pelo bem15. Sir David Ross, filósofo escocês, justifica as espécies de amizade de Aristóteles como ilustração da natureza essencialmente social do homem e classifica-as em três planos: no plano inferior, os homens possuem necessidade de amizades úteis, porque não são auto-suficientes. No plano intermediário, estabelecem-se amiza-des por prazer, visando a atualizar o prazer natural decorrente do convívio com os amigos. E no plano mais elevado, constituem-se “amizades por bondade”, onde há uma reciprocidade na partilha do verdadeiro significado de viver o melhor da vida – amizade enquanto fim. Assim, deseja-se o bem ao amigo por amor ao ami-

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go16. Nesse sentido, três são os valores17 que se buscam, ou seja, as coisas que o homem ama e pelas quais desenvolve as espécies de amizade. Escreve Aristóteles:

Há, portanto, três espécies de amizade, em núme-ro igual às qualidades que merecem ser amadas [...], e quando duas pessoas se amam elas desejam bem uma à outra referindo-se à qualidade que fun-damenta a sua amizade [...]. Logo, as pessoas que amam as outras por interesse amam por causa do que é bom para si mesmas, e aquelas que amam por causa do prazer amam por causa do que lhes é agra-dável, e não porque a outra pessoa é a que amam, mas porque ela é útil ou agradável. Sendo assim, as amizades desse tipo são apenas acidentais, pois não é por ser quem ela é que a pessoa é amada, mas por proporcionar à outra algum proveito ou prazer. Tais amizades se desfazem facilmente se as pessoas não permanecem como eram inicialmente, pois se uma delas já não é agradável ou útil a outra cessa de amá-la [...]. Portanto, desaparecendo o motivo da amizade esta se desfaz, uma vez que ela existe somente como meio para chegar a um fim18.

Analisaremos, de modo geral, cada uma destas espécies de amizade e, posteriormente, algumas de suas particularidades.

3.1 A amizade baseada na utilidade

Os homens que buscam a amizade em função da utilida-de, visam reciprocamente algum bem imediato, como riquezas ou honras. Estruturam-se amizades não em vista do fim em si mes-mo, mas como meio de adquirir vantagens. Por isso, a maioria dos homens, devido à ambição, prefere ser amada a amar, ser adulada a adular. Quem gosta de honrarias, prefere ser distinguido por cidadãos detentores de poder, para, futuramente, receber favores pessoais19. Essa amizade é acidental e se desfaz facilmente, pois está estruturada em motivações extrínsecas, sem consistência de

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bondade, pois os que são amigos por causa da utilidade separam-se quando cessa a vantagem, porque não amam um ao outro, mas apenas o que é vantajoso.

A amizade baseada na utilidade é própria de homens com espírito mercantil, que mantêm relações de trocas de produtos e subsiste enquanto há vantagem. E essa espécie de amizade, com vistas à utilidade, desenvolve-se mais facilmente entre o pobre e o rico, entre o iletrado e o culto, porque um almeja encontrar no outro o que lhe falta20, sendo as amizades dessa classe repletas de queixas e censuras, onde os amigos não lhe dão tudo o que “ne-cessitam e merecem”.

3.2 A amizade centrada no prazer

A amizade baseada no prazer é semelhante à útil. Bus-ca-se o prazer recíproco no convívio entre amigos. A amizade é estável enquanto persistir esse elo prazeroso. Ama-se em função do aprazível. Aristóteles elucida aqui, por exemplo, o prazer en-tre o amante e a pessoa amada e nos jovens que vivem buscando emoções e perseguem acima de tudo o agradável. Mas os praze-res dos jovens mudam conforme a idade. Por isso eles se tornam amigos e deixam de ser amigos tão rapidamente. A amizade muda conforme o objeto que lhes é agradável21.

Essas duas formas de amizade são, portanto, acidentais. A verdadeira e autêntica amizade é entre os homens bons e virtu-osos. Por si mesmos, só os homens bons podem ser amigos. En-quanto a amizade efetuada na utilidade e no prazer, até os maus podem ser amigos uns dos outros, ou até mesmo os bons podem ser amigos dos maus, desde que a amizade traga vantagem22.

