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4 Lagoa Rodrigo de Freitas
Coincidentemente, à mesma época em que os grafites do
muro do Jockey foram apagados, a prefeitura da cidade anunciava a
criação do EixoRio, publicava o decreto GrafiteRio, instituía o
Conselho Carioca de Grafite e o Dia do Grafite e, ainda, autorizava a
criação e o fomento da GaleRio.
O EixoRio pode ser definido como um órgão de articulação
entre o poder público e os grafiteiros, que tem como principal
proposta a revitalização da cidade por meio da chamada arte
urbana. De acordo com a própria prefeitura,
O Instituto EixoRio é uma plataforma de articulação criada pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro para potencializar a cena urbana da cidade. Embora seu eixo central de trabalho seja a cultura, o Instituto atua transversalmente em parceria com as diversas secretarias e órgãos públicos e privados. Seus projetos têm como proposta mesclar arte e recuperação urbanística, estimulando a reordenação e a conservação urbana, a fim de gerar vitalidade cultural e econômica e melhorar a qualidade de vida dos cariocas9.
Já o decreto10 GrafiteRio determinava as regras, os critérios e
as diretrizes para a criação de grafites na cidade. Por meio dele, a
prefeitura liberava postes, muros, colunas, laterais de prédios, 9 Disponível em < http://www.rio.rj.gov.br/web/eixorio/principal > acesso em 18 de novembro de 2015. 10 Vale ressaltar que, além do decreto municipal, em 25 de maio de 2011 foi a publicada a Lei Federal Nº 12.408, decretada e sancionada pela presidente Dilma Rousseff: ela descriminaliza o “ato de grafitar” que, a partir de então, deixou de ser ilegal desde que houvesse autorização e fosse realizado com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado por meio da manifestação artística. A lei também diferenciava o grafite da pichação, que permanece como crime, com penas que podem variar de três meses a um ano.
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pistas de skate e tapumes de obras para a prática, ao mesmo
tempo em que vetava viadutos, fachadas de imóveis públicos e
tombados pelo patrimônio histórico.
Art. 4º Fica autorizada a utilização dos seguintes espaços públicos como estímulo para a prática do GRAFFITI e da Street Art: postes, colunas, muros cinzas (desde que não considerados patrimônio histórico), paredes cegas (sem portas, janelas ou outra abertura), pistas de skate e tapumes de obras (Decreto municipal nº. 38307 de 18 de fevereiro de 2014 - Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro - 19/02/2014).
Um decreto que, segundo BR, foi elaborado sem a consulta ou
participação dos principais envolvidos, os grafiteiros, e que não
altera o modo como o grafite é feito na cidade.
Fizeram esse decreto, caras como eu, o Eco, o Ema, o Tomaz... A galera que é mais antiga não foi nem comunicada, nem fizeram uma pesquisa, nem perguntaram nada pra gente. Eles criaram um decreto que na verdade não mudou porra nenhuma. Ninguém vai fazer grafite ou deixar de fazer grafite por um decreto. Grafite é vandalismo, grafite é arte, grafite é um movimento espontâneo, um movimento cultural mais forte do que um decreto possa estabelecer (BR, em entrevista ao autor em 20 de outubro de 2014).
O decreto também criou o Conselho Carioca de Grafite, uma
comissão composta por onze grafiteiros, escolhidos por meio de
eleição, e responsável por solucionar questões, dúvidas e impasses
entre o poder público e os próprios artistas. Já a GaleRio propunha a
criação de uma das maiores galerias de grafite e arte urbana a céu
aberto do mundo, utilizando-se dos muros da linha 2 do MetroRio,
entre as estações São Cristóvão e Pavuna, numa extensão de 40,4
km.
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Em julho do mesmo ano, meses após os grafites do muro do
Jockey, localizado na rua Jardim Botânico, terem sido apagados, um
acordo entre a prefeitura e a instituição permitiu que outro muro do
clube, não tombado pelo Patrimônio Histórico, na avenida Borges de
Medeiros, voltado para a Lagoa Rodrigo de Freitas, fosse pintado
por grafiteiros. A proposta partiu de André Bretas, diretor do
Instituto RUA - Revitalização Urbano Artística, associação civil sem
fins lucrativos, que visa criar e desenvolver projetos de ocupação e
revitalização do espaço público por meio do grafite e da arte
urbana.
Nomeado de “Jockey Club Arte Urbana”, o projeto foi
capitaneado pelo Instituto, que realizou a curadoria e a escolha dos
grafiteiros que poderiam se utilizar do espaço. Entre os nomes
convidados estavam alguns dos mais conhecidos e renomados da
cidade: os cariocas Marcelo Eco Marchon, Bruno BR, Acme, Criz
Silva, Akuma e o coletivo Acidum Project, de Fortaleza. Cada um
deles pôde escolher mais três artistas para a criação do mural,
totalizando em cerca de 15 grafiteiros.
Figura 07 – Parte da novo mural no muro do Jockey Club Brasileiro, na Av. Borges de Medeiros, em frente à Lagoa Rodrigo de Freitas (fonte www.intitutorua.org.br).
