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Amor, humilhação e ira: sentimentos em situação de conflito no
Cariri cearense.
Rosana Dayara de Alcantara Alves1
César Barreira2
Resumo
A presente proposta de estudo volta-se para investigar elementos existentes em situações de conflito
a partir de categorias emocionais evocadas no discurso de pessoas envolvidas em disputas de terri-
torialidades. Tendo como pano de fundo embates que evocam categorias morais, como respeito e
prestigio, no processo de hierarquização das posições sociais, na região metropolitana do Cariri.
Nas Ciências Sociais emoção é entendida na perspectiva de sentimentos apreendidos e incorporados
a partir de uma linguagem emocional comum, portanto dependente de situações sociais específicas.
Pretendemos analisar os elementos de comunicação das emoções, que emergem no discurso dos
moradores locais, do ponto de vista de configurações de regras de conduta e convivência, que, ao
serem alteradas, provocam situações de conflito. Os objetivos estão voltados para compreender di-
nâmicas discursivas utilizados na manutenção de hierarquia entre grupos por meio da investigação
da relação entre sentimento e situações de conflito. A estratégia metodológica utilizada é o estudo
de caso com produção de dados por meio de aproximação empírica, utilizando principalmente ins-
trumental de observação participante junto a moradores do bairro Lua Nova na cidade de Crato, em
momentos de sociabilidade e em situações comuns de seu cotidiano. Os resultados preliminares
apontam que alguns sentimentos funcionam como impulsionadores morais de conflitos, e ofensas
de ordem moral como justificativa plausível para embates que podem levar a homicídios.
Palavras chave: Conflito, Moral, Sentimento.
Introdução/Problematização
O presente estudo volta-se para investigar categorias emocionais utilizadas em situações de
conflitos e disputas por prestígio entre moradores do bairro Lua Nova3, da cidade de Crato, interior
do Ceará, buscando analisar elementos que emergem no discurso do ponto de vista de seu papel na
construção social de sujeitos submetidos a processos históricos e culturais específicos. A
investigação procura identificar como as emoções são apresentadas nos discursos sobre: situações
que envolvem manutenção de posições sociais nos grupos que dividem o bairro, buscando
identificar que categorias emocionais são utilizadas para legitimar atitudes classificadas como
1 Bacharela em Ciências Sociais pela Universidade Regional do Cariri, e mestranda em Sociologia pela Universidade
Federal do Ceará.
2 Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Pós-doutorado pela École des Hautes Études en Sciences
Sociales - Paris e Pós-doutorado pelo Instituto de Ciências Sociais - Lisboa.
3Lua nova é nome fictício, utilizado para proteger o cenário em que transitam os informantes da pesquisa.
violentas; e circunstâncias de desavenças no interior de famílias.
Inicio a discussão neste trabalho analisando narrativas dos moradores locais sobre um
conflito que ocorreu no bairro, na década de 90. A “guerra” do Lua Nova foi um evento que
envolveu moradores do bairro que residiam na parte “de cima” contra os da parte “de baixo” do
bairro, e que durou cerca de três anos. “De cima” e “de baixo” vão se tornar palavras recorrentes ao
longo desse estudo, pois elas aparecem nas narrativas dos moradores locais sobre esse evento, não
só referente a localizações geográficas, mas como algo que identifica e classifica os grupos rivais.
O bairro Lua Nova é uma comunidade periférica na cidade de Crato, Estado do Ceará.
Atualmente, possui aproximadamente 4.122habitantes, divididos em cerca de 960 famílias,
conforme dados do CRAES4. O bairro é considerado de baixa renda. Embora em termos analíticos
esse estudo não entre no mérito dos conflitos ou condicionantes de classe, é importante estar ciente
da localização histórica e social dos conflitos violentos estudados aqui, para uma compreensão mais
abrangente das formas de produção de elementos, que gerem significados simbólicos que legitimem
atitudes onde o uso da força seja acionado.
A visão construída pelos demais moradores da cidade a respeito do bairro Lua Nova, sempre
foi de ser um lugar de interações violentas. Meus familiares também compartilhavam essa visão,
que representava um quadro de imagens negativas sobre a vivência daquela comunidade. Foram
esses estigmas que me instigaram a conhecer melhor aquele lugar..
Realizei entrevistas com os moradores do bairro que ocupam da parte de “cima” do local.
Esse recorte do campo se deu pelo fato de minha inserção no lugar ter sido intermediada por um
antigo morador que mantinha relações estreitadas com essas pessoas. Algumas vezes tentei
aproximação com moradores da parte “baixa” do lugar, mas ter sido vista muitas vezes com pessoas
que eram desafetos deles acabou impossibilitando maior contato. No entanto, como minha
preocupação não está em julgar os participantes de conflitos como “certos ou errados” nem em
saber quem tem “razão” penso que isso não compromete o objetivo da pesquisa que está voltado
para a identificação de categorias emocionais utilizadas em conflitos, buscando perceber em que
situações são empregadas, bem como os significados que elas assumem.
A estratégia metodológica utilizada foi o estudo de caso com produção de dados por meio de
abordagem aos moradores do bairro em momentos de sociabilidade. Simultaneamente foram
utilizadas entrevistas com eixo de perguntas focalizado em categorias emocionais utilizadas nos
discursos dos moradores sobre as situações que envolvem conflitos, em visitas domiciliares. Para a
abordagem empírica me apropriei de instrumentos de investigação etnográfica como a observação e
4CRAES. Disponível em: https://www.cras batateira / crato - ce .Acesso em junho de 2015
entrevistas não estruturadas que proporcionaram material para o exercício de descrição densa. Essas
estratégias responderam adequadamente aos objetivos da pesquisa.
As questões tratadas nesse estudo envolvem situações íntimas das pessoas com quem
mantive interlocução, como lembranças, sentimentos e relatos sobre situações vivenciadas nas suas
vidas particulares. Para garantir o sigilo da identidade dessas pessoas todos os nomes que constam
no trabalho são fictícios, inclusive o nome do bairro.
No campo da antropologia, as emoções são tratadas como fenômenos culturais. A maneira
como se percebe o corpo e maneja as categorias a ele referidas são construções sociais e dependem
da forma de pensamento do tempo em que se vive. As emoções são compartilhadas dentro de um
conjunto de signos culturais específicos, não universais, em que cada cultura tem uma gramática
emocional própria. Sentimentos que embora provoquem sensações físicas e corporais nos
indivíduos, não partem da ordem do “biológico”. É possível perceber que existem códigos comuns
nos discursos de comunicação que são socialmente construídos e partilhados.
Dessa reflexão nascem as seguintes questões de pesquisa: Em que medida as emoções que
emergem nos conflitos de bairro dão conta de signos específicos da cultura local? Como os signos
que caracterizam as categorias emocionais refletem elementos constitutivos da construção de
grupos antagônicos e de suas posições no cenário social?
Emoção é um tema multifacetado abordado por diversas áreas de conhecimento e
geralmente é descrita como algo que parte da ordem do biológico e universal, sendo intrínseca à
própria existência humana. Nessa perspectiva, os elementos emocionais poderiam ser percebidos do
mesmo modo em qualquer cultura e pelos quais a humanidade também se identificaria em qualquer
tempo e espaço de sua existência. O medo, por exemplo, é tido como parte do próprio instinto de
sobrevivência da espécie. Da mesma forma, amor, ódio, tristeza seriam constantes universais,
invariáveis ao longo do tempo. Esse modo de pensar se encontra arraigado também nos discursos da
mídia e no senso comum.