3.3 A amizade ideal e perfeita

A amizade baseada na bondade e na virtude é considera-da por Aristóteles como completa e perfeita, pois visa somente ao bem para o amigo e possui uma estrutura de durabilidade. O fim proposto é o bem em si mesmo. Eis as palavras do estagirita:

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A amizade perfeita é a existente entre as pessoas boas e semelhantes em termos de excelência moral; neste caso, cada uma das pessoas quer bem à outra de maneira idêntica, porque a outra pessoa é boa, e elas são boas em si mesmas. Então as pessoas que querem bem aos seus amigos por causa deles são amigas no sentido mais amplo, pois querem bem por causa da própria natureza dos amigos, e não por acidente; logo, sua amizade durará enquanto estas pessoas forem boas, e ser bom é uma coisa dura-doura23.

Nessa forma de amizade, os que amam um amigo, amam o que é bom para eles mesmos. O homem bom torna-se um bem para o amigo24. Assim, essa boa vontade se aperfeiçoa e atua no outro como bondade moral. Essa bondade é princípio e fonte de amizade. Ama-se o outro amigo por aquilo que ele é. É a verda-deira forma de amizade porque o fim é em si mesmo, centrado no valor do homem e não como meio para obter vantagens (riquezas e honras). Por isso se diz que o amigo é um outro eu. Ele é pos-sibilidade de autoconhecimento25. Conhecemo-nos olhando para o outro. Devido a nossa finitude existencial, procuramos atingir a perfeição moral no espelhamento do outro26. Isso não isenta o homem de sua responsabilidade moral e social. Querer bem ao amigo é agir em consonância com o princípio da benevolência. E, para atingir esse grau de certa forma padrão de amizade requer-se tempo e familiaridade. Aristóteles realça que a amizade entre os bons não é muito freqüente, porque os homens que a praticam são raros27.

As espécies de amizade centradas no útil e no prazer também são boas. Os homens que querem o bem aos amigos por causa deles e não por interesses ou vantagens são amigos no sen-tido mais amplo, pois querem o bem por natureza e não por aci-dente.

Parece que Aristóteles sublinha que o amar é a virtude essencial na convivência entre amigos. Ela passa a ser uma dispo-sição de caráter, um habitus, algo adquirido pela prática de amar,

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igualmente na justa medida, que é característica da virtude ou excelência moral. Diz exatamente Aristóteles:

Já que a amizade depende mais de amar do que ser amado, e são as pessoas que amam seus amigos que são louvados, amar parece ser uma característica da excelência moral dos amigos, de tal forma que somente as pessoas em que tal característica está presente na mediania certa são amigos constantes, e somente sua amizade é duradoura28.

Portanto os amigos são realmente um grande bem. Pas-sar os dias junto com eles é algo muito prazeroso29. Por outro lado, passar os dias junto com pessoas não agradáveis é doloroso, e parece ser contra a natureza humana. Também é característico dos homens bons não fazer mal a eles mesmos nem permitir que seus amigos o façam30. O verdadeiro amigo, se for necessário, dá a vida pelo amigo e pela pátria. Devido a sua bondade, renuncia riquezas, honras e competições, preferindo um breve período de intenso prazer, a um contentamento aparente, tornando-se nobre e justo31. Assim, os amigos compartilham sua amizade, reunindo-se para beber juntos, jogar dados, praticar atletismo, caçar, e até mesmo para estudar filosofia32.