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O resultado foi um grande painel de aspecto asséptico,
colorido e organizado, que parece ter sido pensado e criado para
agradar os habitantes e enfeitar um dos pontos turísticos da
cidade. Enquanto o antigo muro da rua Jardim Botânico, que reunia
não só os grafites, mas também pichações e inscrições, de forma
efêmera, caótica e muitas vezes sobreposta, transformava-se em
um palimpsesto formado por textos, imagens e cores, por meio da
acumulação e da superposição de camadas de imagens e, também,
da troca de significados no espaço e no tempo ao longo de mais de
uma década.
Tratava-se de um painel que se constituía a partir da própria
transformação: ao escrever, rabiscar ou desenhar sobre o antigo
muro, os grafiteiros tornavam a prática do grafite em uma maneira
evocativa de tomá-lo para si, por resistência ou contestação
(Stenson, 1997). Enquanto que, no muro autorizado, os novos
grafites funcionam mais como forma de embelezamento estético
daquele espaço público (Banksy, 2012), uma espécie de pintura
mural, livre da áurea subversiva que costuma acompanhar o grafite,
com direito à curadoria, patrocínio e apoio governamental. A própria
pintura do novo muro foi celebrada com um evento que reuniu
todos os grafiteiros, para conjuntamente elaborarem o projeto.
O grafite, enfim, foi se transformando em arte de galeria, perdendo a potência política e intervencionista que privilegiava a cidade como seu espaço de intervenção e discurso, colocando-o como resistência a um modelo de arte completamente sujeito aos mecanismos de controle de museus, galerias, bienais, publicidade. Ordem na cidade. Harmonia e beleza no desejo asséptico contemporâneo. Com isso, vê-se que o grafite, nascido dos conflitos raciais, da miséria econômica e cultural como um disparo na direção da ordem burguesa de homogeneização dos sujeitos nas metrópoles modernas, reinstala-se como o decorativismo morno em nome do novo nas mãos de atravessadores da arte, ávidos pela
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descoberta de talentos que venham azeitar as engrenagens do velho sistema de arte (Costa, 2007, p. 181).
O amadorismo aos poucos cede lugar a uma espécie de
profissionalismo. O traço tosco feito às pressas na calada da noite é
trocado pela estética dos desenhos refinados, produzidos à luz do
dia e sob os holofotes da mídia. Muitas vezes associado à subversão
e ao vandalismo, o grafite torna-se o centro das atenções e, aos
poucos, perde seu valor de uso e ganha valor de troca em uma
sociedade guiada pelo capital.
Figura 08 – O grafiteiro Marcelo Eco, pinta parte do novo muro do Jockey Club (fonte www.institutorua.org.br).
A transgressão, talvez a característica maior atribuída à
essência do grafite nas últimas décadas do século XX, tal qual Paris
em maio de 1968, em Nova Iorque na década de 1970 e mesmo no
Brasil, durante o período da ditadura militar, parece sair de cena e
abrir espaço para um grafite que se torna socialmente aceito, com
uma função estética ou mesmo decorativa ao colorir, enfeitar e
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alegrar os espaços públicos antes abandonados ou esquecidos. “Ao
longo das últimas quatro décadas o graffiti sofreu mutações várias
e perdeu-se, eventualmente, a unidade ideológica e accional
original” (Campos, 2009, p.19).
Figura 09 – Grafiteiro durante a pintura parte do novo muro do Jockey Club Brasileiro (fonte www.institutorua.org.br).
A transgressão pode ser entendida como uma ação que
questiona e excede os limites das imposições e convenções sociais.
Diversos autores (Gari, 1995; Ferrel, 1996; Ramos, 1994) definem
o grafite como uma prática indisciplinada, que desobedeceria “às
expectativas da cultura que predetermina, num texto como o da
cidade, como e quando o seu espaço e tempo podem ser utilizados”
(Ramos, 1994, p.44). Assim, por tratar-se de um tipo de inscrição
inapropriada e sem autorização, que perverteria normas e
subverteria o espaço público para além dos modelos estabelecidos,
o grafite seria essencialmente transgressor.
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Não é por acaso que a mais pura e primordial ação do movimento graffiti reside naquilo que os writers denominaram há mais de três décadas de bombing. O bombardeamento da cidade, uma figura metafórica que revela o carácter destrutivo, massificado, tentacular de uma ação que ambiciona marcar categoricamente o espaço de visibilidade da cidade (Campos, 2009, p.20).
Por esses motivos, o grafite foi considerado por um largo
período de tempo uma prática inaceitável e, até mesmo, um ato de
vandalismo violento e marginal. Marginalidade que emerge tanto do
anonimato ao qual ele estava associado, como também da
agressividade simbólica e semiótica que a prática desempenha. Por
tratar-se muitas vezes de linguagens irreconhecíveis e ilegíveis,
ações anônimas e irrupção de propriedades privadas, o grafite
gerava receios e, consequentemente, a rejeição àquelas escrituras,
marcas e desenhos que surgiam de forma inesperada em locais
inapropriados. Uma presença incômoda, que traz à tona a
incompetência da autoridade e a precariedade e impermanência da
ordem, ao mesmo tempo em que revela o poder capilar daqueles
que contradizem as convenções e violam as leis. (Campos, 2009).