Segundo Catherine Lutz (1988), o conjunto dessas perspectivas compõe a “etnopsicologia
ocidental moderna”, que consiste em um sistema de conhecimento dedicado a explicar o que é “a
pessoa” e como as pessoas agem e se comportam diante das situações. Dessa forma, se constitui um
conhecimento capaz de “prever” reações e comportamentos, possibilitando que as pessoas se
monitorem e monitorem os demais no cenário de relacionamento. Essa percepção encara como
fundamento a dualidade entre corpo e a mente, o ser humano formado por duas instâncias opostas: o
processo racional (mente) operando em oposição ao sensorial (corpo), onde habita as emoções.
Paradoxalmente a emoção é tida como algo da natureza individual, que, ao mesmo tempo, é uma
qualidade universal, embora abstrata.
Essas percepções e classificações sobre razão e emoções ajudam a legitimar posições
hierárquicas construídas histórica e socialmente. A razão é tida como uma capacidade superior da
humanidade, que a distingue das outras espécies, posicionando-se acima destas. Já as emoções são
tidas como o que se tem de mais próximo com a animalidade, principalmente aquelas
contextualizadas em cenários de conflito que desencadeiam ou estimulam comportamentos
violentos. Classificar pessoas como mais ou menos emotivas exerce um efeito micro político nas
relações sociais, que maneja posições sociais e as legitimam.
Assim, atitudes de violência são enquadradas em categorias que partem da ordem biológica
e consideradas dependentes das capacidades emocionais do sujeito, ou seja, da possibilidade ou não
de “controlar instintos naturais”. Luiz Roberto Cardoso de Oliveira (2008) problematiza a questão
da violência enquanto um dado biológico, considerando que os critérios que determinam o que é ou
não violência são construídos histórica e sociologicamente. Em análise, ele afirma que não é
apropriado falar em violência física dissociada de agressão de ordem moral, fato que torna
equivalente as categorias físicas e simbólicas em um mesmo ato e amplifica as possibilidades de
análise para além dos marcadores biológicos que circunscrevem as emoções.
Bourdieu (2013) considera que existe uma economia da violência que se apresenta em tipos
diferentes: violência física, econômica e simbólica que coexistem no cenário social, sendo que a
última dessas se manifesta de maneira sutil e está presente em todos os campos sociais. A economia
da violência está presente em todas as instituições e engendrada nas relações sociais de modo geral.
Segundo o autor, os tipos de violência têm em comum a capacidade de gerar vínculos sociais como:
dívida, servidão e solidariedade. Outro aspecto evocado por Bourdieu que ajuda a decifrar este tipo
de realidade, diz respeito ao processo de disputa por localização, sobre o qual o autor fornece, com
a teoria da prática, um suporte analítico que sintetiza a mediação de condições estruturantes e
estruturadas, ou seja; individuo e sociedade, por meio dos conceitos de habitus e campos.
Pela evocação de histórias, os sentimentos são incorporados desde a infância e
compreendidos simbolicamente pelos participantes de uma sociedade situando-se no corpo, porém
não existem dissociados de interação social. O aprendizado emocional controla a forma de viver os
sentimentos e estes variam de uma cultura para outra.
As emoções são pensamentos de alguma maneira ‘sentidos’ em rubores, pulsações,
movimentos do fígado, mente, coração, estomago, pele. São pensamentos incorporados,
pensamentos permeados pela percepção de que estou envolvido (ROSALDO, 1984 apud
RESENDE; COELHO, 2010, p. 32).
Emoção tida como pensamento incorporado, dimensiona a ideia de que emoções em si
mesmas não existem, mas são apreendidas e assimiladas socialmente. A ideia de aprendizado
emocional é inspirada nos estudo de Mauss (1980) sobre a “expressão obrigatória dos sentimentos”
em ritos funerários. Para o autor, a expressão dos sentimentos tem caráter obrigatório, mas isso não
impede que sejam espontâneos, pois são vivenciados sensorialmente por quem os manifesta. Essa
expressão seria a linguagem em que os indivíduos comunicam aquilo que sentem aos outros, por
intermédio de um código comum, mas também comunicam a si mesmos suas emoções.
Em Introdução à sociologia Nobert Elias (2008) fala que sobre as configurações sociais que
são pra ele grupos de indivíduos com interesses comuns, que vivem em relação e constituem teias
de interdependência que ele define como relações pessoais - laços emocionais que desempenham
papel unificador em toda sociedade. Para o autor, as emoções só existem a partir da relação “eu, tu e
eu, nós”, os laços afetivos são vistos como o elo que liga as pessoas e dá sentido à vida social. Ele
reflete sobre as valências emocionais criadas na relação face-a-face e também sobre a utilização de
símbolos que ligam emocionalmente os indivíduos a grupos maiores, como exemplo: o hino e a
bandeira nacional.
Em O processo civilizador (1994) também de Elias, é possível perceber um esforço em
compreender as emoções como algo aprendido socialmente e reflexo de um dado contexto
histórico-social. O autor reflete sobre as implicações da formação do Estado moderno, nos costumes
e na moral dos indivíduos. Segundo ele, o processo civilizador é constituído pela apropriação feita
por parte da burguesia no final da idade média da estrutura mental e emocional da aristocracia. O
autor também cita o surgimento do sentimento de vergonha nos assuntos que se referem à
sexualidade, como algo que foi apreendido socialmente no processo civilizador e que hoje é
naturalizado pela sociedade. Elias considera ainda que, na medida em que os indivíduos são
“educados”, hábitos indesejados são suprimidos, naturalizando sentimentos e costumes.
A socióloga portuguesa Sofia Lay Amândio (2012) problematiza a tensão existente entre as
categorias razão e emoção, sugerindo que as emoções ou sentimentos incorporados conduzem para
a racionalização, pois os mecanismos que controlam o comportamento indicam que algo “está
errado” por meio de sensações físicas, a exemplo do sentimento de vergonha e insegurança que uma
pessoa pode sentir diante de uma dada situação social. Essa sensação funciona como alerta e exige
uma manobra racionalizada que orienta a ação.
Segundo Koury (2005), a antropologia das emoções vem se consolidando no Brasil como
um campo disciplinar como afirma em seu texto Antropologia das emoções no Brasil, onde ele traz
um panorama dos estudos em antropologia ambientados no país que tem a emoção como uma
categoria analítica, bem como reflete sobre os precursores desses estudos no Brasil, como Freire
(1966) e Velho (1999) que, embora não usassem as emoções como categorias analíticas, já
problematizavam em seus estudos questões referentes a sentimentos e as expressões sociais que eles
têm.
Diante destas contribuições, é possível perceber que as emoções podem ser tomadas como
objeto das ciências sociais, entendendo que a vivência emocional é parte de um processo histórico,
social e cultural. Existem códigos que comunicam formas de vivenciar as emoções em meio aos
grupos sociais. Com isso, não quero dizer que existem modelos de apresentação das emoções duros,
e fixos no tempo e espaço, mas corroboro com a ideia de que sentir “emoção” só é possível por
contada compreensão dos elementos culturais, que são comunicados socialmente, sendo
incorporados e ressignificados, como são todos os demais elementos da cultura.