Em suma, Aristóteles considera a amizade necessária à felicidade. Ela entra no catálogo dos bens superiores. De certo modo, a felicidade verdadeira depende da amizade. Ao mesmo tempo, a natureza do homem é ser social, tendo necessidade dos outros para compartilhar seus bens espirituais, ou seja, ser virtu-oso e feliz. Por isso o homem feliz tem necessidade de amigos. Ninguém é bom somente para si mesmo. Precisamos dos amigos tanto nos momentos de prosperidade como nos de dificuldades. Isolados não somos sujeitos éticos. Precisa Aristóteles:

Outra questão muito debatida é saber se uma pessoa feliz necessita ou não de amigos. Diz-se que as pes-soas sumamente felizes e auto-suficientes não ne-cessitam de amigos, pois elas já têm as coisas boas e, portanto, sendo auto-suficientes, não necessitam

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de qualquer outra coisa, ao passo que a função de um amigo, que é um outro “eu”, é proporcionar as coisas que a própria pessoa não pode obter [...]. É sem dúvida estranho, também, fazer do homem su-mamente feliz um solitário, pois ninguém desejaria todo o mundo com a condição de estar só, já que o homem é um animal social e um animal para o qual a convivência é natural. Logo, mesmo o ho-mem feliz tem de conviver, pois ele deve ter tudo o que é naturalmente bom. É obviamente melhor passar os dias com os amigos e boas pessoas do que com estranhos e companheiros casuais. Conse-qüentemente, o homem feliz necessita de amigos33.

A amizade é um comportamento dirigido para o outro. É um momento essencial da vida feliz e implica reconhecimento, bondade e reciprocidade. Assim, atinge-se a expansão social do eu. Ela é um valor ou um telos que nos conduz à eudaimonia, à felicidade como experiência e vivência da plenitude humana, me-diada com amigos bons e vida contemplativa34.

E, quando a philia atinge sua plenitude na convivência entre amigos bons, pois os amigos são considerados o maior dos bens exteriores, a virtude da justiça não se faz necessária enquan-to critério regulador de relações pessoais e coletivas. Por outro lado, para ser justo é necessária a virtude da amizade. Assim se expressa Aristóteles: “Quando as pessoas são amigas não têm ne-cessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas ne-cessitam da amizade; considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma disposição amistosa”35.

4 Algumas particularidades sobre a amizade

Passaremos agora a investigar algumas particularidades da amizade ainda.

Sobre a quantidade de amigos, Aristóteles inicia sua aná-lise partindo de um pressuposto da tradição abordado por Hesío-do, expresso na seguinte frase: “Não ser homem de muitos convi-

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dados, nem homem de nenhum”36. Para solucionar esse problema, Aristóteles recorre ao meio-termo (mesotes), marca registrada no sistema aristotélico e, principalmente, ao estudo do dever ser éti-co, onde propõe nem excesso nem falta, solução característica da marca helênica no estagirita. Assim, dentre a espécie de amigos bons e virtuosos, somente alguns são necessários e possíveis de-vido a nossa condição humana de convívio. Na convivência na pólis, com os concidadãos, é possível ser amigo de muitos, pois essa amizade é de cunho mais social e direcionado para discussão e deliberação de questões políticas. O excesso de amigos torna nossa existência inviável e é um obstáculo à vida nobre37. Ao mes-mo tempo, os homens que têm muitos amigos, passam a não ser amigos de ninguém. Escreve Aristóteles:

Mas é óbvio que uma pessoa não pode conviver com muitas outras nem dividir-se entre elas [...]. Presu-me-se, então, que é bom não procurar ter tantos ami-gos quantos pudermos, mas tantos quantos bastarem para efeito de convivência, pois parece realmente impossível ser um grande amigo de muitas pesso-as [...]; logo, também uma grande amizade somente pode ser sentida em relação a poucas pessoas38.

Outro aspecto da amizade destacada por Aristóteles é se convém ou não romper a amizade com os amigos. As amizades baseadas na utilidade e no prazer são facilmente rompidas quan-do cessam os atributos de utilidade ou de aprazibilidade, con-forme já enunciamos anteriormente. Deve-se romper a amizade entre os bons, quando eventualmente um amigo se torna mau, pois a amizade verdadeira só ocorre entre os bons. Mas, se as atitudes morais de nossos amigos forem passíveis de mudanças, devemos procurar ajudá-los, no que se refere tanto ao caráter quanto aos bens materiais. Mas, se, no decorrer do tempo, per-cebe-se que o amigo não mudou de procedimento moral, é lícito abandoná-lo39.