De acordo com Foucault (2009), a transgressão é uma
atitude ligada diretamente à tênue fronteira imposta pelo limite. Ao
transpassar essa linha divisória, ela desponta a clareza de sua
passagem, totalidade e de sua própria origem.
0 jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma obstinação simples; a transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente se fecha de novo em um movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do intransponível (Foucault, 2009, p. 32).
Ela induz o limite até o limite de seu próprio ser. É ela que faz
com que o limite se atente ao seu esvaecimento iminente e se
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reconecte àquilo que ela mesmo exclui, sua essência no movimento
de perda. Um movimento de violência no qual a transgressão avança
rumo ao limite e a tudo o que nele encontra-se contido. No entanto,
a transgressão não é antagônica ao limite. Os dois estão
conectados por uma relação espiral, que nenhuma infração é capaz
de invalidar.
Tampouco, a transgressão não está ligada ao negativo, pois
não é sua função contrapor lados ou abalar a estabilidade dos
fundamentos. Não se trata de violência em meio a um mundo
partilhado, nem da vitória sobre o limite que ela mesmo extingue:
“ela toma, no âmago do limite, a medida desmesurada da distância
que nela se abre e desenha o traço fulgurante que a faz ser”
(Foucault, 2009, p. 33). Ela afirma o que é limitado, ao mesmo
tempo em que declara também o ilimitado e o abre à existência.
Nenhuma substância pode prendê-la, assim como nenhum limite
pode segurá-la. Uma experiência limite que se coloca ao homem e
indica o que está drasticamente fora do alcance, inacessível e
intransponível, “uma profanação que não reconhece mais sentido
positivo ao sagrado” (Foucault, 2009, p. 29).
Transgressão é um excesso que interrompe tal limite e coloca
a própria divisão no centro da questão. Ela impõe ao limite o
reconhecimento do que ela exclui, e a partir desse momento o
mundo é obrigado a interrogar a si próprio. No entanto, essa não é
a aspiração de um universo sem limites. Ela é uma transgressão
criativa positiva que produz diferenças e diversidades e possibilita
novas estéticas e éticas de existência.
Enquanto transgressor, o antigo grafite do muro do Jockey
pode ser entendido ainda como uma espécie de provocação à moral,
aos bons costumes, uma recusa à norma. Uma perturbação da
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ordem instalada em um local impróprio, uma linguagem
transgressora que desobedece ao se inscrever na cidade e ao negar
as expectativas impostas de uma cultura que predetermina quais
espaços e tempos podem ser utilizados pelos indivíduos (Ramos,
1994, p.44).
Em sociedades sujeitas a uma planificação, ordenamento e controle acentuados, a tentação é a de subverter as ordens institucionais (…) O que se passa é que os jovens se sentem particularmente atraídos por tudo o que excita os sentidos, inclusive quando essa busca de excitação se realiza mediante condutas de risco (Pais, 2002, p. 22).
Nesse sentido, o grafite está ligado a um tipo de atração que
pode ser definida como uma “transgressão recreativa” (Ferrell,
1996). Uma espécie de excitação presente em atividades como o
grafite, nas quais indivíduos descobrem uma compensação à
monotonia e à rotina cotidiana. Uma prática que vem acompanhada
de adrenalina, intensidade e prazer ligados ao risco e à satisfação
que nasce da transgressão, por estar no limite da legalidade, e
daquilo que é social e culturalmente aceito. Nesse contexto, o
grafite pode ser entendido como uma transgressão que tem, como
princípio, o impulso humano de desobediência à norma em busca de
satisfação e prazer (Gari, 1995). Como afirma o grafiteiro Bruno BR:
O que o grafiteiro quer (...) é botar seu nome na rua, pra que mais pessoas vejam, pra que ele fique famoso e as pessoas o reconheçam, seja do meio... Agora que as pessoas estão começando a conhecer o grafite como arte, mas no começo era só quem fazia grafite que entendia, que enxergava, que via grafite também (...). Em se tratando de grafite, grafite é na rua, é sem autorização (Bruno BR, em entrevista ao autor em 16 de outubro de 2014).
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A ideia do grafite ligado ao prazer e à recreação é
compartilhada por outros grafiteiros, como João Bira e Cast:
Pra mim é muito de estar na rua com os amigos meus, bebendo, pintando em um dia... tem muitos pensamentos políticos sobre o grafite, mas pra mim é estar na rua com a galera se divertindo, pintando. Pode passar uma mensagem ou não, tanto faz... (João Bira, em entrevista ao autor em 25 de abril de 2015). Comecei a fazer grafite em 2013 e comecei porque não tinha muito mais o que fazer, tinha meu trabalho, que era o que me sustentava, mas faltava aquela coisa de fazer o que gosta. Antes eu tinha uma banda que fazia essa coisa, o prazer de fazer, tocar música. Quando a banda acabou, fui pra esse lado de desenhar e tal... (Cast, em entrevista ao autor em 26 de abril de 2015).