Existem emoções previstas para determinadas situações, que atuam em um processo micro
político das relações sociais, e esse aspecto também é perceptível em situações de tensões e
conflitos. Rezende e Coelho (2010, p. 39) afirmam que as emoções possuem uma capacidade
micropolítica, ou seja, possuem “potencial para dramatizar, alterar, reforçar a dimensão
macrossocial em que as emoções são suscitadas e vivenciadas”. As emoções podem ser pensadas
pelo potencial que carregam tanto de reforçar estruturas sociais como de contestar a ordem social
vigente.
Nesses processos sentimentos como nojo, desprezo, humilhação, indignação, trazem em
suas representações os códigos sociais compartilhados de hierarquia, moral entre outros; podem
demarcar as fronteiras entre os grupos sociais; como também tem o potencial de regular as ações
dos outros por transmitirem categorias de deferência5 à pessoa.
Identificadas algumas lentes para pensar emoções em situações de conflito, apresento, a
seguir, dimensões do cenário social em que pretendo usá-las.
“Nas antigas”: sobre emoções de “guerra”
Tentei fazer junto aos moradores, um levantamento de informações sobre os conflitos que
ocorreram no bairro Lua Nova na década de noventa. Ao tentar compreender as motivações que
permeavam o cenário, uma das primeiras coisas que tomei conhecimento foi que tais eventos são
nomeados como “guerra da Lua nova”. Sobre a guerra, organizei alguns relatos, como modo de
tentar apresentar alguns personagens e eventos que fazem parte desta história e que ajudam a
compreender as negociações e forma de distribuição poder naquele contexto, comunicados pelo
discurso emocional.
Ressalto que os interlocutores dessa pesquisa são os moradores da parte de cima do bairro, o
5 Segundo Goffman (1988) deferência significa reverência, sinais de respeito que alguém espera
receber de outrem em uma dada situação social. É composta por expectativas de reconhecimento
pessoal.
que proporciona uma visão particular dos acontecimentos. Nesse sentido, não perco de vista que os
relatos referem-se a uma versão e que se a mesma pesquisa tivesse sido realizada com interlocutores
da parte baixa do bairro, as histórias poderiam ser contadas de forma diferente.
Tudo começou por causa de um boné, um cara de baixo [Denis] tomou um boné de um
menino, mas o boné era de um cara lá de cima [Gabriel] que era muito perigoso muito
valente, aí ele mandou buscar o boné, os rapazes pegaram o menino deram duas furadas na
bunda dele e daí começou o inferno. Ninguém queria baixar a cabeça começou a se formar
turmas. Quem era jovem se juntava com o outros do seu lado, poisos caba não deixava
quem era de cima descer ai começou a envolver todo mundo quem não tinha nada a ver
com a historia do boné já estava no meio, eu andava com cuidado, mas andava armado, pois
estavam atirando em todo o mundo e eu não ia baixar a cabeça pra vagabundo. Nesse
negócio ficou caba aleijado, gente doido e morreu uma faixa de uns quinze ou mais. A
policia chegou para o chefe de lá de cima e disse “tu tem coragem de matar eles? Pois mate
que eu venho só buscar a carniça.” Do mesmo jeito disse para os de baixo. E assim foi eles
só iam lá buscar os corpos. Nessa época quando dava seis horas era igual a toque de
recolher. Quem tinha menino pequeno colocava pra dentro, dava seis horas lá virava um
deserto, e começava os tiros. Depois disso ai eu adquiri um pânico e uma depressão, mas
não tomei remédio não, foi Jesus quem me curou. (CESAR, 36 anos, entrevista concedida
em outubro de 2013).
Esse evento foi um dos principais motes para construção da imagem do bairro como um
local violento. Os registros de morte, constantes tiroteios, e as histórias contadas por expectadores
sedimentaram essa imagem que se encontra difundida na memória dos moradores da cidade de
Crato. As pessoas com quem conversei se referiam ao bairro como um espaço esquecido pelas
autoridades públicas. Segundo eles não havia um patrulhamento ou fiscalização policial, em defesa
de seu patrimônio, dos seus direitos ou sua honra. As questões que nasciam ali tinham que ser
resolvidas entre eles.
BARREIRA (2008) afirma que os elementos de classificação moral de autores de crimes de
pistolagem, como “vingadores” ou “bandido-herói” passa por três momentos. O primeiro seria o
rompimento com a dominação social; o segundo momento corresponderia aos crimes cometidos,
valorizando a vida nômade e aventureira da personagem; e no terceiro momento o bandido é
representado como “protetor público”. Pensando nas questões que permeiam os conflitos do bairro
Lua Nova, autor ajuda compreender os elementos de legitimação de alguns tipos de “infração”, o
descredito na eficiência do Estado como elemento mediador dos conflitos, aumenta a possibilidade
de que as pessoas ajam em defesa de si mesmos, ou de suas famílias.
Luiz Roberto Cardoso (2008) afirma que o fato de o sistema judiciário não conseguir
apreender a dimensão moral dos eventos de conflito acaba colaborando para o agravamento das
situações pelo fato de os indivíduos não se sentirem compensados moralmente nas penas impostas
aos agressores. As ofensas morais são de difícil caracterização material jurídica na Constituição
Brasileira e acabam muitas vezes se tornado invisíveis como crimes que mereçam reparação.
Mesmo quando existem leis punitivas os indivíduos que são vitimados não sentem que a pena foi
proporcional ao dano causado.
Um homem tem que ser considerado, se a pessoa não tiver nem isso na vida vai ter mais o
que? A história é: me respeite, que eu te respeito. Mas tem caba que pra parecer o fodão,
acha que tem que intimidar, isso comigo nunca funcionou, Ah! Comigo não. (CESAR, 36
anos, entrevista concedida em maio de 2014).
Sobre o inicio da animosidade entre os moradores das partes alta e baixa do lugar, o senhor
João Roberto me falou em uma das conversas que tivemos na casa dele que existiam rumores de
que esse fosse retaliação de um evento anterior.
Havia um boato de que essa história com os caba de baixo começou antes do tal do “boné”,
porque assim; tinha uma fazenda aqui perto que pertencia ao povo dos Nunes6lá eles
colocaram uma bomba d’água pra suprir as necessidades deles. Aí um traficantezinho que
tinha lá em baixo, roubou essa bomba, e os donos ficaram sabendo que o ladrão era daqui
da Lua Nova, o caba que roubou não achou o que fazer, foi lá, e disse que quem tinha
roubado eram os caba daqui de cima. Foi uma confusão danada até que tudo se esclarecesse.
E há quem diga que foram os próprios Nunes que armaram [forneceram armas para]
Gabriel e a família dele, pra pegarem os caba lá de baixo, pois antes disso eles não tinham
armas assim não, só valentia. Eu acredito que tenha sido mesmo, aí o boné foi a gota d’água
pra eles se vingarem, tinham sido acusados de ladrão e por pouco não morreram por causa
dessa conversa. (JOÃO ROBERTO, 93 anos, entrevista concedida em outubro de 2014).