Quanto à amizade entre pais e filhos, deve-se valorizar os pais de modo semelhante à honra estendida aos deuses. Os

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pais amam os filhos como partes de si mesmos. Os filhos são uma espécie de outros “eus”40.

Às pessoas mais velhas deve-se prestar igualmente as honras apropriadas às suas idades, como, por exemplo, levantar-se para recebê-las e procurar lugares para elas se sentarem.

Considerações finais

Enfim, para concluir, pode-se dizer que o homem feliz é o homem satisfeito consigo mesmo, que se ama e ama seus ami-gos de forma generosa e desinteressada. A amizade é uma forma de coroamento da vida virtuosa e a maior fonte de felicidade para o homem. A amizade é o desabrochar em plenitude da natureza humana em suas dimensões individual e social41.

E a plenitude da natureza humana se realiza na vida ati-va, na ação, praticando as virtudes da justiça, da temperança, da coragem, da prudência. A prudência é a capacidade de escolher bem entre dois extremos, nem falta nem excesso, mas uma justa medida de equilíbrio, procurando ser bom, praticando atos justos não por coação, mas por uma disposição interior de querer fazer o bem na convivência com amigos bons, sentindo uma satisfação profunda de bem estar, idêntica à vida contemplativa, a vida de-dicada do filósofo em busca da sabedoria suprema, o saber total, atingido pela prática das virtudes morais e virtudes intelectuais, alcançando a felicidade completa. Portanto, na convivência com os amigos, sente-se essa satisfação total, a realização humana na sua plenitude de ser, realizando a finalidade (telos) da existência humana que é ser feliz. Assim, “a amizade é uma parte estrutu-rante da felicidade, entendida como vida boa e boa conduta”42. Nos dias atuais, estamos tão carentes de amigos bons e virtuo-sos.

A amizade é importante porque (re) estabelece as rela-ções de generosidade e confiança, proporcionando sentido à exis-tência. Diante do ativismo da vida moderna, quase não se tem tempo e até nem mesmo desejo de tê-lo, e são raras as pessoas que se dedicam à vida intelectual, a um estudo profundo em busca

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dos conhecimentos últimos do ser, do agir e do fazer, fontes de felicidade, segundo Aristóteles.

Notas

1 Mestre em Filosofia e professor da Universidade de Passo Fundo - RS2 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Traduzido por Mário da Gama Kury.

3 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, X, 9, 1181 b 16, p. 210.. Nas próximas citações, estaremos nos referindo a esta tradução e só utilizaremos a sigla EN.

3 Formadas pela Metafísica, Física e Matemática. Estas têm como objeto de estudo os primeiros princípios e as causas últimas do ser, isto é, a realidade universal. O fim dessas ciências é a busca do saber em função de si mes-mo, em função do ser. Busca-se o saber pelo saber. O terceiro grupo, na distinção do conhecimento de Aristóteles, são as ciências poiéticas ou pro-dutivas, formadas pela Poética e pela Retórica. O fim destas é o saber em função do fazer, ou seja, produzir objetos, instrumentos, como um discurso numa assembléia ou uma representação teatral, com regras e conhecimen-tos técnicos.

4 O Livro VII, da Ética a Eudemo e alguns textos da Magna Moralia, tam-bém tratam especificamente da amizade. Essas três obras constituem, o que pode ser considerado, o Tratado Ético de Aristóteles.

5 Uma análise da philia em Platão, caracterizando-a como uma reflexão que perpassa todo sistema platônico à procura da verdade, encontra-se em Or-tega, Francisco, Genealogias da amizade. São Paulo: Iluminuras LTDA, 2002, p. 25-36.

6 REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Traduzido por Henrique Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1994, v. II, p. 422. – (Série História da Filosofia).

7 GIANOTTI, José Arthur. O amigo e o benfeitor: reflexões sobre a filia do ponto de vista de Aristóteles. Analytica, Rio de Janeiro, n. 03, 1996, p. 168.