Já o grafiteiro Miguel Afa salienta a adrenalina que a prática
do grafite proporciona e, ainda, a coragem advinda da ousadia da
transgressão.
Essa coragem, eu acho que te traz uma coragem pra vida, é muito doido, você traz uma ousadia pra vida. Eu acho importante, eu acho que todo ser humano tem a arte e já vem com esse desejo de rabiscar, uma vocação natural. Só que alguns seres humanos têm a coragem de fazer isso e outros não têm a coragem e criticam (Miguel Alfa, em entrevista ao autor em 26 de abril de 2015).
Ao tomarem o muro do Jockey com suas pinturas, desenhos
e inscrições, os grafiteiros subverteram aquele lugar e também o
seu significado, ao transformarem sua superfície em uma grande
tela. Os grafites “questionam o próprio sentido da cidade, tal como
este é entendido por aqueles que nela vivem e pelos agentes da
planificação, ignorando o usufruto do espaço socialmente aceito”
(Campos, 2009, p.5). Uma forma de resistência cultural, que
transforma os padrões estéticos, opera sobre as linguagens e
redefine os espaços urbanos, como muros e paredes.
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As inscrições em locais não previstos para o efeito refletem, de forma mais ou menos consciente, a desobediência a um normativo que estabelece regras claras num universo comunicacional regulado por poderes públicos e privados. Os jovens destituídos do poder de gestão e participação nas políticas urbanas apossam-se de espaços liminares, dos territórios que habitam, deixando a sua marca e manifestando a sua existência no meio do cimento (Campos, 2009, p.5).
Transgressão que se perde na pintura do “Jockey Club Arte
Urbana”. Tal como argumenta Žižek (2003), o aspecto primordial
do capitalismo tardio é a forma como a transgressão foi
normalizada. No processo de transposição, no qual o
trabalhador/cidadão torna-se um consumidor, tudo aquilo que a
sociedade disciplinar proibia o consumismo contemporâneo encoraja
e exige. Assim, o grafite abandona a transgressão e perde sua
potência intervencionista. Aos poucos, ele se sujeita ao poder
econômico, do estado, do mercado de arte e da mídia. A subversão,
o caos e as camadas de tinta sobrepostas são trocadas pela ordem,
pela harmonia e pelo ideal de beleza, e os grafites tornam-se murais
decorativos na cidade: um produto, uma mercadoria com forte
apelo estético, como observa o grafiteiro Miguel Afa.
Acho foda, acho do caralho mesmo quando um grafite está numa galeria, quando ele está decorando a casa de uma celebridade, um milionário... Porque acho que a gente conseguiu tomar um espaço! Eu acho que a parada mais foda é você ganhar uma grana pintando a casa de uma pessoa, que provavelmente dez anos atrás estaria em um carro passando e te xingando de vagabundo, como eu já fui xingado várias vezes. E mandando o grafiteiro ir trabalhar ou estudar e não estar fazendo aquilo ali (...). Me preocupo muito em manter a estética do grafite no trabalho que eu faço (Miguel Afa, em entrevista ao autor em 26 de abril de 2015).
No Rio de Janeiro, o grafite teve suas primeiras aparições
ainda na década de 1970, com o aparecimento de frases como
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“Celacanto provova maremoto” 11 e da assinatura “Lerfá Mu”,
sobretudo nos muros e paredes da Zona Sul da capital. Anos mais
tarde, na década de 1990, o grafite ganhou força pelas mãos de
grupos da Zona Norte, do subúrbio e da cidade de São Gonçalo
(Silva, 2012). No entanto, somente quando jovens de classe média,
muitos deles estudantes universitários de design, levaram-no para
os muros e paredes da Zona Sul, no início dos anos 2000, é que as
atenções se voltaram para a prática de maneira positiva.
Em 1998, Tomaz Viana, o Toz, e Bruno Bogossian, o BR, eram estudantes de design, rapazes de classe média da Zona Sul, e decidiram criar um grupo para grafitar. Nascia o FleshBeck Crew (...). Tudo começou no curso de design da Faculdade da Cidade, com a produção de uma pequena revista, a “Zine”, com muita inspiração nos quadrinhos. Os rapazes iniciaram as suas incursões pelo Centro da cidade para logo depois investir nos muros da Zona Sul (...). O reconhecimento do que os rapazes faziam nos muros trouxe trabalho. Primeiro, o FleshBeck montou um escritório de design, que assinou projetos para a Coca-Cola, H.Stern, entre outras grandes empresas, e também para ambientes de restaurantes, boates e lojas (Silva, 2012, p.34).