Há nessas narrativas um forte discurso de acusação dos moradores da parte de cima contra
os da parte de baixo do bairro, que podem ser entendidos como elementos de estigmatização por
parte daqueles que se consideram moradores legítimos do bairro, os demais são considerados como
baderneiros e perturbadores da ordem, contra os quais eles agiam por “defesa”, os moradores da
parte baixa são acusados de começarem todos os episódios de conflito mencionados nesse estudo.
Isso é sem duvida reflexo da minha posição dentro do universo de pesquisa.
Na visão dos moradores da cidade de Crato, os conflitos no bairro Lua Nova eram
associados ao comercio de drogas, o que segundo as pessoas com quem conversei, nem sempre
acontecia, segundo eles, no primeiro evento desse conflito não existia uma disputa entre traficantes
rivais, mas sim entre pessoas da parte de cima do bairro com pessoas da parte de baixo. Segundo os
moradores da parte alta, o líder da parte baixa do local era um traficante, que buscava legitimar seu
poder intimidando os moradores de todo o bairro. Por sua vez os moradores da parte de cima não
cediam às investidas do mesmo. Sendo assim, o que estava em jogo eram os valores morais da
comunidade e não disputas relacionadas às atividades do narcotráfico.
Sabendo que esse discurso é marcado pela posição do meu interlocutor no conflito, não me
parece apropriado pensar sobre a ideia de veracidade da narração, me detenho a refletir sobre o que
o interlocutor me fala sobre intimidação. “Intimidação” nesse caso se apresenta como uma categoria
6 Sobrenome de uma família de grandes proprietários de terra na região do Cariri cearense.
que comporta uma performance em busca de provocar um comportamento específico, é também um
elemento de demarcação de posição, onde quem intimida comunica ao outro superioridade.
Havia também, conflitos dentro dos próprios grupos. Segundo os moradores, era exigido que
os membros de cada lado agissem com “lealdade”, demonstrando-se fieis a sua “origem”, caso isso
não ocorresse e o individuo demonstrasse não estar comprometido com seu grupo (de forma que
pudesse ameaça-lo), ele poderia ser também um alvo tornando-se um inimigo. Cesar fala que a
primeira morte que ocorreu depois que tomaram o boné, foi justamente por falta de “lealdade”.
Depois que tomaram o boné de Gabriel e das facadas que deram no menino, ficou tudo
escuro lá, zona de guerra mesmo, o menino escapou, mas os caba dos dois lados não
podiam se encontrar que a bala cortava, o primeiro que morreu nessa guerra foi Tião ele era
lá de cima e quem matou Tião foi Gabriel [Também morador da parte de cima], matou
porque Tião conversava demais sabia que as coisas estavam a ponto de pegar fogo e ficava
levando e trazendo conversa. Desconsiderou os próprios amigos os caba que cresceram com
ele, foi fatal. Gabriel nunca assumiu, mas todos sabiam que foi ele inclusive a família de
Tião, mas o caba era tão ruim que ainda foi no velório dele, ficou lá na frente de todo
mundo dizendo: “o neguim era meu amigo nos vamos cobrar” porque, assim, as pessoas
que não entravam na briga, pelo menos apoiavam, se ele entrasse em conflito com a mãe de
Tião não ficaria bem pra ele, entende?”(CESAR, 36 anos, entrevista concedida em
fevereiro de 2014)
Tião desconsiderou em um grau mais elevado, pois o desconsiderado era seu amigo, ele
fazia parte do grupo e os estava colocando em risco “levando e trazendo conversa”, isso lhe foi letal,
sua morte servia de exemplo para que a prática não fosse repetida. No entanto, o autor do crime não
faz questão de ser reconhecido como tal, pelo contrário, foi ao velório para negar a suspeita,
demonstrar respeito à família do morto, e com sorte conseguir convencer de que “os caba de baixo”
eram os verdadeiros responsáveis. O objetivo era evitar um desgaste de sua reputação, que acabaria
também por comprometer a coesão do grupo.
Nos discursos dos moradores é possível perceber elementos emocionais que envolvem os
significados da Guerra do Lua Nova. As ideias de consideração e respeito permeavam quase todas
as falas sobre os conflitos dos meus interlocutores. Princípios morais estavam no núcleo das
discussões, valores como respeito, coragem, lealdade e verdade, foram evocados nos discursos
reprovando atos de desrespeito e legitimando as mais impensadas atitudes a fim de reparar ofensas
sofridas pela “desconsideração”. Em uma das conversas sobre os conflitos que ele denominado de
“Guerra”, um morador do bairro me contou um dos ensinamentos de seu pai (em forma de fábula),
para ele e os demais filhos. Nessa circunstancia eu o havia provocado a explicar o que justificava
entrar em embates que poderiam lhe custar a vida.
Papai costumava contar uma historia de um homem que tinha uma filha, a certa altura ela
trouxe o namorado pra dentro de casa e ele passou a frequentar constantemente a casa. Uma
vez o homem chegou e viu o namorado da filha sentado na mesa sem camisa ele entrou no
quarto e saiu de lá sem a camisa e o short, ‘voltou só de cuecas’ a mulher dele se vira pra
ele e pergunta: ‘você esta doido?’ o homem responde: ‘se chegar alguém aqui em casa
agora vai saber quem é o dono(AMAURI, 43 anos, entrevista concedida em janeiro
de2014).
Essa narrativa informa muito sobre os valores morais daquela família, o fato de Amauri
recorrer a essa fala me diz que naquele momento ele precisava me mostrar quais eram os motivos
para uma atitude considerada insana ou desproporcional para a maioria dos expetadores. Para
Amauri e seus pares um homem, chefe de família, deve ser moralmente reconhecido, e para isso um
conjunto de símbolos são acionados, que vão desde vestimenta a performances corporais, o homem
do conto não estava louco como indagou surpresa a esposa, havia uma racionalidade implícita na
atitude performática de tirar a roupa, ele estava restabelecendo a ordem na qual ele acreditava e
reivindicando sua posição de dono da casa. O não reconhecimento ou a desmoralização da pessoa
pode implicar em reparação ao mesmo tempo em que a justifica.
A “desconsideração” é também capaz de modelar o comportamento do individuo de forma
duradoura, trago a seguir mais um relato de Cesar sobre os conflitos:
O dia mais constrangedor da minha vida foi aquele, eu sabia que o Lua Nova estava
pegando fogo, mas eu era respeitado por todo mundo, tanto no meu trecho [de cima], como
lá em baixo, eu não tinha pantim 7 com ninguém e os caba lá de baixo faziam era dizer que
só tiravam lá de cima eu e mais três o resto era “cabeça de chumbo” [alvos, pessoas a quem
matariam]. [...] Foi assim: dois dias antes Gabriel tinha levado um tiro de doze, que só
pegou de raspão, eu ia passando por frente a casa dele, eu vinha de boa, sem camisa, ia
almoçar, lá tinha uma galera de uns nove homens tudo cabuloso8 eram os caba lá da rua
mesmo, ele me parou e disse – E ai neguim? Como foi esse tiro que eu levei ? Eu disse a
ele que não sabia de nada, mas ele insistiu e disse – Só quem tem uma doze dessas aqui no
Lua Nova é você e seu irmão, foi você mesmo. Eu já estava sabendo que ele tava ficando
meio doido, mas eu não poderia imaginar o que ia acontecer. Quando ele disse que foi eu
puxou uma faca da cintura e botou pra matar, se aquela facada pega eu não tinha nem
podido correr, me esquivei e ele deu mais umas cinco, eu correndo e ele correndo atrás, os
caba tudo olhando e pedindo pra ele parar, entrei em casa peguei meu revolver, quando me
virei ele já tinha saído, o irmão dele se atravessou na minha frente de joelhos pedindo pra
eu dispensar que ele estava doido, ainda estava me tremendo de ódio, mas consegui ouvir
ele e parei, depois minha família pediu muito pra eu não fazer nada com ele. Aquilo mudou
minha vida, fui desconsiderado, ele doido ou não, eu fui desconsiderado, a partir daí eu
fiquei doente, violento, meus revolveres não ficavam mais guardados não, andava com eles
na cinta, sempre andava com dois, às vezes até com três, e ai de quem quisesse tirar uma
onda, ele mesmo não se atreveu nem a passar por perto de mim mais. (CESAR, 36 anos,
entrevista concedida em maio de 2014).