8 EN, VIII, 2, 1156 a 4-5, p. 155.9 EN, VIII, 3, 1156 a 11-13, p. 155.10 Cícero, ao definir a amizade, assim se expressa: “A amizade é uma suma

harmonia nas coisas divinas e humanas, com benevolência e amor. Dons tão grandes, que não sei se os Deuses concederam [exceto a sabedoria] ou-tro maior aos mortais” (CÍCERO. Diálogo sobre a amizade. Trad. de José Perez. São Paulo: Cultura Moderna, [s.d.], p. 37).

11 ORTEGA, 2002, p. 37.12 EN, VIII, 1, 1155 a 3-6; 12-13; 24-26, p. 153.13 EN, VIII, 1, 1155 a 33-36, p. 154.14 EN, VIII, 1, 1155 b 8-13, p. 154. Segundo Ortega, Platão desenvolve a

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philia na perspectiva ontológica, almejando o ideal de “amizade perfeita” (proton philon), realizável no Mundo das Idéias transcendentes; enquanto Aristóteles, preserva o núcleo platônico de amizade, identificando-a com o bem, dando um caráter imanente (teleia philia), de cunho fenomenológico, focalizando a amizade na vontade recíproca entre amigos. Assim, “Aris-tóteles transformaria a noção platônica de uma idéia transcendental para um tipo sociológico, o qual, embora difícil de atingir, constitui o critério que guia a análise e avaliação de todas as formas de philia. A amizade é explicável sem referência a um bem transcendental a nossa experiência empírica, considerando a sociabilidade humana como um fato original. O estagirita focalizará a sua abordagem na própria personalidade do amigo e não na essência eterna da philia, como fizera o mestre” (2002, p. 39).

15 ORTEGA, 2002, p. 39-40 e MORAES NETO, Joaquim José de. A amiza-de em Aristóteles. Londrina: Ed. UEL, 1999. p. 27-34.

16 ROSS, Sir David. Aristóteles. Trad. de Luís F. Bragança S.S. Teixeira. Lisboa: Dom Quixote, 1987. p. 235.

17 REALE, 1994, p. 442 e RODHEN, Luiz. Amizade, entre filosofia e educa-ção. In: PIOVESAN, Américo (org.). Filosofia e ensino em debate. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. p. 117-118. – (Coleção filosofia e ensino, 2).

18 EN, VIII, 3, 1156 a 8-28, p. 155. Grifo do autor. 19 EN, VIII, 8 1159 a 18-28, p. 162.20 EN, VIII, 8, 1159 b 11-15, p. 163.21 EN, VIII, 3, 1156 a 39-48, p. 156.22 EN, VIII, 4, 1157 a 8-13, p. 157. “Logo, a atividade das pessoas más é má

[por causa de sua instabilidade elas se unem em atividades más, e além dis-to passam a ser más por tornarem semelhantes umas às outras], enquanto a atividade das pessoas boas é boa, sendo incrementada por seu companhei-rismo” (EN, IX, 12, 1172 a 6-9, p. 190). “Sem a maturidade da razão, não há pois amizade durável. A diversidade de gostos, desune as amizades: e se os bons não podem amar os maus, nem os maus amar os bons, é uni-camente a dessemelhança dos seus costumes e gostos que o determina” (CÍCERO, Diálogo sobre a amizade., p. 113).

23 EN, VIII, 3, 1156 a 48-50 e b 1-5, p. 156.24 “Parece-me que a verdadeira amizade é mais rica e mais generosa: não cal-

cula com exatidão com medo de oferecer mais do que recebeu. Não se deve temer na amizade que se vá dar demais ou que se vá perder alguma coisa” (CÍCERO, Diálogo sobre a amizade, p. 90). E o fundamento da amizade se expressa na confiança. Sem ela, nada é estável (Ibid, p. 101 e RODHEN, 2002, p. 119).

25 “Porque o verdadeiro amigo vê o outro como uma imagem de si mesmo” (CÍCERO, Diálogo sobre a amizade, p. 41) e ORTEGA, 2002, p. 41.