Cooptado pelo capitalismo e incorporado pelo mercado, o
grafite ganhou status de arte urbana e passou a ocupar outros
espaços para além das ruas da cidade, como galerias de arte,
estampas de produtos, fachadas comerciais etc. De acordo com
Baker (2010), por sua própria natureza e seus mais diversos
significados para diferentes pessoas, o grafite pode ser facilmente
11 Em 1977, a frase “Celacanto provoca maremoto”, inscrita dentro de um retângulo com uma seta que apontava para uma gota, tomou conta dos muros e paredes da Zona Sul. Muitas foram as especulações em torno do significado, que de acordo com as suposições poderia ser uma mensagem relacionada ao tráfico de drogas, a extraterrestres ou mesmo à briga de gangues. A inscrição, no entanto, era realizada por Carlos Alberto Teixeira, um adolescente de classe média que teve como inspiração o seriado National Kid, exibido na TV na década de 1960.
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cooptado pela cultura dominante, de modo a servir a seus
interesses ideológicos.
Com a popularização do grafite na cidade, surgiram diversas
oficinas de pintura e até mesmo ONGs e instituições, como a
Fundição Progresso e a Central Única de Favelas (Cufa), e grupos
como AfroReggae, que encabeçaram o ensino de diversas técnicas
como alternativa para a inclusão social de jovens e crianças (Silva,
2012). De forma contraditória, os grafiteiros eventualmente presos
pela prática do grafite recebiam, como pena, a obrigação de
ministrar oficinas da arte para crianças e adolescentes.
Se eu te contar, você não acredita, aqui na Praça da Bandeira, essa: o PM passou e levou todo mundo pra delegacia e não teve jeito. “Ou você vai cumprir hora ou vai pagar cesta básica”. Como eu já tinha pago de outra vez R$ 800,00, caro pra caramba, eu cumpri hora, 24 horas no Jardim Botânico, fazendo uma oficina de grafite para menores. Surreal isso! Eu fui preso por fazer grafite e minha pena foi ensinar a fazer grafite (Cast, em entrevista ao autor em 26 de abril de 2015).
Já o governo investiu em projetos educativos envolvendo o
grafite no combate à pichação.
Em 1999, por exemplo, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, em parceria com a Associação de Moradores e Amigos do Flamengo (Flama) organizou o projeto Murais Urbanos no bairro. Orientados pelo artista plástico Raimundo Rodrigues, jovens pichadores foram convidados a pintar uma passagem subterrânea no Parque do Flamengo (Silva, 2012, p. 35)
Nesse contexto, vale ressaltar que o Brasil é o único onde há
distinção e, principalmente, afastamento ideológico entre o grafite e
a pichação. Além do já citado decreto GrafiteRio, em 25 de maio de
2011 foi publicada a Lei Nº 12.408, decretada e sancionada pela
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presidente Dilma Rousseff. Ela descriminaliza o “ato de grafitar”
que, a partir de então, deixou de ser ilegal quando autorizado e
realizado com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou
privado por meio da manifestação artística. A mesma lei diferencia a
prática da pichação, que permanece como crime, com penas que
podem variar de três meses a um ano.
§ 2o Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. 12
Tal diferenciação não existe em outros países, onde a
pichação é entendida como uma subcategoria do grafite, sendo os
dois considerados crimes contra o patrimônio pelas autoridades. A
distinção, baseada em aspectos estéticos, originou-se ainda no final
na década de 1970, quando algumas das primeiras manifestações
começaram a ganhar destaque, sobretudo em São Paulo.
O que move um grafiteiro e o que move um pichador é a mesma coisa, sabe? É claro que o grafiteiro se utiliza de cor, formas. Vamos dizer que o grafiteiro é a pessoa que utiliza um pouco mais de criatividade pra se expressar, mas o que o grafiteiro quer é a mesma coisa que o pichador: botar seu nome na rua, pra que mais pessoas vejam, pra que ele fique famoso, pra que as pessoas o reconheçam (...). Agora que as pessoas estão começando a reconhecer o grafite como arte, mas no começo era só quem fazia grafite que entendia, que enxergava, que via grafite também. É claro que pra sociedade o pichador suja e o grafite enfeita (Bruno BR, em entrevista ao autor em 20 de outubro de 2014).
12 <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12408.htm> acesso em 02 de junho de 2014.
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Essas ações, que cooptam e regulamentam a prática do
grafite, podem ser analisadas em uma aproximação aos conceitos
de sociedade disciplinar e biopolítica, propostos por Foucault
(2008), e de sociedade de controle, proposto por Deleuze (1992).
De acordo com o primeiro autor, na modernidade foram criados
diversos procedimentos discursivos e institucionais e dispositivos
disciplinares sobre a educação, a docilização e a disciplinarização do
corpo, estrutura essencial sobre a qual o poder é exercido. Com o
desenvolvimento da indústria e do capitalismo a partir dos séculos
XVII e XVIII, surgiu um novo tipo de poder com o propósito
fundamental de uma política da coerção, que domava o corpo e
manejava todos os seus movimentos. Nesse sentido, ao corpo eram
instituídas proibições e obrigações: os sujeitos tornavam-se o
objeto do controle e do poder cotidianamente exercido sobre eles.
Esse poder tinha a intenção de extrair o potencial produtivo e
neutralizar a capacidade política dos indivíduos (Foucault, 2009).