Naquele dia, Cesar passou muito perto de morrer, mas o que realmente impactou a sua vida
foi o fato de ter sido desconsiderado bem próximo da sua casa, na frente de seus amigos, a atitude
de Gabriel contestou o modo como ele se via perante o grupo, e mesmo que Gabriel estivesse
começando a ser visto como “louco”, isso não apagava a humilhação pública que ele passara.
Vários eram os fatores que faziam com que Cesar não revidasse a ofensa, primeiro, os pedidos de
seus familiares e a súplica feita pelo irmão do agressor que minimizava a humilhação, pois ao pedir
7 Essa palavra tem significados diferentes, nesse caso tem sentido de: conluio, conchavo. Em outros
momentos “pantim” é mencionado pelos moradores como uma atitude suspeita, “que sugere algo”.
8“Cabuloso aparece com significado de: pessoa temida, que pela imagem que apresenta poderia ser
reconhecido como tal. Elementos como roupas acessórios e adornos junto a uma postura física
ajudam a montar a imagem de alguém “cabuloso”.
ele reconhecia que Cesar tinha capacidade de revidar, dando a ele o status de pessoa de coragem.
Depois Gabriel tinha uma família grande e conhecida por atitudes violentas, o que era quase
garantia de retaliação, que poderia colocar os familiares de Cesar em risco de morte. “O pior nessas
guerras são as covardias, nada me garantia que eles não matariam alguém meu pra me ver sofrer”
(CESAR, 36 anos, entrevista concedida em janeiro de 2014).
Porém, o fato de ter sido desconsiderado o deixou “doente” ele não conseguiu superar o
estado de humilhação, e a partir daquele momento investiu em uma performance intimidadora para
impossibilitar atitudes como as que aconteceu, manter suas armas ao alcance da mão, informa que
se chegar a precisar, não quer que haja tempo para interferências a sua reação, do mesmo modo que
a arma minimiza a possibilidade de alguém tente humilha-lo publicamente.
Analisando esses relatos, pude perceber que o sentimento evocado nas falas sobre os
episódios em que os indivíduos se sentiam “desconsiderados” era o de humilhação.
O sentimento de humilhação é essencialmente relacional, público, os conteúdos que o
provocam estão dentro de categorias sociais compartilhadas, consiste na percepção da vítima que
está sendo desrespeitada e inferiorizada, contestada em sua própria identidade, plano fundamental
da existência. Esse tipo de sensação é holística, envolve todo o corpo vem de fora para dentro e
acaba por tomar o individuo em uma “ira santa” (KATZ,1988).
Ao ser perguntado qual era o motivo principal de todos os conflitos que ocorreram na época
Amauri respondeu:
Você não vai querer que alguém lhe ofendida na calçada de sua casa não é verdade? Só isso,
eles achavam que os caba do “pão” era mole, que podia tirar a onda que quisesse, tomaram
o boné do menino, até ai tudo bem, eles não sabia de quem era, mas depois de saber fizeram
pior, ai começou a guerra, desconsiderou não só ele mas todo mundo do “pão”, eles se
achavam fodão porque vendiam droga. (AMAURI, 43 anos, entrevista concedida em
janeiro de 2014).
Não era o roubo de um boné, pois o boné foi “tomado” tomar é diferente de roubar quando
se toma enfrenta a vítima humilhando-a e o coloca em uma situação de impotência “quando o caba
toma algo na cara, é mesmo que tá dizendo que você é um otário, lhe dispensou”(MARCOS, 32,
entrevista concedida em janeiro de 2013). A intimidação coloca o indivíduo no local da ofensa, e
comunica aos demais e a si mesmo que se julga em posição de superioridade perante o outro,
exercendo uma função micropolítica na marcação de relações de social. Nesse cenário, o que se
pleiteia por meio de disputas físicas e simbólicas são posições no quadro hierárquico do lugar.
Desprestigiar a autoridade da pessoa, em seu território de morada é uma situação
inadmissível segundo os moradores envolvidos nos casos de conflito. E justificativa plausível para
dezenas de conflitos que se sucederam em um período ininterrupto de três anos. Pelos relatos é
estimado que pelo menos dezessete mortes estivessem diretamente ligadas a esse episódio que
acabou por desencadear vários outros.
Prefiro morrer ou matar uns dois a passar de cabeça baixa, porque um vagabundo qualquer
mandou, sou homem que nem ele, eu não quero ter vida pra isso não, se cadeia não ficou
pra ele imagine pra mim que sou trabalhador (LUIZ MOTA, 46 anos, entrevista concedida
em maio de 2014).
Para Katz (1988), o sentimento de humilhação surge quando se tenta fugir da raiva
provocada pela ofensa reconhecida publicamente. A ira é alcançada quando quem está se sentindo
humilhado acredita que a única maneira de solucionar o conflito é inverter as posições e
restabelecer a ordem social que acredita estar. A raiva é a confirmação da humilhação, comunica
que ofensa foi recebida e consegue desestabilizar o portador a ponto de que em ações movidas pela
ira, tente superar aquele estágio e restabelecer o mundo no qual acredita em defesa da
respeitabilidade da moral. Culminando em um “massacre justo” aos olhos do agressor. “Um ataque
apaixonado pelo qual o agressor tenta impor ao corpo de sua vítima marcas que atestarão
eternamente a dedicação, pelo agressor, a um bem primordial” (KATZ, 1988, p. 223).
Existe também outra possibilidade de ação para cena em que o individuo é “desconsiderado”
no bairro Lua Nova que passa pelo crivo do autor da ofensa estar lúcido o suficiente para poder
reconhecer o ordenamento construído para aquela situação. Em alguns casos indivíduos que estão
“se passando” (alterados de alguma forma por ingestão de alguma substancia embriagante ou
alucinógena) podem ser absolvidos momentaneamente da raiva por não possuir condições de se
responsabilizar pela infração cometida.
Às vezes quando tem alguém se passando, o caba até dispensa porque é covardia trocar
juízo com bebo e os outros caba também pode ficar falando fulano só fez isso [agredir
alguém] por que ele estava bebo. Aí é melhor dispensar, mas no outro dia quem tava se
passando deve pedir arrego senão é pior, na próxima não tem desculpa. (MARCOS, 27 anos,
entrevista concedida em janeiro de 2014).