26 Na visão de Cícero, o olhar do outro requer dar e receber conselhos, evi-tando adulações: “Pois que é próprio da verdadeira amizade dar e receber conselhos, dá-los com franqueza e sem azedume, recebê-los com paciência

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206 - UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

e sem repugnância, persuadamo-nos bem [de] que não há defeito maior na amizade que a lisonja, a adulação, as baixas complacências” (CÍCERO, Diálogo sobre a amizade., p. 141).

27 EN, VIII, 3, 1156 b 21-23, p. 159 e GIANOTTI, 1996, p. 169.28 EN, VIII, 8, 1159 a 42-47, p. 162. Uma análise significativa da amizade,

encontra-se no livro de ALBERONI, Francesco. Amizade. Traduzido por de Wilma Lucchesi. Rio de Janeiro: Ed. Rocco LTDA, 1989.

29 Para Tomás de Aquino, amar é fazer o outro feliz (ALBERONI, 1989, p. 9).

30 EN, VIII, 8, 1159 b 4-6, p. 162-163. Para Cícero, a primeira lei da amizade é ser honesto com os amigos, demonstrar-lhes zelo, dar conselhos (Diálogo sobre a amizade, p. 73).

31 EN, IX, 8, 1169 a 23-35, p. 184-185.32 EN, IX, 12, 1172 a 1-3, p. 190.33 EN, IX, 9, 1169 b 3-27, p. 185 (grifo do autor) e REALE, 1994, p. 425.34 Ortega observa que esta forma de amizade ideal (teleia philia) é pouco

freqüente, quase impossível de realização, e que ela serve de modelo para avaliar as espécies de amizade. Por outro lado, a tradição filosófica identi-ficou o ideal de amizade perfeita como padrão para desqualificar as outras espécies de amizade, nominando-a como amicitia perfecta, vera amicitia, amicitia cristiana, amicitia dei, fazendo da philia um estudo perfeito, su-blime, desconsiderando a realidade contingente e ambígua no qual está in-serido o homem existencial (ORTEGA, 2002, p. 40).

35 EN, VIII, 1, 1155 a 29-32, p. 153-154; noutra passagem, VIII, 9, 1160 a 9-12, p. 164, Aristóteles diz que conforme aumenta o grau de justiça, au-menta a amizade, sendo nesse caso coextensivas entre as mesmas pessoas. Ver ORTEGA, 2002, p. 44.

36 EN, IX, 10, 1170 b 28, p. 187 e HESÍODO, Trabalhos e dias, 750. 37 ROHDEN, 2002, p. 120.38 EN, IX, 10, 1170 b 48-57; 1171 a 1-3, p. 188.39 EN, IX, 3, 1165 b 17-25, p. 177.40 MORAES NETO, 1999, p. 39.41 PEGORARO, Olinto Antonio. Ética é justiça. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995,

p. 75.42 ORTEGA, 2002, p. 40.

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. de Mário da Gama Kury. 3 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.ALBERONI, Francesco. Amizade. Trad. de Wilma Lucchesi. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1989.CÍCERO. Diálogo sobre a amizade. Trad. de José Perez. São Paulo:

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Ano 4 • n. 2 • jul./dez. 2004 - 207

ÁGORA FILOSÓFICA

Cultura Moderna, 1930.GIANOTTI, José Arthur. O amigo e o benfeitor: reflexões sobre a filia do ponto de vista de Aristóteles. Analytica. Rio de Janeiro, n. 03, p. 165-177, 1996.MORAES NETO, Joaquim José de. A amizade em Aristóteles. Lon-drina: Ed. UEL, 1999.ORTEGA, Francisco. Genealogias da amizade. São Paulo: Iluminu-ras, 2002.PEGORARO, Olinto Antonio. Ética é justiça. Petrópolis: Vozes, 1995. REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Trad. de Henrique Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1994, v. II. (Série His-tória da Filosofia).RODHEN, Luiz. Amizade entre filosofia e educação. In: PIOVESAN, Américo (Org.). Filosofia e ensino em debate. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. (Coleção filosofia e ensino, 2).ROSS, Sir David. Aristóteles. Trad. de Luís F. Bragança. Teixeira. Lis-boa: Dom Quixote, 1987.

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