Intrinsecamente ligado a instituições como escolas, hospitais,
fábricas e exércitos, uma de suas principais particularidades era a
fabricação e a moldagem de corpos dóceis e úteis, sobre os quais
se podia ter total controle e, desse modo, tirar-lhes o máximo
proveito. Um poder que era exercido sob vigilância constante e que
visava extrair dos corpos tempo e trabalho, em detrimento a bens e
riquezas (Szaniecki, 2007). O homem tornava-se parte da
engrenagem capitalista, na qual seu corpo estava a serviço da
produção.
Pode dizer-se que a disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é reduzida, de forma menos dispendiosa, como força “política” e maximizada como força útil. O crescimento de uma economia capitalista deu origem à modalidade específica do poder disciplinar, cujas fórmulas gerais, cujos processos de
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submissão das forças e dos corpos, cuja “anatomia política” podem ser aplicados através de regimes políticos, de aparelhos ou instituições muito diversas (Foucault, 1987, p. 182).
O objetivo desse controle disciplinar, que o autor chama de
anátomo-política, era a economia, a eficiência dos movimentos e a
própria organização interna do corpo, em detrimento ao
comportamento ou à linguagem: a coerção incidia sobretudo nas
forças e não nos signos. Diferentemente da escravidão, do
servilismo, da vassalagem ou mesmo do ascetismo, as disciplinas
baseavam-se não na violência, mas em sutis relações de apropriação
dos corpos, buscando a constituição de uma ligação que os
tornasse cada vez mais obedientes e úteis: artifícios de coerção,
manipulação de seus elementos, gestos e comportamentos.
Por meio das disciplinas, corpos dóceis, domados e
adestrados eram produzidos e fabricados. Corpos mais fortes em
termos econômicos e utilitários, e inversamente mais fracos quanto
às forças políticas. Ao dissociar o poder do corpo, a disciplina criava
aptidões e aumentava capacidades, ao mesmo tempo em que
invertia a energia e transformava esses corpos numa rigorosa
relação de sujeição. O mesmo ocorre com o grafite, ao ser
cooptado por projetos como o “Jockey Club Arte Urbana”. Os
grafiteiros, antes considerados transgressores e subversivos,
tornam-se dóceis e aptos a produzirem de acordo com as regras
impostas pela sociedade e pelo capital. Uma disciplina imposta por
instituições que já não são as escolas, quartéis ou hospitais, mas
aquelas que se privilegiam do próprio grafite, a fim de levá-lo à
categoria de arte. Os grafiteiros, em troca de fama ou dinheiro,
tornam-se assim sujeitos úteis à sociedade, que os enxerga como
benfeitores que colorem e transformam a cidade, na qual os muros
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viram painéis decorativos e suas temáticas sofrem influência de
quem os contrata. Tais táticas não impedem que os mesmos
grafiteiros realizem, em outros espaços da cidade, grafites livres ou
considerados subversivos, que não obedeçam a regras do governo
ou de patrocinadores. No entanto, para ocuparem aquele
determinado espaço e, consequentemente receberem o devido
destaque, naquele momento, eles tornam-se corpos dóceis e úteis.
Já no final do século XVIII, uma nova tecnologia de poder
passou a controlar os indivíduos não apenas no âmbito disciplinar do
corpo-indivíduo, mas no corpo-espécie, atravessado pela mecânica
do ser vivo e tendo como base os processos biológicos. Toda uma
série de intervenções e controles reguladores, que se preocupavam
com questões referentes a taxas de natalidade e mortalidade, níveis
de saúde e expectativa de vida da população, naquilo que Foucault
(2008) chama de “biopolítica da população”. Técnicas não
disciplinares que se aplicavam sobre o homem enquanto ser vivo ou,
como define o autor, o homem-espécie, que não se resumia a um
corpo, mas que formava uma massa global. Um dimensão biopolítica
de controle da sociedade, baseada no regimento e na regulação da
vida.
Entre os domínios13 pelos quais tal processo de regulação é
distribuído, pode-se destacar aqui a preocupação com o espaço e a
organização da cidade. Nesse sentido, os mecanismos e os objetos
de regulamentação e cooptação do grafite transformam o grafiteiro
em um indivíduo disciplinado e, ao mesmo tempo, em parte da
13 Os outros dois domínios citados pelo autor são as questões referentes à natalidade, mortalidade e longevidade, e também os problemas em relação à velhice. Dos primeiros surge a necessidade de expandir ao máximo a vida dos indivíduos a partir da qualidade da higiene pública. E, no que diz respeito ao segundo domínio, destaca-se o surgimento das instituições de assistência, seguros e poupanças.
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população economicamente regulada, ao serem contratados e
pagos para criar e executar seus murais em um muro privado.
Na biopolítica há uma relação da vida com o poder, em que se encontra o cuidado com a vida humana e com uma positividade produtiva. Entre os fins desses cuidados está o controle da circulação, que deve propiciar a circulação dentro dos espaços previstos. A eficácia política da soberania encontra-se ligada à qualidade e à intensidade das circulações: das ideias, das vontades e das ordens (Ritter, 2014, p.121).
A partir do século XVIII, as cidades passaram a ser
consideradas espaços de circulação e fluxo, que dependiam do
ordenamento e da eliminação de tudo aquilo que fosse perigoso.