Porém, é necessário que quem “se passou” procure se redimir da ofensa logo que retome a
“consciência”, sobre julgo de a mesma ser interpretada como “verídica”. A reprovação coletiva
também é fator que inibe uma represália contra alguém que esteja sob “alteração de consciência”.
Isso gera um ciclo: ofensa, absolvição momentânea, remissão e pena. Após se redimir o individuo
que cometeu a ofensa é penalizado a não ter segunda chance, independente do estado de consciência
que se encontre. A partir daí qualquer desentendimento pode ser potencializado pelo peso da
advertência.
A categoria consideração tem aparecido em estudos contemporâneos, de diferentes temáticas,
O autor Leonardo Sá, no seu artigo A condição de “bichão da favela” e a busca por consideração,
discute de forma relevante sobre a categoria consideração e a aponta a falta de consideração como a
principal motivação para as guerras no lugar por meio do “modo desrespeitoso com que se realiza a
relação social com a alteridade inimiga, provocando ondas de homicídios rituais e de vinganças por
‘nada’” SÁ (2010). O uso da categoria consideração aparece na discussão, como algo pelo qual os
traficantes desempenham uma performance, em busca de status, ou posição social de prestígio,
desconsideração é tida como algo ao qual não se prestou a devida reverência.
No discurso dos moradores do bairro Lua Nova sobre as de situações de conflito, a categoria
“consideração” é usada como regra de conduta, não se distância da ideia de posição, mas assume
um caráter de deferência, algo que se deve ao outro, um respeito primeiro pelo self da pessoa.
Segundo Goffman (2006) existe no mundo urbano contemporâneo uma noção de sacralidade do self
pessoal, esse caráter sagrado, é confirmado no cotidiano das pessoas, por atos simbólicos de
reconhecimento para com o self do outro.
Como “deferência” eu me refiro ao componente da atividade que funciona como um meio
simbólico através do qual se comunica regularmente a apreciação para um receptor deste
receptor, ou de algo do qual esse receptor é considerado um símbolo, extensão ou agente.
Essas marcas de devoção representam formas pelas quais um ator celebra e confirma sua
relação com o receptor. (GOFFMAN, 2006, p. 59).
Goffman afirma que não é permitido alguém dar deferência para si mesmo, é preciso que ele
busque em outros, tendo que nesse jogo prestar deferência também. Quando as regras desse ritual
de conduta são quebradas tanto a imagem do transgressor quanto a do receptor é ameaçada e podem
ser desacreditadas. A deferência pode ser prestada de duas formas: simétrica, quando ocorre entre
pessoas que se consideram igual, ou no mesmo plano de direitos; e assimétrica, quando ocorre entre
pessoas que ocupam posições diferentes, mas que devem cumprir os rituais de convivência tanto do
subordinado para o superior como no movimento contrário.
O autor afirma que a deferência é também a demonstração de uma espécie de estima, do ator
para o receptor que cria e fortalece vínculos, não necessariamente essa estima precisa ser
“verdadeira”, mas o ator precisa conhecer o receptor o suficiente para pelo menos “fingir” que se
tem, além do sentimento a deferência comunica a “promessa” de que o ator reconhece a regra, e
está disposto a cumprir o script da cena que se desenrola.
A deferência proposta por Goffman é semelhante a “consideração” que os indivíduos no
bairro Lua Nova esperam que os outros tenham pelo “eu” individual, ela está ligada diretamente
com a imagem que a pessoa moral tem de si, e espera encontrar, nos outros o reconhecimento do
seu self. Com efeito, a “consideração” que se deve a um homem local é diferente da que se deve a
mulher, a que se deve ao mais velho é diferente da que se deve ao mais novo. No entanto, é
necessário que esses rituais sejam cumpridos, caso contrário podem ser penalizados pelo
rompimento da relação ou conflito direto entre as partes.
Contemporaneamente
Estar inserido em um contexto de guerra gera diferentes posicionamentos e significações
tanto para os envolvidos como para os expectadores. Atualmente, os feitos dos parentes na época
dos conflitos da década de noventa, e as respectivas imagens construídas a respeito do bairro são
troféus ou tabus dentro das famílias e aparecem presentes nos discursos dos mais jovens. Algumas
famílias são conhecidas por serem destemidas e agir com violência quando confrontadas e os jovens
destas, por vezes se encontram compelidos a manter essa representação. Porém, a maior presença
do Estado na formação atual do bairro e as chagas que as mortes de familiares e amigos deixaram,
faz com que seja crescente o número de pessoas que rompem com esse valor. Existem também
famílias que se veem como pacíficas e procuram a todo custo não se envolver em conflitos
violentos “pois não é do seu feitio”.
Não sou de briga, já vi tanta desgraça dentro desse “Pão”, que entro em pânico só em
pensar minha família envolvida numa coisa dessas, quando começa não tem como sair,
melhor mesmo é não entrar, pois o destino é cadeia, cemitério e choro. (LUANA, 38 anos,
entrevista concedida em maio de 2014).
O universo social do Lua Nova comporta elementos culturais compartilhados que ajudam a
compreender que motivações que influenciam na adoção de certas posturas em detrimentos de
outras. Existem valores muito sedimentados no lugar que compõem as normas locais e são
norteadores das ações. É possível a partir de imersões empíricas como esta perceber como estão
sendo significadas as representações de identidades relacionadas ao espaço e à comunidade de
referência na vivência dos moradores do bairro Lua Nova.
Hoje não se pode mais pensar o bairro apenas pela divisão “de cima e de baixo”, pois outros
espaços foram povoados e já existe uma configuração bem maior que a da década de noventa, as
subdivisões são maiores, para tentar exemplificar posso dizer que os moradores “de cima” viraram:
“os do Pão”, da rua “das véias”, e os “do campo9”, os moradores “de baixo”: são os da “rua do
meio”, da “rua da capela” e “os do posto10”, tem também os grupos que se formaram nos locais que
não eram povoados na década de noventa como os “do CAIC” e os “da escola”. Atualmente, a rixa
existente entre as pessoas que moram na parte de cima e os que moram na parte de baixo tem se
intensificado por causa de mais um atrito, porém como já foi dito não existe mais uma unidade
nesses locais, e os conflitos que ocorrem contemporaneamente não afetam diretamente todos os
moradores.
No local, existem espaços de sociabilidade utilizados quase com exclusividade por
moradores do Lua Nova, quando aparece alguém “de fora” é prontamente identificado, dificilmente
9 Referente à proximidade de campinho de futebol.
10 Referente à proximidade do Posto de Saúde.
“os de fora” chegam sozinhos a esses locais, na maioria das vezes vão acompanhados de algum
morador e são apresentados ao grupo, os que se atrevem a ir sem intermédio de alguém corre o risco
que ser identificado como um inimigo em potencial.
Existe uma festa que é realizada semanalmente que junta vários moradores de todas as
idades. Ela acontece em uma churrascaria do lugar nos dias de sábado há mais de duas décadas.
Outros bares do lugar também são utilizados como espaço de sociabilidade, mas a festa da “Pará” é
sempre a mais movimentada. Essa casa de eventos fica localizada em um ponto que pode ser
considerado como espaço “neutro”, “área de todos”, espaço onde todos os moradores se encontram,
ela fica na única entrada do bairro e em frente a um posto fiscal da SEFAZ. Não obstante, a Pará e
suas imediações é o palco dos conflitos mais citados pelos moradores, tanto os conflitos da década
de noventa como os mais recentes.
Outra forma de sociabilidade muito comum no bairro são encontros de amigos e parentes em
almoços e churrascos nos fins de semana.
Ah dona, aqui somos todos de casa todo mundo se conhecem, isso aqui é tranquilo, a
não ser que os caba estejam se estranhando, mas quando é assim eu mesmo nem
venho.[Se] Acontece alguma coisa na semana a gente já fica cabreiro, podem querer
acertar as contas na Pará no fim de semana. Mas fora isso, é tranquilo, quase sempre
é. (LUCAS, 19, entrevista concedida em fevereirode2014).
Conheci um morador do bairro que junto a sua família se tornaram meus principais
informantes do campo. Amauri é casado a vinte e seis anos, e tem três filhos, de 21, 18 e 15 anos.
No período em que as entrevistas começaram Amauri e sua esposa Lucia, pensavam em mudarem
para outro bairro. Isso aconteceu por volta de seis meses depois, quando eles e seus filhos foram
morar em um bairro vizinho. Segundo ele, essa era uma manobra necessária para tentar afastá-los
do bairro Lua Nova. Os dois filhos mais velhos do casal estavam em conflito com jovens que
moram na parte de baixo do bairro. Atrito que se iniciou novamente por causa de “desconsideração”.
Na verdade acho que a guerra nunca acabou, é como brasa que você sopra entende? O fogo
volta! Cortaram a chinela do meu menino mais novo de faca, quando ele subia do rio .Ai
passou um tempo e mostraram a meu filho mais velho quem eram os caba que cortaram a
chinela .Não deu outra, meu menino mais velho e os primos foram cobrar a
desconsideração e bateram no menino até ele ir parar no hospital. Daí virou um inferno eles
atiraram na minha porta no mesmo dia, e fica assim: os meus não podem descer e eles não
devem subir. Um dia, eles pegaram o meu do meio em uma festa na Pará, ele vinha saindo
sozinho do banheiro e bateram tanto nele que quase matam, quando os outros[primos e o
irmão mais velho] viram, a briga foi tão grande que acabou a festa. Nesse dia, até minha
esposa que é bastante calma disse que nunca tinha pensado em fazer mal a alguém na vida,
mas estava com uma enorme vontade de mandar matar quem cortou de murro o rosto de
Luiz. Eu já disse a eles [os filhos] que eu ainda não entrei na guerra de novo porque eles
não confiam em mim, não me dizem as coisas, mas eu juro a você que se hoje eles se
abrissem comigo era hoje que começava.(AMAURI, 43 anos, entrevista concedida em
janeiro de 2013).
Amauri precisou me afirmar algumas vezes que não tem medo, e que só ainda não abraçou a
‘Guerra’ por dois motivos, o primeiro era o fato de os filhos ainda não terem levado desvantagem
nas brigas que ocorreram até aquele momento a moral dos seus encontrava-se em equilíbrio, mesmo
no dia que bateram em Luiz os irmãos e primos logo reparam o feito saindo superiores da briga a
ponto de “acabarem a festa”. O segundo motivo seria o fato de os filhos não terem confiado nele
como possível parceiro, coisa que o incomodava profundamente, pois para ele os filhos o tratavam
como um incapaz.
Outro elemento importante nessa fala é a vontade expressa da mãe do rapaz em mandar
matar quem cortou o rosto de seu filho, pois para ela ainda não estava vingado o corte no supercilio
e olho inchado e roxo, que ela afirmou ter tido que cuidar por uma semana para não infecionar. “[...]
cada vez que olhava para ele daquele jeito me subia um ódio que eu nunca senti na minha vida, dá
vontade de acabar com isso de uma vez” (LUCIA, 40 anos, entrevista concedida em junho de 2013).
Ao me narrar a história, Lucia ia ficando com a voz trêmula e o rosto vermelho, como se
estivesse vivenciando a situação naquele momento11. A memória da situação de violência sofrida
pelo filho agride do mesmo modo que no dia do ocorrido, e provoca reações tão viscerais que se
apresentam ao expectador da narrativa.
Apesar dos esforços dos pais, os jovens não deixaram de frequentar o bairro, e todas as
noites seguiam para casa de seus amigos e parentes que moram lá. Os rapazes voltavam ao bairro
todos os dias, passando as noites em momentos de sociabilidade e confraternização com jovens da
mesma idade, e reforçando para si mesmo e para os demais que não tinham fugido do local e que
não tinham medo dos seus oponentes. Estar lá se “divertindo” e sendo “feliz” principalmente nas
noites, onde o perigo de um confronto se potencializa, reforça o estado de não intimidação frente à
presença do outro. Sendo também uma forma performática de ataque ao outro causando lhe inveja.
Os caba fica doido quando vê agente por cima, de boa, de moto, com mulher, um litrão de
“Theacher” nos pano. A inveja sobe a cabeça. Mas fazer o que? Deixar de ser feliz por
causa deles é que eu não vou. (JOÃO LUIZ, 17 anos, entrevista concedida em março de
2014).
Elementos como moto, roupas, marca de bebidas e “mulher” são subsídios de poder
capitalizados para demarcar posições dentro do grupo e frente aos outros grupos e compõem os
momentos de “felicidade”, quem detém esses elementos produz de forma intencional a inveja no
outro como maneira de se localizar em posição superior. Nessa mesma conversa João Luiz me disse
que “ninguém odeia o fraco e nem inveja o feio”. Recorrentemente, ao falarem que são invejados,
11 No fim desse dia cheguei em casa me questionando se trabalhar com essas memorias não poderia de uma forma ou
de outra incitar uma reação felizmente até esse momento nada aconteceu “materialmente” decorrente dessa pesquisa, de
certo falar comigo sobre isso gera nessas pessoas alguma reflexão sobre o assunto no entanto ainda não consegui
identificar qual o impacto disso na vida material delas.
Luiz e seu primo lançavam discretos ares de riso.
Elias (2008) afirma que as disputas pelo equilíbrio de poder são elementos de integração das
relações humanas. Para ele, os inimigos desempenham uma função recíproca e são interdependentes,
independente da distribuição desigual de poder dentro dos grupos todos os agentes orientam sua
“jogada” de acordo com o que ele conhece do outro jogador. Identificar as regras do jogo permite
compreender como os grupos resolvem suas tensões e conflitos sem que seja necessário aniquilar o
“outro”. Desse modo os bens capitalizados por esses grupos de jovens no bairro, dão subsidio para
compreender quais são os valores que compõem a norma daquele jogo, bem como quais são os
elementos de poder que estão em questão.
A pessoa invejada é impreterivelmente superior ao invejoso, esse sentimento é descrito
como forma de localização no grupo e perante os grupos rivais. Nessas situações, a inveja aparece
como algo que se deseja uma reação de outrem esperada e provocada pela pessoa que acusa ser alvo
da mesma. No ato de exposição, até a marca da bebida que é comprada faz parte do cálculo sobre o
poder da ostentação de elementos valorizados naquele campo, que sejam capazes de causar inveja
nos outros. A inveja assim acaba comportando elementos ambivalentes, pois ao passo que se trata
de “energia” negativa (sentimento ruim) lançada pelo “invejoso” ,ocorre na mesma ação em que se
presta reconhecimento à superioridade de quem é invejado. Em julho de 2013, por conta do
insucesso em manter os filhos longe do lugar, Amauri voltou a morar no bairro Lua Nova
novamente para proteger os filhos.