Nesse cenário, algumas das funções primordiais no planejamento do
espaço de uma cidade era a higiene e a vigilância austera sobre as
movimentações dos indivíduos, de forma a garantir sua segurança
contra mendigos, delinquentes, criminosos, ladrões etc. Pode-se
dizer que tais funções têm ainda hoje reflexos na
contemporaneidade e, sobretudo, no que diz respeito ao grafite
contemporâneo. Tanto a pintura dos antigos grafites do muro do
Jockey, na rua Jardim Botânico, quanto a do novo mural na Lagoa
Rodrigo de Freitas têm em comum uma necessidade de, o que se
pode chamar aqui, higiene visual, uma necessidade de manter o
muro com aspecto limpo, asséptico e renovado, livre do que poderia
ser considerado poluição visual. Ao mesmo tempo, os grafiteiros,
que já foram tidos como delinquentes por rabiscarem muros e
paredes, tornam-se agentes com a função de embelezar a cidade
com seus traços, cores e desenhos.
No espaço biopolítico há um domínio das movimentações do
homem enquanto espécie e também dos fluxos das relações de
poder-espaço, com o objetivo de controle da população e de tudo o
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que diz respeito a ela. Um dos intentos da biopolítica é o
gerenciamento e a manutenção da liberdade dos espaços, de forma
a garantir que a sociedade possa chegar a seu máximo grau de
eficácia (Ritter, 2014).
Dentro desse contexto, vale ressaltar a nova pintura do muro
do Jockey, que surge como uma espécie de normalização para
demarcar os padrões oficiais de conduta e comportamento dos
grafiteiros. Assim, eles devem se enquadrar voluntariamente nesses
padrões, impostos pelas mais diversas instituições que os financiam
ou os contratam, ou poderão ser levados à exclusão. Tais padrões
são determinados por critérios externos aos sujeitos grafiteiros e
são benéficos, sobretudo, aos interesses das instituições que, no
caso específico do novo muro, são o próprio Jockey Club, a
prefeitura e o Instituto RUA. Portanto, os grafiteiros que têm
interesse em ser “normais” ou aceitos pelos discursos e gramáticas
de um grupo social que está no poder, devem se adaptar aos
critérios de normalização estabelecidos por tais instituições.
A biopolítica normaliza as condutas. A norma ocupa os espaços deixados pela lei. A lei impõe, a norma delimita. A lei prescreve, a norma possibilita. A lei não consegue penetrar capilarmente nos espaços da vida. A insuficiência da lei é substituída pela eficiência da norma. A norma opera nas instituições modernas, regulamentando ao mínimo e de forma máxima todas as atividades dos indivíduos. Estes não são obrigados a participar de uma instituição, mas se não quiserem ser excluídos terão que se submeter às normas exigidas. A inclusão exige normalização. A normalização se tornou a técnica de governo eficiente que regula o comportamento dos indivíduos e populações (Ritter, 2014, p.135).
O Estado tem o poder de decidir quais critérios devem ser
utilizados na inclusão e na exclusão, além de aplicar tais critérios na
docilização e no disciplinamento dos corpos no espaço. Um poder
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que pode incluir ou excluir os indivíduos da sociedade. Para Negri e
Hardt (2001), o poder apregoa um controle que se espalha pela
consciência e também pelos corpos da população, bem como,
concomitantemente, por meio das totalidades das relações sociais.
Portanto, a biopolítica abrange não somente o trabalho, a produção
de mercadorias ou serviços, mas também as maneiras de
disciplinamento do espaço.
Em meados do século XX, de acordo com Deleuze (1992), as
sociedades disciplinares são substituídas pela chamada sociedade
de controle, a partir do florescimento de tecnologias audiovisuais,
internet, cartões de crédito etc. Característica da
contemporaneidade, a sociedade de controle descrita pelo autor
não atua mais como um molde, tal qual nas sociedades disciplinares,
mas por meio de modulações flexíveis e em constante
aperfeiçoamento. As fábricas cedem lugar às empresas, que
preocupam-se cada vez mais com a oferta de serviços e não mais
de produtos e mercadorias. O tempo do trabalho e a formação
prolongam-se por toda a vida do trabalhador em contínuo. Essas
sociedades são marcadas por mecanismos de domínio, que parecem
ser continuamente mais democráticos e inerentes ao campo social,
sendo distribuídos tanto pelos corpos como pelos cérebros dos
indivíduos (Negri e Hardt, 2001). Essas estruturas de controle são
como um aprimoramento das disciplinas, organizadas em circuitos
maleáveis, que passam a ser compreendidos para além dos espaços
antes determinados das instituições.
(...) os diferentes modos de controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando um sistema de geometria variável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamente binária). Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem
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autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro (Deleuze, 1992, 221).