Se é de eles ficarem só lá, é melhor a gente estar perto, pelo menos a gente vê o que eles
estão fazendo, a gente pode até fazer alguma cosia estando mais perto, no dia da briga lá da
“Pará” eu só fiquei sabendo no outro dia, a gente aqui tudo é mais fácil. Eles podem estar
onde estiverem quando Lucia vai atrás deles eles sempre voltam, eu mesmo nem vou, pois
minha vontade é logo de bater, ela sempre vai pra eu não ter que ir(AMAURI, 43 anos ,
entrevista concedida em junho de 2013).
Amauri também me contou sobre sua preocupação em seu filho mais novo estar envolvido
com o consumo de drogas ilícitas, pois afirma que nos últimos anos o tráfico tem se intensificado no
lugar, fazendo vários adolescentes locais se envolverem de algum modo nas práticas ilícitas de
consumo ou no comércio de drogas.
Estar próximos dos lugares que os filhos frequentam facilita a família acompanhar o que
está acontecendo na vida deles, tornado possível também uma intervenção a seu favor caso seja
necessário. Os apelos da figura materna alegando preocupação é uma forma eficaz de controlar a
atitude dos filhos e com sorte leva-los para casa. Sobre isso, Leandro Oliveira (2012) discute sobre
a capacidade que as emoções têm de exercer uma função micropolítica nas relações familiares,
capazes de regular a conduta dos sujeitos.
Aí neguinha eu vou mesmo pode ser a hora que for, às vezes chego uma hora da madrugada
do trabalho, e se eu souber que ele tá bebendo em algum lugar por perto na mesma hora eu
vou buscar, tem vezes que vou sozinha em outras minha irmã também vai. Quando eu chego
lá ele fica logo espantado “oxe mãe” eu chamo ele pra vim ele vem sem reclamar, mas
quando ele não vem eu me sento e digo que vou ficar lá com ele, ás vezes ainda estou com a
farda da empresa ele fica doidim [risos]e vem logo comigo, mas nunca me respondeu. Eu não
brigo com ele mulher, é por isso que ele vem, se fosse o pai dele ia logo na ignorância e isso
só piora as coisas. (LUCIA, 40 anos, entrevista concedida em março de 2014).
Nesse caso, a presença “carinhosa” da mãe exige que Luiz vá pra casa, transforma a
preocupação da mãe em seu filho estar na rua bebendo na preocupação do filho em não permitir que
ele se exponha a situação para garantir que ele esteja “bem”. Isso é bastante eficaz para que Lucia
consiga seu objetivo de levar o filho para casa.
Considerações
Como apontado por vários autores das Ciências Sociais, as emoções fazem parte de códigos
sociais compartilhados, e não é diferente no bairro Lua Nova. No entanto, não podem ser vistas
como scripts generalizados, na medida em que biografias familiares interferem no desenrolar de
suas expressões no espaço público que as configuram como ações sociais.
As emoções que emergem nas situações de conflito no bairro Lua Nova estão diretamente
associadas aos valores e a organização social, cultivados desde o momento da formação do bairro e
estando presentes em vários acontecimentos do lugar. Sendo agenciadas pelos indivíduos locais de
acordo com os referenciais mais significativos da sua concepção de self pessoal.
Alguns indivíduos se sentem parte de um tipo “moral” de pessoa que têm como referência
principal o respeito e a consideração, os valores que dizem o que é ser ou não considerado são
compartilhados socialmente e expressos em signos e símbolos comuns. Elementos como roupas,
bebidas, veículos, postura corporal compõem o cenário social onde os conflitos e as emoções que
nele emergem.
A existência de grupos antagônicos se desenha desde o período da formação do bairro, e são
expressas na “antipatia” várias vezes mencionadas pelos moradores da parte alta nesse estudo,
segundo os relatos os valores que orientavam os dois grupos eram divergentes, e as disputas por
posições hierárquicas causavam sentimentos e ressentimentos que estavam presente na descrição de
vários conflitos entre as partes.
Foi possível identificar nas falas dos interlocutores desse trabalho, categorias emocionais
utilizadas nas diversas formas que os conflitos de disputas por posições assumem no local. Essas
categorias emocionais ajudam a compreender as motivações que os moradores atribuem a situações
de disputa no bairro Lua Nova. Entre outras, as ideias de “consideração” e “desconsideração” são
apontadas pelos interlocutores como elemento determinante para os embates violentos que
ocorreram no local na década de 90. Falta de “consideração” para com a pessoa masculina, o não
reconhecimento do self pessoal é justificativa plausível para um ataque físico contra outrem, a
investida tem como objetivo reestabelecer o ordenamento que a pessoa acredita estar, mesmo que
para isso seja preciso o aniquilamento do outro. As emoções apresentadas nas situações de conflito
no bairro correspondem ao conjunto de símbolos e signos locais, estão diretamente ligadas ao que
se pensa socialmente sobre o que seja prestígio, masculinidade e respeito. A categoria inveja
aparece na descrição de algumas situações de disputa, como sendo um ato de reconhecimento da
superioridade da pessoa que se inveja, sendo muitas vezes algo desejado, que para se alcançar
vários objetos são capitalizados (roupa, moto, mulher, bebidas), na busca de se posicionar em
situação de superioridade, e ser assim alvo de inveja.
O amor e a amizade foram contemplados em várias etapas do texto, tratados em relações
familiares e de vizinhança, onde muitas vezes aparecem como um presente, algo que é dado para
confirmar e reforçar os laços existentes. Em outros casos, o amor, por exemplo, atua em um
processo de regulação de conduta, tanto da pessoa que sente quanto da pessoa que é contemplada
pelo sentimento. As pessoas que mantem laços de amizade também têm que cumprir obrigações
reciprocas, que podem até ocorrer de forma assimétrica, mas que as partes sintam que a emoção
dispensada seja compensada em algum sentido.
Os conflitos tratados nesse trabalho que envolve situações de agressão física são
mencionados junto a elementos emocionais que buscam reestabelecer um ordenamento social que
foi ofendido. Onde não se acredita existir outra possibilidade de reparação equivalente ao dano
causado. Como apontado por Oliveira (2008) existe dificuldade na adequação das penas do sistema
judiciário Brasileiro, quando referente à compensação de danos morais, que contribui para uma
ausência de crença de que esses crimes sejam punidos, esse fator agregado à incredibilidade de que
o Estado enquanto um ordenamento “superior” possa garantir que alguém seja punido pelo um
crime que cometeu, influencia diretamente na decisão que os indivíduos têm de “resolver pelas
próprias mãos”. Entre os elementos que me levam a esse tipo de inferência está a ausência do
Estado no discurso dos meus interlocutores, ou seja, não há um discurso “sobre a ausência” há a
ausência dos órgãos reguladores no discurso. Considero que essa ausência se configura como mais
uma pista para futuras pesquisas.
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