A transição da disciplina para o controle ocorre
simultaneamente à transição do modo de produção capitalista, que
vai do industrial ao cognitivo, com ênfase nos serviços e ações que
envolvem o intelecto (Negri e Hardt, 2001). Uma mudança que foi,
segundo os autores, consequência das lutas e embates incididos
nas décadas de 1960 e 1970, quando a organização crescente dos
trabalhadores e suas reivindicações lograram o aumento de seus
próprios salários e, assim, a limitação do lucro dos empreendedores
capitalistas. Somam-se a essas lutas os embates que não estavam
diretamente ligados ao campo do trabalho: manifestações, como
por exemplo, as estudantis e as feministas, que valorizavam o
tempo do não trabalho e traziam à tona, para o centro do debate
político, questões sobre o conhecimento e a vida pessoal e afetiva,
respectivamente.
Essas manifestações colaboraram para o estabelecimento de
uma nova subjetividade, para além das condições de trabalho e
produção, gerando a mudança do lugar da produção para o tecido
social: o capital foi forçado a se reestruturar e buscar novas formas
de domínio, ingressando naquilo que os autores chamam de
capitalismo cognitivo. Nele, há uma transformação da lógica de
reprodução e da repetição em uma lógica de inovação. Inovação que
é indissociável à produção e torna-se mais exterior ao capital e às
instituições. Nesse sentido, o grafite e sua estética tornam-se, na
sociedade de controle, um produto a ser comercializado. Não no
sentido de uma mercadoria, visto que elas já não são aquilo de mais
importante que as empresas produzem, mas sim no de
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conhecimento e produto cultural, que só se tornam eficazes em sua
própria reprodução e se produzem a partir de uma criação
cooperativa, como afirma o grafiteiro Toz.
Eu me formei em design gráfico, então o meu processo de criação é bem parecido com o de design gráfico (...). Uma metodologia bem parecida com a de design gráfico e normalmente eu tenho a cabeça de aplicar minha arte em outras coisas, não só numa exposição, agora eu vou fazer uns toy arts de verdade, então, isso é uma coisa que me interessa, porque eu venho dessa formação de design, então é uma parada que eu fico amarradão (...). Quando eu comecei a fazer grafite, não existia no mercado alguém que fizesse design e grafite. Então a gente montou um escritório de design chamado Motim. Nesse escritório de design, a gente teve muito essa função de transformar, materializar a linguagem que estava rolando e que rola até hoje de street art em projetos comerciais. Então a Vivo, a Tim, a Oi, todas elas requisitaram muito a gente pra fazer. No começo, quando eu estava mais atuante neste mercado de design, eu fiz de tudo (Toz, em entrevista ao autor em 19 de outubro de 2014).
Nesse cenário, o capital apreende o grafite e o sujeito
grafiteiro para dentro de suas empresas e instituições, a fim de
melhor lucrar com as redes sociais, reformulando-se e
reestruturando-se ao máximo possível para libertar-se da fabricação
de mercadorias e concentrar-se mais na comunicação e nos
processos imateriais (Trindade e Santos, 2002). O grafite funciona
como um elemento artístico e popular, que enfeita, renova e colore
tanto as ruas da cidade como os objetos de design. Ao mesmo
tempo em que os grafiteiros tornam-se sujeitos produtivos, que
têm em sua atividade, antes marginal, uma nova utilidade e também
uma fonte de renda e reconhecimento.
Considerando grafite e design como dois campos sociais que
partilham a mesma territorialidade, e consequentemente uma certa
hibridização, pode-se dizer que há uma relação entre eles pelo viés
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social. Localizando-os como elementos de um tipo de uma cadeia de
produção, constituídos por determinantes culturais, que surgem da
“conjunção complexa de numerosas determinantes e condições
estruturais” (Morgenstern, 2011, 11).
Para Becker (2009) as imagens podem ser entendidas como
modos de representar o meio social. Considerações sobre como as
pessoas trabalham em outros campos tais como artistas visuais,
romancistas, dramaturgos, fotógrafos e cineastas, são
representação da sociedade e um modo de revelar dimensões
analíticas e possibilidades que o campo da ciência social
desconhecia como sendo úteis em outras circunstâncias. Segundo
o autor, todas essas atividades, em todos os seus meios são relatos
e representações sobre a sociedade. Analisar os problemas e as
soluções que diferentes meios têm em comum pode ajudar a
verificar resoluções para os problemas de descrição que um campo
pode importar de outro.
Uma mesma imagem pode ser percebida como grafite, arte
ou design. O que determinará sua aplicação é o objetivo de quem a
produziu, seja o grafiteiro, um artista ou um designer, assim como a
estrutura social que a receberá e a interpretará. Localizados dentro
de contextos específicos, podemos considerar o grafiteiro e ou o
designer como produtores e seus artefatos como produtos na
dependência de fatores externos, integrantes das estruturas
constitutivas de seu sistema simbólico. Como salienta Morgenstern
(2011), demonstra-se dessa maneira que as práticas dos grafiteiros
e designers só podem ser entendidas quando observadas em
encadeamentos particulares: as formas de produção e interpretação
da categoria assumem sentidos variados, dependendo de sua
posição espacial, histórica, cultural, econômica, etc. Em linhas
77
gerais, design e grafite podem ser compreendidos como uma forma
de mediação cultural, permeados por hibridismos, misturas e
transculturalidades.
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